Language of document : ECLI:EU:C:2013:50

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 31 de janeiro de 2013 (1)

Processo C‑418/11

TEXDATA Software GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Innsbruck (Áustria)]

«Direito das sociedades — Liberdade de estabelecimento — Artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE — Diretiva 2009/101/CE, Quarta Diretiva 78/660/CEE, Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE — Publicidade dos documentos contabilísticos das sociedades de capitais e das suas sucursais — Sanções previstas em caso de falta de publicidade — Proporcionalidade da sanção — Princípio da proteção jurisdicional efetiva — Princípio do respeito dos direitos de defesa — Princípio ne bis in idem»





1.        O direito da União opõe‑se a uma disposição nacional que prevê, uma vez esgotados os prazos fixados para a publicação dos documentos contabilísticos das sociedades, a aplicação imediata de uma sanção pecuniária, tanto à sociedade como aos seus órgãos sociais, sem aviso e sem a possibilidade de [a sociedade] apresentar previamente observações, e que prevê, em caso de incumprimento continuado, a posterior aplicação imediata de sanções? Esta é, em síntese, a questão submetida pelo Oberlandesgericht de Innsbruck (Áustria) com o presente pedido de decisão prejudicial.

2.        Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que verifique a compatibilidade de uma legislação deste tipo, recentemente adotada na Áustria, com a liberdade de estabelecimento prevista nos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE e com as disposições relativas à aplicação de sanções por falta de publicidade dos documentos contabilísticos previstos nas diretivas da União em matéria de sociedades, por um lado, e com os princípios da proteção jurisdicional efetiva, do respeito dos direitos de defesa e ne bis in idem, consagrados em várias disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»), por outro.

3.        Por conseguinte, no presente processo, apesar de o valor da causa do processo principal ser relativamente baixo, o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre questões do direito da União não negligenciáveis em absoluto.

I —    Quadro jurídico

A —    Direito da União

4.        O artigo 6.° da Primeira Diretiva em matéria de sociedades, ou seja, a Diretiva 68/151/CEE (2), atualmente artigo 7.° da Diretiva 2009/101/CE (3), na sequência da revogação daquela diretiva, dispõe o seguinte:

«Os Estados‑Membros estabelecem sanções apropriadas pelo menos nos seguintes casos:

a)      Falta de publicidade dos documentos contabilísticos prevista na alínea f) do artigo 2.°;

[...]»

5.        O artigo 60.°‑A da Quarta Diretiva em matéria de sociedades, ou seja, a Diretiva 78/660/CEE (4), dispõe que «[o]s Estados‑Membros estabelecem as regras em matéria de sanções aplicáveis às infrações às disposições nacionais aprovadas por força da presente diretiva e tomam todas as medidas necessárias para assegurar a sua aplicação. As sanções previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas».

6.        A décima Primeira Diretiva em matéria de sociedades, ou seja, a Diretiva 89/666/CEE (5), no seu artigo 1.°, n.° 1, prevê:

«Os atos e indicações relativos às sucursais criadas num Estado‑Membro por sociedades reguladas pelo direito de outro Estado‑Membro, às quais se aplica a Diretiva 68/151/CEE, serão publicados segundo o direito do Estado‑Membro onde a sucursal está situada, nos termos do artigo 3.° da referida diretiva.»

7.        Nos termos do artigo 12.° desta diretiva, «[o]s Estados‑Membros devem prever sanções adequadas em caso de falta da publicidade prevista n[o] artig[o] 1.°, [...]».

B —    Direito nacional

8.        Nos termos do § 277, n.° 1, do Unternehmensgesetzbuch (Código das Sociedades austríaco, a seguir «UGB»), os representantes legais das sociedades de capitais são obrigados a apresentar ao tribunal competente para o registo comercial do lugar no qual está situada a sede da sociedade as contas anuais, o relatório de gestão, bem como outros documentos relativos à sociedade, depois da sua discussão na assembleia geral e, em qualquer caso, num prazo máximo de nove meses a contar da data de encerramento do balanço.

9.        O § 280A do UGB, intitulado «Publicidade das sucursais das sociedades de capitais estrangeiras» dispõe que, no caso de sucursais de sociedades de capitais estrangeiras, os representantes da sucursal devem publicar, em língua alemã, de acordo com o § 277 do UGB, os documentos contabilísticos constituídos, verificados e publicados segundo o direito aplicável ao estabelecimento principal da sociedade (6).

10.      O § 283 do UGB intitula‑se «Coimas» e estabelece as consequências do incumprimento das obrigações de publicidade acima referidas. Foi objeto de reforma em 2011 (a seguir «reforma de 2011») (7).

11.      Nos termos do n.° 1 desta disposição, conforme alterada, os membros do conselho de administração ou os liquidatários são obrigados a cumprir o disposto no § 277 do UGB e, no caso das sucursais de sociedades de capitais estrangeiras, as pessoas com poderes para as representar são obrigadas a cumprir o disposto no § 280‑A do UGB sob pena de serem condenadas judicialmente a uma sanção pecuniária que pode ir de 700 euros a 3 600 euros. Esta sanção deve ser aplicada após o termo do prazo de publicidade e a aplicação deve ser repetida cada dois meses até que os referidos órgãos tenham cumprido as suas obrigações.

12.      Os n.os 2 e 3 do § 283 do UGB estabelecem o procedimento de aplicação da sanção pecuniária, que se divide em duas fases. Numa primeira fase, prevista no n.° 2 deste artigo, no caso de os órgãos sociais não terem cumprido as obrigações de publicidade que lhes incumbem até ao último dia do prazo fixado, deve ser aplicada, por despacho, uma sanção pecuniária de 700 euros, sem qualquer diligência processual prévia. Esta inexistência de diligências processuais prévias à aplicação desta primeira sanção constitui uma novidade introduzida pela reforma de 2011, que visa alterar a prática seguida pelos tribunais austríacos na vigência do regime anterior, de enviar avisos às empresas em situação de incumprimento, antes da aplicação da sanção (8).

13.      Sempre nos termos do n.° 2 do § 283 do UGB, só é possível dispensar a aplicação da sanção pecuniária se o órgão sujeito à obrigação manifestamente não pôde cumprir as obrigações de publicidade atempadamente devido a um acontecimento imprevisível ou inevitável. Neste caso, a adoção da decisão pode ser suspensa por um período máximo de quatro semanas. O órgão em causa dispõe de um prazo de catorze dias para deduzir reclamação da decisão que aplica a coima, alegando os motivos que na sua opinião justificam o incumprimento. Na ausência de reclamação, a decisão torna‑se definitiva. Se a reclamação for apresentada fora de prazo ou não indicar qualquer fundamento, deve ser indeferida mediante despacho. Todavia, pode ser concedido uma prorrogação do prazo.

14.      O n.° 3, do § 283 do UGB prevê uma eventual segunda fase do procedimento de aplicação da sanção pecuniária. Nos termos dessa disposição, a apresentação, dentro do prazo, de uma reclamação fundamentada da decisão que aplica a sanção pecuniária, referida no n.° 2, torna essa decisão inaplicável e inicia um processo comum. Esse processo pode ser concluído com o arquivamento do processo ou com a aplicação de uma sanção pecuniária que pode ir de 700 euros a 3 600 euros. O órgão social em causa pode interpor recurso da aplicação da sanção pecuniária em processo comum.

15.      Nos casos de, nos dois meses seguintes ao último dia do termo do prazo de publicidade fixado no § 277 do UGB e referido no n.° 8 anterior, a publicidade ainda não tiver sido efetuada, o n.° 4, do § 283 do UGB prevê que seja aplicada, mediante despacho, uma nova sanção pecuniária de 700 euros, a qual, no caso de o incumprimento da obrigação de publicidade subsistir, volta a ser aplicada por cada período posterior de dois meses. O § 283, n.° 5, do UGB prevê que no caso de empresas que, segundo os critérios indicados no próprio UGB, sejam consideradas de média ou grande dimensão, as sanções previstas no n.° 3, bem como as aplicadas sucessivamente em caso de incumprimento continuado, são multiplicadas respetivamente por três ou seis.

16.      Além disso, nos termos do n.° 7 do § 283 do UGB, as obrigações que incumbem aos representantes legais por força dos §§ 277 e 280‑A também se aplicam à sociedade. Se a sociedade não cumprir essas obrigações através dos seus órgãos, ela própria deve ser simultaneamente condenada no pagamento da sanção pecuniária.

II — Matéria de facto, tramitação do processo principal e questões prejudiciais

17.      A Texdata Software GmbH (a seguir «Texdata») é uma sociedade de responsabilidade limitada, com sede em Karlsruhe, na Alemanha, e desenvolve atividades de conceção e comercialização de software. Exerce as suas atividades na Áustria através de uma sucursal, inscrita desde 4 de março de 2008 no registo comercial austríaco como empresa estrangeira.

18.      Por decisão de 5 de maio de 2011, o Landesgericht Innsbruck (Tribunal Regional de Innsbruck) aplicou à Texdata duas sanções pecuniárias no montante de 700 euros cada, nos termos do § 283, n.° 2, do UGB, conforme alterado em 2011, por falta de apresentação das contas anuais em 31 de dezembro de 2008 e 31 de dezembro de 2009 até ao prazo‑limite, isto é, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, 28 de fevereiro de 2011.

19.      Em 23 de maio de 2011, a Texdata apresentou no Landesgericht, dentro do prazo previsto, duas reclamações em que alegava que a aplicação das sanções pecuniárias sem prévio aviso ou advertência era ilegal e, em qualquer caso, que apenas era possível apresentar as contas anuais já entregues no Amtsgericht Karlsruhe (Tribunal de Primeira Instância de Karlsruhe), que podiam ser consultadas no referido organismo por meios eletrónicos.

20.      Na mesma data a Texdata apresentou no Landesgericht também as duas contas anuais referidas.

21.      Por duas decisões de 25 de maio de 2011, o Landesgericht declarou que, por terem sido tempestivamente apresentadas as reclamações, ficavam sem efeito as decisões de aplicação de sanções pecuniárias e no âmbito do processo comum, aplicou novamente à sociedade, nos termos do § 283, n.os 3 e 7, do UGB, duas sanções pecuniárias no montante de 700 euros cada, por não ter apresentado as contas anuais no prazo previsto.

