Language of document : ECLI:EU:C:2020:708

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

15 de setembro de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Comunicações eletrónicas — Regulamento (UE) 2015/2120 — Artigo 3.o — Acesso à Internet aberta — Artigo 3.o, n.o 1 — Direitos dos utilizadores finais — Direito de aceder às aplicações e aos serviços e de os utilizar — Direito de fornecer aplicações e serviços — Artigo 3.o, n.o 2 — Proibição dos acordos ou das práticas comerciais que limitem o exercício dos direitos dos utilizadores finais — Conceitos de “acordos”, de “práticas comerciais”, de “utilizadores finais” e de “consumidores” — Avaliação da existência de uma limitação do exercício dos direitos dos utilizadores finais — Modalidades — Artigo 3.o, n.o 3 — Dever de tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego — Possibilidade de utilizar medidas razoáveis de gestão do tráfego — Proibição das medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego — Exceções — Práticas comerciais que consistem em propor ofertas agrupadas que preveem que os clientes subscritores adquirem um pacote que lhes dá o direito de utilizar sem restrições um determinado volume de dados, sem que a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos abrangidos por uma “tarifa zero” seja descontada do volume de dados contratado, e podem, uma vez esgotado esse volume de dados, continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos, ao mesmo tempo que são aplicadas medidas de bloqueio e de abrandamento às outras aplicações e serviços»

Nos processos apensos C‑807/18 e C‑39/19,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), por Decisões de 11 de setembro de 2018, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 20 de dezembro de 2018 e em 23 de janeiro de 2019, nos processos

Telenor Magyarország Zrt.

contra

Nemzeti Média és Hírközlési Hatóság Elnöke,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, M. Vilaras, E. Regan, S. Rodin e I. Jarukaitis, presidentes de secção, E. Juhász, M. Ilešič, J. Malenovský (relator), L. Bay Larsen, F. Biltgen, A. Kumin, N. Jääskinen e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: M. Campos Sánchez‑Bordona,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 17 de dezembro de 2019,

considerando as observações apresentadas:

–        em representação da Telenor Magyarország Zrt., por A. Losonci e P. Galambos, assistidos por M. Orbán, ügyvéd,

–        em representação do Nemzeti Média‑ és Hírközlési Hatóság Elnöke, por I. Kun, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo húngaro, inicialmente, por M. Z. Fehér e Zs. Wagner e, em seguida, pelo primeiro, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e A. Brabcová, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller e D. Klebs, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e M. J. Langer, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo austríaco, inicialmente, por G. Hesse e J. Schmoll e, em seguida, por esta última, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo romeno, inicialmente, por C.‑R. Canţăr, E. Gane, R. I. Haţieganu e A. Wellman e, em seguida, por estes três últimos, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo esloveno, por N. Pintar Gosenca e A. Dežman Mušič, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo finlandês, por M. Pere, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun, L. Havas e L. Nicolae, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 4 de março de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 3.o do Regulamento (UE) 2015/2120 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que estabelece medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta e que altera a Diretiva 2002/22/CE relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas e o Regulamento (UE) n.o 531/2012 relativo à itinerância nas redes de comunicações móveis públicas da União (UE) (JO 2015, L 310, p. 1; retificação no JO 2016, L 27, p. 14).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de dois litígios que opõem a Telenor Magyarország Zrt.  (a seguir «Telenor») ao Nemzeti Média‑ és Hírközlési Hatóság Elnöke (Presidente da Autoridade Nacional das Comunicações e dos Media, Hungria) (a seguir «Presidente da ANCM») a propósito de duas decisões pelas quais este ordenou que aquela deixasse de oferecer alguns dos seus serviços de acesso à Internet.

 Quadro jurídico

 Regulamento (UE) 2015/2120

3        Os considerandos 1, 3, 6 a 9 e 11 do Regulamento 2015/2120 têm a seguinte redação:

«(1)      O presente regulamento tem por objetivo estabelecer regras comuns para garantir o tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego na prestação de serviços de acesso à Internet e os direitos dos utilizadores finais relacionados com essa prestação. O presente regulamento visa proteger os utilizadores finais e garantir, simultaneamente, o funcionamento contínuo do ecossistema da Internet como motor de inovação. […]

[…]

(3)      A Internet desenvolveu‑se nas últimas décadas como uma plataforma aberta à inovação com poucos obstáculos de acesso para os utilizadores finais, fornecedores de conteúdos, aplicações e prestadores de serviços de Internet. O quadro regulamentar em vigor visa promover a capacidade de os utilizadores finais acederem à informação e divulgarem ou utilizarem aplicações e serviços à sua escolha. Contudo, um número significativo de utilizadores finais é afetado por práticas de gestão do tráfego que bloqueiam ou tornam mais lentas algumas aplicações e serviços específicos. Essas tendências exigem que se estabeleçam a nível da União regras comuns que assegurem a abertura da Internet e evitem a fragmentação do mercado interno em resultado de medidas adotadas pelos Estados‑Membros a título individual.

