Language of document : ECLI:EU:T:2003:238

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Terceira Secção)

18 de Setembro de 2003 (1)

«Cooperação para o desenvolvimento - Co-financiamento comunitário de actividades desenvolvidas por ONG - Não elegibilidade de uma ONG - Indeferimento de um pedido de co-financiamento»

No processo T-321/01,

Internationaler Hilfsfonds eV, com sede em Rosbach (Alemanha), representada por H. Kaltenecker, advogado,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por M.-J. Jonczy e S. Fries, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação da decisão da Comissão, de 16 de Outubro de 2001, que indefere os pedidos de co-financiamento de dois projectos, apresentados pela recorrente, respectivamente em Dezembro de 1996 e em Setembro de 1997,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, J. Azizi e M. Jaeger, juízes,

secretário: J. Plingers, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 7 de Maio de 2003,

profere o presente

Acórdão

Enquadramento jurídico

1.
    O orçamento da União Europeia prevê uma rubrica orçamental (B7-6000) para a participação comunitária em acções a favor de países em vias de desenvolvimento, executadas por organizações não governamentais (a seguir «ONG»). Esta rubrica orçamental foi criada em 1976, na sequência da comunicação do Conselho, de 6 de Outubro de 1975, relativa às orientações em matéria de relações com as organizações não governamentais que se ocupam da cooperação para o desenvolvimento [COM(75) 504 final].

2.
    A Comissão era, na altura em que se verificaram os factos, responsável pela gestão dos fundos imputados nesta rubrica orçamental nos termos das suas obrigações decorrentes do Regulamento Financeiro, de 21 de Dezembro de 1977, aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO L 356, p. 1; EE 01 F2 90), substituído, a partir de 1 de Janeiro de 2003, pelo Regulamento (CE, Euratom) n.° 1605/2002 do Conselho, de 25 de Junho de 2002, que institui o Regulamento Financeiro aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO L 248, p. 1).

3.
    Ao recorrer a esta rubrica orçamental, as ONG podem obter subvenções comunitárias para projectos de ajuda ao desenvolvimento, submetendo pedidos de co-financiamento à Comissão. Até 2000, estes pedidos de co-financiamento podiam ser submetidos livremente e sem necessidade de convites para a apresentação de propostas. Desde então, a Comissão procede a convites para a apresentação de propostas.

4.
    Na altura em que se verificaram os factos, as condições do co-financiamento constavam de um documento adoptado pela Comissão em 1998, intitulado «Condições gerais para o co-financiamento de acções realizadas nos países em vias de desenvolvimento (PVD) por [...] ONG» (a seguir «condições gerais»). Este documento estabelece os critérios de elegibilidade das ONG e os critérios de elegibilidade das acções, dá instruções concretas quanto à apresentação dos processos e fornece explicações detalhadas sobre as modalidades do financiamento. Uma nova versão das condições gerais foi adoptada em 2000, no momento da apresentação do primeiro convite para a apresentação de propostas. As condições gerais não são publicadas no Jornal Oficial.

5.
    No título I das condições gerais, os critérios de elegibilidade das ONG foram definidos da seguinte maneira:

«§1    Para ter acesso a um co-financiamento a título das condições gerais, a ONG deve satisfazer as seguintes condições:

1.1.    deve estar constituída como ONG autónoma sem fins lucrativos num Estado-Membro da CE segundo a legislação em vigor neste Estado;

1.2.    deve ter a sua sede num Estado-Membro da CE;

1.3.    a sua sede deve constituir o centro efectivo de todas as decisões relativas às acções co-financiadas;

1.4.    a maioria dos seus recursos humanos e financeiros deve ser de origem europeia (CE).

§2    Para determinar se uma ONG pode ter acesso a um co-financiamento, devem ser tidos em consideração os seguintes elementos:

2.1.    a sua capacidade para mobilizar a solidariedade e os recursos privados na Comunidade Europeia para as suas actividades de desenvolvimento nos PVD;

2.2.    a prioridade que dá à ajuda ao desenvolvimentos nos PVD;

2.3.    a sua experiência em matéria de ajuda ao desenvolvimento aos PVD;

2.4.    a sua capacidade em apoiar as acções de desenvolvimento propostas pelos parceiros nos PVD;

2.5.    a natureza e o alcance das ligações com as organizações similares nos PVD;

2.6.    a natureza e o alcance das suas ligações com outras ONG quer no interior quer no exterior da Comunidade Europeia;

2.7.    a sua capacidade de gestão administrativa e, eventualmente, a maneira como cumpriu, no passado, as obrigações resultantes dos contratos anteriores de financiamento entre si e a CE.

