Language of document : ECLI:EU:C:2021:741

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

16 de setembro de 2021 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Auxílios de Estado — Regime de auxílios concedido pelo Reino da Bélgica — Isenção dos lucros excedentários — Decisão fiscal antecipada (tax ruling) — Prática administrativa constante — Regulamento (UE) 2015/1589 — Artigo 1.o, alínea d) — Conceito de “regime de auxílios” — Conceito de “ato” — Conceito de “outras medidas de execução” — Definição dos beneficiários “de forma geral e abstrata” — Recurso subordinado — Admissibilidade — Autonomia fiscal dos Estados‑Membros»

No processo C‑337/19 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 24 de abril de 2019,

Comissão Europeia, representada por P.‑J. Loewenthal e F. Tomat, na qualidade de agentes,

recorrente,

sendo as outras partes no processo:

Reino da Bélgica, representado por J.‑C. Halleux bem como por C. Pochet e M. Jacobs, na qualidade de agentes, assistidos por M. Segura e M. Clayton, avocates,

Magnetrol International, com sede em Zele (Bélgica), representada por H. Gilliams e L. Goossens, advocaten,

recorrentes em primeira instância,

Soudal NV, com sede em Turnhout (Bélgica),

EskoGraphics BVBA, com sede em Gand (Bélgica),

representadas por H. Viaene, avocat,

Flir Systems Trading Belgium BVBA, com sede em Meer (Bélgica), representada por T. Verstraeten, C. Docclo, avocats, e N. Reypens, advocaat,

AnheuserBusch InBev SA/NV, com sede em Bruxelas (Bélgica),

Ampar BVBA, com sede em Louvain (Bélgica),

Atlas Copco Airpower NV, com sede em Anvers (Bélgica),

Atlas Copco AB, com sede em Nacka (Suécia),

representadas por A. von Bonin, Rechtsanwalt, W. O. Brouwer, A. Pliego Selie, advocaten, e A. Haelterman, avocat,

Wabco Europe BVBA, com sede em Bruxelas, representada por E. Righini, L. Villani, avvocati, S. Völcker, Rechtsanwalt, e A. Papadimitriou, avocat,

Celio International NV, com sede em Bruxelas, representada por H. Gilliams e L. Goossens, advocaten,

intervenientes no presente recurso,

Irlanda,

interveniente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, N. Piçarra, D. Šváby, S. Rodin e K. Jürimäe (relatora), juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 24 de setembro de 2020,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 3 de dezembro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso, a Comissão Europeia pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 14 de fevereiro de 2019, Bélgica e Magnetrol International/Comissão (T‑131/16 e T‑263/16, a seguir «acórdão impugnado», EU:T:2019:91), pelo qual este anulou a Decisão (UE) 2016/1699 da Comissão, de 11 de janeiro de 2016, relativa ao regime de auxílios estatais de isenção em matéria de lucros excedentários SA.37667 (2015/C) (ex 2015/NN) concedido pela Bélgica (JO 2016, L 260, p. 61, a seguir «decisão controvertida»).

2        Com o seu recurso subordinado, o Reino da Bélgica pede a anulação parcial do acórdão impugnado na medida em que, através deste, o Tribunal Geral rejeitou o primeiro fundamento de anulação.

 Quadro jurídico

3        Nos termos do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o [TFUE] (JO 2015, L 248, p. 9):

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

d)      “Regime de auxílios”, qualquer ato com base no qual, sem que sejam necessárias outras medidas de execução, podem ser concedidos auxílios individuais a empresas nele definidas de forma geral e abstrata e qualquer diploma com base no qual pode ser concedido a uma ou mais empresas um auxílio não ligado a um projeto específico, por um período de tempo indefinido e/ou com um montante indefinido.»

4        O artigo 1.o, alínea e), deste regulamento define «[a]uxílio individual» como «um auxílio que não seja concedido com base num regime de auxílios ou que seja concedido com base num regime de auxílios, mas que deva ser notificado».

 Antecedentes do litígio e decisão controvertida

5        Os factos na origem do litígio foram expostos pelo Tribunal Geral nos n.os 1 a 28 do acórdão impugnado. Para efeitos do presente processo, podem ser resumidos do seguinte modo.

 Direito belga

 CIR 92

6        Na Bélgica, as normas relativas à tributação dos rendimentos estão codificadas no code des impôts sur les revenus 1992 (Código dos Impostos sobre o Rendimento de 1992) (a seguir «CIR 92»). Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, do CIR 92, é estabelecido, a título de imposto sobre os rendimentos, nomeadamente, um imposto sobre o rendimento global das sociedades residentes, denominado «imposto sobre as sociedades».

7        No que respeita especificamente à base do imposto sobre as sociedades, o artigo 185.o do CIR 92 prevê que as sociedades estão sujeitas a imposto sobre o montante total dos seus lucros, incluindo os dividendos distribuídos.

 Lei de 24 de dezembro de 2002

8        O artigo 20.o da loi du 24 décembre 2002, modifiant le régime des sociétés en matière d’impôts sur les revenus et instituant un système de décision anticipée en matière fiscale (Lei de 24 de dezembro de 2002, que Altera o Regime das Sociedades em Matéria de Impostos sobre os Rendimentos e Institui um Sistema de Decisão Antecipada em Matéria Fiscal) (Moniteur belge de 31 de dezembro de 2002, p. 58815) (a seguir «Lei de 24 de dezembro de 2002»), prevê que o service public fédéral Finances (SPF Finances) [Serviço Público Federal das Finanças (SPF Finances)] «se pronuncia antecipadamente sobre qualquer pedido relativo à aplicação das leis tributárias». Além disso, o conceito de «decisão antecipada» é definido como o ato jurídico através do qual o SPF Finances determina, em conformidade com as disposições em vigor, como se aplica a lei a uma situação ou a uma operação específica que ainda não produziu efeitos no plano fiscal. Por outro lado, refere‑se que a decisão antecipada não pode implicar a isenção ou a redução do imposto.

9        O artigo 22.o da Lei de 24 de dezembro de 2002 prevê que uma decisão antecipada não pode ser concedida, nomeadamente, quando o pedido se refere a situações ou a operações idênticas às que já produziram efeitos no plano fiscal no que respeita ao requerente.

10      Além disso, o artigo 23.o da Lei de 24 de dezembro de 2002 dispõe que, salvo nos casos em que o pedido o justificar, a decisão antecipada é proferida por um prazo que não pode exceder cinco anos.

 Lei de 21 de junho de 2004

11      Através da loi du 21 juin 2004, modifiant le code des impôts sur les revenus 1992 (Lei de 21 de junho de 2004, que Altera o Código dos Impostos sobre os Rendimentos de 1992) e a Lei de 24 de dezembro de 2002 que Altera o Regime das Sociedades em Matéria de Impostos sobre os Rendimentos e Institui um Sistema de Decisão Antecipada em Matéria Fiscal) (Moniteur belge de 9 de julho de 2004) (a seguir «Lei de 21 de junho de 2004»), o Reino da Bélgica introduziu novas disposições fiscais relativas às transações transfronteiriças de entidades associadas no seio de um grupo multinacional, prevendo, nomeadamente, uma correção dos lucros sujeitos a imposto, denominada «ajustamento correlativo».

–       Exposição de motivos

12      De acordo com a exposição de motivos constante do projeto de lei apresentado pelo Governo belga à Chambre des députés (Câmara dos Deputados, Bélgica), a referida lei tem por objetivo, por um lado, adaptar o CIR 92, a fim de nele incluir expressamente o princípio da plena concorrência, aceite a nível internacional. Por outro lado, a referida lei visa alterar a Lei de 24 de dezembro de 2002, a fim de conceder ao Serviço das Decisões Fiscais Antecipadas (SDA) a competência para adotar essas decisões. O princípio de plena concorrência foi introduzido na legislação fiscal belga pelo aditamento de um número 2 ao artigo 185.o do CIR 92, o qual se baseia na redação do artigo 9.o do Modelo de Convenção Fiscal da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE) sobre o rendimento e o património. O objetivo do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 é garantir que a base tributável das sociedades sujeitas a tributação na Bélgica possa ser adaptada mediante correções aos lucros resultantes de transações transfronteiriças intragrupo, quando os preços de transferência aplicados não refletem os mecanismos de mercado e o princípio de plena concorrência. Além disso, o conceito de «ajustamento adequado» introduzido pelo artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 justifica‑se para evitar ou eliminar uma dupla tributação. Por outro lado, refere‑se que este ajustamento deve efetuar‑se caso a caso, com base nos elementos disponíveis, fornecidos, nomeadamente, pelo contribuinte e que só há que proceder a um ajustamento correlativo se administração fiscal belga considerar que o ajustamento primário efetuado noutro Estado se justifica no que diz respeito ao seu princípio e ao seu montante.

–       Artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92

13      O artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 dispõe o seguinte:

«[…] [P]ara duas sociedades que fazem parte de um grupo multinacional de sociedades associadas e no que se refere às suas relações transfronteiriças recíprocas:

a)      quando as duas sociedades, nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições acordadas ou impostas diferentes das que seriam acordadas entre sociedades independentes, os lucros que, sem essas condições, teriam sido realizados por uma das sociedades mas não o puderam ser por causa dessas condições, podem ser incluídos nos lucros dessa sociedade;

b)      quando nos lucros de uma sociedade forem incluídos lucros que são igualmente incluídos nos lucros de uma outra sociedade, e que os lucros assim incluídos teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas as sociedades fossem as mesmas que sociedades independentes acordariam entre si, os lucros da primeira sociedade são ajustados de forma correspondente.»