[…]

(6)      Através do seu serviço de acesso à Internet, os utilizadores finais deverão ter o direito de aceder às informações e conteúdos que desejarem e de os divulgar, bem como de utilizar e fornecer aplicações e serviços sem discriminações. […]

(7)      A fim de exercer os direitos de aceder a informações e conteúdos e de os distribuir, e de utilizar e fornecer aplicações e serviços, os utilizadores finais deverão ter a liberdade de acordar com os prestadores de serviços de acesso à Internet as tarifas e os volumes de dados e débitos específicos do serviço de acesso à Internet. Esses acordos, bem como as práticas comerciais dos prestadores de serviços de acesso à Internet, não deverão restringir o exercício desses direitos nem, por conseguinte, contornar as disposições do presente regulamento relativas ao acesso à Internet aberta. As autoridades reguladoras nacionais e as outras autoridades competentes deverão dispor de poderes para intervir contra acordos ou práticas comerciais que, pela sua dimensão, conduzam a situações em que, na prática, a escolha dos utilizadores finais se veja substancialmente reduzida. Para o efeito, a avaliação dos acordos e práticas comerciais adotados deverá atender, nomeadamente, às posições de mercado respetivas desses prestadores de serviços de acesso à Internet, bem como dos fornecedores de conteúdos, de aplicações e de serviços envolvidos. No âmbito das suas funções de controlo e de aplicação da lei, as autoridades reguladoras nacionais e as outras autoridades competentes deverão ser obrigadas a intervir quando os acordos ou práticas comerciais possam pôr em causa os direitos dos utilizadores finais.

(8)      Aquando da prestação de serviços de acesso à Internet, os prestadores desses serviços deverão tratar todo o tráfego equitativamente, sem discriminações, restrições ou interferências, independentemente do seu emissor ou recetor, conteúdo, aplicação, serviço ou equipamento terminal. […]

(9)      A gestão razoável do tráfego tem por objetivo contribuir para uma utilização eficaz dos recursos da rede e para uma melhoria global da qualidade de transmissão que corresponda aos requisitos técnicos de qualidade do serviço objetivamente diferentes de categorias específicas de tráfego e, por conseguinte, dos conteúdos, aplicações e serviços transmitidos. As medidas razoáveis de gestão do tráfego aplicadas pelos prestadores de serviços de acesso à Internet deverão ser transparentes, não discriminatórias e proporcionadas, e não deverão basear‑se em questões de ordem comercial. […]

[…]

(11)      Salvo as exceções previstas e justificadas no presente regulamento, deverão ser proibidas práticas de gestão do tráfego que bloqueiem, abrandem, alterem, restrinjam ou degradem conteúdos, aplicações ou serviços específicos, ou categorias específicas dos mesmos, ou que estabeleçam discriminações entre eles ou neles interfiram, e que sejam mais gravosas do que as medidas razoáveis diferenciadas de gestão do tráfego. Essas exceções deverão ser objeto de interpretação restritiva e estar sujeitas a requisitos de proporcionalidade. Devido ao impacto negativo gerado, em termos de inovação e de escolha do utilizador final, pelo bloqueio ou por outras medidas restritivas que não se enquadrem nas exceções justificadas, haverá que proteger conteúdos, serviços e aplicações específicos, bem como categorias específicas dos mesmos. […]»

4        O artigo 1.o do Regulamento 2015/2120, sob a epígrafe «Objeto e âmbito de aplicação»:

«O presente regulamento estabelece regras comuns para garantir o tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego na prestação de serviços de acesso à Internet, e os direitos conexos dos utilizadores finais.»

5        Por força do artigo 2.o desse regulamento, as definições estabelecidas no artigo 2.o da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas («Diretiva‑Quadro») (JO 2002, L 108, p. 33), aplicam‑se também para efeitos desse regulamento.

6        O artigo 3.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Garantia de acesso à Internet aberta», enuncia nos seus n.os 1 a 3:

«1.      Os utilizadores finais têm o direito de aceder a informações e conteúdos e de os distribuir, de utilizar e fornecer aplicações e serviços e utilizar equipamento terminal à sua escolha, através do seu serviço de acesso à Internet, independentemente da localização do utilizador final ou do fornecedor, ou da localização, origem ou destino da informação, do conteúdo, da aplicação ou do serviço.

[…]

2.      Os acordos entre os prestadores de serviços de acesso à Internet e os utilizadores finais sobre as condições comerciais e técnicas e sobre as características dos serviços de acesso à Internet, tais como preços, volumes de dados ou velocidade, e quaisquer práticas comerciais utilizadas por prestadores de serviços de acesso à Internet, não limitam o exercício do direito dos utilizadores finais previsto no n.o 1.

3.      Os prestadores de serviços de acesso à Internet tratam equitativamente todo o tráfego, ao prestarem serviços de acesso à Internet, sem discriminações, restrições ou interferências, e independentemente do emissor e do recetor, do conteúdo acedido ou distribuído, das aplicações ou serviços utilizados ou prestados, ou do equipamento terminal utilizado.

O primeiro parágrafo não obsta a que os prestadores de serviços de acesso à Internet apliquem medidas razoáveis de gestão do tráfego. Para que possam ser consideradas razoáveis, essas medidas devem ser transparentes, não discriminatórias e proporcionadas, e não podem basear‑se em questões de ordem comercial, mas sim na qualidade técnica objetivamente diferente dos requisitos de serviço de categorias específicas de tráfego. Essas medidas não podem ter por objeto o controlo de conteúdos específicos, nem podem ser mantidas por mais tempo do que o necessário.

