Language of document : ECLI:EU:T:2024:316

Processo T416/22

Fresenius Kabi Austria GmbH e o.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Quinta Secção Alargada) de 15 de maio de 2024

«Medicamentos para uso humano — Suspensão das autorizações nacionais de introdução no mercado do medicamento para uso humano que contém a substância ativa “hidroxietilamido (HEA), soluções para perfusão” — Recurso de anulação — Afetação direta — Inadmissibilidade parcial — Dever de fundamentação — Erro de direito — Erro manifesto de apreciação — Princípio da precaução — Proporcionalidade — Artigo 116.° da Diretiva 2001/83/CE»

1.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Afetação direta — Critérios — Decisão da Comissão que impõe aos EstadosMembros a suspensão das autorizações de introdução no mercado de um medicamento — Decisão que produz diretamente efeitos na situação jurídica dos titulares dessas autorizações— Inexistência de margem de apreciação dos EstadosMembros quanto à aplicação da decisão a esses titulares

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84)

(cf. n.os 22‑26, 28‑32)

2.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Legitimidade para agir — Recurso da decisão da Comissão que impõe aos EstadosMembros a suspensão das autorizações de introdução no mercado de um medicamento — Recurso interposto por certos titulares dessas autorizações visando, em parte, os direitos de outros titulares — Inadmissibilidade parcial

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84)

(cf. n.os 34, 36)

3.      Aproximação das legislações — Medicamentos para uso humano — Autorização de introdução no mercado — Alteração, suspensão ou revogação da autorização — Condições — Caráter alternativo — Interpretação dessas condições em conformidade com o princípio geral da importância preponderante da proteção da saúde pública

(Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84, artigo 116.°)

(cf. n.° 76)

4.      Direito da União Europeia — Interpretação — Métodos — Interpretação literal, sistemática e teleológica — Análise da génese de uma disposição — Admissibilidade

(cf. n.° 78)

5.      Aproximação das legislações — Medicamentos para uso humano — Autorização de introdução no mercado — Alteração, suspensão ou revogação da autorização — Condições — Avaliação da relação riscobenefício do medicamento em questão — Conceito de relação riscobenefício — Tomada em consideração dos riscos resultantes do uso do referido medicamento sem autorização — Inclusão

(Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84), considerando 2, artigos 1.°, pontos 28 e 28A, 22.°, segundo parágrafo, 23.°, n.° 2, 101.°, n.os 1 e 2, e 116.°)

(cf. n.os 79‑100)

6.      Aproximação das legislações — Medicamentos para uso humano — Autorização de introdução no mercado — Alteração, suspensão ou revogação da autorização — Condições — Ónus da prova — Necessidade de dados científicos ou de novas informações — Alcance — Respeito pelo princípio da precaução

(Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84, artigo 116.°)

(cf. n.os 110‑115, 159)

7.      Aproximação das legislações — Medicamentos para uso humano — Autorização de introdução no mercado — Alteração, suspensão ou revogação da autorização — Decisão da Comissão que impõe aos EstadosMembros a suspensão das autorizações de introdução no mercado de um medicamento — Fiscalização jurisdicional — Limites

(Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84, artigo 116.°)

(cf. n.os 117‑119, 206)

8.      Aproximação das legislações — Medicamentos para uso humano — Autorização de introdução no mercado — Alteração, suspensão ou revogação da autorização — Decisão da Comissão que impõe aos EstadosMembros a suspensão das autorizações de introdução no mercado de um medicamento — Violação do princípio da proporcionalidade — Inexistência

(Diretiva 2001/83 do Parlamento Europeu e do Conselho, conforme alterada pela Diretiva 2010/84, artigo 116.°)

(cf. n.os 205, 207, 208, 213‑215)

Resumo

O Tribunal Geral, decidindo em formação alargada de cinco juízes, nega provimento ao recurso interposto pela Fresenius Kabi Austria GmbH e outras pessoas coletivas (a seguir «recorrentes») que visa a anulação da Decisão da Comissão Europeia que impõe aos Estados‑Membros em questão a suspensão das autorizações de introdução no mercado (a seguir «AIM») dos medicamentos que contém hidroxietilamido (a seguir «HEA») (1).