22.      Chamado a decidir sobre o recurso destas duas decisões interposto pela Texdata, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto à questão da compatibilidade da legislação nacional em causa, conforme alterada em 2011, com o direito da União e, consequentemente, suspendeu a instância, e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O direito da União Europeia, no seu estado atual, e em especial:

1.      a liberdade de estabelecimento referida nos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE;

2.      o princípio geral (artigo 6.°, n.° 3, TUE) da proteção judicial efetiva (princípio da efetividade);

3.      o princípio do direito a um julgamento equitativo, previsto no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 6.°, n.° 1, TUE) e no artigo 6.°, n.° 2, CEDH (artigo 6.°, n.° 1, TUE);

4.      o princípio non bis in idem previsto no artigo 50.° da Carta dos Direitos Fundamentais; ou

5.      os requisitos da aplicação de sanções no processo por falta de publicidade nos termos do artigo 6.° da Diretiva 68/151/CEE, do artigo 60.°‑A da Diretiva 78/660/CEE e do artigo 38.°, n.° 6, da Diretiva 83/349/CEE (9);

opõem‑se a uma [legislação] nacional que impõe que, no caso de ser ultrapassado o prazo legal de nove meses para elaboração e apresentação das contas anuais ao tribunal competente para efeitos do registo comercial,

—      sem a possibilidade de [a sociedade] se manifestar previamente sobre a existência da obrigação de publicidade e sobre eventuais impedimentos, em especial sem previamente ter sido analisado se as referidas contas anuais já foram apresentadas ao órgão jurisdicional competente para o registo comercial do local onde se situa o estabelecimento principal, e

—      sem solicitar antecipada e individualmente à sociedade e aos órgãos que a representam o cumprimento da obrigação de publicidade,

o órgão jurisdicional competente para o registo comercial aplique imediatamente uma sanção pecuniária mínima de 700 euros à sociedade e a cada órgão que a represente, na ausência de prova em sentido contrário, com base na ficção de que a sociedade e os seus órgãos incumpriram culposamente a obrigação de publicidade; e que impõe por cada incumprimento ulterior por períodos de dois meses a aplicação imediata de sanções pecuniárias mínimas de 700 euros à sociedade e a cada órgão que a represente, na ausência de prova em contrário, com base na ficção de que a sociedade e os seus órgãos incumpriram culposamente a obrigação de publicidade?»

III — Tramitação processual no Tribunal de Justiça

23.      O despacho de reenvio deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 10 de agosto de 2011. Apresentaram observações escritas a Texdata, os Governos austríaco e do Reino Unido e a Comissão.

24.      Na audiência, que teve lugar em 27 de novembro de 2012, intervieram a Texdata, o Governo austríaco e a Comissão.

IV — Análise jurídica

A —    Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

25.      A título preliminar, há que analisar os argumentos invocados para fundamentar a exceção de inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial.

26.      O Governo austríaco aponta uma série de erros na exposição da legislação nacional contida no despacho de reenvio e alega, por isso, que o tribunal a quo não apresentou essa legislação de forma que permita ao Tribunal de Justiça dar uma resposta útil e não meramente hipotética.

27.      A este propósito, há, todavia, que recordar que resulta de jurisprudência assente que o processo prejudicial, conforme previsto no artigo 267.° TFUE, não tem por objeto a interpretação de disposições legislativas ou regulamentares nacionais e que, portanto, eventuais imprecisões na descrição das disposições nacionais em causa, cometidas pelo órgão jurisdicional nacional na sua decisão de reenvio, não podem ter o efeito de privar o Tribunal de Justiça de competência para responder à questão prejudicial submetida por esse órgão jurisdicional (10). No caso em apreço, considero que, com base nas informações constantes do despacho de reenvio, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas.

28.      O Governo do Reino Unido, sem suscitar formalmente uma exceção de inadmissibilidade, alega que não era clara a razão pela qual o novo processo previsto no § 283 do UGB depois da reforma de 2011 teria sido aplicado retroativamente à obrigação de apresentar as contas relativas aos exercícios de 2008 e de 2009.

29.      A este respeito, resulta da jurisprudência que não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação e a aplicabilidade de disposições nacionais ou demonstrar os factos pertinentes para a resolução do litígio no processo principal. Com efeito, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no quadro da repartição de competências entre as jurisdições da União e nacionais, o contexto factual e regulamentar com referência ao qual a questão prejudicial é suscitada, conforme definido na decisão de reenvio (11). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, também, que a determinação da legislação nacional aplicável ratione temporis constitui uma questão de interpretação do direito nacional que não está abrangida pela competência do Tribunal de Justiça no âmbito de um pedido de decisão prejudicial (12).

30.      Em meu entender, resulta das considerações precedentes que a questão prejudicial deve ser julgada admissível.

B —    Quanto à questão prejudicial

1.      Liberdade de estabelecimento e diretivas em matéria de sociedades

a)      Observações gerais

31.      Com a primeira e a quinta partes da sua questão prejudicial, que, em meu entender, devem ser analisadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a liberdade de estabelecimento prevista nos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, bem como as disposições dos artigos 6.° da Primeira Diretiva 68/151/CEE, 60.°‑A da Quarta Diretiva 78/660/CEE e 38.°, n.° 6, da Sétima Diretiva 83/349/CEE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional relativa ao regime de sanções por incumprimento das obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos das sociedades de capitais, como a prevista no UGB, na versão alterada em 2011, e descrita nos n.os 10 a 16 supra.

32.      Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se o objetivo da publicidade das contas anuais não pode ser alcançado de modo igualmente eficaz através de um procedimento menos «drástico» do que o adotado com a reforma de 2011, como, por exemplo, o que estava em vigor antes dessa reforma (13). Com efeito, o novo regime implica para as sociedades estrangeiras custos e encargos desnecessários, uma vez que, para defenderem os seus direitos decorrentes da liberdade de estabelecimento, têm de ser assistidas por advogado, ao passo que, em contrapartida, para averiguar se essas sociedades já publicaram os documentos contabilísticos pertinentes, isto é, os balanços apresentados no tribunal do local do estabelecimento principal, é possível proceder a averiguações junto desse tribunal estrangeiro ou junto do estabelecimento principal da própria sociedade.

33.      A título preliminar, há que salientar que a obrigação de publicidade das contas anuais, bem como o regime de sanções correspondente previsto na legislação nacional em causa no processo principal é aplicável à Texdata na medida em que esta, uma sociedade de capitais alemã, exerce as suas atividades na Áustria através de uma sucursal registada neste país como sucursal estrangeira de uma sociedade de capitais. Neste contexto, considero, como observou o Governo do Reino Unido que para analisar o presente processo, é pertinente, não tanto a Sétima Diretiva 83/349/CEE, relativa às contas consolidadas, referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, que é aplicável aos grupos de empresas constituídos por sociedades‑mães e por filiais que dispõem de personalidade jurídica distinta (14), mas, antes, a Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE, relativa à publicidade das sucursais de sociedades de capitais. Além disso, como referido no n.° 4 supra, a Primeira Diretiva 68/151/CEE, a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere no seu pedido de decisão prejudicial, foi revogada e substituída pela Diretiva 2009/101/CE.

34.      A este respeito, há que recordar que o facto de um órgão jurisdicional nacional ter, no plano formal, formulado uma questão prejudicial fazendo referência a certas disposições do direito da União não obsta a que o Tribunal de Justiça forneça a esse órgão jurisdicional todos os elementos de interpretação que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer o mesmo tenha ou não feito referência a tais elementos no enunciado das suas questões. A este respeito, compete ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do direito da União que exigem interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (15).

35.      À luz das circunstâncias de facto do litígio no processo principal e da legislação austríaca aplicável, o Tribunal de Justiça deverá, portanto, interpretar, para além dos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, a Diretiva 2009/101/CE, a Quarta Diretiva 78/660/CEE, e a Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE.

b)      Quanto às Diretivas 2009/101/CE, 78/660/CEE e 89/666/CEE

36.      Todas as referidas diretivas se enquadram entre as medidas complementares adotadas pelo legislador da União para facilitar o exercício da liberdade de estabelecimento. Todas elas constituem disposições de aplicação do artigo 50.°, n.° 2, alínea g), TFUE (16) e do Programa Geral para a Supressão das Restrições à Liberdade de Estabelecimento adotado pelo Conselho em 18 de dezembro de 1961 (17), que prevê a coordenação das garantias exigidas nos Estados‑Membros às sociedades para proteção dos interesses tanto dos sócios como de terceiros. As referidas garantias incluem a obrigação de tornar públicas algumas informações relevantes que dizem respeito às próprias sociedades. É pois nessa perspetiva que as referidas diretivas preveem disposições destinadas a coordenar as legislações nacionais respeitantes à publicidade de informações pertinentes relativas às sociedades (18).

37.      Ora, resulta de diferentes «considerandos» dessas diretivas que o objetivo principal da coordenação das legislações nacionais respeitantes à publicidade é, especificamente, o da proteção dos interesses de terceiros. Com efeito, a previsão de obrigações de publicidade a cargo das sociedades visa permitir que os terceiros que lidam ou pretendem lidar com a sociedade conheçam os atos essenciais relativos à mesma, bem como certas indicações a ela respeitantes e, nomeadamente a identidade das pessoas que têm o poder de a vincular (19).

38.      Além disso, no que diz especificamente respeito à publicidade das contas anuais das sociedades de capitais, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de salientar que esta desempenha um papel primordial, tendo em vista a proteção de terceiros (20) e que visa principalmente informar aqueles que não conheçam ou não possam conhecer suficientemente a situação contabilística e financeira da sociedade (21). O objetivo específico é o de lhes permitir apreciar a conveniência de tecer ou manter qualquer espécie de vínculo jurídico com a mesma sociedade (22).

39.      Estando a aplicação de uma norma de direito diretamente relacionada com a existência de um sistema coercivo que intervenha para assegurar o respeito da mesma, o legislador da União não se limitou a impor que os Estados‑Membros tomem as medidas necessárias para que as sociedades sejam sujeitas a obrigações de publicidade, em especial no que diz respeito aos documentos contabilísticos, mas impôs‑lhes que previssem «sanções adequadas» em caso de falta dessa publicidade (23).

40.      Há, portanto, que concluir que o facto de uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal impor obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos e dos restantes documentos indicados nos §§ 277, n.° 1, e 280‑A do UGB, às sociedades e às sucursais de sociedades de capitais estrangeiras e prever sanções por falta de publicidade desses documentos, é conforme às referidas diretivas.

41.      Coloca‑se, no entanto, a questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, da adequação e da proporcionalidade desse sistema de sanções.

42.      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que, para clarificar o alcance da exigência relativa ao caráter adequado das sanções previstas por incumprimento das obrigações de publicidade, pode ser útil tomar em consideração a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça relativa ao princípio da cooperação leal, atualmente consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE, do qual decorre uma exigência da mesma natureza. Segundo essa jurisprudência, os Estados‑Membros, embora mantenham a escolha das sanções, devem, nomeadamente, velar por que as violações do direito da União sejam punidas em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes e que, de qualquer forma, confiram à sanção um caráter efetivo, proporcionado e dissuasivo (24).