Os prestadores de serviços de acesso à Internet não podem estabelecer medidas de gestão do tráfego mais gravosas do que as medidas previstas no segundo parágrafo, e, em particular, não podem bloquear, abrandar, alterar, restringir, ou degradar conteúdos, aplicações ou serviços específicos, ou categorias específicas dos mesmos, nem estabelecer discriminações entre eles ou neles interferir, exceto na medida do necessário, e apenas durante o tempo necessário, para:

a)      Dar cumprimento aos atos legislativos da União ou à legislação nacional conforme com o direito da União a que o prestador de serviços de acesso à Internet está sujeito, ou às medidas conformes com o direito da União que dão execução a esses atos legislativos da União ou a essa legislação nacional, incluindo decisões dos tribunais ou de autoridades públicas investidas de poderes relevantes;

b)      Preservar a integridade e a segurança da rede, dos serviços prestados através dela e dos equipamentos terminais dos utilizadores finais;

c)      Prevenir congestionamentos iminentes da rede e atenuar os efeitos de congestionamentos excecionais ou temporários da rede, desde que categorias equivalentes de tráfego sejam tratadas equitativamente.»

7        O artigo 5.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Supervisão e aplicação da lei», prevê, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

«As autoridades reguladoras nacionais controlam e asseguram rigorosamente a conformidade com os artigos 3.o e 4.o, e promovem a disponibilidade contínua de serviços de acesso à Internet não discriminatórios e com níveis de qualidade que reflitam o progresso tecnológico. Para esse efeito, as autoridades reguladoras nacionais podem impor requisitos relativos às características técnicas, requisitos de qualidade mínima do serviço e outras medidas adequadas e necessárias a um ou mais prestadores de serviços de comunicações eletrónicas ao público, incluindo prestadores de serviços de acesso à Internet.»

 Diretiva 2002/21

8        O artigo 2.o da Diretiva 2002/21 contém, nomeadamente, as seguintes definições:

«h)      “Utilizador”, a pessoa singular ou coletiva que utiliza ou solicita um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público;

i)      “Consumidor”, a pessoa singular que utiliza ou solicita um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público para fins não profissionais;

[…]

n)      “Utilizador final”, o utilizador que não oferece redes de comunicações públicas, ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público.

[…]»

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

9        A Telenor, com sede na Hungria, é um ator importante do setor das tecnologias da informação e da comunicação. Presta, nomeadamente, serviços de acesso à Internet. Entre os serviços propostos aos seus potenciais clientes figuram duas ofertas agrupadas designadas, respetivamente, «MyChat» e «MyMusic».

10      «MyChat» é uma oferta agrupada que permite aos clientes que a subscrevem, em primeiro lugar, adquirir um volume de dados de um gigabit (1GB) e utilizá‑lo sem restrições até se esgotar, acedendo livremente às aplicações e aos serviços disponíveis, sem que seja descontada desse volume de dados a utilização das seis aplicações específicas de comunicação em linha, concretamente, Facebook, Messenger, Instagram, Twitter, Viber e Whatsapp, abrangidas pela chamada «tarifa zero». Em segundo lugar, esta oferta agrupada prevê que, uma vez esgotado o referido volume de dados, os clientes que o adquiriram podem continuar a utilizar sem restrições essas seis aplicações específicas, enquanto são aplicadas às outras aplicações e serviços disponíveis medidas de abrandamento do tráfego.

11      «MyMusic» é uma oferta agrupada que se desdobra em três pacotes diferentes, denominados, respetivamente, «MyMusic Start», «MyMusic Nonstop» e «MyMusic Deezer», disponibilizados aos clientes que tenham subscrito anteriormente um pacote de serviços de acesso à Internet e que permitem aos subscritores, em primeiro lugar, ouvir música em linha utilizando, designadamente, quatro aplicações de transmissão de música, concretamente, Apple Music, Deezer, Spotify e Tidal, bem como seis serviços de rádio, sem que a utilização dessas aplicações e desses serviços, abrangidos por uma «tarifa zero», seja descontada do volume de dados incluídos no pacote de serviços adquirido. Em segundo lugar, esta oferta agrupada prevê que, uma vez esgotado esse volume de dados, os clientes subscritores podem continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos, enquanto são aplicadas às outras aplicações e serviços disponíveis medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego.

12      Após ter dado início a dois processos para verificar, respetivamente, a conformidade de «MyChat» e de «MyMusic» com o artigo 3.o do Regulamento 2015/2120, a Nemzeti Média‑ és Hírközlési Hatóság (Autoridade Nacional das Comunicações e dos Media, Hungria) adotou duas decisões em que considerou que essas ofertas agrupadas aplicavam medidas de gestão do tráfego que não respeitavam a obrigação de tratamento equitativo e não discriminatório enunciada no n.o 3 desse artigo e que a Telenor lhes devia pôr termo.

