Language of document : ECLI:EU:T:2019:217

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

4 de abril de 2019 (*)

«Função pública — Funcionários — Processo “Eurostat” — Processo penal nacional — Não pronúncia — Pedido de assistência — Denunciante — Presunção de inocência — Ação de indemnização e pedido de anulação»

No processo T‑61/18,

Amador Rodríguez Prieto, antigo funcionário da Comissão Europeia, residente em Steinsel (Luxemburgo), representado por S. Orlandi, T. Martin e R. García‑Valdecasas y Fernández, advogados,

demandante,

contra

Comissão Europeia, representada por B. Mongin e R. Striani, na qualidade de agentes,

demandada,

que tem por objeto uma ação, apresentada nos termos do artigo 270.o TFUE, de, a título principal, reparação dos danos materiais e morais alegadamente sofridos pelo demandante e de, a título subsidiário, anulação da decisão da Comissão de 28 de março de 2017, que indefere um pedido de assistência do demandante,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto por: A. M. Collins, presidente, R. Barents e J. Passer (relator), juízes,

secretário: R. Ramette, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 17 de janeiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

 Factos na origem do litígio

1        O demandante, Amador Rodríguez Prieto, foi funcionário da Comissão Europeia entre 1987 e 2003.

2        Em 1 de março de 1998, o demandante foi nomeado chefe da unidade C1 da Direção C «Informação e divulgação; transportes; cooperação técnica com países terceiros; estatísticas do comércio externo e intracomunitário» do Eurostat (Serviço de Estatística da União Europeia).

3        A partir de 1996, o Eurostat assegurou a divulgação ao público dos dados estatísticos recolhidos com o apoio do Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias (OPOCE), que instituíra uma rede de pontos de venda (a seguir «datashops»). Os contratos tripartidos celebrados entre o Eurostat, o OPOCE e os datashops em 1996 previam um complexo circuito de faturação, que permitia ao Eurostat receber até 55 % do preço de faturação dos referidos dados introduzidos no mercado.

4        O diretor do demandante, M. B., encarregou‑o de aprovar as despesas decorrentes dos contratos tripartidos, nomeadamente celebrados com a sociedade Planistat.

5        Por nota de 27 de outubro de 1998, o demandante pediu a realização de uma auditoria interna no Eurostat da gestão desses contratos. Pediu ainda que lhe fosse retirado o poder de assinar as ordens de pagamento das despesas, o que foi feito por nota de 27 de novembro de 1998.

6        Em setembro de 1999, a auditoria interna concluiu pela existência de irregularidades na gestão financeira dos contratos tripartidos celebrados com as sociedades Eurocost, Eurogramme, Datashop, Planistat e CESD Communautaire, que terá permitido alimentar um envelope financeiro não sujeito às regras orçamentais da Comissão.

7        Em 3 de janeiro de 2000, o relatório de auditoria interna foi entregue à Direção‑Geral do Controlo Financeiro da Comissão.

8        Em 17 de março de 2000, o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) foi consultado pela Direção‑Geral do Controlo Financeiro da Comissão. O OLAF abriu vários inquéritos sobre, designadamente, os contratos celebrados entre o Eurostat e as sociedades Eurocost, Eurogramme, Datashop, Planistat e CESD Communautaire, as subvenções concedidas a essas sociedades e o sistema de faturação instituído.

9        Em 19 de março de 2003, o OLAF transmitiu o processo relativo ao contrato celebrado com a Planistat ao Procurador da República de Paris (França), que, em 4 de abril de 2003, ordenou a abertura de uma investigação judicial por recetação e cumplicidade no crime de abuso de confiança.

10      Em 11 de junho de 2003, a Comissão mandatou também o seu serviço de auditoria interna, que elaborou três relatórios, a saber, dois relatórios, datados de 7 de julho e 24 de setembro de 2003, e um relatório final, de 22 de outubro de 2003.

11      Com base num relatório do OLAF de 22 de abril de 2003, a Comissão deu poderes ao seu serviço jurídico para apresentar denúncia contra desconhecidos, denúncia que apresentaram, em 10 de julho de 2003, ao Procurador da República de Paris por recetação e cumplicidade no crime de abuso de confiança. A denúncia visava possíveis desvios de fundos por parte de funcionários ou agentes da União Europeia prejudicais aos interesses financeiros da União. Mediante requerimento de acusação adicional de 4 de agosto de 2003, a investigação judicial iniciada pelo Procurador da República de Paris foi alargada para abranger o crime de abuso de confiança.

12      Em 11 de junho de 2008, o demandante informou a Comissão de que tinha sido convocado pela polícia francesa para ser ouvido na qualidade de testemunha no âmbito desse processo penal. Em consequência, pediu à autoridade investida do poder de nomeação (a seguir «AIPN») para ser dispensado do dever de reserva, em conformidade com o disposto no artigo 19.o do Estatuto dos Funcionários da União Europeia (a seguir «Estatuto») e para que lhe fossem reembolsadas as despesas de deslocação do Luxemburgo (Luxemburgo) a Paris.

13      Em 30 de junho de 2008, a AIPN dispenso‑o do dever de reserva, tendo, contudo, indeferido o pedido de reembolso das despesas de deslocação. A reclamação de 21 de julho de 2008 deduzida contra essa decisão foi indeferida em 20 de novembro de 2008.