43.      Além disso, deve‑se salientar que, embora as diretivas prevejam a adoção de sanções adequadas por parte dos Estados‑Membros, as mesmas não contêm normas precisas quanto à fixação dessas sanções nacionais e, em especial, não estabelecem qualquer critério explícito para apreciar a sua proporcionalidade.

44.      Ora, resulta de jurisprudência constante que, na falta de harmonização da legislação da União no domínio das sanções aplicáveis em caso de desrespeito das condições previstas no regime instituído por essa legislação, os Estados‑Membros são competentes para escolher as sanções que se lhes afigurem adequadas. Todavia, estão obrigados a exercer essa competência no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais, e, por conseguinte, no respeito do princípio da proporcionalidade (25).

45.      Assim, no presente caso, as sanções permitidas pela legislação nacional que estão em causa no processo principal não devem exceder os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legitimamente prosseguidos por essa legislação, sabendo‑se que, quando existe uma opção entre várias medidas adequadas, se deve usar a menos restritiva e que os inconvenientes gerados não devem ser desproporcionados relativamente aos objetivos que se pretendem alcançar (26).

46.      Daí decorre que, no âmbito de uma decisão prejudicial, é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe apreciar a compatibilidade das medidas nacionais com o direito da União e, em especial, com o princípio da proporcionalidade, pois o Tribunal de Justiça apenas é competente para lhe fornecer todos os elementos de interpretação decorrentes do direito da União que lhe possam permitir apreciar essa compatibilidade (27). Competirá, portanto, ao referido órgão jurisdicional, único competente para interpretar o direito nacional, determinar se o regime de sanções previsto na legislação nacional em causa no processo principal preenche as exigências de efetividade, de proporcionalidade e de dissuasão e, nomeadamente, se ele não trata desfavoravelmente as sociedades formalmente estrangeiras relativamente às sociedades austríacas, em caso de violação das obrigações de publicidade (28). Todavia, na apreciação dessa compatibilidade, o órgão jurisdicional de reenvio deverá ter em conta os elementos de interpretação que lhe forem fornecidos pelo Tribunal de Justiça.

47.      A este propósito, há que considerar, em primeiro lugar, o referido objetivo principal da proteção dos terceiros que interagem com a sociedade, objetivo este que, além de consagrado nas normas da União, deve ser prosseguido pelas normas nacionais em matéria de publicidade. A este respeito, não posso deixar de sublinhar, antes de mais, que resulta das explicações relativas ao projeto de lei do governo que introduziu a reforma de 2011 que, durante a vigência do sistema anterior, na Áustria, menos da metade das empresas sujeitas à obrigação de publicidade cumpria essa obrigação dentro do prazo (29). Só esta observação parece‑me suficiente para demonstrar que o sistema anterior (30), a que o órgão jurisdicional de reenvio faz referência para fundamentar algumas das suas dúvidas a respeito da proporcionalidade do novo regime de sanções, não era adequado para garantir o cumprimento, pelas sociedades, das obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos que lhes incumbem e, por isso, não estava em conformidade com as exigências de efetividade e dissuasão, nem com o referido objetivo fundamental da proteção de terceiros inerente às diretivas. Resulta, aliás, tanto das referidas explicações relativas ao projeto de lei do governo, como das afirmações que o Governo austríaco fez expressamente na audiência, que a reforma, e, em especial, a disposição que introduziu a aplicação automática de uma sanção pecuniária mínima de 700 euros, foi adotada precisamente com o objetivo de garantir uma execução mais eficiente e rápida das obrigações de publicidade por parte das empresas sujeitas a essas obrigações, objetivo este que, como esclareceu o Governo austríaco, também na audiência, foi alcançado, tendo em conta o aumento considerável da taxa de cumprimento nos prazos das obrigações de publicidade por parte das sociedades na sequência da introdução da reforma de 2011.

48.      Em segundo lugar, importa salientar que resulta das observações da Comissão que uma sanção pecuniária de um montante mínimo de 700 euros por incumprimento das obrigações de publicidade a cargo das sociedades de capitais corresponde aproximadamente à média dos montantes das sanções pecuniárias previstas nos Estados‑Membros por incumprimentos desse tipo, e que, em alguns Estados‑Membros, essas sanções mínimas podem chegar aos 1 500 euros. A previsão de uma sanção mínima desse montante não me parece exceder os limites do que é adequado e necessário para a realização do objetivo principal da legislação em causa, indicado nos n.os 37 e 38, supra.

49.      Além disso, sem prejuízo das considerações que desenvolveu em seguida, sobre o princípio ne bis in idem, a previsão da repetição todos os dois meses da aplicação da sanção pecuniária em caso de incumprimento continuado também não é desproporcionada em relação aos objetivos prosseguidos. Trata‑se, com efeito, de uma medida que visa incentivar as sociedades para as quais a aplicação da sanção pecuniária não é suficientemente dissuasória para cumprirem rapidamente a obrigação de publicidade que lhes incumbe.

50.      Em terceiro lugar, deve‑se observar que a legislação em causa prevê um prazo para publicidade de nove meses a partir da data de encerramento do balanço. Este prazo parece ser um período de tempo suficientemente amplo, salvo situações excecionais, para permitir às sociedades cumprirem a obrigação de elaboração e apresentação das suas contas anuais. Além disso, se fosse permitido publicar as contas relativas ao exercício anterior num prazo ainda mais longo, o objetivo específico das obrigações de publicidade, isto é, a proteção de terceiros, seria posto em risco, na medida em que estes últimos teriam acesso a informações sobre a situação da sociedade que poderiam não ser suficientemente recentes para lhes garantir a exatidão dessas informações e a sua correspondência com a situação real da sociedade.

51.      Em quarto lugar, há também que observar que, em qualquer caso, a sociedade e os seus órgãos sociais podem recorrer da decisão de aplicação da sanção pecuniária, alegando os motivos que justificaram o incumprimento da obrigação de publicidade que lhes incumbe.

52.      Em quinto lugar, no que diz respeito às exigências estabelecidas na jurisprudência referida no n.° 42 supra, há que observar que, tanto do ponto de vista material como do processual, a legislação nacional prevê exatamente o mesmo regime de sanções para as sociedades austríacas e para as sucursais das sociedades estrangeiras.

53.      Todas as considerações precedentes levam‑me a concluir que uma legislação nacional como a aplicável no processo principal não excede os limites do que é adequado e necessário para a realização dos objetivos legitimamente prosseguidos pela legislação que prevê as obrigações de publicidade a cargo das sociedades.

c)      Quanto aos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE

54.      Em seguida, no que diz respeito à questão de saber se uma legislação deste tipo é conforme aos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, há que examinar se a mesma constitui uma medida que configura um obstáculo à liberdade de estabelecimento, na Áustria, de uma sociedade constituída em conformidade com a legislação de um outro Estado‑Membro, através da criação de uma sucursal (31).

55.      Antes de mais, a este respeito, resulta das considerações precedentes que sanções, como as impostas pela legislação aplicável no processo principal, por incumprimento das obrigações de publicidade são adequadas e conformes ao direito da União. Ora, há que afirmar que a aplicação dessas sanções depende exclusivamente da eventual violação, pela sociedade, das referidas obrigações legais de publicidade previstas no direito da União. Por conseguinte, como corretamente observado pela Comissão, só um comportamento não conforme à lei, da sociedade e dos seus órgãos sociais, é que pode fazer desencadear as consequências jurídicas previstas na legislação nacional em causa.

56.      Além disso, já salientei que a legislação relativa à aplicação de sanções por incumprimento das obrigações de publicidade é aplicável, indistintamente, tanto às sociedades austríacas como às sociedades dos outros Estados‑Membros que se estabelecem na Áustria mediante a criação de uma sucursal. Aliás, estas últimas estão obrigadas, nos termos do § 280‑A, e em conformidade com as disposições da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE, a publicar apenas «os documentos contabilísticos constituídos, verificados e publicados de acordo com o direito aplicável ao estabelecimento principal da sociedade» (32).

57.      É precisamente à luz destas considerações que é possível responder às dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio, descritas no n.° 32 supra, relativamente ao facto de o novo regime de sanções impor encargos desnecessários às sociedades estrangeiras por causa das despesas legais que as mesma seriam obrigadas a suportar para proteger o exercício dos seus direitos decorrentes da liberdade de estabelecimento. Com efeito, esses encargos estão longe de ser necessários, mas dependem exclusivamente do incumprimento de uma obrigação legal por parte da sociedade em causa. Além disso, os mesmos não são específicos apenas das sociedades estrangeiras, mas afetam também as sociedades austríacas.

58.      Em contrapartida, quanto à eventual possibilidade, referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, de proceder a averiguações junto do tribunal do local do estabelecimento principal, saliento que, nos termos da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE, para que uma sucursal cumpra a sua própria obrigação de publicidade, não basta que a sociedade principal tenha cumprido essas obrigações no Estado‑Membro onde esta está constituída. Além disso, o juiz nacional não pode ser obrigado a efetuar esse tipo de investigações, potencialmente muito dispendiosas, pelo menos em termos de tempo, junto dos tribunais de outros Estados‑Membros, quando existe uma obrigação legal de publicar os documentos relativos à sociedade, no Estado‑Membro em que a sucursal opera, para proteger os terceiros que entram em contacto com a mesma. No mesmo sentido, o facto de esses documentos contabilísticos estarem disponíveis na Internet, na língua do Estado‑Membro da sede da sociedade principal, que pode ser diferente da do Estado em que a sucursal opera, não é suscetível de justificar o incumprimento da obrigação de publicidade no Estado‑Membro onde a sucursal está constituída.

59.      À luz destas considerações, considero que uma regulamentação que, em circunstâncias como as do processo principal, impõe, em conformidade com o direito derivado da União aplicável, sanções adequadas para o incumprimento das obrigações de publicidade das contas anuais e dos outros documentos pertinentes relativos à sociedade, não é suscetível de colocar as sociedades de outros Estados‑Membros numa situação, de facto ou de direito, desvantajosa em relação à das sociedades do Estado‑Membro de estabelecimento (33) e não constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento, na medida em que não proíbe, não entrava nem torna menos atrativo o exercício dessa liberdade.

2.      Quanto aos princípios da proteção jurisdicional efetiva, do respeito dos direitos de defesa e ne bis in idem

a)      Observações preliminares

60.      Com a segunda, terceira e quarta partes da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os princípios gerais da proteção jurisdicional efetiva, do respeito dos direitos de defesa e ne bis in idem, como consagrados na Carta e na CEDH, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional relativa ao regime de sanções por incumprimento das obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos das sociedades de capitais como a prevista no UGB, na versão alterada em 2011 e descrita nos n.os 10 a 16.