13      Essas duas decisões foram posteriormente confirmadas por duas decisões do Presidente da ANCM, que considerou, em especial, que o exame da compatibilidade das medidas de gestão do tráfego com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 não impunha uma avaliação do impacto dessas medidas no exercício dos direitos dos utilizadores finais, como enunciados no artigo 3.o, n.o 1, desse regulamento.

14      A Telenor contestou essas duas decisões do Presidente da ANCM no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria).

15      Nesse âmbito, sustenta, em substância, que as ofertas agrupadas «MyChat» e «MyMusic» fazem parte dos acordos concluídos com os seus clientes e que só podem, como tais, ser abrangidos pelo artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, e não pelo artigo 3.o, n.o 3, desse regulamento, que tem em vista unicamente as medidas de gestão do tráfego aplicadas unilateralmente pelos prestadores dos serviços de acesso à Internet. Além disso, e em qualquer caso, para determinar se essas ofertas agrupadas são compatíveis com a segunda dessas disposições, seria necessário, do mesmo modo que para efeitos de apreciação da sua compatibilidade com a primeira delas, avaliar o seu impacto sobre o exercício dos direitos dos utilizadores finais. Por conseguinte, considera que as referidas ofertas agrupadas não podem ser consideradas incompatíveis com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 pelo simples facto de utilizarem medidas de gestão do tráfego que não respeitam a obrigação de tratamento equitativo e não discriminatório enunciado nessa disposição, como alega o Presidente da ANCM.

16      Em resposta, este alega, designadamente, que a questão de saber qual a disposição do artigo 3.o do Regulamento 2015/2120 à luz da qual deve ser apreciado um determinado comportamento depende não da forma deste comportamento, mas do seu conteúdo. Além disso, sustenta que, diferentemente do n.o 2 desse artigo, que impõe a avaliação do impacto dos acordos e das práticas comerciais utilizadas pelos prestadores de serviços de acesso à Internet sobre o exercício dos direitos dos utilizadores finais, o n.o 3 do referido artigo proíbe todas as medidas de gestão não equitativa ou discriminatória do tráfego, sem que seja pertinente distinguir as que foram postas em prática através de um contrato celebrado por um utilizador final com um prestador e as que se baseiam numa prática comercial deste último. Além disso, todas essas medidas são proibidas enquanto tais e, por conseguinte, não é necessário avaliar o seu impacto sobre o exercício dos direitos dos utilizadores finais.

17      Após ter salientado que o Regulamento 2015/2120 tem em vista garantir a neutralidade da Internet e que, a esse título, assume grande importância, o órgão jurisdicional de reenvio considera, em substância, que os litígios nele pendentes suscitam dois tipos de questões de direito novas relativas a uma disposição central deste regulamento.

18      A este respeito, salienta, em primeiro lugar, que, paralelamente aos n.os 1 e 2 do artigo 3.o do Regulamento 2015/2120, que garantem um certo número de direitos aos utilizadores finais de serviços de acesso à Internet e que proíbem os prestadores desses serviços de utilizarem acordos ou práticas comerciais que limitam o exercício desses direitos, o n.o 3 do referido artigo 3.o enuncia uma obrigação geral de tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego. No entanto, o texto deste regulamento não permite determinar se as ofertas agrupadas que são propostas por um prestador de serviços de acesso à Internet através de contratos concluídos com os seus clientes e que preveem que estes beneficiam de uma «tarifa zero» que lhes permite utilizar sem restrições certas aplicações e certos serviços específicos, sem que essa utilização seja descontada do volume de dados adquirido, e que, uma vez esgotado esse volume de dados, são aplicadas medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego às outras aplicações e serviços disponíveis, são abrangidas pelo n.o 2, pelo n.o 3 ou pelos n.os 2 e 3 do artigo 3.o desse regulamento.

19      Em segundo lugar, a letra destes dois números também não permite, uma vez determinado aquele ou aqueles que são aplicáveis a tais comportamentos, saber que metodologia deve ser seguida para determinar se estes últimos são compatíveis com o Regulamento 2015/2120.

20      Nestas condições, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, redigidas em termos idênticos nos processos C‑807/18 e C‑39/19:

«1)      Deve o acordo comercial entre o prestador de serviços de acesso à Internet e o utilizador final, nos termos do qual o prestador de serviços aplica ao utilizador final uma tarifa de custo zero relativamente a determinadas aplicações (isto é, o tráfego gerado por uma determinada aplicação não é contabilizado para efeitos de consumo de dados e também não abranda a sua velocidade uma vez consumido o volume de dados acordado), e nos termos do qual esse prestador pratica uma discriminação limitada às condições do acordo comercial celebrado com o consumidor final apenas contra o utilizador final que é parte desse acordo, e não contra um utilizador final que não seja parte do mesmo, ser interpretado à luz do artigo 3.o, n.o 2, do [Regulamento (UE) 2015/2120]?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão prejudicial, deve o artigo 3.o, n.o 3, do [Regulamento 2015/2120] ser interpretado no sentido de que, para determinar a existência de uma infração — tendo em conta também o considerando 7 do [r]egulamento — é necessária uma avaliação baseada no impacto e no mercado que determine se as medidas adotadas pelo prestador de serviços de acesso à Internet limitam efetivamente — e, sendo caso disso, em que medida — os direitos que o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento reconhece ao utilizador final?