As recorrentes fazem parte do grupo de dimensão mundial Fresenius que fabrica e distribui, designadamente, medicamentos que contêm HEA como substância ativa que, sob a forma de soluções para perfusão, são principalmente utilizados para o tratamento da hipovolemia (baixo volume de sangue) causada pela perda aguda (súbita) de sangue, quando um tratamento com soluções alternativas é considerado insuficiente. As recorrentes são titulares das AIM de uma parte desses medicamentos.

Na sequência de várias avaliações, efetuadas desde 2013, e de tentativas sucessivas de estabelecer medidas de minimização dos riscos (a seguir «MMR»), a Comissão declarou, na decisão impugnada, que a relação risco‑benefício destes medicamentos não podia ser considerada favorável, nomeadamente devido aos riscos associados ao seu uso sem AIM. A Comissão ordenou a suspensão das AIM destes medicamentos.

As recorrentes pediram ao Tribunal Geral a anulação da decisão impugnada com o fundamento, designadamente, de que a Comissão interpretou incorretamente o conceito de «relação risco‑benefício» na aceção da Diretiva 2001/83 (2), na medida em que, ao avaliar a relação risco‑benefício dos medicamentos em causa, teve em conta os riscos resultantes do seu uso sem AIM. As recorrentes alegaram também que as MMR adotadas foram cumpridas na maioria dos Estados‑Membros. Além disso, o incumprimento destas MMR noutros Estados‑Membros não devia, em seu entender, levar a considerar que estas MMR não eram eficazes na prevenção dos riscos em causa.

Apreciação do Tribunal Geral

A título preliminar, o Tribunal observa que as condições de alteração, de suspensão ou de revogação de uma AIM referidas na Diretiva 2001/83, a saber, a constatação de que o medicamento é nocivo, de que falta o efeito terapêutico, de que a relação risco‑benefício não é favorável ou de que o medicamento não tem a composição quantitativa e qualitativa declarada (3), são alternativas e não cumulativas. Além disso, devem ser interpretadas em conformidade com o princípio geral segundo o qual deve incontestavelmente ser reconhecida à proteção da saúde pública uma importância preponderante face a considerações económicas.

Neste contexto, o Tribunal Geral pronuncia‑se sobre a condição relativa à relação risco‑benefício do medicamento e, concretamente, sobre o conceito de «relação risco‑benefício».

Observa, em primeiro lugar, que, no que respeita à interpretação literal, as disposições da Diretiva 2001/83 que visam a definição deste conceito e a de «risco associado ao uso do medicamento» (4) não incluem nem excluem expressamente a tomada em consideração dos riscos resultantes do uso de um medicamento sem AIM na avaliação da sua relação risco‑benefício. Pelo contrário, estas disposições fazem referência a «qualquer risco» para a saúde do doente ou para a saúde pública relacionado com a qualidade, a segurança ou a eficácia do medicamento e não restringem o conceito de «segurança do medicamento» a utilizações específicas. Assim, não excluem os riscos resultantes do uso de um medicamento sem AIM do conceito de riscos associados à segurança desse medicamento.

Em segundo lugar, quanto à interpretação contextual deste conceito, o Tribunal Geral analisa as disposições da Diretiva 2001/83 que estabelecem certas obrigações de informação que incumbem ao titular de uma AIM de um medicamento (5). Salienta que estas disposições preveem expressamente a obrigação de comunicar à autoridade nacional competente os «dados de utilização do medicamento, quando essa utilização estiver fora dos termos da [AIM]», que podem ser «novas informações que possam influenciar a avaliação dos benefícios e dos riscos do medicamento em questão».