61.      Os três princípios invocados pelo órgão jurisdicional de reenvio são, todos, princípios reconhecidos pelo Tribunal de Justiça como princípios gerais do direito da União. Estão já consagrados em várias disposições da Carta (para além da CEDH) e adquiriram a categoria de direitos fundamentais da União.

62.      Mais particularmente, o princípio da proteção jurisdicional efetiva, segundo jurisprudência assente, constitui um princípio geral do direito da União, que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros (34). Foi consagrado pelos artigos 6.° e 13.° da CEDH e reafirmado no artigo 47.° da Carta.

63.      O princípio do respeito dos direitos de defesa em qualquer procedimento suscetível de ter como resultado a aplicação de sanções foi reiteradamente definido pelo Tribunal de Justiça como princípio fundamental do direito da União (35). O mesmo está previsto no artigo 6.°, n.° 3, da CEDH e foi codificado na Carta, nos artigos 41.°, n.° 2, alínea a), e 48.°, n.° 2.

64.      A proibição de punir ou julgar alguém mais do que uma vez pelo mesmo ato (princípio ne bis in idem) também foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça como um princípio geral de direito (36). O mesmo é expressamente previsto no artigo 4.° do Protocolo n.° 7 da CEDH e no artigo 50.° da Carta.

65.      A invocação destes princípios e das disposições correspondentes da Carta, pelo órgão jurisdicional de reenvio, coloca duas questões de natureza preliminar amplamente debatidas na audiência. Em primeiro lugar, a questão suscitada pelo Governo austríaco, tanto nas suas observações escritas como na audiência, quanto à aplicabilidade das disposições da Carta numa situação como a que está em causa no processo principal. Em segundo lugar, a questão, suscitada expressamente pelo órgão jurisdicional de reenvio, quanto à natureza penal ou não do regime de sanções previsto pela legislação nacional em causa. Com efeito, uma eventual qualificação desse regime como penal teria incidência na aplicação dos princípios acima referidos.

b)      Quanto à aplicabilidade da Carta

66.      Nos termos do artigo 51.°, n.° 1, da Carta, esta tem por destinatários «os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União».

67.      O Governo austríaco observa que, apesar de as diretivas acima referidas obrigarem os Estados‑Membros a prever sanções adequadas para as violações das obrigações de publicidade, o direito da União não regula pormenorizadamente nem o processo sancionatório, nem o de recurso. Dado que o direito processual ê da competência dos Estados‑Membros, a Carta não é, em princípio, aplicável no âmbito de uma situação como a que está em causa no processo principal.

68.      A este respeito, não posso deixar de salientar que a interpretação do conceito de «aplicação do direito da União» pelos Estados‑Membros e, em consequência, o âmbito de aplicação da Carta, é uma questão que foi recentemente objeto de amplo debate, quer na doutrina, quer, sobretudo, entre os advogados‑gerais (37).

69.      Todavia, sem me deter sobre as possíveis interpretações, mais ou menos restritivas, do artigo 51.°, n.° 1, da Carta e, consequentemente, sobre os possíveis diferentes âmbitos de aplicação atribuídos à mesma, observo que, no presente processo, não só as obrigações de publicidade para as quais é previsto o regime de sanções objeto do pedido prejudicial decorrem diretamente do direito da União, como as próprias sanções são previstas pela legislação nacional em aplicação direta do direito da União, em particular das disposições da Primeira Diretiva, da Quarta Diretiva e da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE, que estabelecem a obrigação de os Estados‑Membros preverem sanções adequadas para garantir o respeito das referidas obrigações de publicidade (38). Por isso, a legislação nacional contém disposições específicas que regulam o procedimento de aplicação − incluindo as vias de recurso − de sanções previstas expressamente pelo direito da União.

70.      Num contexto deste tipo, a circunstância, posta em evidência pelo Governo austríaco, de o direito da União ter deixado ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro a faculdade de determinar as vias processuais para a aplicação dessas sanções, em meu entender, em nada altera o facto de, ao adotar uma legislação nacional como a aplicada no processo principal, o Estado‑Membro em causa ter aplicado o direito da União. Com efeito, quando, como no caso em apreço, os Estados‑Membros adotam disposições específicas destinadas a transpor para o direito nacional um regime de sanções expressamente previsto pelo direito da União e, portanto, as normas nacionais são diretamente inspiradas no direito da União, a autonomia processual reconhecida aos Estados‑Membros não implica, de modo algum, que estes não estejam a proceder à aplicação desse direito (39).

71.      Portanto, à luz das considerações precedentes, considero que as disposições da Carta devem ser aplicadas no presente processo.

c)      Quanto à natureza penal do regime de sanções previsto na legislação nacional

72.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a maioria da jurisprudência e da doutrina austríacas considera que o regime de sanções previsto no § 283 do UGB tem caráter, simultaneamente, coercivo e repressivo e, por isso, apresenta elementos de natureza penal (40). Todavia, esta tese é contestada pela Comissão e pelo Governo do Reino Unido.

73.      Os critérios que devem ser tomados em consideração na apreciação da natureza penal ou não de um regime de sanções resultam da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») relativa à interpretação dos conceitos de «acusação em matéria penal», de «pena» e de «processo penal», previstos nos artigos 6.° e 7.° da CEDH e no artigo 4.°, n.° 1, do respetivo Protocolo n.° 7 (41). Esta jurisprudência é atualmente expressamente retomada pelo Tribunal de Justiça (42).

74.      Segundo esta abordagem, são pertinentes três critérios, denominados «critérios Engel» como o acórdão em que foram, pela primeira vez, enunciados (43). O primeiro critério é relativo à qualificação jurídica da infração no direito nacional, a qual, todavia, é expressamente considerada um mero «ponto de partida» (44). O segundo critério é relativo à própria natureza da infração, ao passo que o terceiro critério é relativo ao tipo e à gravidade da sanção prevista (45). Os segundo e terceiro critérios, que assumem uma maior relevância em relação ao primeiro, são alternativos e não necessariamente cumulativos, o que, no entanto, não exclui uma abordagem cumulativa se uma apreciação separada de cada critério não permitir chegar a uma conclusão clara (46).

75.      No presente processo, no que diz respeito ao primeiro critério, ou seja, à qualificação jurídica da infração no direito austríaco, esta não parece ser, explicitamente, de natureza penal. Contudo, como referido, esta circunstância não tem caráter decisivo (47).

76.      Quanto ao segundo critério, ou seja, a natureza da infração, o TEDH verifica uma série de elementos, entre os quais, o círculo de destinatários a quem a disposição é dirigida, o bem jurídico protegido e a finalidade da sanção. A este respeito, antes de mais, há que salientar que as sanções previstas no § 283 do UGB por incumprimento das obrigações de publicidade não são aplicáveis à generalidade das pessoas, mas destinam‑se a assegurar o respeito dessas obrigações por parte das sociedades de capitais e dos seus representantes (48). Como referido nos n.os 37 e 38 anteriores, estas obrigações e as sanções que punem o seu incumprimento, prosseguem objetivos de proteção de terceiros nas relações comerciais com as sociedades. O bem jurídico protegido, ou seja o direito de os terceiros conhecerem o estado de saúde da sociedade, tanto pode ser protegido através do direito administrativo, como por via do direito penal (49). Quanto à finalidade prosseguida pelas sanções, parece‑me inegável que o seu objetivo não é tanto retributivo, na medida em que as mesmas não visam repor a situação que existia antes da violação (50). O seu objetivo parece‑me ser, essencialmente, preventivo, na medida em que as mesmas são previstas com o objetivo de assegurar o respeito das obrigações de publicidade e de evitar a repetição do incumprimento dessas obrigações (51). A este respeito, também é pertinente notar que, numa jurisprudência constante, o Oberster Gerichtshof da Áustria nega que o regime de sanções em causa, mesmo depois da reforma de 2011, tenha caráter repressivo (52). Além disso, ao contrário das sanções que foram objeto do processo Bonda, já referido, em que o Tribunal de Justiça aplicou os «critérios Engel», as sanções em causa no presente processo não constituem reduções de ajudas concedidas a pedido do interessado (53), mas incidem diretamente sobre o património da pessoa a quem a sanção é aplicada.

77.      O terceiro «critério Engel» diz respeito à gravidade da sanção prevista pela legislação em causa. Segundo a jurisprudência do TEDH, para determinar a referida gravidade, deve ser tida em conta a sanção máxima prevista nas disposições jurídicas aplicáveis (54). Ora, quanto ao valor da sanção automaticamente aplicada pela primeira decisão, prevista no n.° 2 do § 283 do UGB, que constitui o objeto específico do pedido do tribunal a quo, a mesma tem um montante fixo de 700 euros. Por isso, não se pode deixar de observar que a gravidade desta sanção é bastante baixa (55). Todavia, o mesmo não é necessariamente verdade para as sanções posteriormente aplicadas nos termos do n.° 4 do § 283 do UGB (56). Em qualquer caso, não me parece que as sanções em causa produzam especiais efeitos estigmatizadores (57).

78.      Em conclusão, à luz das considerações precedentes, considero que, mesmo que devesse considerar que o regime de sanções em causa está abrangido pelo âmbito penal, na aceção da CEDH, o mesmo, não fará certamente, parte do «núcleo duro do direito penal», de modo que, como o próprio TEDH precisou, as «garantias oferecidas pela vertente penal [no artigo 6.° CEDH] não devem necessariamente ser aplicadas com todo o seu rigor» (58).

d)      Quanto aos princípios da proteção jurisdicional efetiva e do respeito dos direitos de defesa

i)      Observações gerais

79.      Antes de mais, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto à questão de saber se as disposições do UGB, conforme alteradas pela reforma de 2011, relativas ao processo sancionatório por incumprimento das obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos das sociedades de capitais tornam excessivamente difícil para essas sociedades o exercício dos direitos decorrentes da liberdade de estabelecimento e se, por isso, não são contrários ao princípio da proteção jurisdicional efetiva. O tribunal a quo identifica uma série de «défices estruturais» − que, serão analisados em pormenor nos n.os 87 e segs. − que poderiam tornar a legislação nacional incompatível com o princípio da efetividade. Em relação a esses alegados «défices estruturais», o órgão jurisdicional de reenvio também se questiona quanto a se a legislação nacional em causa não é incompatível com o princípio do respeito dos direitos de defesa. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se não está obrigado a não aplicar a nova legislação introduzida com a reforma de 2011.