14      Em 7 de outubro de 2008, o demandante foi ouvido pela polícia francesa.

15      Em 22 de outubro de 2008, o demandante apresentou um primeiro pedido de assistência (registado sob a referência D/505/08), baseado no artigo 24.o do Estatuto. O demandante alegou nomeadamente que, ao solicitar a auditoria interna em outubro de 1998, agiu como denunciante e que os interesses comuns entre ele e a instituição em causa a obrigavam a prestar‑lhe assistência. Em seu entender, a Comissão devia, pois, assumir as despesas de advogado efetuadas quando foi convocado na qualidade de testemunha pela polícia francesa.

16      Este primeiro pedido de assistência foi indeferido em 17 de dezembro de 2008. A Comissão referiu ter tomado conhecimento de que o demandante tinha sido constituído arguido por ocasião da audição de 7 de outubro de 2008. Considerou que os dois requisitos de aplicação do artigo 24.o do Estatuto, a saber, a existência de ameaças, ultrajes, etc., contra pessoas e bens do funcionário e a existência de um nexo de causalidade entre esses factos e a qualidade de funcionário ou as tarefas a executar, não estavam preenchidos. A decisão da Comissão não foi contestada.

17      Em 9 de setembro de 2013, o juiz de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris, França) proferiu um Despacho de não pronúncia relativamente a todas as pessoas constituídas arguidas no processo penal, entre as quais o demandante (a seguir «Despacho de não pronúncia»)

18      Em 17 de setembro de 2013, a Comissão interpôs recurso do Despacho de não pronúncia.

19      Por Acórdão de 23 de junho de 2014, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) confirmou o Despacho de não pronúncia.

20      Em 27 de junho de 2014, a Comissão interpôs recurso de cassação do Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 23 de junho de 2014 que confirmou o Despacho de não pronúncia.

21      Por Acórdão de 15 de junho de 2016, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França) negou provimento ao recurso interposto pela Comissão do Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 23 de junho de 2014, que confirmou o Despacho de não pronúncia, pondo assim termo ao processo penal.

22      Em 28 de novembro de 2016, o demandante, fazendo, nomeadamente, referência ao Acórdão de 9 de setembro de 2016, De Esteban Alonso/Comissão (T‑557/15 P, não publicado, EU:T:2016:456, n.o 59), e ao Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016, apresentou um segundo pedido de assistência ao abrigo do artigo 24.o do Estatuto, requerendo que a Comissão assumisse as despesas e honorários de advogado por ele pagos para sua defesa nos tribunais franceses. Pediu também que o estatuto de denunciante lhe fosse reconhecido por nota inserida no seu processo individual para restabelecimento da sua honorabilidade profissional. A título subsidiário, pediu a reparação do prejuízo resultante da falta de serviço da instituição, que não considerou o seu estatuto de denunciante e lhe recusou proteção.

23      Por decisão de 28 de março de 2017 (a seguir «decisão impugnada»), a AIPN declarou inadmissível o segundo pedido de assistência por, principalmente, o demandante não ter apresentado factos novos desde a decisão de indeferimento do primeiro pedido de assistência de 17 de dezembro de 2008. Considerou também que o segundo pedido de assistência, tal como o pedido de indemnização, careciam de fundamento.

24      Por carta da Comissão de 10 de abril de 2017, com a referência CMS 16/056, o demandante foi informado da existência e do arquivamento de um «processo» disciplinar aberto, segundo a Comissão, contra o demandante no âmbito do processo Eurostat.

25      Em 28 de junho de 2017, o demandante deduziu reclamação administrativa prévia contra a decisão impugnada.

26      Em 30 de outubro de 2017, a reclamação foi indeferida.

 Tramitação processual e pedidos das partes

27      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 5 de fevereiro de 2018, o demandante intentou a presente ação.

28      Por carta apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 4 de junho de 2018, o demandante informou renunciar à apresentação de réplica.

29      O demandante conclui, em substância, pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        a título principal, condenar a Comissão a pagar‑lhe 68 831 euros a título do prejuízo material e 100 000 euros a título do prejuízo moral;

–        a título subsidiário, anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas,

30      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        julgar a ação inadmissível e, em qualquer caso, improcedente;

–        condenar o demandante nas despesas.

 Questão de direito

31      Em apoio da ação, o demandante começa por alegar que o seu pedido de assistência nos termos do artigo 24.o do Estatuto era admissível e que, portanto, o seu pedido de anulação do indeferimento desse pedido também o era. Em seguida, a título principal, põe em causa a responsabilidade extracontratual da União por pretensa violação, pela Comissão, do estatuto de denunciante que lhe assiste e, a título subsidiário, pede a anulação da decisão impugnada.

 Quanto à admissibilidade do pedido de assistência e do pedido de anulação da decisão impugnada

32      Na petição, o demandante contesta a posição da Comissão, expressa na decisão impugnada, de que o segundo pedido de assistência é inadmissível.

33      Segundo o demandante, embora a AIPN não esteja obrigada a prestar assistência a um funcionário suspeito do incumprimento das suas obrigações profissionais, a constituição como parte civil da Comissão não obstava definitivamente a que esta pudesse conceder‑lhe posteriormente a sua assistência. No caso em apreço, a AIPN dispunha de elementos que demonstravam a sua ação enquanto denunciante.

34      O demandante sustenta que o facto de o prejuízo que lhe foi causado resultar de ações das autoridades francesas não obsta à aplicação do artigo 24.o do Estatuto. Afirma ter invocado a sua qualidade de denunciante para demonstrar a ilegalidade da sua constituição como arguido e do prosseguimento do processo penal contra ele.