3)      Independentemente da[s] primeira e segunda questões prejudiciais, deve o artigo 3.o, n.o 3, do [Regulamento 2015/2120] ser interpretado no sentido de que a proibição que estabelece é [incondicional,] geral e objetiva, de modo que, nos termos da mesma, é proibida qualquer medida de gestão do tráfego que efetue distinções entre determinados conteúdos de Internet, independentemente de esse prestador de serviços de acesso à Internet fazer tais distinções por acordo, prática comercial ou outro tipo de conduta?

4)      Em caso de resposta afirmativa à terceira questão, pode também considerar‑se que existe uma infração ao artigo 3.o, n.o 3, do [Regulamento 2015/2120], pelo simples facto de existir uma discriminação, sem necessidade de realizar adicionalmente uma avaliação do mercado e do impacto, não sendo nesse caso necessária uma avaliação de acordo com o artigo 3.o n.os 1 e 2, do Regulamento?»

21      Por Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 8 de março de 2019, os processos C‑807/18 e C‑39/19 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

22      Com as suas quatro questões, que há que apreciar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o do Regulamento 2015/2120 deve ser interpretado no sentido de que as ofertas agrupadas propostas por um prestador de serviços de acesso à Internet através de acordos concluídos com utilizadores finais, nos termos dos quais estes podem adquirir um pacote de serviços que lhes dá o direito de utilizarem sem restrições um volume de dados determinado, sem que a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos abrangidos pela «tarifa zero» seja descontada do volume de dados contratado, e, uma vez esgotado esse volume de dados, podem continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos, enquanto são aplicadas medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego às outras aplicações e serviços disponíveis, são incompatíveis com o n.o 2 desse artigo, lido em conjugação com o n.o 1 deste, e, em alternativa ou cumulativamente, com o n.o 3 do referido artigo.

23      Nos termos do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, por um lado, os acordos entre prestadores de serviços de acesso à Internet e os utilizadores finais, e, por outro, as práticas comerciais utilizadas por esses prestadores, não devem limitar o exercício dos direitos dos utilizadores finais, conforme enunciadas no n.o 1 desse artigo. Esses direitos compreendem, designadamente, como resulta desta última disposição, clarificada pelo considerando 6 do Regulamento 2015/2120, o direito de utilizar conteúdos, aplicações e serviços por intermédio de um serviço de acesso à Internet, bem como de fornecer tais conteúdos, tais aplicações e tais serviços por este intermediário.

24      Por seu turno, o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 começa por prever, no seu primeiro parágrafo, que os prestadores de serviços de acesso à Internet tratam equitativamente todo o tráfego, ao prestarem serviços de acesso à Internet, sem discriminações, restrições ou interferências, e independentemente das aplicações ou serviços utilizados.

25      Esta disposição enuncia em seguida, no segundo parágrafo, que o seu primeiro parágrafo não obsta a que os prestadores de serviços de acesso à Internet apliquem medidas razoáveis de gestão do tráfego, especificando que, para que possam ser consideradas razoáveis, essas medidas devem, em primeiro lugar, ser transparentes, não discriminatórias e proporcionadas, e, em segundo lugar, não podem basear‑se em questões de ordem comercial, mas sim na qualidade técnica objetivamente diferente dos requisitos de serviço de certas categorias de tráfego, e, em terceiro lugar, não podem ter por objeto o controlo de conteúdos, nem podem ser mantidas por mais tempo do que o necessário.

26      Por fim, a referida disposição prevê, no seu terceiro parágrafo que os prestadores de serviços de acesso à Internet não devem estabelecer medidas de gestão do tráfego mais gravosas do que as medidas previstas no segundo parágrafo, e, em particular, não podem bloquear, abrandar, alterar, restringir, ou degradar conteúdos, aplicações ou serviços específicos, ou categorias específicas dos mesmos, nem estabelecer discriminações entre eles ou neles interferir, exceto na medida do necessário, e apenas durante o tempo necessário, para dar cumprimento a atos legislativos da União ou à legislação nacional conforme com o direito da União ou às medidas conformes com o direito da União que dão execução a esses atos legislativos da União ou a essa legislação nacional, para preservar a integridade e a segurança da rede, dos serviços prestados através dela e dos equipamentos terminais dos utilizadores finais, para prevenir congestionamentos da rede ou atenuar os respetivos efeitos.

27      Estas diferentes disposições visam, como decorre do artigo 1.o do Regulamento 2015/2120 e como o advogado‑geral salientou nos n.os 27 a 29 das suas conclusões, garantir o tratamento equitativo e não discriminatório do tráfego na prestação de serviços de acesso à Internet, e os direitos conexos dos utilizadores finais.

28      Sendo a conformidade com as referidas disposições e, através delas, o cumprimento dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento 2015/2120 assegurados, segundo o seu artigo 5.o, pelas autoridades reguladoras nacionais, é a estas que cabe, sob a fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais e à luz das clarificações fornecidas pelo Tribunal de Justiça, determinar, caso a caso, se um ou outro comportamento de um dado prestador de serviços de acesso à Internet é abrangido, tendo em conta as suas características, pelo artigo 3.o, n.o 2, do referido regulamento ou pelo artigo 3.o, n.o 3, do mesmo regulamento, ou ainda por estas disposições cumulativamente, iniciando o seu exame, nesta última hipótese, por uma ou outra. Se uma autoridade reguladora nacional considerar que um determinado comportamento de um dado prestador de serviços de acesso à Internet é, na totalidade, incompatível com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120, pode abster‑se de determinar se esse comportamento é igualmente incompatível com o artigo 3.o, n.o 2, desse regulamento.