80.      A este respeito, antes de mais, há que observar que a proteção jurisdicional efetiva consagrada pelo correspondente princípio geral consagrado nas disposições referidas no n.° 62, consiste em assegurar aos particulares a possibilidade de fazer valer os direitos que lhes são conferidos ao abrigo do direito da União (59).

81.      Resulta de jurisprudência assente que, por um lado, cabe aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, em aplicação do princípio da cooperação leal enunciado no artigo 4.°, n.° 3, TUE, assegurar a proteção jurisdicional desses direitos (60) e que, por outro, na falta de regulamentação da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e definir as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos cidadãos pelo direito da União, tendo, todavia, os Estados‑Membros a responsabilidade de assegurar, em cada caso, a proteção efetiva desses direitos (61). A este propósito, deve‑se observar que o artigo 19.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE, institui já a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem as vias de recurso necessárias para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União.

82.      Deste ponto de vista, resulta igualmente de jurisprudência assente que as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União não devem ser menos favoráveis do que as que respeitam a ações similares de natureza interna (princípio da equivalência) e não devem tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (62).

83.      O órgão jurisdicional de reenvio não aponta qualquer elemento relativo a uma eventual inobservância do princípio da equivalência. As suas dúvidas dizem exclusivamente respeito à compatibilidade da legislação nacional com o princípio da efetividade.

84.      No que respeita, especificamente, à aplicação deste princípio, o Tribunal de Justiça já declarou que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se necessário, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correta tramitação do processo (63).

85.      Especificamente quanto ao princípio do respeito dos direitos de defesa, consagrado nas disposições referidas no n.° 63, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esses direitos são direitos fundamentais que exigem, por um lado, que se comuniquem ao interessado os elementos que lhe são imputados para fundamentar o ato que lhe é lesivo e, por outro, que lhe deve ser permitido expor oportunamente o seu ponto de vista sobre esses elementos. O respeito pelos direitos de defesa deve ser assegurado em qualquer processo suscetível de culminar num ato que afete os interesses do destinatário (64).

86.      Consequentemente, é à luz dos princípios referidos nos números precedentes que devem ser analisados os alegados «défices estruturais» do regime de sanções em causa identificados pelo órgão jurisdicional de reenvio.

ii)    Quanto aos alegados «défices estruturais» identificados pelo órgão jurisdicional de reenvio

87.      O primeiro alegado «défice estrutural» identificado pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito a presumíveis requisitos formais e normas de competência irrazoáveis, complexos e que não podem ser sanados, que poderiam tornar a legislação em causa incompatível com o princípio da efetividade. O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, em especial, ao indeferimento das reclamações apresentadas fora de prazo e não fundamentadas, previsto no § 283, n.° 2, do UGB, em relação à proibição de invocar fundamentos novos em sede de recurso.

88.      Quanto ao indeferimento das reclamações apresentadas fora de prazo, observo que, segundo jurisprudência assente, a fixação de prazos de recurso razoáveis, sob pena de caducidade, respeita, em princípio, o requisito da efetividade na medida em que constitui uma aplicação do princípio fundamental da segurança jurídica. Tais prazos não devem, na prática, tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União. Com esta ressalva, os Estados‑Membros são livres de estabelecer prazos mais ou menos longos. Em especial, quanto aos prazos de caducidade, o Tribunal de Justiça também decidiu que, no que respeita às regulamentações nacionais que são abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União, cabe aos Estados‑Membros fixar os prazos em função, designadamente, da importância que as decisões a tomar têm para os interessados, da complexidade dos procedimentos e da legislação a aplicar, do número de pessoas que podem ser afetadas e dos restantes interesses públicos ou privados que devam ser tomados em consideração (65).

89.      A legislação em causa prevê um prazo de caducidade de catorze dias para impugnar uma sanção de 700 euros por incumprimento das obrigações de publicidade dos documentos contabilísticos da sociedade, decorrentes do direito da União. Deve‑se salientar que a sociedade e os seus representantes dispõem, porém, de nove meses a contar da data de encerramento do balanço para publicar esses documentos. Neste contexto, em meu entender, não existe qualquer elemento que permita considerar que a fixação deste prazo de caducidade, embora curto, seja irrazoável e suscetível de tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (66). Além disso, a este respeito, há que recordar que a norma em causa prevê expressamente a possibilidade de uma prorrogação do prazo (67).

90.      Um raciocínio análogo é aplicável à disposição relativa ao indeferimento imediato das reclamações totalmente destituídas de fundamentação, que, como resulta das observações do Governo austríaco, eram bastante recorrentes durante a vigência da legislação anterior à reforma de 2011. Com efeito, o facto de prever um dever de fundamentação, mesmo que sucinta, da petição inicial de uma ação, que permita ao tribunal compreender os motivos que apoiam o pedido contido na mesma, não pode ser considerada uma exigência contrária ao princípio da efetividade. Além disso, a proibição de invocar fundamentos novos em sede de recurso, que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, impediria as sociedades punidas, cujas reclamações tivessem sido indeferidas por terem sido apresentadas fora de prazo ou não estarem fundamentadas, de fazer valer, também posteriormente, os seus motivos, é uma proibição comum aos ordenamentos de vários Estados‑Membros e, em meu entender, também não é suscetível de comprometer a efetividade do recurso. Além disso, esta proibição não é aplicável em caso de erro desculpável, conceito amplo que pode ser interpretado pelos órgãos jurisdicionais à luz do princípio da proteção jurisdicional efetiva (68).

91.      O segundo e o terceiro dos alegados «défices estruturais» identificados pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito, respetivamente, ao facto de não estar prevista uma audiência e não ser possível apresentar observações antes de a sanção ser aplicada, o que poderia configurar uma violação do princípio do contraditório.

92.      A este respeito, deve‑se referir antes de mais, que, como o próprio órgão jurisdicional de reenvio recordou, segundo jurisprudência assente do TEDH, embora a realização de uma audiência oral e pública constitua um princípio fundamental consagrado no artigo 6.° da CEDH que assume especial importância em processos de natureza penal, a obrigação de realizar essa audiência não é considerada absoluta (69). Além disso, resulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que os direitos fundamentais não constituem prerrogativas absolutas, mas podem comportar restrições, na condição de que estas correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituam, à luz da finalidade prosseguida, uma ingerência desmedida e manifesta nos direitos assim garantidos (70).

93.      No que respeita à legislação em causa, resulta do § 283 do UGB que a receção da reclamação fundamentada, através da qual é impugnada a decisão que aplica a sanção pecuniária inicial de 700 euros, torna essa decisão imediatamente inaplicável e abre um processo comum, no âmbito do qual poderá haver lugar à realização de uma audiência e no qual a sociedade punida poderá fazer valer plenamente o seu ponto de vista, no respeito do princípio do contraditório.

94.      Neste contexto, mesmo que, em aplicação das considerações feitas nos anteriores n.os 74 e segs., se devesse reconhecer a natureza penal do regime de sanções em questão, o facto de este não fazer parte do «núcleo duro» do direito penal implica que as garantias decorrentes dessa natureza penal não devem ser aplicadas em todo o seu rigor. Por conseguinte, nesta perspetiva, considero que pode ser compatível com os princípios da proteção jurisdicional efetiva e do respeito dos direitos de defesa, uma legislação que, em circunstâncias como as do presente processo, prevê a aplicação, em primeira instância, de uma sanção de menor valor económico que não tem efeitos estigmatizadores, mesmo no quadro de um regime de sanções qualificado como de natureza penal, através de um procedimento que, ao não prever audiência nem contraditório, não satisfaz ele próprio os requisitos do artigo 6.° da CEDH. Contudo, um regime deste tipo só poderá ser compatível com os princípios referidos se a decisão de aplicação da sanção estiver sujeita à fiscalização de um órgão judicial com competência de plena jurisdição e cujo processo cumpra aqueles requisitos. Dito de outro modo, deve resultar claro que as vias de recurso disponíveis permitem sanar todas as deficiências do processo tramitado na primeira instância (71).

95.      Por conseguinte, tendo em conta os objetivos de interesse geral prosseguidos pela legislação em causa, indicados nos n.os 37 e 38 supra, a previsão da aplicação automática de uma sanção pecuniária de 700 euros por falta de publicidade dos documentos relativos à sociedade, dado existirem vias de recurso como as indicadas anteriormente, não constitui, à luz da finalidade prosseguida, uma ingerência desmedida e manifesta nos direitos de defesa e, em meu entender, não é contrária ao princípio da proteção jurisdicional efetiva.

96.      O quarto alegado «défice estrutural» é apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio como sendo suscetível de configurar uma repartição do ónus da prova desfavorável para a sociedade, à qual seria aplicada uma presunção legal de culpa. A este respeito, há que admitir que a imposição da sanção pecuniária mediante uma decisão adotada automaticamente sem ouvir a sociedade interessada baseia‑se numa presunção de culpa, que consiste, em qualquer caso, numa presunção simples, ilidível no processo comum iniciado com a impugnação da decisão de aplicação da sanção. Nesse processo, a sociedade, mediante a apresentação dos elementos de prova adequados, tem a possibilidade de demonstrar os motivos previstos na lei como justificações possíveis do incumprimento da obrigação de publicidade. Considero que nessas circunstâncias, os direitos de defesa e a efetividade do recurso estão suficientemente garantidos (72).

97.      O quinto «défice estrutural» referido diz respeito à fixação de prazos perentórios pouco razoáveis e, em especial, à previsão da possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias posteriores sem aguardar o trânsito em julgado das decisões anteriores. O órgão jurisdicional de reenvio expressa dúvidas, quer quanto ao prazo de nove meses, que começaria a correr sem a sociedade ter sido notificada, quer quanto ao prazo de dois meses para a repetição das sanções pecuniárias em caso de incumprimento continuado.

98.      Em primeiro lugar, no que diz respeito ao prazo de nove meses, já salientei, no n.° 50, que as diretivas em causa preveem a publicação, anual, dos documentos contabilísticos, para assegurar o acesso de terceiros, sujeitos protegidos por essas disposições, a informações atualizadas sobre a situação contabilística das sociedades. Ora, as sociedades e os seus órgãos competentes devem saber que, dentro de um prazo fixado por lei, que começa a correr a partir da data de encerramento do balanço, deverão tornar públicos esses documentos. Por conseguinte, compete‑lhes informar‑se sobre a duração desse prazo nos diferentes Estados‑Membros em que pretendam exercer a sua atividade através de uma sucursal, sem que seja necessário informá‑los acerca da mesma. Por outro lado, resulta de um estudo comparativo efetuado pela Comissão que o prazo de nove meses, previsto no regime austríaco, é um dos mais longos entre os concedidos pelos diferentes membros da União. Nestas circunstâncias, não há nenhum elemento que permita afirmar que um prazo desse tipo possa ser considerado irrazoável.