 Circular de 4 de julho de 2006

14      A Circular de 4 de julho de 2006 sobre a aplicação do princípio de plena concorrência (a seguir «Circular de 4 de julho de 2006») foi enviada aos funcionários da Administração Geral Tributária (Bélgica), em nome do ministro das Finanças, a fim de comentar, nomeadamente, o aditamento de um n.o 2 ao artigo 185.o do CIR 92 e a correspondente adaptação do mesmo código. A Circular de 4 de julho de 2006 salienta que essas alterações, em vigor desde 19 de julho de 2004, visam transpor para o direito fiscal belga o princípio de plena concorrência e constituem um fundamento jurídico que permite, à luz desse princípio, ajustar o lucro tributável resultante de relações transfronteiriças intragrupo entre empresas associadas que fazem parte de um grupo multinacional.

15      Assim, por um lado, a Circular de 4 de julho de 2006 indica que o ajustamento positivo previsto no artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92, permite um aumento dos lucros da sociedade residente que faz parte de um grupo multinacional para incluir lucros que a sociedade residente devia ter realizado com uma determinada transação num contexto de plena concorrência.

16      Por outro lado, a Circular de 4 de julho de 2006 indica que o ajustamento correlativo negativo, previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, tem por objetivo evitar ou eliminar uma dupla tributação. É referido que nenhum critério pode ser estabelecido para este efeito, na medida em que esse ajustamento deve ser realizado caso a caso, com base nos elementos disponíveis, fornecidos, nomeadamente, pelo contribuinte. Além disso, é assinalado que só há que proceder a um ajustamento correlativo se as autoridades fiscais belgas ou o SDA considerarem que o ajustamento se justifica no seu princípio e no seu montante. Precisa‑se ainda que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 não se aplica se o lucro realizado no Estado parceiro é majorado de tal modo que é superior ao que se obteria em caso de aplicação do princípio de plena concorrência.

 Respostas do ministro das Finanças a perguntas parlamentares sobre a aplicação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92

17      Em 13 de abril de 2005, em resposta às perguntas parlamentares sobre a isenção em matéria de lucros excedentários, o ministro das Finanças confirmou, antes de mais, que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 visava a situação em que era tomada uma decisão antecipada a respeito de um método para alcançar um lucro de plena concorrência. Em seguida, confirmou que os lucros que figuram nos relatórios financeiros belgas de um grupo internacional presente na Bélgica e que ultrapassavam os lucros de plena concorrência não deviam ser tidos em conta na determinação do benefício fiscal belga. Por último, o ministro das Finanças validou a posição segundo a qual não cabia às autoridades fiscais belgas determinar em que lucros de empresas estrangeiras este benefício adicional devia ser incluído.

18      Em 11 de abril de 2007, em resposta a um novo conjunto de perguntas parlamentares relativas à aplicação do artigo 185.o, n.o 2, alíneas a) e b), do CIR 92, o ministro das Finanças declarou que só tinham sido recebidos pedidos de ajustamento negativo até àquela data. Além disso, especificou que, para a determinação do método para definir o lucro de plena concorrência da entidade belga, no âmbito das decisões antecipadas, eram tidas em consideração as funções que seriam exercidas, os riscos que seriam incorridos e os ativos que seriam afetados a atividades que ainda não tinham tido incidência fiscal na Bélgica. Assim, o lucro demonstrado na Bélgica através dos relatórios financeiros belgas do grupo multinacional que excedesse o lucro de plena concorrência não devia ser incluído no lucro fiscal tributável na Bélgica. Por último, o ministro das Finanças referiu que, na medida em que não cabia às autoridades fiscais belgas determinar a que sociedades estrangeiras o benefício adicional deveria ser atribuído, não era possível trocar informações com as Administrações Fiscais estrangeiras a este respeito.

19      Por último, em 6 de janeiro de 2015, o ministro das Finanças confirmou que o princípio na base das decisões antecipadas consistia em tributar lucro que correspondia a um lucro de plena concorrência para a empresa em causa e validou as respostas dadas pelo seu predecessor, em 11 de abril de 2007, quanto ao facto de o fisco belga não ter de demonstrar qual a sociedade estrangeira à qual devia ser atribuído o lucro excedentário não tributável na Bélgica.

 Decisão controvertida

20      Na decisão controvertida, a Comissão constatou que as isenções concedidas pelo Reino da Bélgica através de decisões antecipadas, com base no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, constituíam um regime de auxílios, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, incompatível com o mercado interno e que tinha sido executado em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE. A Comissão ordenou a recuperação dos auxílios concedidos aos beneficiários, cuja lista definitiva devia ser posteriormente estabelecida pelo Reino da Bélgica.

21      Em primeiro lugar, no que respeita à apreciação da medida de auxílio (considerandos 94 a 110 da decisão controvertida), a Comissão considerou que a medida em causa constituía um regime de auxílios, baseado no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, tal como aplicado pelas autoridades fiscais belgas. Esta aplicação era explicada na exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004, na Circular de 4 de julho de 2006 e nas respostas do ministro das Finanças às perguntas parlamentares relativas à aplicação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92. Estes atos constituíam, segundo a Comissão, a base da concessão das isenções em causa. Além disso, a Comissão considerou que estas isenções tinham sido concedidas sem necessidade de medidas de execução das disposições de base, constituindo as decisões antecipadas meras modalidades técnicas de execução do regime em causa. Por outro lado, a Comissão salientou que os beneficiários das isenções foram definidos «de forma geral e abstrata» nas disposições na base deste regime. Com efeito, elas visavam as entidades que fazem parte de um grupo multinacional de sociedades.

22      Em segundo lugar, no que se refere às condições de aplicação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (considerandos 111 a 117 da decisão controvertida), em primeiro lugar, a Comissão indicou que a isenção em matéria de lucros excedentários constituía uma intervenção do Estado, imputável a este, e que implicava uma perda de recursos estatais, na medida em que esta isenção conduzia a uma redução do imposto devido na Bélgica pelas empresas que beneficiam desse regime. Em segundo lugar, a Comissão considerou que o regime em causa era suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, na medida em que tinha beneficiado sociedades multinacionais que operam em vários Estados‑Membros. Em terceiro lugar, a Comissão sublinhou que o regime em apreço liberta as empresas beneficiárias de encargos que normalmente teriam de suportar e que, por conseguinte, o regime falseava ou ameaçava falsear a concorrência ao reforçar a posição financeira dessas empresas. Em quarto lugar, a Comissão considerou que o regime em causa conferia uma vantagem seletiva às entidades belgas beneficiando assim apenas os grupos multinacionais de empresas a que essas entidades pertencem.

23      Em terceiro lugar, a Comissão considerou que as medidas em causa constituíam auxílios ao funcionamento e eram, portanto, incompatíveis com o mercado interno. Além disso, não tendo estas medidas sido notificadas à Comissão nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, constituíam auxílios ilegais (considerandos 189 a 194 da decisão controvertida).

24      No que diz respeito à recuperação dos auxílios (considerandos 195 a 211 da decisão controvertida), a Comissão salientou que o Reino da Bélgica não podia invocar o princípio da proteção da confiança legítima nem o princípio da segurança jurídica para se subtrair à sua obrigação de recuperar os auxílios incompatíveis concedidos ilegalmente e que os montantes a recuperar podiam ser calculados, para cada beneficiário, com base na diferença entre o montante do imposto que teria sido devido, com base no lucro realmente registado, e o imposto efetivamente pago em virtude da decisão antecipada.

 Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão impugnado

25      Por petições entradas na Secretaria do Tribunal Geral em 22 de março e 25 de maio de 2016, o Reino da Bélgica e a Magnetrol International interpuseram recursos de anulação da decisão controvertida.

26      O Tribunal Geral decidiu apensar os processos T‑131/16, Bélgica/Comissão, e T‑263/16, Magnetrol International/Comissão, para efeitos da fase oral do processo e da decisão que põe termo à instância, em conformidade com o artigo 68.o, n.o 2, do seu Regulamento de Processo.

27      Em apoio do seu recurso de anulação, o Reino da Bélgica invocou cinco fundamentos. O primeiro era relativo à violação do artigo 2.o, n.o 6, TFUE e do artigo 5.o, n.os 1 e 2, TUE, na medida em que a Comissão interferiu na competência fiscal do Reino da Bélgica. O segundo era relativo a um erro de direito e a um erro manifesto de apreciação, na medida em que a Comissão qualificou erradamente as medidas em causa de regime de auxílios. Este fundamento dividia‑se em duas partes contestando, a primeira, a identificação dos atos em que se baseia o regime em causa e, a segunda, a consideração relativa à inexistência de outras medidas de execução. O terceiro fundamento era relativo à violação do artigo 107.o TFUE, na medida em que a Comissão considerou que o sistema de isenção dos lucros excedentários constituía um auxílio de Estado. O quarto era relativo a um erro manifesto de apreciação cometido pela Comissão quanto à identificação dos beneficiários do alegado auxílio. O quinto, invocado a título subsidiário, era relativo à violação do princípio geral da legalidade e do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589, na medida em que a decisão controvertida ordena a recuperação junto dos grupos multinacionais a que pertencem as entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada.

28      A Magnetrol International apresentou quatro fundamentos em apoio do seu recurso de anulação. O primeiro era relativo a um erro manifesto de apreciação, a abuso de poder e a falta de fundamentação, na medida em que, na decisão controvertida, a Comissão constatou a existência de um regime de auxílios. O segundo era relativo a uma violação do artigo 107.o TFUE bem como do dever de fundamentação e a um erro manifesto de apreciação, na medida em que, na decisão controvertida, a Comissão qualificou o regime em causa de medida seletiva. O terceiro fundamento era relativo a uma violação do artigo 107.o TFUE bem como do dever de fundamentação e a um erro manifesto de apreciação, na medida em que, na decisão controvertida, a Comissão considerou que esse regime dava origem a uma vantagem. O quarto fundamento, invocado a título subsidiário, era relativo a uma violação do artigo 107.o TFUE, a uma violação do princípio da proteção da confiança legítima, a um erro manifesto de apreciação, a um abuso de poder e a uma falta de fundamentação, no que respeita à recuperação do auxílio ordenada pela decisão controvertida, à identificação dos beneficiários e ao montante a recuperar.