§3    Uma ONG elegível que satisfaz as referidas condições mas que age por conta de uma ONG não elegível e que não tem qualquer influência na realização das acções e que não contribui para o seu financiamento, não pode obter um co-financiamento.»

Os factos

6.
    A Internationaler Hilfsfond e V (a seguir «IH») é uma ONG de direito alemão que apoia refugiados, vítimas de guerra e de catástrofes. Entre 1993 e 1997, apresentou seis pedidos de co-financiamento de acções (a seguir «projectos») à Comissão.

7.
    Ao analisarem os primeiros projectos, os serviços da Comissão concluíram que a recorrente não era elegível na qualidade de ONG, de acordo com os critérios fixados nas condições gerais. A recorrente foi informada da sua não elegibilidade por carta da Comissão de 12 de Outubro de 1993.

8.
    A recorrente contestou esta decisão em várias conversas com a Comissão e em múltiplas cartas.

9.
    Por carta de 29 de Julho de 1996, a Comissão explicou as principais razões que tinham levado, em 1993, a concluir pela não elegibilidade da IH como ONG.

10.
    Essas razões tinham todas a ver com o facto de determinadas condições previstas nas condições gerais não serem preenchidas pela recorrente. Tratava-se, designadamente, das seguintes condições: todas as decisões respeitantes aos projectos a financiar deviam ser tomadas na sede da recorrente; a maior parte dos recursos financeiros devia ter origem europeia; a recorrente devia ter a capacidade de mobilizar fundos privados para os seus projectos e ter a capacidade administrativa para fazer face à gestão dos projectos. A Comissão concluía, na sua carta de 29 de Julho de 1996, que não lhe era possível fazer claramente a distinção entre os campos de actividades, fontes de financiamento, despesas, responsabilidades ou estruturas de decisão respectivas da recorrente e da InterAid International (Estados Unidos), uma ONG semelhante à recorrente.

11.
    Em 5 de Dezembro de 1996, a recorrente submeteu à Comissão um quinto projecto. A Comissão propôs à recorrente a realização de uma auditoria, mas não chegaram a acordo a este respeito. Uma versão alterada deste projecto de 1996 foi submetida à Comissão através de um novo pedido, em Setembro de 1997. A Comissão não decidiu sobre este novo pedido de co-financiamento, considerando que a decisão de 12 de Outubro de 1993 sobre a não elegibilidade da recorrente como ONG se mantinha válida.

12.
    A recorrente apresentou então três queixas ao Provedor de Justiça europeu (a seguir «Provedor de Justiça»), uma em 1998 e as duas outras em 2000. Estas queixas referiam essencialmente dois aspectos, a saber, a questão do acesso ao processo e a questão de saber se a Comissão tinha avaliado correctamente os pedidos da recorrente.

13.
    Quanto ao acesso ao processo, o Provedor de Justiça concluiu que a lista de documentos que a Comissão propôs à recorrente para consulta não estava completa, que a Comissão tinha retido certos documentos sem razão e que, consequentemente, esta atitude da Comissão podia constituir um caso de má administração. Propôs à Comissão que autorizasse um acesso adequado ao processo. Esse acesso ao processo teve lugar nos serviços da Comissão em 26 de Outubro de 2001. O Provedor de Justiça constatou, por outro lado, um caso de má administração pelo facto de não ter sido dada à recorrente a oportunidade de ser ouvida formalmente em relação às informações recebidas de terceiros pela Comissão, informações que foram utilizadas para tomar uma decisão que afectou a recorrente.

14.
    No que respeita à avaliação correcta dos pedidos, o Provedor de Justiça fez, em primeiro lugar, uma observação crítica no que respeita ao facto de a Comissão ter deixado passar muito tempo antes de fornecer por escrito (a saber, pela carta de 1996) as razões que a tinham levado em 1993 a concluir pela não elegibilidade da IH como ONG. Quanto à questão da avaliação das informações provenientes de terceiros, o Provedor de Justiça entendeu, nas suas conclusões preliminares de 19 de Julho de 2001, que tinha havido má administração. Por último, no que respeita ao facto de a Comissão não ter tomado uma decisão formal relativamente aos pedidos da recorrente de Dezembro de 1996 e de Setembro de 1997, o Provedor de Justiça recomendou à Comissão que respondesse antes de 31 de Outubro de 2001.