99.      Em segundo lugar, quanto à fixação do prazo de dois meses para a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias posteriores em caso de incumprimento continuado, sem aguardar o trânsito em julgado das decisões anteriores, deve‑se sublinhar que a mesma tem por finalidade persuadir as empresas a fazer respeitar a obrigação de publicidade em caso de incumprimento repetido. Nenhum elemento permite considerar que este prazo de dois meses impede as sociedades de recorrerem das decisões de aplicação da sanção, tornando‑lhes impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União.

100. Em conclusão, em meu entender, de todas as considerações precedentes resulta que um regime de sanções como o que está em causa no processo principal não é contrário ao princípio da efetividade nem ao princípio do respeito dos direitos de defesa.

e)      Quanto ao princípio ne bis in idem

101. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio expressa uma dupla dúvida a respeito da compatibilidade da legislação nacional com o princípio ne bis in idem. Este princípio, como formulado no artigo 50.° da Carta, estabelece que ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.

102. Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o § 283, n.° 7, do UGB, na sua nova redação, constitui uma violação desse princípio, uma vez que prevê que os mesmos factos são, no essencial, imputados quer à sociedade quer aos seus órgãos sociais e que a ambos seja aplicada uma sanção pecuniária por tais factos. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio expressa igualmente dúvidas quanto à compatibilidade com o princípio ne bis in idem da repetição da sanção pecuniária por cada período de dois meses em caso de incumprimento continuado.

103. A título preliminar, não posso deixar de salientar que, tanto quanto resulta do despacho de reenvio, no processo principal, a sanção pecuniária pela falta de publicação dos documentos contabilísticos só foi aplicada à sociedade e não aos seus órgãos sociais. Além disso, uma vez que, como resulta do n.° 20 supra, a Textdata procedeu à entrega das contas anuais, não foi aplicada qualquer sanção pecuniária posterior. Neste contexto, dado que, nos termos da jurisprudência assente já referida no n.° 29 supra, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta o contexto factual com referência ao qual a questão prejudicial é suscitada, conforme definido na decisão de reenvio, e dado que é claro que nem a aplicação simultânea da sanção pecuniária aos órgãos sociais e à sociedade, nem a aplicação de sanções periódicas posteriores estão em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça poderia declarar inadmissível esta parte do pedido prejudicial (73).

104. Todavia, mesmo no caso de o Tribunal de Justiça declarar admissível a presente parte da questão prejudicial e admitindo que o Tribunal de Justiça reconheça a natureza penal do regime de sanções previsto na legislação em causa, que constitui uma condição de aplicação do princípio, considero que nenhuma das dúvidas expressas pelo órgão jurisdicional de reenvio é fundada. Com efeito, independentemente da conceção mais ou menos ampla que pode ser dada ao princípio ne bis in idem (74), na minha opinião, no presente caso não se verificam os requisitos para a sua aplicação.

105. Quanto à primeira dúvida suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve‑se observar que o § 283 do UGB prevê, no seu n.° 1, a aplicação da sanção pecuniária aos membros dos órgãos sociais e, no caso das sucursais, às pessoas com poderes para as representar, ao passo que no n.° 7 prevê a aplicação da coima à sociedade. Há, pois, que declarar que a legislação nacional não prevê a aplicação de uma dupla pena à mesma pessoa pelos mesmos factos, mas prevê a aplicação de sanções a pessoas diferentes. A sociedade de capitais, que dispõe de personalidade jurídica própria, não coincide, de facto, com as pessoas que constituem os membros dos órgãos sociais pertinentes na mesma sociedade (75). Não se verificando a condição da identidade do infrator, em meu entender, a legislação nacional não pode ser considerada, quanto a este aspeto, incompatível com o princípio ne bis in idem (76).

106. Quanto à segunda dúvida do órgão jurisdicional de reenvio, importa salientar que o n.° 4 do § 283 do UGB prevê que, no caso em que o incumprimento da obrigação de publicidade subsista, seja aplicada, por despacho, uma sanção pecuniária adicional de 700 euros, que é repetida em cada período posterior de dois meses. Considero que uma disposição deste tipo também não é suscetível de violar o princípio ne bis in idem, uma vez que não se verifica a condição da identidade dos factos, na medida em que as condutas punidas são diferentes. Na realidade, a primeira sanção é aplicada por falta de publicação das contas da sociedade dentro do prazo de nove meses a contar da data de encerramento do balanço, ao passo que, nos casos posteriores, é punida a falta de publicação dos mesmos documentos nos posteriores prazos sucessivos de dois meses cada, previstos na lei (77). Portanto, as sanções sucessivas, por um lado, punem violações diferentes, que têm lugar em momentos diferentes e, por outro, têm um fim dissuasivo diferente (78).

107. Consequentemente, em meu entender, resulta das considerações precedentes que um regime de sanções como o que está em causa no processo principal não é contrário ao princípio ne bis in idem.

V —    Conclusão

108. Por conseguinte, pelos motivos acima expostos, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial submetida pelo Oberlandesgericht de Innsbruck, do seguinte modo:

«A liberdade de estabelecimento prevista nos artigos 49.° TFUE e 54.° TFUE, os princípios da proteção jurisdicional efetiva, do respeito dos direitos de defesa e ne bis in idem, previstos nos artigos 47.°, 48.°, n.° 2, e 50.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como as disposições da Diretiva 2009/101/CE, da Quarta Diretiva 78/660/CEE e da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE, não se opõem a uma legislação nacional que impõe que, no caso de ser ultrapassado o prazo de nove meses para a apresentação dos documentos contabilísticos ao tribunal competente, sem a possibilidade de [a sociedade] apresentar previamente observações, e sem solicitar antecipada e individualmente à sociedade e aos órgãos que a representam o cumprimento da obrigação de publicidade, o referido órgão jurisdicional aplique imediatamente uma sanção pecuniária mínima de 700 euros à sociedade e a cada órgão que a represente, e que impõe, por cada ulterior atraso no cumprimento desta obrigação por períodos de dois meses, a aplicação imediata e sucessiva de posteriores sanções pecuniárias mínimas de 700 euros às mesmas pessoas.»


1 —      Língua original: italiano.


2 —      Primeira Diretiva 68/151/CEE do Conselho, de 9 de março de 1968, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 58.° do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO L 65, p. 8; EE 17 F1 p. 3).


3 —      Diretiva 2009/101/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 48.° do Tratado, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO L 258, p. 11).


4 —      Quarta Diretiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1978, baseada no artigo 54.°, n.° 3, alínea g), do Tratado e relativa às contas anuais de certas formas de sociedades (JO L 222, p. 11; EE 17 F1 p. 55). Este artigo foi inserido pela Diretiva 2006/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, que altera a Diretiva 78/660/CEE do Conselho relativa às contas anuais de certas formas de sociedades, a Diretiva 83/349/CEE do Conselho relativa às contas consolidadas, a Diretiva 86/635/CEE do Conselho relativa às contas anuais e às contas consolidadas dos bancos e outras instituições financeiras e a Diretiva 91/674/CEE do Conselho relativa às contas anuais e às contas consolidadas das empresas de seguros (JO L 224, p. 1).


5 —      Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, relativa à publicidade das sucursais criadas num Estado‑Membro por certas formas de sociedades reguladas pelo direito de outro Estado (JO L 395, p. 36).


6 —      Resulta do nono considerando da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE que, à luz da coordenação das legislações nacionais em matéria de estabelecimento, de controlo e de publicidade dos documentos contabilísticos, basta publicar no registo da sucursal os documentos contabilísticos controlados e publicados pela sociedade estrangeira que criou a sucursal. A este respeito, v. artigo 3.° desta diretiva.


7 —      Este artigo foi alterado pela Budgetbegleitgesetz de 2011 (Lei de Finanças), BGBl. I 111/2010.


8 —      De facto, resulta do despacho de reenvio que, no passado, era prática corrente dos juízes austríacos competentes para o registo enviarem aproximadamente um mês antes do termo do prazo de publicidade de nove meses, um primeiro aviso informal à sociedade faltosa, no qual lhe era concedido um prazo adicional de quatro semanas. Se no termo deste prazo o incumprimento se mantivesse, era enviado outro aviso solicitando a apresentação dos documentos contabilísticos dentro de determinado prazo, sob pena de ser aplicada uma sanção pecuniária. Só quando também não era dado cumprimento a este segundo aviso é que os tribunais aplicavam a sanção pecuniária.


9 —      Sétima Diretiva 83/349/CEE do Conselho, de 13 de junho de 1983, baseada no n.° 3, alínea g), do artigo 54.° do Tratado e relativa às contas consolidadas (JO L 193, p. 1; EE 17 F1 p. 119).


10 —      V., em especial, acórdãos de 30 de abril de 1986, Asjes e o. (209/84 a 213/84, Colet., p. 1425, n.° 12), e de 1 de dezembro de 2005, Burtscher (C‑213/04, Colet., p. I‑10309, n.° 33).


11 —      V. acórdãos de 17 de julho de 2008, ASM Brescia (C‑347/06, Colet., p. I‑5641, n.° 28), e de 29 de janeiro de 2009, Josef Vosding Schlacht‑, Kühl‑ und Zerlegebetrieb e o. (C‑278/07 a C‑280/07, Colet., p. I‑457, n.° 16).


12 —      V. acórdão de 21 de outubro de 2010, Padawan (C‑467/08, Colet., p. I‑10055, n.° 24).


13 —      V., especificamente, n.° 12 e nota 8 supra.


14 —      V. artigo 1.° da Sétima Diretiva 83/349/CEE, já referido na nota 9.


15 —      V. acórdão de 21 de outubro de 2010, Idryma Typou (C‑81/09, Colet., p. I‑10161, n.° 31 e jurisprudência aí citada). No que diz respeito ao facto de uma referência incorreta a disposições do direito da União não afetar a admissibilidade da questão prejudicial, v., também, acórdão de 22 de março de 2012, Nilaş e o. (C‑248/11, n.os 31 e 32).


16 —      Antigo artigo 44.°, n.° 2, alínea g), CE e, anteriormente, artigo 54.°, n.° 2, alínea g), do Tratado CE.


17 —      JO 1962, p. 36; EE 06 F1 p. 7. V., em especial, título VI.


18 —      V., em especial, capítulo 2 da Diretiva 2009/101/CE, secção 10 da Quarta Diretiva 78/660/CEE e Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE.


19 —      V., em especial, o segundo e terceiro considerandos da Diretiva 2009/101/CE, o primeiro e sexto considerandos da Quarta Diretiva 78/660/CEE, bem como o sexto e sétimo considerandos da Décima Primeira Diretiva 89/666/CEE. No que diz respeito à Primeira Diretiva 68/151/CEE, revogada e substituída pela Diretiva 2009/101/CE, v., também, acórdão de 1 de junho de 2006, Innoventif (C‑453/04, Colet., p. I‑4929, n.° 3).