35      Por último, o demandante alega que sempre contestou ter participado deliberadamente num sistema de gestão contrário às regras orçamentais, o que demonstra o seu pedido para que lhe fosse retirado o seu poder de assinatura das ordens de pagamento das despesas. Em seu entender, tais circunstâncias deveriam ter levado a AIPN a considerar que esta não prosseguia um interesse oposto ao seu, e que o seu caso devia ser distinguido do dos outros funcionários envolvidos, nomeadamente no respeitante à assunção das despesas com a sua defesa nos tribunais franceses.

36      A Comissão alega, em substância, que o pedido de anulação da decisão impugnada é inadmissível pelo facto de o segundo pedido de assistência, em si, ser inadmissível, uma vez que, por um lado, o demandante reiterou apenas um pedido de assistência anterior sem fazer referência a factos novos e, por outro, apresentou este novo pedido de assistência sem esgotar as vias de recurso nacionais.

37      Quanto, por um lado, à argumentação da Comissão relativa à inadmissibilidade do segundo pedido de assistência por o demandante não ter invocado factos novos, cabe notar que o segundo pedido de assistência (v. n.o 22, supra) contém um facto novo em relação ao primeiro pedido de assistência (v. n.o 15, supra), apresentado pouco tempo depois da constituição de arguido do demandante pelo juiz de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris).

38      Este facto novo reporta‑se ao Despacho de não pronúncia, proferido em 9 de dezembro de 2013 pelo juiz de instrução e, na sequência dos recursos da Comissão, por duas vezes confirmado, a última das quais a título definitivo pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação), em 15 de junho de 2016.

39      O Despacho de não pronúncia, sua posterior confirmação em sede de recurso e a improcedência do recurso de cassação, opostos à convicção, expressa pela Comissão nos seus articulados apresentados no âmbito do primeiro recurso e do recurso de cassação, de que o demandante tinha praticado uma infração penal, constituem, no seu todo, um facto novo.

40      É certo que, no Despacho de não pronúncia, o juiz de instrução francês salientou «que o mecanismo resultante do cumprimento dos [contratos] tripartidos celebrado[s] sob a alçada do Eurostat [infringia] o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento Financeiro», de 21 de dezembro de 1977, aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO 1977, L 356, p. 1; EE 01 F2 p. 90; a seguir «Regulamento Financeiro»), e, no seu Acórdão de 23 de junho de 2014, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) declarou «que as regras em matéria de reutilização previstas no Regulamento Financeiro [tinham sido] violadas».

41      No entanto, estas declarações foram feitas de modo impessoal, sem qualquer designação do demandante.

42      Além disso, ao mesmo tempo, o juiz penal francês declarou inexistir intenção fraudulenta ou desvio de fundos, tendo feito uma série de declarações, segundo as quais, primeiro, o sistema dos datashops, apesar de não ser conforme ao Regulamento Financeiro, era, de acordo com o Tribunal de Contas Europeu, «uma necessidade devido à desadequação do referido regulamento» e a «mera reprodução de um sistema já utilizado em plena legalidade pelo OPOCE»; segundo, «os procedimentos comunitários existentes não permitiam assegurar, num quadro flexível e funcional, a comercialização dos dados produzidos pelo Eurostat e[, na] falta de procedimento adequado, [foi] necessário encontrar soluções que permitiam ao Eurostat cumprir a sua missão»; e, terceiro, «o controlo financeiro, que inicialmente esteve associado à criação da rede de datashops e que não era favorável à sua constituição mediante o sistema de convenções tripartidas, se [tinha], na realidade, completamente desinteressado das modalidades de funcionamento dessa rede, o que [deixou] os responsáveis do Eurostat numa posição em que deviam e podiam atuar “da melhor maneira” [e] isto num contexto em que a estratégia da Comissão era aumentar a oferta de estatísticas devido à elevada procura» (Despacho de não pronúncia; Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris), de 23 de junho de 2014.

43      Resulta das considerações anteriores que o demandante, referindo‑se às decisões penais francesas, invocou corretamente um facto novo.

44      Quanto, por outro lado, à inadmissibilidade do segundo pedido de assistência devido à falta de esgotamento, pelo demandante, das vias de recurso nacionais, importa observar que este argumento assenta na premissa de que o artigo 24.o do Estatuto, relativo à assistência, é aplicável no caso em apreço e que, por conseguinte, a responsabilidade sem culpa da administração por força desta disposição do Estatuto depende do esgotamento das vias de recurso nacionais contra o terceiro autor do dano.

45      Ora, como será exposto nos n.os 46 a 59, infra, esta premissa está errada.

46      O artigo 24.o do Estatuto dispõe:

«A União presta assistência ao funcionário, nomeadamente em procedimentos contra autores de ameaças, ultrajes, injúrias, difamações ou atentados contra pessoas e bens de que sejam alvo o funcionário ou os membros da sua família, por causa da sua qualidade e das suas funções.

A União repara solidariamente os prejuízos sofridos, em consequência de tais factos, pelo funcionário, na medida em que este não esteja, intencionalmente ou por negligência grave, na origem dos referidos prejuízos e não tenha podido obter reparação dos responsáveis.»

47      Segundo a jurisprudência, a finalidade do artigo 24.o do Estatuto é proporcionar aos funcionários e agentes segurança para o presente e para o futuro, com vista a permitir‑lhes, no interesse geral do serviço, melhor desempenhar as suas funções (Acórdãos de 12 de junho de 1986, Sommerlatte/Comissão, 229/84, EU:C:1986:241, n.o 19; de 27 de junho de 2000, K/Comissão, T‑67/99, EU:T:2000:169, n.o 35; e de 20 de julho de 2011, Gozi/Comissão, F‑116/10, EU:F:2011:124, n.o 12). O dever de assistência que incumbe a uma instituição visa assim tanto a proteção do seu pessoal como a salvaguarda dos seus próprios interesses, pelo que assenta no postulado de uma comunidade de interesses. Assim, foi decidido que a administração não pode ser obrigada a prestar assistência a um funcionário suspeito de incumprimento grave das suas obrigações profissionais e, a este título, sujeito a processos disciplinares (Acórdão de 23 de novembro de 2010, Wenig/Comissão, F‑75/09, EU:F:2010:150, n.o 49).