15.
    Para dar cumprimento à recomendação do Provedor de Justiça, a Comissão enviou à recorrente uma carta de 16 de Outubro de 2001, (a seguir «decisão impugnada»), indeferindo os dois pedidos. Nessa carta, a Comissão indica, designadamente, que o Provedor de Justiça lhe tinha recomendado que se pronunciasse sobre os projectos apresentados em Dezembro de 1996 e em Setembro de 1997. Pede desculpa pelo lapso de tempo decorrido desde a apresentação dos pedidos em causa e explica o seu silêncio pelo facto de, quando os seus serviços declaram uma organização não elegível para o co-financiamento comunitário como ONG, esta decisão induz automaticamente o indeferimento dos projectos posteriormente apresentados por esta organização, até que a organização cumpra os critérios de elegibilidade como ONG. Refere que os seus serviços estavam à espera da decisão do Provedor de Justiça para responderem expressamente a estes dois pedidos de co-financiamento. A Comissão refere em seguida: «o Provedor de Justiça considerou que a decisão tomada pela Comissão, de não elegibilidade da [...] [IH], não era constitutiva de um caso de má administração. Os meus serviços lamentam, portanto, informar-vos expressamente de que os dois projectos apresentados respectivamente em Dezembro de 1996 e em Setembro de 1997 são indeferidos devido à não elegibilidade para co-financiamento da vossa ONG». A Comissão convida, por outro lado, a recorrente a submeter-lhe outro pedido de co-financiamento de acordo com as novas regras em vigor, para permitir aos seus serviços examinar agora quer a elegibilidade da recorrente como ONG quer a elegibilidade dos projectos que a recorrente deseja executar.

16.
    A recorrente tinha reagido às conclusões preliminares do Provedor de Justiça de 19 de Julho de 2001 no que respeita à questão da avaliação das informações provenientes de terceiro. A Comissão não alterou a sua posição sobre este aspecto, nas observações que enviou ao Provedor de Justiça através de um parecer de 5 de Novembro de 2001. Na sua decisão de 30 de Novembro de 2001, o Provedor de Justiça conclui que a Comissão não tinha tratado correctamente os pedidos de co-financiamento da recorrente.

Pedidos das partes

17.
    Por requerimento entregue em 15 de Dezembro de 2001, a recorrente interpôs o presente recurso da carta de 16 de Outubro de 2001. Refere que o seu pedido visa implicitamente os fundamentos enunciados pela Comissão no seu parecer de 5 de Novembro 2001.

18.
    Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância decidiu dar início à fase oral do processo. As partes responderam às questões escritas colocadas pelo Tribunal.

19.
    Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às questões colocadas pelo Tribunal na audiência de 7 de Maio de 2003.

20.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Primeira Instância se digne:

-    anular a decisão da Comissão, de 16 de Outubro de 2001, que indefere os pedidos de co-financiamento de Dezembro de 1996 e de Setembro de 1997;

-    decidir sobre o princípio do reembolso pela Comissão das despesas do processo, incluindo as que resultam dos procedimentos no Provedor de Justiça.

21.
    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar o recurso inadmissível e, a título subsidiário, negar-lhe provimento;

-    condenar a recorrente nas despesas; a título subsidiário, a Comissão contesta o facto de as despesas relativas ao procedimento no Provedor de Justiça poderem ser reembolsadas.

Questão de direito

Quanto à admissibilidade

Argumentos das partes

22.
    A Comissão sustenta que o recurso é inadmissível, porque intempestivo. Sustenta, além disso, que a recorrente não tem interesse em agir.

-    Quanto à intempestividade do recurso

23.
    A Comissão recorda a jurisprudência segundo a qual um recurso de anulação interposto contra uma decisão puramente confirmativa de uma decisão anterior não recorrida atempadamente é inadmissível. Segundo esta jurisprudência, uma decisão é meramente confirmativa de uma decisão anterior quando não contém qualquer elemento novo em relação ao acto anterior e não é precedida de um reexame da situação do destinatário desse acto anterior (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 26 de Outubro de 2000, Ripa di Meana e o./Parlamento, T-83/99 a T-85/99, Colect., p. II-3493, n.° 33, e jurisprudência aí referida).

24.
    A Comissão sustenta que o acto impugnado apenas confirma uma decisão anterior, a saber, a decisão tomada em 1993 sobre a não elegibilidade da IH como ONG. É esta decisão que a recorrente impugna. Ora, no momento da sua adopção, em 1993, a recorrente optou por não exercer o seu direito de recurso. A recorrente também não impugnou a carta de 29 de Julho de 1996, que agora coloca no centro da sua argumentação.