29      No acórdão impugnado, em primeiro lugar, o Tribunal Geral examinou os fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica e pela Magnetrol International, relativos, em substância, a um abuso pela Comissão das suas competências em matéria de auxílios de Estado e a uma ingerência nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta (primeiro fundamento no processo T‑131/16 e primeira parte do terceiro fundamento no processo T‑263/16). No n.o 74 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral julgou esses fundamentos improcedentes.

30      Em segundo lugar, o Tribunal Geral examinou os fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica e pela Magnetrol International, relativos, em substância, à conclusão errada da Comissão relativa à existência de um regime de auxílios, na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, nomeadamente devido à identificação incorreta dos atos em que se baseia o regime em causa e à consideração errada de que esse regime não necessita de outras medidas de execução (segundo fundamento no processo T‑131/16 e primeiro fundamento no processo T‑263/16).

31      Nos n.os 86 a 88 do acórdão impugnado, antes de mais, o Tribunal Geral recordou os elementos que definem o conceito de «regime de auxílios», referido no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. Em seguida, em primeiro lugar, examinou, nos n.os 90 a 98 desse acórdão, se os elementos essenciais do regime em causa resultavam das disposições que a Comissão identificou como fundamento desse regime, para efeitos de determinar, nomeadamente, se os auxílios individuais eram concedidos sem a intervenção de outras medidas de execução. Em segundo lugar, nos n.os 99 a 113 do referido acórdão, o Tribunal Geral analisou se, no momento da adoção das decisões antecipadas que condicionavam a não tributação dos lucros excedentários, as autoridades fiscais belgas dispunham de um poder discricionário que lhes permitia influenciar o montante da isenção dos lucros excedentários, os elementos essenciais do referido regime e as condições em que essa isenção era concedida. Em terceiro lugar, nos n.os 114 a 119 do mesmo acórdão, o Tribunal Geral apreciou se os atos que fundamentam o regime em causa definiam os beneficiários «de forma geral e abstrata».

32      No termo desta análise, o Tribunal Geral declarou, no n.o 120 do acórdão impugnado, que a Comissão tinha concluído erradamente que o regime de isenção dos lucros excedentários, tal como definido na decisão controvertida, não necessitava de outras medidas de execução e que esse regime constituía, portanto, um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. Nos n.os 121 a 132 desse acórdão, o Tribunal Geral rejeitou, além disso, os argumentos da Comissão respeitantes à existência de uma alegada «abordagem sistemática» das autoridades belgas por ela identificada através do exame de 22 das 66 decisões antecipadas existentes relativas à isenção dos lucros excedentários e considerou que esses argumentos não punham em causa a conclusão formulada nesse n.o 120.

33      Assim, no n.o 136 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral julgou procedentes os fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica e pela Magnetrol International, relativos à violação do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. Por conseguinte, sem que tenha considerado necessário examinar os outros fundamentos invocados contra a decisão controvertida, o Tribunal Geral anulou essa decisão na sua totalidade.

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

34      Com o seu recurso, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular o acórdão impugnado na parte em que conclui que a decisão controvertida qualificou erradamente o sistema de isenção dos lucros excedentários de «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589;

–        devolver o processo ao Tribunal Geral para apreciação dos fundamentos ainda não examinados; e

–        reservar para final a decisão quanto às despesas do processo em primeira instância e do presente recurso.

35      O Reino da Bélgica, a Magnetrol International e as intervenientes concluem pedindo que seja negado provimento ao recurso e que a Comissão seja condenada nas despesas.

36      A Irlanda, interveniente em primeira instância, não participou no processo no Tribunal de Justiça.

37      Por Despachos do presidente do Tribunal de Justiça de 15 de outubro de 2019, a Soudal NV, a Esko‑Graphics BVBA, a Flir Systems Trading Belgium BVBA, a Anheuser‑Busch InBev SA/NV, a Ampar BVBA, a Atlas Copco Airpower NV, a Atlas Copco AB, a Wabco Europe BVBA e a Celio International NV (a seguir, conjuntamente, «intervenientes no presente recurso») foram admitidas a intervir em apoio dos pedidos da Magnetrol International.

38      Com o presente recurso, o Reino da Bélgica pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

–        anular parcialmente o acórdão impugnado, na medida em que o Tribunal Geral julgou improcedente o primeiro fundamento de anulação invocado por este Estado‑Membro e pronunciar‑se sobre esse fundamento;

–        confirmar o acórdão impugnado, na medida em que anula a decisão controvertida; e

–        condenar a Comissão nas despesas efetuadas no âmbito do recurso subordinado.

39      A Comissão pede que seja negado provimento ao recurso subordinado.

 Quanto ao presente recurso

 Quanto à admissibilidade

 Argumentos das partes

40      O Reino da Bélgica e a Magnetrol International, apoiada pelas intervenientes no presente recurso, alegam, em substância, que o recurso interposto pela Comissão é inadmissível.

41      Em primeiro lugar, a Magnetrol International, apoiada a este respeito pela Soudal, pela Esko‑Graphics, bem como pela Wabco Europe, considera que, tal como foram formulados, os pedidos deste recurso se destinam a solicitar a anulação do acórdão impugnado unicamente na medida em que o Tribunal Geral concluiu que a Comissão tinha qualificado erradamente o sistema de isenção dos lucros excedentários de «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. A Comissão solicitou, assim, a anulação parcial de uma parte indivisível do dispositivo do acórdão impugnado, pelo que esses pedidos são inadmissíveis.

42      Em segundo lugar, o Reino da Bélgica, a Soudal, a Esko‑Graphics e a Flir Systems Trading Belgium consideram que, com o referido recurso, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que proceda a uma nova apreciação dos factos sem, no entanto, invocar elementos que demonstrem uma qualquer desvirtuação desses factos. Além disso, a argumentação da Comissão baseia‑se em factos novos, que visam, nomeadamente, reescrever a posteriori a decisão controvertida.

43      Em terceiro lugar, o Reino da Bélgica, a Soudal e a Esko‑Graphics sustentam que a Comissão não indicou com suficiente precisão em que consiste o erro cometido pelo Tribunal Geral na interpretação do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589.

44      A Comissão contesta esta argumentação e alega que o recurso é admissível.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

45      No que respeita, em primeiro lugar, à alegação relativa à inadmissibilidade dos pedidos do recurso, há que recordar que, segundo o artigo 169.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, «[o]s pedidos do recurso devem ter por objeto a anulação, total ou parcial, da decisão do Tribunal Geral, tal como figura no dispositivo dessa decisão».

46      Esta disposição refere‑se ao princípio fundamental em matéria de recurso, segundo o qual este deve ser dirigido contra o dispositivo da decisão do Tribunal Geral e não pode ter exclusivamente por objeto a alteração de alguns dos fundamentos desta decisão (v., neste sentido, Acórdão de 14 de novembro de 2017, British Airways/Comissão, C‑122/16 P, EU:C:2017:861, n.o 51 e jurisprudência referida).

47      No caso em apreço, contrariamente ao que, em substância, alega a Magnetrol International, os pedidos da Comissão no Tribunal de Justiça, conforme reproduzidos no n.o 34, primeiro travessão, do presente acórdão, visam a anulação integral e não parcial do acórdão impugnado. Com efeito, tendo julgado procedente os fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica e pela Magnetrol International, relativos à qualificação errada do sistema de lucros excedentários como «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, o Tribunal Geral anulou a decisão controvertida e é o n.o 2 do dispositivo do acórdão impugnado que a Comissão contesta no seu recurso.

48      Nestas condições, há que rejeitar este fundamento.

49      Em segundo lugar, a argumentação segundo a qual o recurso se destina a pedir ao Tribunal de Justiça que reexamine as constatações de facto efetuadas pelo Tribunal Geral não pode ser acolhida.

50      Com efeito, por um lado, com o seu fundamento único de recurso, a Comissão suscita questões de direito, relativas à interpretação pelo Tribunal Geral do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, para contestar a justeza da solução jurídica adotada pelo Tribunal Geral no acórdão impugnado, nomeadamente na medida em que este considerou que o sistema de isenção dos lucros excedentários não preenchia as condições para ser qualificado de «regime de auxílios», no sentido desta disposição. Por conseguinte, a argumentação que desenvolve a este respeito no âmbito das quatro partes deste fundamento único é admissível.

51      Por outro lado, no âmbito do referido fundamento único, a Comissão alega igualmente que o Tribunal Geral desvirtuou vários considerandos da decisão controvertida, nomeadamente na medida em que ignorou que a Comissão constatou aí que o sistema dos lucros excedentários se baseava numa prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas, que consistia numa aplicação contra legem sistemática do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92.

52      Ora, tal argumentação que incide, em última análise, sobre a interpretação, pelo Tribunal Geral, da decisão controvertida e que, de resto, se baseia numa desvirtuação por este dos factos e dos elementos de prova invocados pela Comissão deve ser considerada admissível.

53      Além disso, esta argumentação visa igualmente os n.os 121 a 134 do acórdão impugnado, nos quais o Tribunal Geral se pronunciou sobre a questão de saber se a Comissão tinha feito prova bastante da existência da prática administrativa constante referida no n.o 51 do presente acórdão e que, em seu entender, permitia concluir que o sistema de isenção dos lucros excedentários constituía um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. Ora, a análise de tal questão que incide sobre a fundamentação da decisão controvertida e sobre os princípios que regem a prova é admissível em sede de recurso.