29      No caso em apreço, resulta dos elementos submetidos ao Tribunal que as ofertas agrupadas em causa no processo principal, bem como o teor das questões prejudiciais e o conteúdo das duas decisões de reenvio, conforme resumidas nos n.os 9 a 11 e 18 do presente acórdão, apresentam quatro características. Em primeiro lugar, o prestador de serviços de acesso à Internet que as concebeu propõe‑as aos seus potenciais clientes na Hungria, antes de as concretizar em acordos concluídos, a título bilateral, com os interessados. Em segundo lugar, essas ofertas agrupadas dão a cada um dos clientes que subscreveram o direito de utilizar sem restrições, no limite do volume de dados incluídos no pacote que adquiriu ao prestador de serviços de acesso à Internet, todas as aplicações e os serviços disponíveis, sem que, contudo, a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos abrangidos por uma «tarifa zero» seja descontada do volume de dados contratado. Em terceiro lugar, as referidas ofertas agrupadas preveem que, uma vez esgotado o volume de dados adquirido, qualquer cliente que as tenha subscrito pode continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos. Em quarto lugar, uma vez consumido o volume de dados incluídos no pacote sujeito a essas condições, o prestador de serviços de acesso à Internet aplica ao cliente em questão as medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego ligado à utilização de qualquer aplicação e de quaisquer outros serviços além dos que são abrangidos pela referida tarifa zero.

30      No que respeita, em primeiro lugar, ao artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, lido em conjugação com o artigo 3.o, n.o 1, desse regulamento, há que começar por observar que a segunda destas disposições prevê que os direitos por ela garantidos aos utilizadores finais dos serviços de acesso à Internet são exercidos «através do seu serviço de acesso à Internet», e que a primeira exige que tal serviço não implique limitações ao exercício desses direitos.

31      Por outro lado, decorre do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, lido à luz do considerando 7 desse regulamento, que os serviços de um dado prestador de acesso à Internet devem ser avaliados tendo em conta a referida exigência pelas autoridades reguladoras nacionais, atuando com base no artigo 5.o do referido regulamento e sob o controlo dos órgãos jurisdicionais nacionais competentes, tomando em consideração tanto os contratos concluídos por esse prestador com os utilizadores finais como as práticas comerciais utilizadas pelo referido prestador.

32      A este propósito, há que observar, em primeiro lugar, que o artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120 tem em vista os «acordos» pelos quais um prestador de serviços de acesso à Internet, por um lado, e um utilizador final, por outro, acordam condições comerciais e técnicas, bem como características dos serviços de acesso à Internet a prestar pelo primeiro ao segundo, como o preço a pagar e o volume de dados, bem como a velocidade correspondentes.

33      Como resulta do considerando 7 do Regulamento 2015/2120, esses acordos concretizam a liberdade de que dispõe qualquer utilizador final de escolher os serviços a partir dos quais pretende exercer os direitos garantidos por esse regulamento, em função das suas características. Este mesmo considerando acrescenta que tais acordos não deverão restringir o exercício dos direitos dos utilizadores finais nem, por conseguinte, contornar as disposições do referido regulamento relativas ao acesso à Internet aberta.

34      Relativamente às «práticas comerciais» visadas no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, esta disposição precisa que são «utilizadas» pelos prestadores de serviços de acesso à Internet. Assim, não é suposto traduzirem uma vontade comum entre um tal prestador e um utilizador final, contrariamente aos «acordos» a que a referida disposição se refere em paralelo.

35      Essas práticas comerciais podem incluir, designadamente, o comportamento de um prestador de serviços de acesso à Internet consistente em propor variantes ou combinações específicas desses serviços aos seus clientes potenciais, com vista a responder às expectativas e às preferências de cada pessoa, e, eventualmente, concluir com cada um deles um acordo individual, com a consequência possível de uma utilização mais ou menos significativa de acordos de conteúdo idêntico ou similar, em função dessas expectativas e dessas preferências. À semelhança dos acordos visados no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, as referidas práticas comerciais não devem, contudo, limitar o exercício dos direitos dos utilizadores finais nem, consequentemente, permitir contornar as disposições desse regulamento em matéria de garantia de acesso a uma Internet aberta.

36      Em segundo lugar, resulta do artigo 2.o do Regulamento 2015/2120 e das disposições da Diretiva 2002/21 para as quais remete, em especial do artigo 2.o, alíneas h), i) e n), desta última, que o conceito de «utilizadores finais» engloba todas as pessoas singulares ou coletivas que utilizam ou procuram um serviço de comunicações eletrónicas acessível ao público, diferentes das que fornecem redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público. Assim, este conceito refere‑se tanto aos consumidores como aos profissionais, tais como empresas ou pessoas coletivas sem fins lucrativos.