48      Mais concretamente ainda, e segundo jurisprudência constante, a obrigação de assistência, consagrada no artigo 24.o do Estatuto, visa a defesa dos funcionários, pela instituição, contra atuações de terceiros e não contra os atos da própria instituição, cuja fiscalização está prevista noutras disposições do Estatuto (Acórdãos de 9 de setembro de 2016, De Esteban Alonso/Comissão, T‑557/15 P, não publicado, EU:T:2016:456, n.o 45, e de 13 de julho de 2018, Curto/Parlamento, T‑275/17, EU:T:2018:479, n.o 111; v., também, neste sentido, Acórdão de 12 de julho de 2011, Comissão/Q, T‑80/09 P, EU:T:2011:347, n.o 66 e jurisprudência referida).

49      No caso em apreço, o demandante foi constituído arguido em 7 de outubro de 2008 pelas autoridades judiciárias francesas. Esta constituição de arguido ocorreu na sequência da abertura de uma investigação judicial em 4 de abril de 2003 pelas referidas autoridades judiciais, com base em informações que lhes foram transmitidas pelo OLAF em 19 de março de 2003, e na sequência de uma denúncia contra desconhecidos apresentada em 10 de julho de 2003 pela Comissão.

50      Na sequência do Despacho de não pronúncia, proferido relativamente a todos os arguidos, incluindo o demandante, o processo penal francês seguiu os seus trâmites por força do recurso interposto pela Comissão desse despacho, a que foi negado provimento por Acórdão de 23 de junho de 2014 da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris), que confirmou o despacho, e do recurso interposto pela Comissão desse acórdão, a que foi negado provimento por Acórdão de 15 de junho de 2016 da Cour de cassation (Tribunal de Cassação).

51      Há que salientar que, como o Tribunal Geral já declarou em relação a F. De Esteban Alonso no contexto do processo que deu origem ao Acórdão de 9 de setembro de 2016, De Esteban Alonso/Comissão (T‑557/15 P, não publicado, EU:T:2016:456, n.o 49), os atos praticados pelas autoridades judiciárias francesas, em especial a constituição de arguido do demandante, não constituem ações contempladas pelo artigo 24.o do Estatuto. Não só esses atos se inserem no curso normal do processo penal em causa, como o demandante nunca alegou seriamente que tivessem constituído ataques ilegais à sua pessoa pelas referidas autoridades judiciárias francesas e, consequentemente, pudessem justificar a assistência da Comissão ao abrigo do artigo 24.o do Estatuto.

52      Ora, como resulta, em substância, da jurisprudência, embora a obrigação de assistência referida no artigo 24.o, primeiro parágrafo, do Estatuto constitua uma garantia estatutária essencial para o funcionário e não esteja sujeita à condição de que a ilegalidade das ações que levaram o funcionário a pedir assistência seja previamente demonstrada, será ainda necessário que este apresente elementos que levem a crer, à primeira vista, que essas ações o visam devido à sua qualidade e funções e são ilegais à luz da lei nacional aplicável (Acórdão de 23 de novembro de 2010, Wenig/Comissão, F‑75/09, EU:F:2010:150, n.o 48).

53      Não é o que sucede no caso em apreço, visto o demandante não alegar seriamente que as autoridades judiciárias francesas atuaram ilegalmente a seu respeito e não apresentar nenhum elemento nesse sentido.

54      Além disso, cabe observar que, na realidade, o demandante pede a assistência da Comissão não contra atos de terceiros, mas contra os próprios atos desta instituição, atos que estiveram na origem do processo penal contra ele instaurado e, sobretudo, pelos quais o processo penal se prolongou até ao Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016.

55      Com efeito, embora tenham sido as autoridades judiciárias francesas que constituíram o demandante arguido, foi a Comissão que, pelas informações que lhes comunicou e pela apresentação de uma denúncia, deu origem ao processo penal. Além disso, e sobretudo, foi a Comissão que causou a continuação desse processo penal, após o Despacho de não pronúncia.

56      Na petição, o demandante considera, assim, que «se, do ponto de vista da Comissão, pudesse parecer necessário constituir‑se parte civil para assegurar a proteção dos interesses financeiros da União, nada justificava, no entanto, que o processo penal fosse instaurado contra si, na medida em que a Comissão sabia que não podia ser acusado de ter participado deliberadamente no sistema ilegal de gestão dos datashops criado pelos seus superiores hierárquicos».

57      Decorre das conclusões anteriores que, uma vez que os atos relativamente aos quais o demandante solicita a assistência ao abrigo do artigo 24.o do Estatuto não são os das autoridades judiciárias francesas (atos cuja legalidade não foi, aliás, verdadeiramente impugnada, v. n.os 51 a 53, supra), mas sim os da própria Comissão, esta disposição não é, de acordo com a jurisprudência recordada no n.o 48, supra, aplicável no caso em apreço.

58      Consequentemente, o argumento da Comissão relativo à inadmissibilidade do segundo pedido de assistência devido ao facto de o demandante não ter esgotado as vias de recurso nacionais não pode ser acolhido.