Além disso, referindo‑se às disposições da Diretiva 2001/83 que descrevem o objetivo do sistema de farmacovigilância e o alcance das informações que visa recolher (6), o Tribunal Geral entende que resulta do exposto, por um lado, que o conceito de «riscos para a saúde dos doentes ou para a saúde pública» abrange igualmente os riscos resultantes de um uso «fora dos termos da [AIM]». Por outro lado, os Estados‑Membros podem ter em conta todas as informações recolhidas no quadro do sistema de farmacovigilância, incluindo as informações relativas ao risco associado ao uso de um medicamento sem AIM, para examinar as opções que permitam prevenir os riscos ou reduzi‑los e, se necessário, para tomar medidas de ordem regulamentar respeitantes à AIM em causa. Estas disposições não contêm nenhuma indicação de que a suspensão ou a revogação de uma AIM seria excluída por princípio das medidas que os Estados‑Membros podem tomar para fazer face ao risco associado ao uso de um medicamento sem AIM.

Por último, o Tribunal considera que, através das disposições da Diretiva 2001/83 que regulam a decisão de conceder uma AIM sob certas condições (7), o legislador previu expressamente as condições em que as informações sobre a eficácia e a segurança de um medicamento relativas à sua utilização «em condições normais» podem ser limitadas. O facto de a disposição da mesma diretiva que prevê a suspensão de uma AIM não fazer nenhuma referência às «condições normais» de utilização corrobora a interpretação segundo a qual o conceito de «risco associado ao uso do medicamento» abrange igualmente o risco associado ao seu uso sem AIM.

Por conseguinte, o Tribunal Geral deduz que a interpretação contextual do conceito de «relação risco‑benefício» corrobora a conclusão de que este conceito abrange o risco associado ao uso de um medicamento sem AIM.

Em terceiro e último lugar, no respeitante à interpretação teleológica do mesmo conceito, o Tribunal Geral sublinha que, na medida em que a Diretiva 2001/83 impõe às autoridades competentes a obrigação de suspender, de revogar ou de alterar a AIM se a relação risco‑benefício de um medicamento for considerada desfavorável, prossegue o seu objetivo essencial de salvaguarda da saúde pública.

Assim, para que este objetivo seja eficazmente prosseguido, as autoridades competentes devem poder ter em conta as informações relativas a todos os riscos para a saúde pública resultantes de um medicamento, incluindo os riscos associados ao seu uso sem AIM. Com efeito, o uso de um medicamento sem AIM, que não é raro e faz parte da decisão profissional de um médico que pondera os benefícios e os riscos desse uso, devendo estar devidamente informado, pode apresentar riscos para a saúde pública, semelhantes aos riscos associados ao uso deste medicamento em conformidade com os termos da AIM. A interpretação teleológica do conceito de «relação risco‑benefício» confirma, portanto, a conclusão de que este conceito abrange igualmente os riscos associados ao uso do medicamento sem AIM.

Por conseguinte, o Tribunal Geral conclui que, ao ter em conta o risco colocado pelo uso sem AIM dos medicamentos em causa na avaliação da sua relação risco‑benefício, a Comissão não interpretou erradamente este conceito.

Relativamente ao cumprimento das MMR, o Tribunal Geral considera que foi sem cometer um erro manifesto de apreciação que a Comissão concluiu que o uso sem AIM dos medicamentos em questão persistia, apesar das MMR adotadas.


1      Decisão de Execução C(2022) 3591 final da Comissão, de 24 de maio de 2022, relativa às autorizações de introdução no mercado, ao abrigo do artigo 107.°‑P da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de medicamentos para uso humano que contêm a substância ativa «hidroxietilamido (HES), soluções para perfusão», na sequência da avaliação de um estudo de segurança pós autorização (a seguir «decisão impugnada»).


2      Conceito que figura no artigo 116.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2001, L 311, p. 67), conforme alterada pela Diretiva 2010/84/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de dezembro de 2010, no que diz respeito à farmacovigilância (JO 2010, L 348, p. 74).


3      Condições previstas no artigo 116.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2001/83.


4      Respetivamente, nos pontos 28‑A e 28, primeiro travessão, do artigo 1.° da Diretiva 2001/83.


5      Artigo 23.°, n.° 2, da Diretiva 2001/83.


6      Artigo 101.°, n.o 1, da Diretiva 2001/83.


7      Artigo 22.°, segundo parágrafo, da Diretiva 2001/83.