37      Por outro lado, o referido conceito inclui tanto as pessoas singulares ou coletivas que utilizam ou procuram serviços de acesso à Internet com vista a aceder a conteúdos, aplicações e serviços como as que se baseiam no acesso à Internet para fornecer conteúdos, aplicações e serviços.

38      O artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento 2015/2120 e o considerando 6 deste regulamento também se referem especificamente a essas duas categorias de utilizadores finais, aos quais reconhecem o direito, designadamente, de aceder às informações e aos conteúdos, bem como de utilizar aplicações e serviços, mas também divulgar informações e conteúdos, bem como fornecer aplicações e serviços.

39      Daqui decorre que a existência eventual de uma limitação proibida do exercício dos direitos dos utilizadores finais, como especificada no n.o 30 do presente acórdão, deve ser avaliada tendo em conta o impacto dos acordos ou das práticas comerciais de um determinado prestador de serviços de acesso à Internet sobre os direitos, não apenas dos profissionais e dos consumidores que utilizam ou solicitam serviços de acesso à Internet para acederem a conteúdos, a aplicações e a serviços, mas também a profissionais que se baseiam nesses serviços de acesso à Internet para fornecerem esses conteúdos, aplicações e serviços. A este propósito, resulta do considerando 7 do Regulamento 2015/2120 que a avaliação dos acordos e das práticas comerciais do prestador em causa deve atender precisamente, entre outros elementos, às posições de mercado desta categoria de profissionais.

40      Em terceiro lugar, o artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120 refere‑se, no contexto evocado no número anterior, aos «acordos» e às «práticas comerciais» de um dado prestador de serviços de acesso à Internet, utilizando, num grande número de versões linguísticas, o plural.

41      Além disso, o considerando 7 do Regulamento 2015/2120 precisa que avaliação da existência eventual de uma limitação do exercício dos direitos dos utilizadores finais implica determinar se os acordos e as práticas comerciais de um tal prestador, pela sua dimensão, conduzem a situações em que a escolha dos utilizadores finais se veja substancialmente reduzida, atendendo, nomeadamente, às posições de mercado respetivas desses prestadores de serviços de acesso à Internet, bem como dos fornecedores de conteúdos, de aplicações e de serviços envolvidos.

42      Daqui resulta que não foi intenção do legislador da União limitar a avaliação dos acordos e das práticas comerciais de um dado prestador de serviços de acesso à Internet a um acordo em concreto ou a uma prática comercial em concreto, individualmente considerada, mas sim prever que fosse igualmente feita uma avaliação de conjunto dos acordos e das práticas comerciais desse prestador.

43      Atendendo a estes diferentes elementos, há que salientar, antes de mais, que um acordo no qual um dado cliente subscreve uma oferta agrupada que implica que, uma vez esgotado o volume de dados incluídos no pacote adquirido, esse cliente apenas dispõe de um acesso sem restrições a certas aplicações e a certos serviços abrangidos por uma «tarifa zero», é suscetível de produzir uma limitação do exercício dos direitos enunciados no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento 2015/2120. A compatibilidade de tal acordo com o artigo 3.o, n.o 2, desse regulamento deve ser avaliada caso a caso, à luz dos parâmetros evocados no considerando 7 do referido regulamento.

44      Seguidamente, tais ofertas agrupadas, que são de qualificar de prática comercial na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120, são, relativamente ao impacto cumulado dos acordos a que podem conduzir, suscetíveis de amplificar a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos, concretamente aplicações e serviços que podem ser utilizados sem restrições a uma «tarifa zero» uma vez esgotado o volume de dados incluídos no pacote adquirido pelos clientes e, correlativamente, de reduzir a utilização das outras aplicações e dos outros serviços disponíveis, tendo em conta as medidas através das quais o prestador de serviços de acesso à Internet em causa torna essa utilização tecnicamente mais difícil, se não mesmo impossível.

45      Por fim, quanto maior for o número de clientes que concluem acordos de subscrição de tais ofertas agrupadas maior será a possibilidade de o impacto cumulado desses acordos, atendendo à sua dimensão, provocar uma limitação significativa do exercício do direito dos utilizadores finais, ou mesmo pôr em causa a própria essência desses direitos, hipótese expressamente evocada no considerando 7 do Regulamento 2015/2120.

46      Daqui resulta que a conclusão de tais acordos numa parte significativa do mercado é suscetível de limitar o exercício dos direitos dos utilizadores finais, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento 2015/2120.

47      Em segundo lugar, no que respeita ao artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120, há que observar, em primeiro lugar, que, como decorre do n.o 24 do presente acórdão, o primeiro parágrafo desta disposição, lido à luz do considerando 8 desse regulamento, impõe aos prestadores de serviços de acesso à Internet uma obrigação geral de tratamento equitativo, sem discriminações, restrições ou interferências, obrigação à qual não se pode em caso algum derrogar através de práticas comerciais utilizadas por esses prestadores ou de acordos concluídos por estes com os utilizadores finais.