54      Em terceiro lugar, há também que rejeitar a alegação relativa à imprecisão do presente recurso.

55      Com efeito, tendo em conta o que precede, basta constatar que resulta claramente do recurso que a Comissão sustenta que o Tribunal Geral interpretou erradamente as condições fixadas no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 e que desvirtuou alguns considerandos da decisão controvertida. A este respeito, identifica precisamente não só esses considerandos, mas também os números do acórdão impugnado que pretende criticar, pelo que esta alegação deve ser rejeitada.

56      Resulta do que precede que o presente recurso é admissível.

57      Quanto ao restante, na medida em que o Reino da Bélgica e a Magnetrol International, apoiada pelas intervenientes no presente recurso, alegam que este recurso se baseia em factos novos ou que visam reescrever a decisão controvertida, esses argumentos serão, conforme necessário, examinados no âmbito da apreciação do mérito do referido recurso.

 Quanto ao mérito

 Observações preliminares

58      O fundamento único invocado pela Comissão é relativo a erros cometidos pelo Tribunal Geral na interpretação do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, que define um «regime de auxílios».

59      Nos termos deste artigo, entende‑se por «regime de auxílios» qualquer ato com base no qual, sem que sejam necessárias outras medidas de execução, podem ser concedidos auxílios individuais a empresas nele definidas de forma geral e abstrata.

60      Assim, a qualificação de uma medida estatal como regime de auxílios pressupõe a reunião de três requisitos cumulativos. Em primeiro lugar, podem ser concedidos auxílios individuais a empresas com base num ato. Em segundo lugar, não é necessária nenhuma medida de execução suplementar para a concessão desses auxílios. Em terceiro lugar, as empresas às quais podem ser concedidos os auxílios individuais devem ser definidas «de forma geral e abstrata».

61      O fundamento único da Comissão divide‑se em quatro partes. No essencial, as três primeiras destas partes visam, respetivamente, as três condições que definem um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. A quarta parte é relativa ao facto de o Tribunal Geral não ter tido em conta a ratio legis desta disposição.

 Quanto à primeira parte

–       Argumentos das partes

62      Com a primeira parte do seu fundamento único, a Comissão alega que o Tribunal Geral procedeu a uma interpretação e a uma aplicação erradas da primeira condição prevista no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589. Esta interpretação levou‑o a desvirtuar os considerandos 94 a 110 da decisão controvertida ao concluir, nos n.os 84, 90 a 120 e 125 do acórdão impugnado, que a Comissão tinha considerado que só os atos normativos referidos no considerando 99 desta decisão constituíam a base do regime em causa.

63      Segundo a Comissão, resulta dos considerandos 94 a 110 da referida decisão que ela considerou que esse regime se baseava na prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas que consistia em aplicar sistematicamente, e de maneira contra legem, o artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92.

64      Quanto ao termo «ato», utilizado no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, a Comissão considera, em primeiro lugar, que, apesar das divergências existentes entre as diferentes versões linguísticas deste regulamento, este termo permite englobar uma prática administrativa constante das autoridades de um Estado‑Membro. A jurisprudência do Tribunal de Justiça, resultante do Acórdão de 13 de abril de 1994, Alemanha e Pleuger Worthington/Comissão (C‑324/90 e C‑342/90, EU:C:1994:129, n.os 14 e 15), milita a favor dessa interpretação.

65      No acórdão impugnado, o Tribunal Geral adotou uma interpretação restritiva do referido termo que o levou a examinar o sistema de isenção dos lucros excedentários efetuando uma distinção errada entre, por um lado, a prática administrativa constitutiva desse regime e, por outro, as disposições normativas que constituem o seu fundamento. Ora, deveria ter analisado se este sistema constituía um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, na medida em que se baseava na prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas que consistia numa aplicação contra legem sistemática do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92.

66      Em segundo lugar, resulta, de forma juridicamente bastante, dos considerandos 94 a 110 da decisão controvertida que a Comissão entendeu que o sistema de isenção dos lucros excedentários assentava nessa prática administrativa constante. Por esta razão, a Comissão estabeleceu várias vezes uma distinção entre, por um lado, as decisões antecipadas relativas aos lucros excedentários baseadas, em conformidade com essa prática administrativa constante, numa aplicação contra legem sistemática do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 e que dão lugar a um regime de auxílios de Estado e, por outro, as decisões antecipadas tomadas no respeito desta disposição e que não dão lugar a nenhum auxílio de Estado.

67      Em terceiro lugar, as razões apresentadas nos considerandos 94 a 110 da decisão controvertida devem ser apreciadas à luz do contexto em que essa decisão foi adotada, a saber, a Decisão da Comissão de 3 de fevereiro de 2015 no processo SA.37667 (2015/C) (ex 2015/NN) sobre o sistema belga de decisões fiscais antecipadas em matéria de lucros excedentários — Artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do Código dos Impostos sobre os Rendimentos de 1992 («CIR 92») — Convite à apresentação de observações nos termos do artigo [108.o, n.o 2, TFUE] (JO 2015, C 188, p. 24, a seguir «decisão de início do procedimento»). Resulta claramente da decisão de início do procedimento que a Comissão sempre considerou que o sistema de isenção dos lucros excedentários assentava numa prática administrativa constante que consistia numa aplicação errada do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR e das regras jurídicas que regem a matéria em causa.

68      O Reino da Bélgica alega que a primeira parte do fundamento único de recurso é improcedente.

69      A Magnetrol International, apoiada pelas intervenientes no presente recurso, entende que, com esta primeira parte, a Comissão pretende alterar a posteriori a fundamentação da decisão controvertida e faz uma leitura errada do acórdão impugnado.

70      A título subsidiário, estas partes alegam que, para demonstrar a existência de um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, a Comissão só pode invocar uma «abordagem sistemática» das autoridades de um Estado‑Membro quando não identifica nenhum ato jurídico suscetível de fundamentar o regime em causa. Esta interpretação é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça referida nos n.os 79 e 122 do acórdão impugnado. Ora, no caso em apreço, os considerandos 97 a 99 da decisão controvertida identificam esses atos jurídicos como o fundamento do regime em questão. Assim, a Comissão não se pode basear numa «abordagem sistemática» para concluir pela existência de tal regime.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

71      Na medida em que a Comissão alega que o Tribunal Geral procedeu a uma interpretação errada do primeiro requisito previsto no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, há que determinar, em primeiro lugar, se, como defende a Comissão, uma disposição fiscal de um Estado‑Membro deve ser considerada um «ato», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, quando é objeto de uma aplicação contra legem sistemática pelas autoridades fiscais desse Estado‑Membro e, na hipótese de tal aplicação, se deve ser tida em conta a prática administrativa constante dessas autoridades na identificação dos atos constitutivos do regime de auxílios baseado nessa disposição fiscal.

72      No que toca, em primeiro lugar, ao alcance do termo «ato», referido no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, há que salientar que, em conformidade com a redação deste artigo 1.o, este termo remete para qualquer ato com base no qual, sem que seja necessário adotar outras medidas de execução, podem ser concedidos auxílios individuais a empresas.

73      A este respeito, importa sublinhar que a interpretação literal deste artigo 1.o não permite determinar se o termo «ato» é suscetível de abranger um regime caracterizado, segundo a Comissão, por uma aplicação contra legem sistemática de uma disposição fiscal de um Estado‑Membro pelas autoridades fiscais desse Estado‑Membro no âmbito de uma prática administrativa constante. Com efeito, como alega a Comissão, as diferentes versões linguísticas do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 utilizam termos divergentes, que são, consoante o caso, suscetíveis ou não de abranger tal prática administrativa.

74      Ora, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a fim de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes de um mesmo texto cuja versão numa língua da União diverge das versões nas outras línguas, a disposição em causa deve ser interpretada em função do contexto e da finalidade da regulamentação a que pertence (Acórdão de 12 de setembro de 2019, Comissão/Kolachi Raj Industrial, C‑709/17 P, EU:C:2019:717, n.o 88 e jurisprudência referida).

75      Assim, no que respeita, em segundo lugar, ao contexto em que se inscreve o artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, há que salientar que o conceito de «regime de auxílios» se distingue do conceito de «auxílio individual», referido no artigo 1.o, alínea e), deste regulamento.

76      Diferentemente de um auxílio individual, que diz respeito a uma medida de auxílio de Estado que exige um exame individual à luz dos critérios referidos no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o recurso ao conceito de «regime de auxílios» permite à Comissão examinar, à luz desta disposição, um conjunto de auxílios concedidos individualmente a empresas com fundamento numa disposição comum que constitui, em princípio, a base jurídica.

77      A este respeito, o Tribunal Geral recordou corretamente, no n.o 78 do acórdão impugnado, que, no caso de um regime de auxílios, a Comissão se pode limitar a estudar as características desse regime para apreciar, nos fundamentos da decisão em causa, se, em razão das modalidades que esse regime prevê, este assegura uma vantagem sensível aos beneficiários relativamente aos seus concorrentes e é suscetível de beneficiar essencialmente empresas que participam nas trocas comerciais entre Estados‑Membros. Assim, numa decisão que incide sobre um regime dessa natureza, a Comissão não está obrigada a efetuar uma análise do auxílio concedido em cada caso individual com base nesse regime. Apenas na fase de recuperação dos auxílios será necessário verificar a situação individual de cada empresa em causa.

78      Daqui decorre que o termo «ato», que figura no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, designa os atos constitutivos de um regime de auxílios a partir dos quais é possível identificar as características essenciais necessárias à sua qualificação como medida de auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

79      Embora, regra geral, este termo seja suscetível de designar os atos que constituem a base jurídica do regime de auxílios, não se pode excluir, como aliás o Tribunal Geral salientou, que possa também, em determinadas circunstâncias, remeter para uma prática administrativa constante das autoridades de um Estado‑Membro, quando essa prática revela uma «abordagem sistemática», cujas características correspondem às exigências previstas no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589.