59      Resulta das considerações anteriores que os argumentos da Comissão em apoio da inadmissibilidade do pedido de anulação, relativos à inexistência de factos novos e ao incumprimento de um requisito de aplicação do artigo 24.o do Estatuto, devem ser rejeitados.

 Quanto ao mérito

60      Subsidiariamente ao pedido de assistência e para o caso de ser indeferido, o demandante alegou, no seu pedido e na reclamação administrativa prévia, que a Comissão cometeu uma falta de serviço ao não ter em consideração o facto de ter agido como um denunciante. A este respeito, o demandante invocou o artigo 22.o‑A do Estatuto. A Comissão teve conhecimento, o mais tardar no momento da elaboração do relatório final do seu serviço de auditoria interna, em 2003, do seu papel na divulgação dos factos. Observou que, se fosse visado num processo disciplinar, teria beneficiado do artigo 21.o do anexo IX do Estatuto, relativo à assunção, pela instituição, das despesas de defesa do funcionário não punido no termo de um processo disciplinar.

61      O demandante contestou ter deliberadamente participado no sistema de gestão problemático. Comunicou rapidamente as suas dúvidas sobre esse sistema. Não sabia que o controlo financeiro não estava implicado na execução da rede dos datashops. Exigiu uma auditoria interna e que o poder de assinatura lhe fosse retirado. Foi vítima de uma armadilha nesse processo. Além disso, só em 10 de abril de 2017 teve conhecimento da existência de um processo disciplinar contra ele iniciado.

62      O demandante considerou, assim, que a Comissão tinha violado o dever de proteção dos denunciantes, o que foi agravado pela constituição de parte civil, pelo recurso do Despacho de não pronúncia e, em seguida, pelo recurso de cassação do Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 23 de junho de 2014, que confirmou esse despacho, atos que são constitutivos de acusações injustas contra ele de ter participado deliberadamente num sistema que violava o Regulamento Financeiro.

63      O demandante considerou, assim, que o dano consistia, por um lado, no prejuízo material constituído pelas despesas de defesa efetuadas no âmbito do processo penal francês, no montante de 68 331 euros, e, por outro, no prejuízo moral constituído pelo sentimento de injustiça resultante do facto de ter sido sujeito a um processo penal por factos para cuja revelação tinha contribuído, no montante de 90 000 euros. Além disso, solicitou à Comissão que uma nota fosse inserida no seu processo individual, reconhecendo o seu estatuto de denunciante no processo Eurostat, a fim de restabelecer a sua honorabilidade profissional.

64      Na petição, o demandante mantém, no essencial, a sua posição. A inobservância da qualidade de denunciante constitui uma violação do artigo 22.o‑A do Estatuto e do dever de solicitude. O facto de esta disposição ter sido inserida no Estatuto apenas em 2004 não obstava a que a Comissão reconhecesse, em 2016, o papel de denunciante que desempenhou na altura em conformidade com as suas obrigações previstas nos artigos 11.o e 12.o do Estatuto. O dever de solicitude e o princípio da igualdade de tratamento exigiam que a Comissão distinguisse o seu caso do das demais pessoas postas em causa no processo Eurostat.

65      No entanto, observa o demandante, a Comissão, informada o mais tardar em 22 de outubro de 2003 do papel que tinha desempenhado, não assinalou esse papel às autoridades judiciárias francesas, pelo que prolongou injustamente o processo penal contra si instaurado, quando não podia ignorar que ele não tinha participado deliberadamente no sistema dos datashops. Na sua opinião, o facto de a Comissão não lhe ter evitado o prejuízo sofrido pelo simples facto de ele ser chefe de unidade no momento em que o processo Eurostat foi revelado constitui uma falta de serviço. Por último, no que se refere ao processo disciplinar instaurado pela Comissão contra ele, salienta que os motivos invocados pela Comissão para o encerrar não restabelecem a sua honorabilidade profissional, antes deixam pairar a dúvida sobre a forma como exerceu as suas funções.

66      No que respeita ao artigo 24.o do Estatuto, o demandante sustenta que é sem razão que a Comissão afirma prosseguir, mesmo na sequência do Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016, um interesse oposto ao seu, que obsta à possibilidade de assistência.

67      A Comissão contesta a posição do demandante. O artigo 22.o‑A do Estatuto foi inserido no Estatuto apenas em 1 de maio de 2004. O demandante não pode acusar a Comissão de não lhe ter concedido um estatuto que não existia à data da nota, solicitando uma auditoria. Quanto à pretensa violação do dever de solicitude, é jurisprudência constante que o dever de solicitude não permite atribuir vantagens que o Estatuto não oferece. Quanto à pretensa agravação do prejuízo através do exercício das vias de recurso, a Comissão apenas exerceu um direito. Quanto à pretensa falta de serviço que consistiu em instaurar um processo disciplinar, é um facto que o processo disciplinar não originou nenhum ato relativamente ao demandante, o que explica não ter sido dele informado. A abertura de um processo disciplinar puramente formal que não foi tornado público e que não deu lugar a absolutamente nenhum ato de investigação não pôde causar um prejuízo ao demandante.

68      Quanto à alegada violação do artigo 24.o do Estatuto, a Comissão recorda a sua posição relativamente à inadmissibilidade do segundo pedido de assistência ao abrigo desta disposição e sustenta que, em todo o caso, o referido pedido é improcedente, uma vez que diz respeito ao reembolso de despesas que o demandante foi obrigado a efetuar para fazer valer a sua inocência numa situação em que os interesses da Comissão e os do interessado nunca deixaram de ser incompatíveis, e não ao reembolso de despesas efetuadas pelo demandante para se defender de ataques de terceiros ou de ilegalidades cometidas por terceiros.