25.
    A recorrente pergunta-se a que decisão anterior se refere a Comissão: a carta de 29 de Julho de 1996, que contém unicamente uma pseudo-justificação a respeito dos critérios aplicados, ou a carta de 12 de Outubro de 1993, que, em sua opinião, não contém qualquer justificação. Por outro lado, a jurisprudência citada trata de casos completamente diferentes. Além disso, a recorrente sublinha que colocou a decisão impugnada no centro da sua argumentação.

-    Quanto ao interesse em agir

26.
    A Comissão contesta o interesse em agir da recorrente. Como resulta do acto impugnado, a Comissão convidou a recorrente a submeter-lhe um novo processo no âmbito do convite para a apresentação de propostas. A Comissão estava, portanto, disposta a reconsiderar a questão da elegibilidade da IH com base na sua situação actual e à luz das novas condições gerais criadas em 2000. Assim, a recorrente não tem interesse em obter a anulação da decisão impugnada, tomada ao abrigo do anterior regime de determinação da elegibilidade.

27.
    A recorrente pergunta-se se é possível contestar o seu interesse em agir depois dos inúmeros esforços que fez. No que respeita ao argumento da recorrida, segundo o qual estaria disposta a reconsiderar a questão da elegibilidade com base na situação actual da recorrente, esta questiona-se sobre a razão pela qual a Comissão não reconsiderou a sua posição no momento em que convidou a recorrente a submeter-lhe um novo projecto com base em nova documentação. Ora, a situação jurídica da recorrente não mudou entre 1996/1997 e hoje. Por último, uma vez que a Comissão não aceitou um acordo, à recorrente só restava recorrer para o Tribunal de Primeira Instância.

Apreciação do Tribunal

28.
    A Comissão sustenta, em primeiro lugar, que o pedido é inadmissível, porque intempestivo. Alega que o acto impugnado mais não faz do que confirmar uma decisão anterior sobre a não elegibilidade, tomada em 1993, e não impugnada dentro do prazo. A recorrente também não impugnou a carta de 29 de Julho de 1996.

29.
    Importa, antes de mais, referir que, na decisão impugnada, a Comissão explica o seu silêncio em relação aos projectos de 1996 e de 1997 pelo facto de, em sua opinião, quando os seus serviços declaram uma organização não elegível como ONG para o co-financiamento comunitário, esta decisão de não elegibilidade induz automaticamente um indeferimento dos projectos posteriormente apresentados por esta mesma organização, e isto até que a organização cumpra os critérios de elegibilidade como ONG. Em seguida, a Comissão informa a recorrente de que os dois projectos apresentados em Dezembro de 1996 e em Setembro de 1997 foram indeferidos devido à não elegibilidade da IH para o co-financiamento comunitário decidido em 1993.

30.
    Importa sublinhar em seguida que a recorrente não impugnou a decisão de 1993 nem a carta de 1996. Só em 1998 a recorrente apresentou a primeira queixa ao Provedor de Justiça, e só em 2001 interpôs o presente recurso.

31.
    Importa ainda recordar a jurisprudência segundo a qual um recurso de anulação interposto contra uma decisão puramente confirmativa de uma decisão anterior não recorrida atempadamente é inadmissível. Segundo esta jurisprudência, uma decisão é meramente confirmativa de uma decisão anterior quando não contém qualquer elemento novo em relação ao acto anterior e não é precedida de um reexame da situação do destinatário desse acto anterior (acórdão Ripa di Meana e o./Parlamento, referido no n.° 23, supra, n.° 33, e jurisprudência aí referida).

32.
    Importa, contudo, precisar que cada pedido de co-financiamento tem a sua vida autónoma e deve ser apreciado integralmente com base nos seus méritos próprios. Assim, antes de decidir se uma acção proposta num pedido de co-financiamento poderá ser apoiada financeiramente, a Comissão deve, para cada um dos pedidos apresentados, examinar se a ONG em questão cumpre as condições de elegibilidade exigidas.

33.
    É certo que a Comissão pode fazer referência a outras decisões anteriores na decisão impugnada. No caso em apreço, para recusar o co-financiamento dos dois projectos, apresentados em Dezembro de 1996 e em Setembro de 1997, a Comissão faz referência à decisão sobre a não elegibilidade tomada em 1993 e explicitada em 1996. Os fundamentos que levaram então a Comissão a concluir pela não elegibilidade da recorrente como ONG foram, desta maneira, absorvidos pela decisão impugnada. Mas não deixa de ser verdade que esta continua a ser uma decisão autónoma que se basta a si mesma e que pode, portanto, ser impugnada judicialmente.

34.
    Consequentemente, a questão prévia de inadmissibilidade baseada na intempestividade da petição deve ser rejeitada.