20 —      V. acórdão de 3 de maio de 2005, Berlusconi e o. (C‑387/02, C‑391/02 e C‑403/02, Colet., p. I‑3565, n.° 62).


21 —      Acórdão de 4 de dezembro de 1997, Daihatsu (C‑97/96, Colet., p. I‑6843, n.° 22).


22 —      V. n.° 32 das conclusões do advogado‑geral G. Cosmas apresentadas em 5 de junho de 1997, no processo Comissão/Alemanha (C‑191/95, Colet. 1998, p. I‑5449) e n.° 14 das conclusões do mesmo advogado‑geral apresentadas em 3 de julho de 1997, no processo Daihatsu, já referido na nota anterior.


23 —      V., em especial, o artigo 7.°, alínea a), da Diretiva 2009/101/CE, e o artigo 12.° da Décima Primeira Diretiva 89/666/CE. A este respeito, não posso deixar de observar que o facto de o artigo 7.°, alínea a), da Diretiva 2009/101/CE — como, aliás, anteriormente, a Primeira Diretiva 68/151/CEE substituída por aquela — impor aos Estados‑Membros que adotem sanções apropriadas pelo menos nos casos de falta de publicidade dos documentos contabilísticos demonstra que o legislador da União atribui uma especial importância ao respeito da obrigação de publicidade desses documentos em relação à publicidade de outras informações da sociedade. Neste sentido, v., também, as conclusões do advogado‑geral G. Cosmas no processo Comissão/Alemanha, já referidas na nota 22 (n.° 27).


24 —      V. acórdão Berlusconi e o., já referido na nota 20 (n.os 64 e 65).


25 —      V., designadamente, acórdãos de 12 de julho de 2001, Louloudakis (C‑262/99, Colet., p. I‑5547, n.° 67); de 29 de julho de 2010, Profaktor Kulesza, Frankowski, Jóźwiak, Orłowski (C‑188/09, Colet., p. I‑7639, n.° 29); e de 9 de fevereiro de 2012, Urbán (C‑210/10, n.° 23).


26 —      V., neste sentido, acórdãos de 9 de março de 2010, ERG e o. (C‑379/08 e C‑380/08, Colet., p. I‑2007, n.° 86), e Márton Urbán, já referido na nota 25 (n.° 24).


27 —      V. acórdão Profaktor Kulesza, Frankowski, Jóźwiak, Orłowski, já referido na nota 25 (n.° 30 e jurisprudência aí citada).


28 —      Acórdão de 30 de setembro de 2003, Inspire Art (C‑167/01, Colet., p. I‑10155, n.° 63).


29 —      V. explicações relativas ao projeto de lei do governo, p. 70 (este documento pode ser consultado no sítio Internet do Parlamento austríaco, no seguinte endereço www.parlament.gv.at/PAKT/VHG/XXIV/I/I_00981/fnameorig_201069.html). Na audiência, o Governo austríaco afirmou que, antes da reforma de 2011, só 37% das empresas de grande dimensão cumpria as obrigações de publicidade no prazo fixado. Resulta das referidas explicações que, à luz destes dados, o Governo austríaco se colocara mesmo a questão de saber se podia considerar que a República da Áustria cumpria de modo suficiente a sua obrigação, decorrente do direito da União, de tomar medidas adequadas para garantir o respeito das obrigações de publicidade das sociedades.


30 —      V. descrição deste sistema no n.° 12 e na nota 8 supra.


31 —      V., neste sentido, acórdão Idryma Typou, já referido na nota 15 (n.° 54 e jurisprudência aí citada).


32 —      V. nota 6, supra.


33 —      V., para uma análise análoga acórdão Innoventif, já referido na nota 19 (n.° 39), e acórdão de 17 de junho de 1997, Sodemare e o. (C‑70/95, Colet., p. I‑3395, n.° 33).


34 —      V., nomeadamente, acórdãos de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, Colet., p. I‑2271, n.° 37 e jurisprudência aí citada), e de 18 de março de 2010, Alassini e o. (C‑317/08 a C‑320/08, Colet., p. I‑2213, n.° 61).


35 —      V., nomeadamente, acórdão de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o. (C‑550/07 P, Colet., p. I‑8301, n.° 92 e jurisprudência aí citada).


36 —      V., nomeadamente, acórdãos de 15 de outubro de 2002, Limburgse Vinyl Maatschappij e o./Comissão (C‑238/99 P, C‑244/99 P, C‑245/99 P, C‑247/99 P, de C‑250/99 P a C‑252/99 P e C‑254/99 P, Colet., p. I‑8375, n.° 59), bem como de 29 de junho de 2006, Showa Denko/Comissão (C‑289/04 P, Colet., p. I‑5859, n.° 50).


37 —      V., mais recentemente, por ordem cronológica decrescente, conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón apresentadas em 12 de junho de 2012 no processo Åkerberg Fransson (C‑617/10, pendente no Tribunal de Justiça, n.os 25 a 65), eventualmente outras referências na nota 4; da advogada‑geral J. Kokott apresentadas em 15 de dezembro de 2011 no processo Bonda (acórdão de 5 de junho de 2012, C‑489/10, n.os 13 a 20); do advogado‑geral Y. Bot apresentadas em 5 de abril de 2011 no processo Scattolon (acórdão de 6 de setembro de 2011, C‑108/10, Colet., p. I‑7491, n.os 116 a 119); bem como da advogada‑geral V. Trstenjak apresentadas em 22 de setembro de 2011 no processo N. S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, Colet., p. I‑13905, n.os 71 a 81). Para referências à doutrina, v. nota 66 das conclusões do advogado‑geral Y. Bot referidas na presente nota.


38 —      V. n.os 4, 5 e 7, supra.


39 —      Por conseguinte, o presente caso distingue‑se substancialmente do, certamente mais problemático, que estava em causa no processo Åkerberg Fransson, já referido na nota 37. Com efeito, a diretiva considerada nesse processo não prevê, como no presente caso, uma obrigação expressa de os Estados‑Membros estabelecerem sanções adequadas para as violações das obrigações previstas na mesma, mas, como é salientado nas conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón, limita‑se a estabelecer uma obrigação de os Estados‑Membros prosseguirem, de modo eficaz, a cobrança do imposto (v. n.° 58 dessas conclusões, já referidas na nota 37). Portanto, ao passo que no caso Åkerberg Fransson o direito nacional é, simplesmente, posto ao serviço dos objetivos estabelecidos pelo direito da União (v., em especial, n.° 60 conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón), no presente caso, em contrapartida, a atividade legislativa nacional é inspirada diretamente no direito da União.


40 —      Portanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, deveriam ser aplicadas a este regime, tanto as garantias de direito civil como as de direito penal previstas no artigo 6.° CEDH.


41 —      V. n.° 45 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Bonda, já referidas na nota 37.


42 —      A este respeito, v. acórdão Bonda, já referido na nota 37 (n.os 36 e segs.). A necessidade de tomar em consideração a jurisprudência do TEDH conclui‑se a partir da exigência da homogeneidade estabelecida no artigo 6.°, n.° 1, terceiro parágrafo, TUE e no artigo 52.°, n.° 3, primeiro período, da Carta. V. n.° 43 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Bonda, já referidas na nota 37 e jurisprudência aí citada.


43 —      TEDH, acórdão Engel e o. e. Países Baixos de 8 de junho de 1976 (Grande Secção), série A, n.° 22, petições n.os 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; e 5370/72, §§ 80 a 82.


44 —      TEDH, acórdãos Engel, já referido na nota anterior, § 82; Öztürk e Alemanha de 21 de fevereiro de 1984, série A, n.° 73, § 52, petição n.° 8544/79; Menarini c. Itália de 27 de setembro de 2011, § 39, petição n.° 43509/08.


45 —      V., em especial, TEDH, acórdão Zolotukhin c. Rússia de 10 de fevereiro de 2009 (Grande Secção), §§ 52 e 53, petição n.° 14939/03. Para uma análise pormenorizada dos elementos que o TEDH toma em consideração na apreciação do segundo e terceiro critérios, v. n.os 48 e 49 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Bonda, já referido na nota 37 e jurisprudência aí citada.


46 —      TEDH, acórdão Jussila c. Finlândia de 23 de novembro de 2006, § 31 e jurisprudência aí citada, petição n.° 73053/07. V., também, TEDH, acórdãos Menarini, já referido na nota 44, § 38, e Zolotukhin, já referido na nota 45, § 52.


47 —      No entanto, deve‑se observar que resulta da jurisprudência do Oberster Gerichtshof da Áustria (a seguir «OGH»), a que a Texdata fez referência na audiência, que esse Supremo Tribunal da Áustria considera, de modo constante, que as sanções pecuniárias aplicadas nos termos do § 283 do UGB não têm natureza penal na aceção do artigo 6.° da CEDH. Esta jurisprudência foi confirmada em mais ocasiões, mesmo depois da reforma de 2011 (v. OGH, acórdãos de 13 de setembro de 2012, processo 6Ob152/12i, § 4 e de 16 de fevereiro de 2012, processo 6Ob17/12m, § 2). Portanto, resulta expressamente desta jurisprudência que a tese defendida pela Texdata na audiência, de que se inferia da jurisprudência do OGH que o regime de sanções previsto no § 283 do UGB tem natureza penal, carece de fundamento.


48 —      Na jurisprudência do TEDH, o facto de uma disposição se dirigir à generalidade das pessoas e não a um determinado grupo com certo estatuto constitui indício do caráter penal da sanção. V. TEDH, acórdão Öztürk, já referido na nota 44, § 53. Aliás, o Tribunal de Justiça também considerou este elemento, v. n.° 40 do acórdão Bonda, já referido na nota 37.


49 —      Os valores e interesses protegidos pela legislação em causa no processo principal parecem‑me, de modo geral, pertencer mais à esfera do direito civil ou administrativo do que à do direito penal. Contudo, há que observar que não é excluído que sejam previstas sanções penais relativamente à violação de obrigações respeitantes aos documentos contabilísticos das sociedades. Basta pensar na infração de comunicação de informações falsas sobre as sociedades, prevista nos artigos 2621.° e 2622.° do Código Civil italiano, objeto da questão prejudicial no acórdão Berlusconi, já referido na nota 20.


50 —      Na jurisprudência do TEDH, o caráter penal é negado quando a sanção só tem em vista a reparação de prejuízos patrimoniais. V. TEDH, acórdão Jussila, já referido na nota 46, § 38.