 Quanto aos pedidos indemnizatórios

69      O artigo 22.o‑A do Estatuto dispõe:

«1. Um funcionário que, no exercício das suas funções, tenha conhecimento de factos que levem à presunção de existência de possíveis atividades ilegais, incluindo fraude ou corrupção, lesivas dos interesses das Comunidades, ou de condutas relacionadas com o exercício de atividades profissionais, que possam constituir incumprimento grave das obrigações dos funcionários das Comunidades, informará desses factos, sem demora, o seu superior hierárquico direto ou o seu diretor‑geral ou, se o considerar útil, o secretário‑geral, ou as pessoas em posição hierárquica equivalente, ou ainda diretamente o Organismo Europeu de Luta Antifraude.

[…]

3. Desde que tenha agido razoavelmente e de boa‑fé, o funcionário não sofrerá qualquer prejuízo por parte da instituição pelo facto de ter comunicado a informação referida nos n.os 1 e 2.»

70      O artigo 22.o do Estatuto, que introduz, em relação a todos os funcionários, uma obrigação de informação sobre os factos que permitem presumir uma atividade ilegal ou um incumprimento grave das obrigações dos funcionários da União (v., neste sentido, Acórdão de 8 de outubro de 2014, Bermejo Garde/CESE, T‑530/12 P, EU:T:2014:860, n.os 103 a 106), entrou em vigor em 1 de maio de 2004.

71      De resto, é de notar que todos os funcionários que, antes de 1 de maio de 2004, tiveram a iniciativa de alertar os seus superiores hierárquicos para a existência de ilegalidades ou de incumprimento das obrigações estatutárias de que tiveram conhecimento, suscetíveis de prejudicar os interesses financeiros da União, já podiam beneficiar da proteção da instituição para a qual trabalhavam contra eventuais atos de retaliação, devido a tal divulgação, e não ser prejudicados pela referida instituição, desde que agissem de boa‑fé.

72      Todavia, importa acrescentar que, embora essa proteção devida ao funcionário o defenda de prejuízos causados pela instituição, não pode ter por objeto precavê‑lo de tais inquéritos destinados a determinar se, e em que medida, o próprio esteve implicado nas irregularidades que denuncia. Quando muito, a iniciativa tomada pelo funcionário de denunciar tais irregularidades pode, se esses inquéritos confirmam a sua implicação nos factos denunciados, constituir uma circunstância atenuante no âmbito de eventuais processos sancionatórios iniciados pela instituição na sequência desses inquéritos, tal como referido na comunicação do vice‑presidente M. Šefčovič à Comissão de 6 de dezembro de 2012, SEC(12012) 679 final, sobre as orientações relativas à transmissão de informações em caso de irregularidades graves (whistleblowing) (ponto 3, in fine).

73      Resulta das considerações anteriores que, em qualquer caso, a qualidade de denunciante reivindicada pela demandante não o precavia dos procedimentos destinados a determinar a sua possível implicação nos factos denunciados.

74      A questão que se coloca no caso em apreço não é tanto a de saber se o demandante devia beneficiar da qualidade de denunciante, mas sim saber se, atendendo às circunstâncias particulares do caso, a Comissão cometeu ilegalidades ao despoletar o prosseguimento do processo penal, após o Despacho de não pronúncia.

75      No que diz respeito ao prosseguimento do processo penal, após o Despacho de não pronúncia, através do recurso do referido despacho e posteriormente do recurso de cassação do Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 23 de junho de 2014, que confirmou esse despacho, há que recordar que o facto de se poder invocar os seus direitos por via jurisdicional, e a fiscalização jurisdicional que implica, é a expressão de um princípio geral de direito que está na base das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros e que foi igualmente consagrado nos artigos 6.o e 13.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (Acórdãos de 15 de maio de 1986, Johnston, 222/84, EU:C:1986:206, n.os 17 e 18, e de 17 de julho de 1998, ITT Promedia/Comissão, T‑111/96, EU:T:1998:183, n.o 60), e no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Sendo o acesso à justiça um direito fundamental e um princípio geral garantístico do respeito pelo direito, só em circunstâncias completamente excecionais poderá o facto de uma instituição intentar uma ação judicial constituir uma falta de serviço (v., neste sentido, Acórdão de 28 de setembro de 1999, Frederiksen/Parlamento, T‑48/97, EU:T:1999:175, n.o 97).

76      No caso em apreço, cabe considerar que, independentemente dos termos do Despacho de não pronúncia e do Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) de 23 de junho de 2014, que confirmou esse despacho, em que o juiz penal francês considerou, em substância, que as irregularidades apuradas eram mais imputáveis à inadequação do quadro regulamentar instituído pela União do que aos funcionários constituídos arguidos, que só procuraram soluções no interesse do Eurostat e nesse contexto regulamentar desadequado, as circunstâncias concretas não são excecionais a ponto de conduzir à conclusão de que o recurso interposto do referido despacho e o recurso de cassação interposto desse acórdão constituem faltas de serviço da parte da Comissão. Daqui resulta que o demandante não pode exigir a reparação de prejuízos morais e materiais causados pelo facto de ter sido exposto a um processo penal entre 2003 e 2016.