80      A este respeito, no n.o 79 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral referiu‑se, a justo título, aos n.os 14 e 15 do Acórdão de 13 de abril de 1994, Alemanha e Pleuger Worthington/Comissão (C‑324/90 e C‑342/90, EU:C:1994:129), para sublinhar que o Tribunal de Justiça declarou que, no âmbito do exame de um regime de auxílios e, na falta de uma base legal que institua esse regime de auxílios, a Comissão pode basear‑se num conjunto de circunstâncias suscetíveis de evidenciar a existência, de facto, de um regime de auxílios.

81      Contrariamente ao que alega, nomeadamente, a Magnetrol International, apoiada, a este título, pelas intervenientes no presente recurso, não resulta de modo algum desse acórdão do Tribunal de Justiça que a possibilidade de a Comissão detetar a existência, de facto, de um regime de auxílios se limite à situação em que não existe nenhuma disposição legal que fundamente esse regime. Pelo contrário, os ensinamentos decorrentes do referido acórdão do Tribunal de Justiça permitem concluir que, a fortiori, essa possibilidade existe quando o regime de auxílios resulta, como alega a Comissão no caso em apreço, da aplicação contra legem sistemática de uma disposição fiscal de um Estado‑Membro pelas autoridades fiscais desse Estado‑Membro no âmbito de uma prática administrativa constante.

82      Com efeito, a tomada em consideração dessa prática administrativa, no âmbito da determinação do «ato» constitutivo de um regime de auxílios, na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, permite revelar o alcance real desta disposição fiscal que, de outro modo, não pode ser entendida apenas com base no referido ato.

83      Em terceiro lugar, tal interpretação do termo «ato» é corroborada pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento 2015/1589, que visa definir as modalidades do controlo relativo aos auxílios de Estado previsto no artigo 108.o TFUE.

84      Na verdade, o efeito útil das regras em matéria de auxílios de Estado seria consideravelmente reduzido se o termo «ato», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, se limitasse a designar os atos formais constitutivos de um regime de auxílios.

85      Por um lado, há que salientar que o alcance e as modalidades desse controlo seriam, em tal hipótese, necessariamente dependentes da forma que os Estados‑Membros conferem às medidas de auxílio de Estado. Por outro lado, como alega a Comissão, algumas dessas medidas de auxílios que assentam numa aplicação contra legem de uma disposição do direito nacional seriam necessariamente excluídas do conceito de «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, apesar de um conjunto de circunstâncias permitir detetar a existência, de facto, desse regime.

86      Logo, a Comissão pode concluir pela existência de um regime de auxílios quando consiga demonstrar, de forma juridicamente bastante, que este se baseia na aplicação de uma disposição de um Estado‑Membro, segundo uma «abordagem sistemática» das autoridades desse Estado‑Membro, e que as características dessa abordagem satisfazem as exigências previstas no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589.

87      Em segundo lugar, há que determinar se, como alega a Comissão, o Tribunal Geral procedeu a uma aplicação errada do termo «ato», referido no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, e desvirtuou a decisão controvertida ao considerar que apenas os atos enumerados no considerando 99 da decisão controvertida constituíam a base do regime em causa, conforme identificado pela Comissão.

88      A este respeito, importa salientar que, no n.o 80 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral examinou, num primeiro momento, os atos enumerados nos considerandos 97 a 99 da decisão controvertida. Salientou que os atos que figuram no considerando 99 desta decisão, a saber, o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, a exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004, a Circular de 4 de julho de 2006 e as respostas do ministro das Finanças às perguntas parlamentares relativas à aplicação do referido artigo pelas autoridades fiscais belgas, constituem os atos com base nos quais a isenção em matéria de lucros excedentários é concedida.

89      Nos n.os 81 e 82 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral salientou que o raciocínio da Comissão estava viciado de uma certa ambivalência, na medida em que, todavia, reconheceu que nem o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 nem, de resto, nenhuma outra disposição do CIR 92 prescrevia essa isenção dos lucros excedentários.

90      No entanto, o Tribunal Geral declarou, no n.o 83 do acórdão impugnado, que, após uma análise global da decisão controvertida, devia considerar‑se que a base do regime em causa era constituída pelo artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, tal como aplicado pelas autoridades fiscais belgas, e que tal aplicação podia ser deduzida dos atos referidos no n.o 88 do presente acórdão. Nos n.os 84 a 88 do acórdão impugnado, deduziu daí, em substância, que a análise do preenchimento dos requisitos previstos no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 devia, por conseguinte, ser efetuada à luz do conteúdo desses atos.

91      Assim, num segundo momento, nos n.os 90 a 98 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral analisou nomeadamente se os elementos essenciais do regime em causa, que a Comissão identificou no considerando 102 da decisão controvertida, resultavam dos atos enumerados nos considerandos 97 a 99 dessa decisão.

92      A este respeito, no n.o 92 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral salientou, antes de mais, que, tendo em conta a análise que figura nos considerandos 101 e 139 da decisão controvertida, estes elementos essenciais não resultavam desses atos, mas da amostra de decisões antecipadas analisada pela Comissão. No n.o 93 desse acórdão, embora reconhecendo que alguns dos referidos elementos essenciais decorriam efetivamente dos referidos atos, entendeu, no entanto, que não era esse o caso de todos os elementos essenciais e, nomeadamente, do método de cálculo em duas etapas dos lucros excedentários sujeitos à isenção controvertida, do requisito da criação de emprego, da centralização ou do aumento de atividades na Bélgica.

93      Este raciocínio padece de erros de direito.

94      Com efeito, como foi salientado no n.o 90 do presente acórdão, embora o Tribunal Geral tenha constatado que a base jurídica do regime em causa resultava não apenas do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, mas da aplicação desta disposição pelas autoridades fiscais belgas, não retirou, todavia, todas as consequências dessa constatação. Em especial, não teve em conta os considerandos da decisão controvertida dos quais resultava claramente que a Comissão deduziu essa aplicação não só dos atos referidos no considerando 99 dessa decisão mas também de uma abordagem sistemática dessas autoridades que constatou a partir da análise de uma amostra de decisões antecipadas que examinou.

95      Assim, no âmbito da leitura global da decisão controvertida efetuada no n.o 83 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral deveria ter tido em conta as considerações formuladas nos considerandos 100 a 108 e 110 dessa decisão, das quais resulta, em substância, que a Comissão entendeu que uma das características essenciais do regime em causa era a de que as referidas autoridades emitiram sistematicamente decisões que concediam a isenção em matéria de lucros excedentários segundo as condições enumeradas no considerando 102 da referida decisão.

96      Neste contexto, como resulta nomeadamente do n.o 98 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral baseou‑se, em contrapartida, na premissa errada de que a circunstância de alguns dos elementos essenciais do regime em causa não resultarem dos atos que figuram no considerando 99 da decisão controvertida, mas das próprias decisões antecipadas, implicava que esses atos deviam necessariamente ser objeto de outras medidas de execução.

97      Por conseguinte, ao limitar a sua análise das condições do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, aos atos referidos no considerando 99 da decisão controvertida, o Tribunal Geral procedeu a uma aplicação errada do termo «ato», constante deste artigo 1.o

98      Este erro levou‑o, por um lado, a excluir, por princípio, que um «regime de auxílios», na aceção do referido artigo 1.o, possa, como foi salientado nos n.os 80 e 86 do presente acórdão, basear‑se num conjunto de circunstâncias suscetíveis de evidenciar a sua existência de facto e, por outro, a efetuar uma leitura errada dessa decisão no que respeita ao exame da primeira dessas condições.

99      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que concluir que a primeira parte do fundamento único de recurso é procedente.

 Quanto à segunda parte

–       Argumentos das partes

100    Com a segunda parte do seu fundamento único, a Comissão alega que o Tribunal Geral interpretou erradamente a segunda condição prevista no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 e desvirtuou os considerandos 100 a 108 da decisão controvertida ao concluir, nos n.os 94, 96, 98, 103 a 113, 119, 120 e 129 a 133 do acórdão impugnado, que a concessão da isenção dos lucros excedentários exigia a adoção de outras medidas de execução.

101    O Tribunal Geral limitou‑se a repetir a afirmação segundo a qual, se os elementos essenciais do regime em causa enumerados no considerando 102 da decisão controvertida não estivessem enunciados nos atos normativos referidos no considerando 99 dessa decisão, deviam necessariamente ser objeto de outras medidas de execução. Segundo a Comissão, o Tribunal Geral não examinou se, no respeitante à isenção dos lucros excedentários, as autoridades fiscais belgas podiam efetivamente influenciar o montante da isenção dos lucros excedentários, os elementos essenciais do regime em causa e as condições da concessão dessa isenção em casos individuais. Alega ainda que o Tribunal Geral confundiu o poder discricionário de que essas autoridades dispunham para verificar o respeito das condições da concessão de isenção dos lucros excedentários e a capacidade destas autoridades para influenciar o montante desta isenção, os elementos essenciais do regime em causa e as condições da concessão da referida isenção em casos individuais. Se o Tribunal Geral tivesse interpretado e aplicado corretamente o conceito de «outras medidas de execução», deveria ter concluído que as referidas autoridades não estavam em condições de influenciar tais elementos.

102    O Reino da Bélgica considera que o raciocínio do Tribunal Geral, relativo à segunda condição prevista no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, está isento de erro de direito.