48      Seguidamente, decorre do segundo parágrafo da referida disposição, bem como do considerando 9 do Regulamento 2015/2120, à luz do qual deve ser lido, que, embora devendo respeitar essa obrigação geral, os prestadores de serviços de acesso à Internet mantêm a possibilidade de adotar medidas razoáveis de gestão do tráfego. Contudo, essa possibilidade está sujeita à condição, designadamente, de que tais medidas se baseiem «na qualidade técnica objetivamente diferente dos requisitos de serviço de categorias específicas de tráfego» e não em «questões de ordem comercial». Em especial, deve considerar‑se que se baseia em «questões de ordem comercial» qualquer medida que um prestador de serviços de acesso à Internet adota em relação a um utilizador final, como definido nos n.os 36 e 37 do presente acórdão, que conduza, sem se basear em tais qualidades técnicas objetivamente diferentes, a não tratar equitativamente e sem discriminação os conteúdos, as aplicações ou os serviços propostos pelos diferentes prestadores de conteúdos, de aplicações ou de serviços.

49      Por último, resulta do terceiro parágrafo do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 que, a menos que sejam adotadas durante um período determinado e que sejam necessárias para permitir a um prestador de serviços de acesso à Internet dar cumprimento a uma obrigação legal, preservar a integridade e a segurança da rede, prevenir ou resolver os congestionamentos de rede, todas as medidas que consistam em bloquear, abrandar, alterar, restringir ou degradar, designadamente, aplicações ou serviços específicos, ou em estabelecer discriminações entre eles não podem ser consideradas razoáveis na aceção do segundo parágrafo desta disposição e são, portanto, de considerar, enquanto tais, incompatíveis com essa disposição.

50      Daí que, para declarar esta incompatibilidade, não é exigida nenhuma avaliação do impacto dessas medidas no exercício do direito dos utilizadores finais, uma vez que o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 não prevê tal exigência para apreciar o cumprimento da obrigação geral que impõe.

51      No caso em apreço, por um lado, os comportamentos em causa no processo principal incluem medidas de bloqueio e de abrandamento do tráfego ligado à utilização de certas aplicações e de certos serviços, abrangidas pelo artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento 2015/2120 independentemente da questão de saber se tais medidas resultam de um acordo concluído com o prestador de serviços de acesso à Internet, de uma prática comercial desse prestador ou de uma medida técnica do referido prestador não ligada a um acordo nem a uma prática comercial. Essas medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego são aplicadas em complemento da «tarifa zero» de que beneficiam os utilizadores finais em causa, e tornam tecnicamente mais difícil, se não mesmo impossível, a utilização por estes das aplicações e dos serviços não abrangidos por esta tarifa.

52      Consequentemente, essas medidas não se baseiam na qualidade técnica objetivamente diferente dos requisitos de serviço de categorias específicas de tráfego, mas em questões de ordem comercial.

53      Por outro lado, não resulta de nenhum elemento dos autos que as referidas medidas sejam abrangidas por uma das três exceções taxativamente enumeradas no artigo 3.o, n.o 3, terceiro parágrafo, do Regulamento 2015/2120.

54      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 3.o do Regulamento 2015/2120 deve ser interpretado no sentido de que as ofertas agrupadas propostas por um prestador de serviços de acesso à Internet através de acordos concluídos com utilizadores finais, nos termos dos quais estes podem adquirir um pacote de serviços que lhes dá o direito de utilizarem sem restrições um volume de dados determinado, sem que a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos abrangidos pela «tarifa zero» seja descontada do volume de dados contratado, e, uma vez esgotado esse volume de dados, podem continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos, enquanto são aplicadas medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego às outras aplicações e serviços disponíveis:

–        são incompatíveis com o n.o 2 desse artigo, lido em conjugação com o seu n.o 1, se essas ofertas agrupadas, esses acordos e essas medidas de bloqueio ou de abrandamento restringirem o exercício dos direitos dos utilizadores finais, e

–        são incompatíveis com o n.o 3 do referido artigo se as referidas medidas de bloqueio ou de abrandamento se basearem em questões comerciais.

 Quanto às despesas

55      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 3.o do Regulamento (UE) 2015/2120 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, que estabelece medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta e que altera a Diretiva 2002/22/CE relativa ao serviço universal e aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas e o Regulamento (UE) n.o 531/2012 relativo à itinerância nas redes de comunicações móveis públicas da União, deve ser interpretado no sentido de que as ofertas agrupadas propostas por um prestador de serviços de acesso à Internet através de acordos concluídos com utilizadores finais, nos termos dos quais estes podem adquirir um pacote de serviços que lhes dá o direito de utilizarem sem restrições um volume de dados determinado, sem que a utilização de certas aplicações e de certos serviços específicos abrangidos pela «tarifa zero» seja descontada do volume de dados contratado, e, uma vez esgotado esse volume de dados, podem continuar a utilizar sem restrições essas aplicações e esses serviços específicos, enquanto são aplicadas medidas de bloqueio ou de abrandamento do tráfego às outras aplicações e serviços disponíveis:

–        são incompatíveis com o n.o 2 desse artigo, lido em conjugação com o seu n.o 1, se essas ofertas agrupadas, esses acordos e essas medidas de bloqueio ou de abrandamento restringirem o exercício dos direitos dos utilizadores finais, e

–        são incompatíveis com o n.o 3 do referido artigo se as referidas medidas de bloqueio ou de abrandamento se basearem em questões comerciais.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.