51 —      Deste ponto de vista, as sanções previstas pela legislação em causa não se distinguem dos impostos suplementares que foram objeto da jurisprudência do TEDH e aos quais este reconheceu caráter penal, uma vez que estes impostos suplementares não tinham por objetivo qualquer indemnização financeira, estando antes concebidos como uma pena, destinada a evitar reincidências. V. TEDH, acórdão Jussila, já referido na nota 46, § 38.


52 —      Com efeito, o Supremo Tribunal da Áustria considera que a aplicação de sanções como as previstas na legislação em causa serve não para repressão de um comportamento proibido, mas, antes, para a obtenção coerciva de um comportamento estabelecido por lei (v., em especial, OGH, § 2, do acórdão de 16 de fevereiro de 2012, já referido na nota 47 e acórdão de 21 de dezembro de 2011, processo 6Ob23511v, onde, especificamente no § 4, o OGH explica os motivos pelos quais o regime de sanções em causa não tem caráter repressivo).


53 —      Com base neste raciocínio, o Tribunal de Justiça excluiu que as sanções em causa nesse processo tivessem uma finalidade repressiva. V. n.os 39 a 42 do acórdão Bonda, já referido na nota 37.


54 —      V. TEDH, acórdão Zolotukhin, já referido na nota 45, § 56.


55 —      Por isso, tenho dúvidas quanto ao facto de uma sanção pecuniária deste valor poder ser qualificada como «considerável» à luz da jurisprudência do TEDH. A este respeito, embora o TEDH tenha declarado que a natureza menor da pena não é decisiva para privar uma infração da sua inerente natureza penal (acórdão Öztürk, já referido na nota 44, § 54, e Jussila, já referido na nota 46, § 35), considerou também, em alguns casos, que o facto de a sanção pecuniária ser de um montante importante constituía um elemento que indicava a gravidade da mesma e contribuía para determinar a sua natureza penal. V. TEDH, acórdãos Bendenoun e França de 24 de fevereiro de 1994, série A, n.° 284, § 47, petição n.° 12547/86, e Menarini, já referido na nota 44, § 42. A este respeito, v., também, §§ 9 e 10, e ainda a opinião discordante dos juízes Costa, Cabral Barreto, Mularoni e Caflisch, no acórdão Jussila, já referido na nota 46.


56 —      Com efeito, nos termos do n.° 5, do § 283 do UGB, as sanções pecuniárias aplicadas em processo comum, bem como as aplicadas posteriormente, em caso de incumprimento continuado, são aumentadas em três ou seis vezes para as empresas de média ou grande dimensão, respetivamente. Isto significa que, em caso de aplicação repetida de sanções multiplicadas a pessoas que detêm cargos nos órgãos sociais de sociedades de média ou grande dimensão, o montante total das sanções poderia alcançar montantes não negligenciáveis para essas pessoas.


57 —      Quanto à importância dos efeitos estigmatizadores v. TEDH, acórdão Jussila, já referido na nota 46, § 43.


58 —      TEDH, acórdão Jussila, já referido na nota 46, § 43; v., também, conclusões da advogada‑geral E. Sharpston apresentadas em 10 de fevereiro de 2011, no processo KME Germany e o./Comissão [acórdão de 8 de dezembro de 2011 (C‑272/09 P, Colet., p. I‑12789, n.° 67)].


59 —      V. n.° 43 das minhas conclusões apresentadas em 2 de setembro de 2010, no processo DEB (acórdão de 22 de dezembro de 2010, C‑279/09, Colet., p. I‑13849,).


60 —      Acórdão Unibet, já referido na nota 34 (n.° 38 e jurisprudência citada).


61 —      V. acórdãos Unibet, já referido na nota 34 (n.os 41 e 42 e jurisprudência citada); Alassini e o., já referido na nota 34 (n.° 47); e de 8 de julho de 2010, Bulicke (C‑246/09, Colet., p. I‑7003, n.° 25 e jurisprudência aí citada).


62 —      V. acórdãos Unibet, já referido na nota 34 (n.° 43 e jurisprudência aí citada), bem como Bulicke, já referido na nota anterior (n.° 25 e jurisprudência aí citada).


63 —      Acórdãos de 29 de outubro de 2009, Pontin (C‑63/08, Colet., p. I‑10467, n.° 47), e Bulicke, já referido na nota 61 (n.° 35 e jurisprudência aí citada).


64 —      O Tribunal de Justiça explicitou, por várias vezes, estes princípios. V., em especial, acórdão de 25 de outubro de 2011, Solvay/Comissão (C‑110/10 P, Colet., p. I‑10439, n.° 47 e jurisprudência aí citada); v., também, acórdão de 24 de outubro de 1996, Comissão/Lisrestal e o. (C‑32/95 P, Colet., p. I‑5373, n.° 21); bem como, recentemente, n.° 60 das conclusões do advogado‑geral Y. Bot apresentadas em 12 de setembro de 2012, relativas ao processo ZZ (C‑300/11, e jurisprudência aí citada).


65 —      Acórdão Bulicke, já referido na nota 61 (n.° 36 e jurisprudência aí citada).


66 —      Resulta das observações do Governo austríaco que, por regra, na prática, a decisão de aplicação da sanção é acompanhada de um formulário de reclamação, que simplifica a apresentação da mesma e que contém mesmo uma rubrica específica para a indicação dos fundamentos da reclamação e que como demonstrado pelo Governo austríaco na audiência, indica o prazo de impugnação de catorze dias.


67 —      Resulta das observações do Governo austríaco que, no direito austríaco, esta prorrogação do prazo é possível, com base na conjugação das disposições referidas do § 283 do UGB, apenas nos casos em que um acontecimento imprevisto e inevitável tiver impedido a apresentação da reclamação dentro do prazo.


68 —      O órgão jurisdicional de reenvio salienta também que a decisão que aplica a sanção pecuniária não indica as consequências jurídicas do indeferimento das reclamações apresentadas fora de prazo ou não fundamentadas, nem a preclusão de fundamentos novos não invocados anteriormente. A este respeito, observo que não se tratando de uma proibição ex lege de referir estes elementos, nada impede que os órgãos jurisdicionais os refiram na decisão que aplica a sanção. Em qualquer caso, esta circunstância também não me parece suscetível de comprometer a efetividade da reclamação.


69 —      TEDH, acórdãos Jussila, já referido na nota 46, §§ 40, 41 e 43, e Kammerer c. Áustria de 12 de maio de 2010, §§ 23 e 24, petição n.° 32435/06.


70 —      V. acórdãos Alassini e o., já referido na nota 34 (n.° 63), e de 6 de setembro de 2012, Trade Agency Ltd (C‑619/10, n.° 55 e jurisprudência aí citada).


71 —      Quando existem garantias deste tipo, a jurisprudência do TEDH admite a possibilidade de derrogação das garantias previstas no artigo 6.° da CEDH. V., TEDH, acórdãos Belilos e Suíça de 29 de abril de 1988, série A, n.° 132, § 68, Jussila, já referido na nota 46, § 43 in fine, e Menarini, já referido na nota 44, § 58. V., também, n.° 67 das conclusões da advogada‑geral E. Sharpston, relativas ao processo KME Germany e o./Comissão, já referido na nota 58.


72 —      Quanto à justificação apresentada pela Textdata, e retomada pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual aquela não tinha conhecimento das disposições do § 283 do UGB, observo que, por um lado, não é irrazoável pretender que sociedades estrangeiras tenham conhecimento do direito do Estado‑Membro em que tencionam exercer a sua atividade, e que, por outro, em qualquer caso, as obrigações de publicação dos documentos da sociedade a cargo das mesmas e, em especial das sucursais, bem como a previsão de sanções em caso de falta de publicação existem em todos os Estados‑Membros e decorrem do direito da União, que as previu já há mais de vinte anos.


73 —      V. acórdão de 11 de setembro de 2003, Safalero (C‑13/01, Colet., p. I‑8679, n.° 40).


74 —      Para a análise da evolução deste princípio na jurisprudência do Tribunal de Justiça, remeto para as conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas em 8 de setembro de 2011, no processo Toshiba [acórdão de 14 de fevereiro de 2012 (C‑17/10, n.os 115 e segs.)], bem como para as conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Åkerberg Fransson, já referido na nota 37, n.os 88 e segs. Em especial, em casos relativos à aplicação a nível nacional do direito da União, como o do presente processo, o Tribunal de Justiça aplicou um entendimento lato deste princípio, que prescinde do requisito da identidade do objeto jurídico e dá, exclusivamente, relevância ao requisito da identidade dos factos materiais, entendida como a existência de um complexo de circunstâncias concretas, indissociavelmente ligadas entre si, o que inclui necessariamente a identidade do infrator. V., a este respeito, especificamente n.° 91 das conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Åkerberg Fransson, já referido supra, bem como n.os 122 e 124 das conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas no processo Toshiba, já referido nesta nota. Esta é a interpretação também adotada pelo TEDH, a partir do acórdão Zolotukhin, já referido na nota 45 e, em especial, § 82.


75 —      A responsabilidade dos membros dos órgãos de administração, de direção e de fiscalização das sociedades de capitais é, aliás, estabelecida nos artigos 50.°‑B e 5.°‑C da Quarta Diretiva 78/660/CEE.


76 —      Esta posição está, de resto, em conformidade com a adotada pelo Supremo Tribunal da Áustria (v. OGH, acórdão de 13 de setembro de 2012, já referido na nota 47, § 3). É verdade que, como observado pela Comissão, é possível que, em casos especiais, como, por exemplo, o da sociedade unipessoal, a mesma pessoa seja punida duas vezes, enquanto membro de um órgão social da sociedade e enquanto único sócio. Em casos especiais deste tipo, cabe ao órgão jurisdicional nacional interpretar o § 283 do UGB de modo conforme ao princípio ne bis in idem.


77 —      Aliás, do despacho de reenvio resulta que a jurisprudência austríaca considera que não existe violação do princípio ne bis in idem nos casos em que os distintos períodos de infração estiverem claramente delimitados no tempo e, por isso, as diferentes sanções forem relativas a períodos diversos. V., em especial, acórdãos OGH de 21 de dezembro de 2012 nos processos 6Ob235/11v, 6Ob17/12m e 6Ob152/12i, e § 8 do acórdão de 13 de setembro de 2012, já referido na nota 47.


78 —      Por outro lado, estou de acordo com o Governo austríaco, quando afirma que impedir a repetição da sanção, na sequência do desrespeito continuado de um prazo claramente fixado, poderia permitir que a empresa que não cumpriu a obrigação de publicidade pagasse a sanção pecuniária sem que depois, uma vez esta paga, cumprisse a obrigação.