103    A Magnetrol International, apoiada pelas intervenientes no presente recurso, alega, em substância, que, para concluir pela existência de um regime de auxílios, a Comissão deveria ter demonstrado na decisão controvertida, em primeiro lugar, que os atos enumerados nos considerandos 97 a 99 dessa decisão impunham métodos de cálculo que as autoridades fiscais belgas deviam aplicar e, em segundo lugar, que o montante da isenção dos lucros excedentários em cada caso individual podia ser determinado através desses métodos. Em terceiro lugar, no que respeita às condições de concessão do auxílio, a Comissão deveria ter demonstrado, por um lado, que esses atos fixavam as condições em que as autoridades fiscais belgas podiam aceitar os pedidos de auxílios individuais e, por outro, que era possível decidir com base nestas condições se a transação proposta pelo requerente da decisão antecipada satisfazia o requisito de «situação nova».

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

104    A segunda parte do fundamento único de recurso tem por objeto a segunda condição que permite definir um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, a saber, que não sejam necessárias «outras medidas de execução» para conceder auxílios individuais com base na disposição constitutiva desse regime.

105    Como o Tribunal Geral salientou, corretamente, no n.o 99 do acórdão impugnado, referindo‑se a este respeito ao considerando 100 da decisão controvertida, a existência de outras medidas de execução implica o exercício de um poder discricionário por parte da autoridade fiscal que adota as medidas em questão, que lhe permite influenciar o montante do auxílio, as características deste, ou as condições em que o auxílio é concedido. Em contrapartida, a simples execução técnica do ato que prevê a concessão dos auxílios em causa não constitui uma «outra medida de execução», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589.

106    Daqui decorre que a questão de saber se são necessárias «outras medidas de execução» para conceder auxílios individuais ao abrigo de um regime de auxílios está intrinsecamente ligada à da determinação do conceito de «ato», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, no qual se baseia esse regime. Com efeito, é à luz desta disposição que há que apurar se a concessão de auxílios individuais está condicionada à adoção de tais medidas ou se, pelo contrário, essa concessão pode ser feita apenas com base no referido ato.

107    Como salientou a advogada‑geral no n.o 100 das suas conclusões, o erro de direito identificado nos n.os 97 e 98 do presente acórdão afetou, portanto, necessariamente, a apreciação efetuada pelo Tribunal Geral da questão de saber se a isenção dos lucros excedentários era, no caso em apreço, concedida sem que fosse necessário adotar outras medidas de execução.

108    Com efeito, por um lado, como foi constatado no n.o 96 do presente acórdão, o Tribunal Geral baseou‑se na premissa errada de que a circunstância de alguns dos elementos essenciais do regime em causa não resultarem dos atos que figuram no considerando 99 da decisão controvertida, mas serem deduzidos das próprias decisões antecipadas, implicava que esses atos deviam necessariamente ser objeto da adoção de outras medidas de execução.

109    Por outro lado, no âmbito do exame, efetuado nos n.os 103 a 113 do acórdão impugnado, da questão de saber se, quando da adoção das decisões antecipadas a título de isenção dos lucros excedentários, as autoridades fiscais belgas dispunham de um poder discricionário que lhes permitia influenciar o montante dessa isenção, os elementos essenciais do regime em causa e as condições em que essa isenção era concedida, o Tribunal Geral limitou‑se a fazer referência aos atos enumerados no considerando 99 da decisão controvertida para concluir, em substância, que esses atos se limitavam a definir, de maneira geral, a posição das autoridades fiscais belgas quanto à mesma isenção.

110    Daí deduziu que, na falta de outros elementos que limitem o poder decisório desta Administração, aquando da adoção dessas decisões antecipadas, as autoridades fiscais belgas gozavam necessariamente de um poder discricionário, pelo que não se podia concluir que tinham procedido a uma execução técnica do quadro regulamentar, mas que tinham efetuado, pelo contrário, um exame «caso a caso» de cada pedido.

111    Todavia, no âmbito deste exame, o Tribunal Geral não teve em conta o facto de que, como foi salientado no n.o 95 do presente acórdão, uma das características essenciais do regime em causa, conforme identificado pela Comissão na decisão controvertida, residia no facto de as autoridades fiscais belgas terem sistematicamente concedido a isenção de lucros excedentários quando as condições enumeradas no considerando 102 dessa decisão estivessem reunidas.

112    Ora, contrariamente ao que o Tribunal Geral declarou, a identificação dessa prática sistemática era suscetível de constituir um elemento pertinente no âmbito de uma apreciação de todas as circunstâncias suscetíveis de evidenciar a existência, de facto, de um regime de auxílios que permitisse, sendo caso disso, demonstrar que essas autoridades fiscais não dispunham, na realidade, de qualquer poder discricionário na aplicação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 e que, por conseguinte, nenhuma «outra medida de execução», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, era necessária para conceder a isenção de lucros excedentários em causa.

113    Por conseguinte, como a Comissão alega, ao basear a sua conclusão relativa ao segundo requisito previsto no artigo 1.o, alínea d), deste regulamento numa premissa errada, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito.

114    Esta conclusão não pode ser posta em causa pelas considerações tecidas nos n.os 106 e 107 do acórdão impugnado. O Tribunal Geral baseou‑se aí na constatação de que o regime em causa não visava todas as decisões antecipadas adotadas com base no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, mas unicamente as decisões antecipadas que concediam ajustamentos negativos sem que a Administração tivesse verificado se os lucros em causa tinham sido incluídos nos lucros de outra sociedade do grupo estabelecida noutra circunscrição, ao passo que as decisões antecipadas que concediam um ajustamento negativo correspondente ao ajustamento positivo dos lucros tributáveis de outra sociedade do grupo estabelecida noutra circunscrição não faziam parte desse regime. Segundo o Tribunal Geral, na medida em que, com base na mesma disposição, as autoridades fiscais belgas podiam adotar tanto decisões que, no entender da Comissão, conferiam auxílios de Estado como decisões que não conferiam tais auxílios, o papel dessas autoridades não se limitava a uma execução técnica do regime em causa.

115    Ora, como foi constatado no n.o 94 do presente acórdão, a Comissão considerou que era a aplicação contra legem do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, no âmbito de uma prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas que constituía o fundamento do regime em causa. Esta constatação não pode ser posta em causa pelo simples facto de as autoridades fiscais belgas terem igualmente aplicado esta disposição em situações efetivamente abrangidas pelo seu âmbito de aplicação.

116    Do mesmo modo, a existência de uma fase preliminar no âmbito do procedimento de obtenção de uma decisão antecipada a título da isenção dos lucros excedentários, referida no n.o 112 do acórdão impugnado, não pode constituir um indício de que as autoridades fiscais belgas gozavam necessariamente de um poder discricionário no âmbito do sistema de isenção dos lucros excedentários. Com efeito, esse poder discricionário deve ser apreciado apenas à luz das decisões antecipadas que foram concedidas ao abrigo desse sistema, pelo que as situações que não deram lugar à adoção de tal decisão não são pertinentes a este respeito.

117    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que concluir que a segunda parte do fundamento único de recurso é procedente.

 Quanto à terceira parte

–       Argumentos das partes

118    Com a terceira parte do seu fundamento único, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral interpretou erradamente o terceiro requisito previsto no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 e desvirtuou os considerandos 66, 102, 103, 109, 139 e 140 da decisão controvertida ao concluir, nos n.os 114 a 119 do acórdão impugnado, que os beneficiários da isenção dos lucros excedentários não eram definidos «de forma geral e abstrata» pelos atos que constituem a base desse regime. Para a Comissão, se o Tribunal Geral tivesse tido devidamente em conta a prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas relativa a esta isenção, teria chegado à conclusão inversa.

119    O Reino da Bélgica e a Magnetrol International, apoiada pelos intervenientes no presente recurso, contestam esta argumentação.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

120    A terceira parte do fundamento único de recurso tem por objeto a terceira condição que define um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, a saber, a relativa ao facto de os beneficiários desse regime serem definidos de «forma geral e abstrata» no ato que constitui a base desse regime.

121    A este respeito, decorre das relações existentes entre os três requisitos que permitem qualificar uma medida de «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, que a questão de saber se o terceiro destes requisitos está preenchido se encontra intrinsecamente ligada aos dois primeiros requisitos, respeitantes à existência de um «ato» e à inexistência de «outras medidas de execução».

122    Por conseguinte, os erros de direito cometidos pelo Tribunal Geral, referidos nos n.os 97, 98 e 113 do presente acórdão e que dizem respeito a estes dois primeiros requisitos, viciaram a apreciação do Tribunal Geral relativa à definição dos beneficiários da isenção dos lucros excedentários.

123    Com efeito, nos n.os 115 a 119 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral, embora reconhecendo que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 visa uma categoria geral e abstrata de entidades, baseou‑se essencialmente numa análise dos atos referidos no considerando 99 da decisão controvertida para concluir que os beneficiários do regime em causa não estavam definidos «de forma geral e abstrata» por esses atos, pelo que essa definição devia necessariamente ser efetuada através de medidas de execução adicionais.

124    Nestas condições, há que concluir que a terceira parte do fundamento único de recurso é procedente.

125    Tendo em conta todas as considerações precedentes, e sem que seja necessário examinar a quarta parte do fundamento único de recurso, há que concluir que, ao declarar, nomeadamente no n.o 120 do acórdão impugnado, que a Comissão tinha erradamente considerado que o regime de isenção dos lucros excedentários, tal como definido na decisão controvertida, constituía um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, o Tribunal Geral cometeu vários erros de direito.

 Quanto à fundamentação exaustiva do acórdão impugnado relativa à prova de uma «abordagem sistemática»

126    Há que salientar que, no âmbito de uma fundamentação exaustiva, que figura nos n.os 121 a 134 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral examinou se a Comissão tinha conseguido demonstrar a existência de uma «abordagem sistemática» das autoridades fiscais belgas identificada no termo da análise de uma amostra de 22 das 66 decisões antecipadas que tinham sido adotadas a título da isenção dos lucros excedentários.