 Quanto ao pedido de anulação

77      Quanto à recusa da Comissão, depois de o demandante ter sido absolvido pelo Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016, em assumir as despesas por ele efetuadas no âmbito do processo penal nacional, deve salientar‑se que os motivos da recusa, tal como enunciados pela Comissão no indeferimento do pedido e, depois, da reclamação administrativa prévia, embora não respondam claramente a certas preocupações do demandante no procedimento administrativo, permitem, todavia, identificar o verdadeiro motivo pelo qual a Comissão indeferiu o segundo pedido de assistência.

78      Quanto às preocupações do demandante, verifica‑se que, ao remeter para os artigos 22.o‑A e 24.o do Estatuto, o primeiro dos quais, como se declarou, não é aplicável ao caso em apreço (v. n.o 57, supra) e, o segundo, é inapto a precaver o demandante de eventuais processos penais ou disciplinares (v. n.o 73, supra), o demandante afirma, em substância, que não era culpado no processo Eurostat.

79      Assim, desde o início do procedimento administrativo, o demandante alegou que o sistema dos datashops lhe tinha sido apresentado de forma convincente como regular e validado, que estava de boa‑fé, que nunca tinha participado deliberadamente no mecanismo controvertido, que fez rapidamente a denúncia e que, em última análise, tinha sido vítima de uma armadilha. Esta convicção, corroborada pelas decisões penais francesas favoráveis, levou o demandante a pedir à Comissão para assumir as suas despesas de defesa efetuadas no âmbito do processo penal nacional e o dano moral resultante do sentimento de injustiça decorrente da falta de proteção da Comissão, quando agiu como denunciante no processo Eurostat. É também por este motivo que solicitou a inclusão, no seu processo, de uma nota que reconhecesse o seu papel de denunciante, a fim de restabelecer a sua honorabilidade profissional.

80      Depois de ter sido absolvido no âmbito do processo penal, o demandante observou, de resto, no segundo pedido de assistência e, depois, na reclamação administrativa prévia, que um resultado comparável num processo disciplinar lhe asseguraria a tomada a cargo das suas despesas de defesa nos termos do artigo 21.o do anexo XI do Estatuto.

81      Ora, nos indeferimentos do pedido e, depois, da reclamação administrativa prévia, a Comissão não respondeu claramente a estas preocupações do demandante. Rejeitou, por razões técnicas, as afirmações do demandante relativas aos artigos 22.o‑A e 24.o do Estatuto.

82      No entanto, as afirmações da Comissão demonstram que a sua recusa, no procedimento administrativo, em assumir as despesas do demandante decorria, em última análise, não tanto da inaplicabilidade técnica destas disposições do Estatuto mas mais, no essencial, do entendimento de que o demandante era culpado da violação das suas obrigações estatutárias.

83      Assim, a Comissão insistiu, em negrito, duas vezes, no indeferimento do pedido e, depois, da reclamação administrativa prévia, no facto de, no Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016, o referido órgão jurisdicional ter confirmado a existência de uma «violação das regras orçamentais europeias» e ter salientado que não existiam acusações «suficientes» para levar os arguidos a julgamento.

84      Por outro lado, no indeferimento da reclamação administrativa prévia, a Comissão fez apreciações segundo as quais «prosseguiu, no processo penal, um interesse oposto ao do [demandante], com a consequência de o artigo 24.o Estatuto não poder, mesmo na hipótese de um acórdão [confirmativo do Despacho de não pronúncia], constituir o fundamento de um pedido de assistência para obter a reparação do prejuízo sofrido pelo, ou por ocasião, desse processo».

85      Não se pode deixar de observar que, embora seja efetivamente verdade, e, de resto, evidente, que o interesse da Comissão era oposto ao do demandante no processo penal, esta contradição de interesses só podia logicamente subsistir, após o Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) que confirmou o Despacho de não pronúncia, se a Comissão ainda fosse de opinião de que o demandante não tinha, não obstante a sua absolvição, cumprido as suas obrigações estatutárias.

86      A efetividade da subsistência, mesmo após o Acórdão da Cour de cassation (Tribunal de Cassação) de 15 de junho de 2016, de tal opinião incriminatória da Comissão em relação ao demandante foi aliás confirmada na contestação.

87      Assim, na contestação, a Comissão alega que «as circunstâncias em que o Despacho de não pronúncia foi proferido (esse despacho reserva a possibilidade de manipulação financeira) e o arquivamento por razões de oportunidade do processo disciplinar não eliminaram os interesses antagónicos entre as partes e justificavam que não alterasse a sua decisão de recusa de assistência».

88      Em suma, verifica‑se, pois, que a decisão da Comissão de não assumir as despesas de defesa do demandante efetuadas no âmbito do processo nacional não resulta tanto da inaplicabilidade técnica do artigo 24.o do Estatuto, que, de resto, segundo sugere a Comissão, não terá constituído um obstáculo intransponível para a tomada a cargo das referidas despesas, mas mais da subsistência de «interesses antagónicos», portanto, da opinião persistente da Comissão de que o demandante tinha violado as suas obrigações estatutárias.

89      No entanto, dado que o demandante já não estava a ser processado criminalmente a nível nacional, sendo certo que o juiz francês nunca o designou pessoalmente como autor da violação das regras financeiras, e dado que, além disso, no momento da adoção da decisão impugnada, não era destinatário de nenhuma decisão disciplinar que declarasse a existência de violação das obrigações estatutárias, não só tinha sido ilibado no âmbito do processo penal em França, com também gozava necessariamente da presunção de inocência no que se refere ao cumprimento das suas obrigações estatutárias.