35.
    A Comissão contesta, em segundo lugar, o interesse em agir da recorrente.

36.
    Importa recordar que um recurso de anulação interposto por uma pessoa singular ou colectiva só é admissível na medida em que o recorrente tenha interesse em que o acto impugnado seja anulado (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 9 de Novembro de 1994, Scottish Football/Comissão, T-46/92, Colect., p. II-1039, n.° 14). Esse interesse só existe se a anulação do acto for susceptível, por si própria, de ter consequências jurídicas (acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 1986, AKZO/Comissão, 53/85, Colect., p. 1965, n.° 21).

37.
    A este respeito, basta referir que a possível anulação da decisão impugnada poderia, eventualmente, fundamentar a propositura de uma acção de indemnização pela Comunidade. Assim, os argumentos da Comissão são improcedentes.

38.
    Resulta do que precede que o recurso é admissível.

Quanto ao mérito

39.
    A recorrente apresenta dois fundamentos. Contesta, em primeiro lugar, o facto de, quando os serviços da Comissão declaram uma organização como ONG não elegível para o co-financiamento comunitário, esta declaração induz automaticamente um indeferimento dos projectos posteriormente apresentados, e isto até que a organização cumpra os critérios de elegibilidade como ONG. Em segundo lugar, a recorrente contesta as razões que levaram a Comissão à decisão de 12 de Outubro de 1993 sobre a não elegibilidade da recorrente e que foram expostas na carta de 29 de Julho de 1996.

40.
    A Comissão considera, a título preliminar, que o requerimento não está em conformidade com o artigo 44.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância e, em qualquer caso, que não é procedente.

Quanto ao primeiro fundamento

Argumentos das partes

41.
    A recorrente contesta a justificação da prática segundo a qual quando os serviços competentes da Comissão declaram uma ONG não elegível para o co-financiamento comunitário, esta decisão induz automaticamente um indeferimento dos projectos posteriormente apresentados até que a ONG cumpra os critérios de elegibilidade.

42.
    A recorrente sustenta, em primeiro lugar, que este procedimento conduz a uma condenação antecipada da ONG. Este procedimento não está em conformidade com as regras de direito da União Europeia nem com os princípios da boa administração. A recorrente acrescenta que não lhe compete determinar quais as regras de direito e quais os princípios de boa administração violados por este automatismo. Compete à Comissão justificar esta prática e indicar as regras que a autorizam a decidir com base neste automatismo.

43.
    Em segundo lugar, a recorrente recorda que, por carta da Comissão de 12 de Outubro de 1993, foi informada de forma lacónica que não cumpria os critérios de elegibilidade como ONG. Ora, não foi dada qualquer informação sobre o conteúdo destes critérios. A recorrente sustenta que esta atitude constitui um caso de má administração.

44.
    A recorrente observa que a Comissão reconhece que a decisão de 12 de Outubro de 1993 não contém qualquer fundamentação. Afirma que poderia tê-la impugnado por este vício, mas que preferiu não o fazer e compreender por que razão e com que base a decisão foi tomada. A recorrente contesta que este vício tenha sido corrigido pela carta de 29 de Julho de 1996. Daqui conclui que a Comissão se baseou numa decisão, a saber, a decisão de 12 de Outubro de 1993, que é nula e sem efeito. Assim, em sua opinião, a decisão de 16 de Outubro de 2001 é igualmente ilegal.

45.
    Em terceiro lugar, a recorrente sustenta que a Comissão esquece o facto de a mesma Direcção-Geral ter respondido a outros pedidos de financiamento de projectos da recorrente: a Comissão contribuiu para um projecto de ajuda às vítimas de Tchernobyl; considerou admissíveis três outras propostas sem que a questão da não elegibilidade tenha sido suscitada. A recorrente sustenta que a questão da determinação da rubrica orçamental de imputação não tem qualquer importância. As condições de financiamento podem variar de um programa para o outro, mas a questão de elegibilidade da organização como ONG para o co-financiamento comunitário coloca-se sempre em termos idênticos.

46.
    Em quarto lugar, a recorrente alega que, no caso em apreço, a Comissão demonstrou má fé, como decorre do convite para apresentar um novo processo no momento do convite para a apresentação de propostas, pois a Comissão podia ter examinado oficiosamente a situação da recorrente antes de tomar a decisão impugnada.

47.
    A recorrente acrescenta que enviou novos dados que a Comissão alega não ter recebido, ou que não foram suficientes para a convencer. Sustenta nunca ter recebido o pedido para completar a sua documentação e, ainda hoje, não sabe de que informações suplementares a Comissão pretendia dispor.