127    Para determinar se os erros de direito identificados no n.o 125 do presente acórdão são suscetíveis de conduzir à anulação do acórdão impugnado, há que examinar se, no âmbito desta fundamentação, o Tribunal Geral rejeitou corretamente os argumentos da Comissão relativos à existência dessa «abordagem sistemática».

–       Argumentos das partes

128    No âmbito da sua argumentação relativa às três primeiras partes do fundamento único de recurso, a Comissão formulou argumentos específicos destinados a contestar o raciocínio do Tribunal Geral que figura nos n.os 121 a 134 do acórdão impugnado, no termo do qual considerou que a Comissão não tinha demonstrado de forma juridicamente bastante a existência de uma «abordagem sistemática» das autoridades fiscais belgas na concessão da isenção dos lucros excedentários.

129    Em primeiro lugar, a Comissão alega que, contrariamente ao que o Tribunal Geral decidiu nos n.os 127 e 128 do acórdão impugnado, fundamentou adequadamente os elementos que a levaram a concluir pela existência dessa «abordagem sistemática».

130    No que respeita, antes de mais, à escolha da amostra das 22 decisões antecipadas a partir da qual a Comissão deduziu a existência de uma prática administrativa constante, a Comissão admite que essa escolha não resulta dos considerandos 94 a 110 da decisão controvertida. Todavia, o Tribunal Geral não teve em conta o considerando 3 dessa decisão, que refere o pedido de informações da Comissão dirigido ao Reino da Bélgica relativo às decisões antecipadas emitidas em 2004, 2007, 2010 e 2013. Estas decisões não são mais do que as 22 decisões antecipadas constitutivas da amostra a partir da qual a Comissão deduziu a existência de uma prática administrativa constante.

131    Em seguida, no que respeita à representatividade dessa amostra, a Comissão sublinha que, em primeiro lugar, as decisões antecipadas foram selecionadas entre quatro dos nove anos de aplicação do regime em causa. Em segundo lugar, os anos escolhidos estão separados por três anos, cobrindo o início, meio e fim do período durante o qual as autoridades fiscais belgas emitiram tais decisões antecipadas. Em terceiro lugar, as 22 decisões antecipadas representam um terço de todas as decisões proferidas durante esse período de nove anos e, em quarto lugar, estas 22 decisões cobrem um terço de todos os beneficiários do regime em causa, o que significa necessariamente que a amostra era representativa e que não era necessária qualquer explicação específica a este respeito. Em todo o caso, o Reino da Bélgica nunca contestou as conclusões provisórias da Comissão no âmbito da decisão de dar início ao procedimento e não apresentou nenhuma decisão antecipada que demonstrasse que os elementos essenciais do regime em causa não resultavam de uma prática administrativa constante.

132    Além disso, a Comissão considera que não lhe era necessário descrever as decisões individuais na decisão controvertida, após ter concluído, com base no seu exame das 22 decisões antecipadas, que essas decisões se enquadravam numa prática administrativa constante. Em contrapartida, incumbia ao Reino da Bélgica e aos beneficiários contestar a sua conclusão segundo a qual a isenção dos lucros excedentários foi concedida ao abrigo de um regime de auxílios, o que não lograram fazer.

133    Por último, quanto às seis decisões antecipadas descritas nos considerandos 62 a 64 e na nota de pé de página 80 da decisão controvertida, o considerando 61 da decisão controvertida indica que os três exemplos dados nesses considerandos apenas ilustram as decisões antecipadas proferidas no âmbito da aplicação do regime pelas autoridades fiscais belgas.

134    Em segundo lugar, a desvirtuação dos considerandos 94 a 110 da decisão controvertida levou o Tribunal Geral a cometer um erro de direito ao concluir, nos n.os 127 e 128 do acórdão impugnado, que a Comissão não tinha demonstrado a existência de uma abordagem sistemática.

135    O Reino da Bélgica e a Magnetrol International, apoiada pelos intervenientes no presente recurso, contestam esta argumentação.

–       Apreciação do Tribunal de Justiça

136    A Comissão censura o Tribunal Geral por ter erradamente concluído que ela não tinha conseguido demonstrar a existência de uma «abordagem sistemática» que satisfizesse as exigências previstas no artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589.

137    A este respeito, em primeiro lugar, há que salientar que o Tribunal Geral considerou, em substância, no n.o 125 do acórdão impugnado, que essa «abordagem sistemática» não podia constituir a própria base do regime em causa, uma vez que não se tratava do fundamento indicado na decisão controvertida, nomeadamente no considerando 99 dessa decisão.

138    Ora, tendo em conta o erro de direito constatado nos n.os 97 e 98 do presente acórdão, este fundamento é também juridicamente errado.

139    Em segundo lugar, o Tribunal Geral considerou, no n.o 126 do acórdão impugnado, que, mesmo admitindo que os elementos essenciais do regime em causa resultavam de uma «abordagem sistemática» identificada a partir da amostra das decisões antecipadas analisada pela Comissão, esta última não conseguiu demonstrar a existência dessa abordagem sistemática.

140    Antes de mais, no n.o 127 do acórdão impugnado, observando que esta amostra era constituída por 22 das 66 decisões em causa, o Tribunal Geral considerou que a Comissão não tinha precisado na decisão controvertida a escolha da referida amostra nem as razões pelas quais esta devia ser considerada representativa.

141    Como sustenta, em substância, a Comissão, no que respeita à escolha da amostra das decisões antecipadas que analisou, decorre, no entanto, de uma leitura de conjunto dos considerandos da decisão controvertida e, nomeadamente de uma leitura conjugada dos considerandos 3 e 59 dessa decisão, que essa amostra era constituída pelas decisões antecipadas adotadas nos anos de 2005 (em 2004 não foi adotada qualquer decisão), 2007, 2010 e 2013 a fim de abranger as decisões adotadas no início, no meio e no fim do período do regime em causa.

142    No que respeita à representatividade da referida amostra, como sublinhou a advogada‑geral, em substância, no n.o 86 das suas conclusões, resulta de forma manifesta da escolha das 22 decisões antecipadas de um total de 66 decisões adotadas a título do regime em causa que a mesma amostra representa um terço dessas decisões.

143    A este respeito, há que salientar que essa proporção de decisões antecipadas, selecionadas de maneira ponderada entre o conjunto das decisões adotadas a título de isenção dos lucros excedentários no período considerado, é, por natureza, suscetível de ser representativa de uma «abordagem sistemática» das autoridades fiscais belgas. Com efeito, precisamente devido à natureza «sistemática» de tal prática, a Comissão podia razoavelmente presumir que, até prova em contrário, os elementos identificados na amostra de decisões antecipadas que examinou se encontravam necessariamente no conjunto das decisões antecipadas adotadas a título de isenção dos lucros excedentários.

144    Nestas condições, o Tribunal Geral não podia considerar que a Comissão não tinha precisado na decisão controvertida a escolha dessa amostra e os elementos relativamente aos quais esta devia ser considerada representativa.

145    Tal conclusão não é, de resto, posta em causa pela constatação feita no n.o 128 do acórdão impugnado, segundo a qual a Comissão não precisou a escolha das seis decisões antecipadas mencionadas nos considerandos 62 a 64 da decisão controvertida. Com efeito, como resulta do considerando 61 dessa decisão e como alega a Comissão, estas seis decisões têm apenas uma vocação ilustrativa da maneira como as autoridades fiscais belgas concederam a isenção dos lucros excedentários, pelo que não podem entrar em linha de conta para determinar se a Comissão demonstrou de forma juridicamente bastante a existência de uma «abordagem sistemática» na prática decisória das autoridades fiscais belgas.

146    Em seguida, no n.o 129 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral baseou‑se nas considerações formuladas nos n.os 103 a 112 do acórdão impugnado, relativas à existência de um poder discricionário das autoridades fiscais belgas e à necessidade de outras medidas de execução. Segundo o Tribunal Geral, estas considerações permitem, por si só, infirmar a existência da «abordagem sistemática» alegada pela Comissão.

147    Ora, na medida em que esta conclusão se baseia na premissa errada de que só os atos referidos no considerando 99 da decisão controvertida constituíam a base do regime em causa, há que considerar que, pelos mesmos motivos que os expostos nos n.os 97, 98 e 113 do presente acórdão, a conclusão que figura no n.o 129 do acórdão impugnado está juridicamente errada.

148    Por último, nos n.os 131 a 133 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral salientou que, em todo o caso, as decisões antecipadas constitutivas da amostra examinada pela Comissão não diziam respeito a todas as situações em que uma estrutura de «empresário principal» foi instituída pela entidade belga em causa e que o método em duas etapas para o cálculo dos lucros excedentários identificado pela Comissão não tinha sido sistematicamente adotado.

149    Todavia, como a Comissão alega, as constatações efetuadas pelo Tribunal Geral nestes pontos assentam numa desvirtuação do considerando 102 da decisão controvertida, no qual a Comissão enumerou os elementos essenciais do regime em causa que identificou a partir da análise da amostra das 22 decisões antecipadas, representativa da prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas.

150    Assim, resulta desse considerando 102 que, contrariamente às constatações efetuadas pelo Tribunal Geral no n.o 132 do acórdão impugnado, a Comissão não considerou que a relocalização de um «empresário principal» na Bélgica constituía a única condição que permitia obter uma isenção dos lucros excedentários, mas que essa situação constituía, pelo contrário, um simples exemplo de condição mais geral, relativa à existência de uma situação nova que ainda não produziu efeitos do ponto de vista fiscal.

151    Quanto ao método de cálculo em duas etapas, referido no n.o 133 do acórdão impugnado, resulta do terceiro travessão do considerando 102 da decisão controvertida que, contrariamente às constatações efetuadas pelo Tribunal Geral, a Comissão não se baseou na aplicação desse método como um elemento essencial do regime em causa, mas, em substância, no facto de o montante da isenção dos lucros excedentários corresponder sistematicamente à diferença entre os lucros realmente registados pelo beneficiário e um lucro, hipotético, gerado se o beneficiário tivesse operado independentemente do seu grupo e independentemente do método utilizado para chegar a essa constatação.

152    Consequentemente, cabe constatar que os n.os 130 a 133 do acórdão impugnado não podem sustentar a conclusão do Tribunal Geral de que a Comissão não tinha demonstrado que a isenção dos lucros excedentários era concedida segundo uma «abordagem sistemática».

153    Decorre do conjunto dos fundamentos que precedem que a conclusão do Tribunal Geral segundo a qual a Comissão não tinha demonstrado a existência de uma «abordagem sistemática» é juridicamente errada.

154    Por conseguinte, sem que seja necessário examinar a quarta parte do fundamento único de recurso, há que concluir que este fundamento é procedente.

155    Nestas condições, sem que seja necessário examinar o recurso subordinado, há que anular o acórdão impugnado.

 Quanto ao litígio em primeira instância

156    Nos termos do artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça pode decidir definitivamente o litígio, se estiver em condições de ser julgado.

157    No caso em apreço, como o Tribunal Geral declarou no n.o 57 do acórdão impugnado, o Reino da Bélgica e a Magnetrol International invocam, em apoio das suas ações, fundamentos relativos, em substância:

–        em primeiro lugar, à ingerência da Comissão nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta (primeiro fundamento no processo T‑131/16 e primeira parte do terceiro fundamento no processo T‑263/16);

–        em segundo lugar, à conclusão errada sobre a existência de um regime de auxílios no caso em apreço, na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, nomeadamente devido à identificação incorreta dos atos nos quais se baseia o regime em causa e à consideração errada de que este regime não requer medidas de execução adicionais (segundo fundamento no processo T‑131/16 e primeiro fundamento no processo T‑263/16);

–        em terceiro lugar, à qualificação errada das decisões antecipadas relativas a lucros excedentários como auxílios estatais, tendo em conta, nomeadamente, a falta de uma vantagem e de seletividade (terceiro fundamento no processo T‑131/16 e terceiro fundamento, segunda e terceira partes, no processo T‑263/16);

–        em quarto lugar, à violação, nomeadamente, dos princípios da legalidade e da proteção da confiança legítima, na medida em que a recuperação dos alegados auxílios foi erradamente ordenada, incluindo junto dos grupos a que pertencem os beneficiários dos referidos auxílios (quarto e quinto fundamentos no processo T‑131/16 e quarto fundamento no processo T‑263/16).

158    Atendendo, nomeadamente, à circunstância de que os fundamentos mencionados nos primeiro e segundo travessões do número precedente foram objeto de debate contraditório no Tribunal Geral e que o seu exame não exige adotar nenhuma medida suplementar de organização do processo ou de instrução, o Tribunal de Justiça entende que os recursos nos processos T‑131/16 e T‑263/16 estão em condições de ser julgados no que respeita a esses fundamentos e que há que decidi‑los definitivamente (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 130).

 Quanto à alegada ingerência da Comissão nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta

 Argumentos das partes

159    O Reino da Bélgica e a Magnetrol International, tal como a Irlanda, nas suas observações em primeira instância, alegam, em substância, que a Comissão excedeu as suas competências quando utilizou o direito da União em matéria de auxílios estatais para determinar unilateralmente elementos que são da competência fiscal exclusiva de um Estado‑Membro. Com efeito, a determinação dos rendimentos tributáveis continua a ser uma competência exclusiva dos Estados‑Membros, tal como a forma de tributar os lucros gerados por transações transfronteiriças no âmbito dos grupos de empresas, mesmo que tal conduza a uma «dupla não tributação». Ora, a posição da Comissão que consiste em considerar que as decisões antecipadas em matéria de lucros excedentários constituem auxílios estatais pelo facto de se afastarem de uma aplicação do princípio de plena concorrência que considera correta equivaleria a uma harmonização forçada das regras relativas ao cálculo dos rendimentos tributáveis, o que não é da competência da União.

160    A Comissão alega, em substância, que, embora os Estados‑Membros gozem de autonomia fiscal no domínio da tributação direta, qualquer medida fiscal adotada por um Estado‑Membro deve cumprir as regras da União em matéria de auxílios estatais.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

161    Importa lembrar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as intervenções dos Estados‑Membros nos domínios que não foram objeto de harmonização no direito da União não estão excluídas do âmbito de aplicação das disposições do Tratado FUE relativas à fiscalização dos auxílios estatais (Acórdãos de 16 de março de 2021, Comissão/Polónia, C‑562/19 P, EU:C:2021:201, n.o 26, e de 16 de março de 2021, Comissão/Hungria, C‑596/19 P, EU:C:2021:202, n.o 32 e jurisprudência referida).

162    Os Estados‑Membros devem exercer a sua competência em matéria de fiscalidade direta no respeito do direito da União e, nomeadamente, das regras instituídas pelo Tratado FUE em matéria de auxílios estatais. Devem, portanto, abster‑se, no exercício dessa competência, de adotar medidas que possam constituir auxílios estatais incompatíveis com o mercado interno, na aceção do artigo 107.o TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 4 de março de 2021, Comissão/Fútbol Club Barcelona, C‑362/19 P, EU:C:2021:169, n.o 105 e jurisprudência referida).

163    Ora, resulta da jurisprudência recordada nos números anteriores que a Comissão não podia ser acusada de ter excedido as suas competências quando examinou as medidas que constituem o regime em causa e verificou se essas medidas constituíam auxílios de Estado e, na afirmativa, se as referidas medidas eram compatíveis com o mercado interno, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

164    Esta conclusão não pode ser posta em causa pelos argumentos do Reino da Bélgica, relativos, por um lado, à falta de competência fiscal para tributar os lucros excedentários e, por outro, à sua própria competência para adotar medidas destinadas a evitar a dupla tributação.

165    Com efeito, admitindo que as decisões adotadas pelas autoridades fiscais belgas no âmbito do regime em causa se destinavam a delimitar o alcance da competência fiscal do Reino da Bélgica, isso não significa que a Comissão não tinha o direito de examinar a sua conformidade com a regulamentação da União em matéria de auxílios estatais.

166    Embora seja certo que, na falta de regulamentação da União na matéria, é da competência dos Estados‑Membros a designação das bases de tributação e a repartição da carga fiscal sobre os diferentes fatores de produção e os diferentes setores económicos (Acórdão de 15 de novembro de 2011, Comissão e Espanha/Government of Gibraltar e Reino Unido, C‑106/09 P e C‑107/09 P, EU:C:2011:732, n.o 97), resulta da jurisprudência referida no n.o 162 do presente acórdão que, ao exercer essa competência, os Estados‑Membros devem abster‑se de adotar medidas suscetíveis de constituir auxílios estatais, cujo controlo é da competência da Comissão. O mesmo se diga da adoção, pelos Estados‑Membros, no exercício das suas competências em matéria fiscal, de medidas necessárias para evitar as situações de dupla tributação.

167    À luz de todas as considerações precedentes, o primeiro fundamento no processo T‑131/16 e a primeira parte do terceiro fundamento no processo T‑263/16 devem ser julgados improcedentes.

 Quanto à existência de um regime de auxílios, na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589 e aos outros fundamentos de anulação

168    Resulta dos fundamentos expostos no âmbito da análise da primeira a terceira partes do fundamento único do recurso que o segundo fundamento no processo T‑131/16 e o primeiro fundamento no processo T‑263/16, os quais, como resulta do n.o 157, segundo travessão, do presente acórdão, se baseiam em substância na conclusão errada relativa à existência de um regime de auxílios no caso em apreço, devem ser julgados improcedentes.

169    Em contrapartida, o litígio não está em condições de ser julgado quanto aos fundamentos relativos, em substância, à qualificação errada da isenção dos lucros excedentários como auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, tendo em conta, nomeadamente, a inexistência de vantagem ou de seletividade (terceiro fundamento no processo T‑131/16 e terceiro fundamento, segunda e terceira partes, no processo T‑263/16), bem como aos fundamentos relativos, nomeadamente, à violação dos princípios da legalidade e da proteção da confiança legítima, na medida em que a recuperação dos alegados auxílios foi incorretamente ordenada, incluindo dos grupos a que pertencem os beneficiários desses auxílios (quarto e quinto fundamentos no processo T‑131/16 e quarto fundamento no processo T‑263/16).

170    Com efeito, como resulta do n.o 136 do acórdão impugnado, o Tribunal Geral considerou que, uma vez que os fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica e pela Magnetrol International, relativos à violação do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, foram julgados procedentes, não havia que examinar os outros fundamentos invocados contra a decisão controvertida. Ora, estes fundamentos implicam que se proceda a apreciações factuais complexas, relativamente às quais o Tribunal de Justiça considera que não dispõe de todos os elementos de facto necessários.

171    Por conseguinte, há que remeter o processo ao Tribunal Geral para que este se pronuncie sobre os fundamentos mencionados no n.o 169 do presente acórdão.

 Quanto às despesas

172    Sendo o processo remetido ao Tribunal Geral, há que reservar para final a decisão quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

1)      É anulado o Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 14 de fevereiro de 2019, Bélgica e Magnetrol International/Comissão (T131/16 e T263/16, EU:T:2019:91).

2)      O primeiro e segundo fundamentos de recurso no processo T131/16, bem como o primeiro fundamento e a primeira parte do terceiro fundamento de recurso no processo T263/16 são julgados improcedentes.

3)      O processo é remetido ao Tribunal Geral da União Europeia para que decida sobre o terceiro a quinto fundamentos do recurso no processo T131/16, bem como sobre o segundo fundamento, a segunda e terceira partes do terceiro fundamento, bem como sobre o quarto fundamento no processo T263/16.

4)      Reservase para final a decisão quanto às despesas.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.