48.
    A Comissão convida, em primeiro lugar, a recorrente a determinar as regras de direito comunitário e os princípios de boa administração que foram violados pela prática segundo a qual o reconhecimento da não elegibilidade de uma ONG leva automaticamente à inadmissibilidade dos projectos por esta apresentados. Para a Comissão, é evidente que a elegibilidade de uma ONG é condição sine qua non de qualquer apreciação da elegibilidade para o co-financiamento de um determinado projecto. Ora, a condição de elegibilidade da ONG pode ser considerada uma condição preliminar. Por outro lado, esta prática está longe de constituir uma condenação a priori da ONG, pois a condição preliminar pode ser revista se, e na medida em que, forem apresentados novos dados financeiros ou técnicos.

49.
    Em segundo lugar, no que respeita à acusação de que a decisão de 12 de Outubro de 1993 não continha qualquer fundamentação, a Comissão observa que não tem a intenção de defender a prática que existia na altura e que consistia em enviar cartas sumárias e a apenas fornecer as razões posteriormente por telefone. Convida, contudo, a recorrente a explicar em que medida esta falta de fundamentação que afecta a decisão de 12 de Outubro de 1993 pode reflectir-se na validade da carta de 16 de Outubro de 2001, que é objecto do litígio. A Comissão sublinha, a este respeito, não só que a recorrente não impugnou a carta de 12 de Outubro de 1993 por falta de fundamentação, mas, além do mais, que esta falta foi corrigida pela carta de 29 de Julho de 1996.

50.
    Em terceiro lugar, a Comissão sublinha que a recorrente não obteve fundos imputados na rubrica orçamental do co-financiamento, que é a rubrica no âmbito da qual a decisão impugnada foi tomada. Reconhece, contudo, que a recorrente obteve, em 1991, fundos comunitários imputados noutra rubrica orçamental, no âmbito da ajuda humanitária de urgência e, em 1998, no âmbito do programa de assistência técnica aos novos Estados independentes da antiga União Soviética e à Mongólia (TACIS).

51.
    A Comissão observa que as condições de financiamento variam de um programa para o outro. Assim, não pode ser, em princípio, excluído que a recorrente tivesse podido satisfazer as condições de elegibilidade de um programa e não de outro. Por outro lado, atendendo a que a recorrente obteve em 1991 fundos no âmbito da ajuda de urgência, não se pode excluir que o serviço da Comissão responsável pela gestão desta rubrica orçamental não tenha disposto das mesmas informações obtidas dois anos depois pelo serviço responsável da rubrica orçamental do co-financiamento ONG. No que respeita ao projecto TACIS, a Comissão refere que os seus serviços se depararam com dificuldades consideráveis na aplicação do projecto pela recorrente. Na sequência da denúncia do contrato pela Comissão em Outubro de 1999, foi emitida uma carta de reembolso contra a recorrente em 22 de Junho de 2000. A recorrida refere, além disso, que a recorrente apresentou uma queixa no Provedor de Justiça contra outro serviço da Comissão, o Serviço Humanitário da Comunidade Europeia (ECHO), que recusou, na sequência da recusa da recorrente em aceitar uma auditoria de elegibilidade, a assinatura de um acordo de cooperação com esta organização. Daqui a Comissão conclui que a experiência de outros dos seus serviços que não o serviço em causa no presente processo, confirma a justeza da decisão impugnada.

52.
    A Comissão alega, por outro lado, que é inexacto afirmar que há uma incoerência no facto de o serviço responsável pela rubrica orçamental do co-financiamento das ONG ter mantido o diálogo com a recorrente sobre os projectos que esta lhe submeteu, pois este serviço tinha por objectivo tentar ainda encontrar uma solução para o problema da elegibilidade da recorrente.

53.
    Em quarto lugar, quanto à má fé resultante do facto de a Comissão ter convidado a recorrente a apresentar um novo processo, a Comissão sustenta que os argumentos e informações que a recorrente apresentou desde a decisão de 16 de Outubro de 2001 não foram suficientes para a convencer a alterar a referida decisão. Contudo, a partir do momento em que a recorrente apresentasse novos dados que justificassem uma apreciação diferente dos critérios de elegibilidade, a Comissão alteraria a sua decisão de considerar a recorrente não elegível.

Apreciação do Tribunal

54.
    As condições gerais para o co-financiamento de projectos estabelecem as condições de elegibilidade das ONG requerentes e as condições de elegibilidade das acções. Estas exigências devem estar cumulativamente reunidas para que um projecto apresentado por uma organização possa beneficiar do co-financiamento comunitário.

55.
    Importa, em seguida, recordar que cada pedido de co-financiamento, em princípio, basta-se a si próprio, é autónomo, e deve ser apreciado integralmente e com base nos seus méritos próprios. Assim, a Comissão deve, para cada um dos pedidos apresentados, examinar se a ONG em questão cumpre as condições de elegibilidade exigidas e, em seguida, decidir se uma acção proposta num pedido de co-financiamento poderá ser apoiada financeiramente.

56.
    A este respeito, há que referir que, na carta de 29 de Julho de 1996, a Comissão refere:

«Isto não impede evidentemente [o vosso representante] de apresentar à Comissão novos pedidos para o co-financiamento de projectos de desenvolvimento. Nesse caso, será necessário verificar novamente se a ONG preenche os nossos critérios».

57.
    Daqui resulta que a Comissão devia examinar a elegibilidade da recorrente antes de tomar uma decisão sobre o co-financiamento dos projectos de 1996 e de 1997.

58.
    Contudo, a Comissão não o fez. Com efeito, importa, antes de mais, referir, a este respeito, que, na decisão impugnada, a Comissão, depois de ter informado a recorrente de que o co-financiamento tinha sido recusado, indica:

«Contudo, a Comissão é de opinião que as características da vossa ONG podem-se ter suficientemente alterado para levar à caducidade das razões que justificaram a decisão de não elegibilidade».

59.
    Em seguida, há que referir que, nos seus articulados, a Comissão confirmou várias vezes não ter procedido à apreciação da elegibilidade da recorrente. Referiu, designadamente, em resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal a este respeito, o seguinte:

«A Comissão, como explicou na contestação e na tréplica, não reapreciou, no momento da redacção da carta impugnada, em Outubro de 2001, a elegibilidade da recorrente [...]».

60.
    É certo que a Comissão, na audiência, demonstrou algumas hesitações e expressou algumas contradições a este respeito. Por outro lado, afirma, na contestação, que a recorrente não conseguiu apresentar dados novos que pudessem levar a uma apreciação diferente da sua elegibilidade. Contudo, depois de ter sido interrogada sobre este aspecto na audiência, a Comissão não apresentou qualquer prova ou indicação de que tinha examinado a elegibilidade da recorrente antes de tomar a decisão impugnada.

61.
    Assim, há que referir que, no momento em que adoptou a decisão impugnada, a Comissão não apreciou a elegibilidade da recorrente como ONG, na sequência da introdução dos projectos de co-financiamento de 1996 e de 1997.

62.
    A Comissão explica a inexistência de apreciação da elegibilidade da recorrente indicando que, quando os seus serviços declaram uma ONG não elegível para o co-financiamento comunitário, esta decisão de não elegibilidade induz automaticamente um indeferimento dos projectos posteriormente apresentados por esta ONG, e isto até que a ONG cumpra os critérios de elegibilidade. Acrescenta que a decisão de elegibilidade pode ser revista se, e na medida em que, forem apresentados novos dados financeiros ou técnicos pela ONG.

63.
    A recorrente contesta a justificação deste procedimento de indeferimento automático. Sustenta, designadamente, que esta prática conduz a uma condenação a priori da ONG.

64.
    A este respeito, sem que seja necessário apreciar a justificação do indeferimento automático, há que referir que, em qualquer caso, esta prática apenas pode ser utilizada nos casos em que, depois de a Comissão ter declarado uma ONG não elegível para o co-financiamento comunitário, esta não tenha apresentado novos argumentos a favor da sua elegibilidade. Com efeito se, designadamente quando apresenta um novo pedido de co-financiamento, a mesma ONG apresenta novos argumentos para demonstrar a sua elegibilidade, a Comissão deve então, à luz destes novos argumentos, reapreciar a elegibilidade da ONG, e não pode, portanto, aplicar o procedimento do indeferimento automático. A Comissão confirma, aliás, esta conclusão ao afirmar, nos seus articulados, que a decisão de elegibilidade pode ser revista se, e na medida em que, forem apresentados novos dados financeiros ou técnicos.

65.
    Assim, há que examinar se, designadamente depois da carta de 29 de Julho de 1996, a recorrente apresentou novos argumentos susceptíveis de satisfazerem as condições de elegibilidade exigidas.

66.
    Interrogada a este respeito na audiência, a recorrente afirmou, num primeiro momento, que tinha transmitido à Comissão novos argumentos para demonstrar a sua elegibilidade, mas que estes elementos não constavam do processo.

67.
    Contudo, há que observar que, em 5 de Dezembro de 1996, a recorrente enviou à Comissão, no âmbito do seu pedido de co-financiamento, um relatório em que, designadamente, são precisados os efectivos da IH e os montantes financeiros das suas actividades nos anos anteriores. Faz-se igualmente referência a relatórios de controlo de 1994, 1995 e 1996.

68.
    Por outro lado, a recorrente enviou uma carta à Comissão, com data de 20 de Agosto de 1997, à qual está anexo o relatório anual de controlo de gestão financeira, aprovado em 31 de Dezembro de 1996, elaborado pela sociedade de auditoria KPMG.

69.
    A título superabundante, há que referir que, em 14 de Julho de 1997, o presidente da IH enviou uma carta à Comissão informando-a do facto de a ONG ter sido admitida na VENRO e de ter sido efectuada uma verificação detalhada pela associação relativamente à política de desenvolvimento das ONG alemãs. Nessa carta é também feita referência aos documentos de controlo elaborados pela KPMG.

70.
    Consequentemente, em presença de novos argumentos apresentados pela recorrente para demonstrar a sua eventual elegibilidade para o co-financiamento comunitário, a Comissão não podia aplicar o procedimento do indeferimento automático e devia, ao invés, apreciar a elegibilidade da recorrente com base nestes novos elementos.

71.
    Assim, como foi referido, supra, nos n.os 58 a 61, a Comissão não apreciou a elegibilidade da recorrente. Em consequência, sem que seja necessário analisar as outras acusações apresentadas pela recorrente, face às considerações supra, há que acolher o primeiro fundamento e, portanto, anular a decisão impugnada.

Quanto ao segundo fundamento

72.
    Tendo o primeiro fundamento sido acolhido, não há que examinar o segundo fundamento.

73.
    Resulta de tudo o que precede que a decisão impugnada deve ser anulada.

Quanto às despesas

74.
    Por força do disposto no n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, a parte vencida deve ser condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido.

75.
    Tendo a Comissão sido vencida, há que condená-la nas despesas, atento o pedido da recorrente.

76.
    A recorrente pede igualmente o reembolso, pela Comissão, das despesas com o procedimento no Provedor de Justiça.

77.
    A Comissão contesta o facto de as despesas relativas ao procedimento no Provedor de Justiça poderem ser reembolsadas, uma vez que não são consideradas despesas indispensáveis apresentadas pelas partes para efeitos do processo.

78.
    Nos termos do artigo 91.°, alínea b), do Regulamento de Processo, «são consideradas despesas reembolsáveis [...] as despesas indispensáveis suportadas pelas partes para efeitos do processo, nomeadamente as despesas de deslocação e estada e os honorários de agentes, ‘consultores ou’ advogados».

79.
    Decorre desta disposição que as despesas reembolsáveis estão limitadas às despesas que, por um lado, foram suportadas para efeitos do processo no Tribunal de Primeira Instância e, por outro, às despesas indispensáveis para esse fim (despacho do Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1995, Ahlström e o./Comissão, C-89/95 DEP, não publicado na Colectânea, n.° 14, e despacho do Tribunal de Primeira Instância de 25 de Junho de 1998, Altmann e o./Comissão, T-177/94 DEP, ColectFP, pp. I-A-299 e II-883, n.° 18).

80.
    Por outro lado, o Tribunal de Primeira Instância julgou que, mesmo se um trabalho jurídico substancial é geralmente feito na fase do processo que antecede a fase contenciosa, importa lembrar que, por «processo», o artigo 91.° do Regulamento de Processo visa apenas o processo perante o Tribunal, com exclusão da fase pré-contenciosa. Isso resulta, designadamente, do artigo 90.° do mesmo regulamento, que refere «o processo perante o Tribunal» (v. despacho do Tribunal de Primeira Instância de 24 de Janeiro de 2002, Grupo Origny/Comissão, T-38/95 DEP, Colect., p. II-217, n.° 29, e jurisprudência aí referida).

81.
    Assim, como resulta da jurisprudência, as despesas relativas aos procedimentos no Provedor de Justiça não podem ser consideradas despesas indispensáveis na acepção do artigo 91, alínea b), do Regulamento de Processo.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Terceira Secção),

decide:

1)        A decisão da Comissão, de 16 de Outubro de 2001, que indefere os pedidos de co-financiamento da recorrente de Dezembro de 1996 e de Setembro de 1997, é anulada.

2)        A Comissão suportará a suas próprias despesas, bem como as despesas da recorrente.

Lenaerts
Azizi
Jaeger

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 18 de Setembro de 2003.

O secretário

O presidente

H. Jung

K. Lenaerts


1: Língua do processo: francês.