90      É certo que o demandante não invoca expressamente como fundamento a violação da presunção de inocência. A razão é que, convencido da sua inocência, invoca‑a diretamente contra a decisão impugnada. No entanto, esta posição implica necessariamente, a majore ad minus, e como, de resto, o demandante confirmou na audiência, a invocação da violação do princípio da presunção de inocência, nomeadamente quando este, após ter sustentado que não era culpado (v. n.o 79, supra), alegou que, com o seu comportamento, «a Comissão [deixava] pairar dúvidas sobre o modo como [tinha] desempenhado as suas funções [e] sobre a sua honorabilidade profissional».

91      Há que recordar que o princípio da presunção de inocência, que constitui um direito fundamental, consagrado no artigo 6.o, n.o 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e no artigo 48.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais, confere aos particulares direitos cujo respeito é garantido pelo juiz da União (Acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de outubro de 2006, Tillack/Comissão, T‑193/04, EU:T:2006:292, n.o 121; de 8 de julho de 2008, Franchet e Byk/Comissão, T‑48/05, EU:T:2008:257, n.o 209; e de 12 de julho de 2012, Comissão/Nanopoulos, T‑308/10 P, EU:T:2012:370, n.o 90).

92      Este princípio, que faz parte dos direitos fundamentais (Acórdãos de 8 de julho de 1999, Montecatini/Comissão, C‑235/92 P, EU:C:1999:362, n.o 175, e de 4 de outubro de 2006, Tillack/Comissão, T‑193/04, EU:T:2006:292, n.o 121), sendo eles próprios, segundo a jurisprudência, princípios gerais do direito da União (Acórdão de 27 de setembro de 2006, Dresdner Bank e o./Comissão, T‑44/02 OP, T‑54/05 OP, T‑56/02 OP, T‑60/02 OP e T‑61/02 OP, EU:T:2006:271, n.o 61), é aplicável aos procedimentos administrativos, tendo em conta a natureza do incumprimento em causa e a natureza e grau de severidade das medidas correspondentes (v., em matéria de concorrência, Acórdãos de 8 de julho de 2004, JFE Engineering/Comissão, T‑67/00, T‑68/00, T‑71/00 e T‑78/00, EU:T:2004:221, n.o 178; de 27 de setembro de 2006, Dresdner Bank e o./Comissão, T‑44/02 OP, T‑54/05 OP, T‑56/02 OP, T‑60/02 OP e T‑61/02 OP, EU:T:2006:271, n.o 61; e de 5 de outubro de 2011, Romana Tabacchi/Comissão, T‑11/06, EU:T:2011:560, n.o 129). Daqui decorre que o direito à presunção de inocência aplica‑se, mesmo não havendo processo penal, ao funcionário acusado do incumprimento de obrigações estatutárias suficientemente grave para justificar um inquérito do OLAF, em resultado do qual a administração poderá adotar as medidas, se necessário severas, que se imponham (Acórdãos de 28 de março de 2012, BD/Comissão, F‑36/11, EU:F:2012:49, n.o 51, e de 29 de abril de 2015, CJ/ECDC, F‑159/12 e F‑161/12, EU:F:2015:38, n.o 154).

93      No caso em apreço, ao indeferir o pedido do demandante de assunção das despesas de defesa efetuadas no âmbito do processo penal nacional devido, em substância, à subsistência de interesses antagónicos com este último, a Comissão violou o direito à presunção de inocência do demandante.

94      Quanto ao argumento da Comissão, aduzido na audiência, de que, no momento da adoção da decisão impugnada, o conflito de interesses subsistia legitimamente, dado que a decisão de encerrar o «processo» disciplinar só foi adotada alguns dias mais tarde, em 10 de abril de 2017, o mesmo deve ser rejeitado, pelas seguintes razões.

95      Em primeiro lugar, a existência, nos termos vagos utilizados pela Comissão, de um «processo» disciplinar aberto contra o demandante na data da decisão impugnada não só não está demonstrada como é desmentida. Com efeito, não se afigura que a abertura do processo CMS 04/002 em janeiro de 2004, na sequência de um pedido de levantamento da imunidade de jurisdição do demandante, constituísse a abertura de um processo disciplinar ou de uma investigação administrativa contra o demandante. Além disso, e de qualquer forma, o processo CMS 04/002 foi retirado da lista CMS [«Case Management System» (sistema de gestão de processos) em 2010 e, posteriormente, destruído em 2012, no termo do prazo de conservação dos arquivos.

96      Em seguida, e em todo o caso, mesmo admitindo que existisse um processo em curso contra o demandante à data da decisão impugnada, a Comissão não podia, sem culpa da sua parte, indeferir o segundo pedido de assistência com fundamento na sua opinião incriminatória, e posteriormente pôr termo a esse pretenso processo alguns dias mais tarde, uma vez que o objeto do processo era precisamente confirmar ou infirmar essa opinião.

97      Por último, e na medida em que o argumento da Comissão sugere que a presunção de inocência aproveitou ao demandante apenas na data do encerramento do pretenso processo, há que observar, a propósito, por um lado, que o funcionário beneficia da presunção de inocência em qualquer fase anterior à adoção de uma decisão que declara a existência de culpa e, por outro, que, na fase do processo no Tribunal Geral, a Comissão continuou, na realidade, a desrespeitar a presunção de inocência do demandante ao alegar, na contestação, que «o arquivamento por razões de oportunidade do processo disciplinar não [eliminara] os interesses antagónicos entre as partes».

98      Em conclusão das considerações expostas, das quais resulta que a decisão impugnada se baseia na violação da presunção de inocência, há que anular essa decisão, recordando‑se que incumbe à Comissão tomar as medidas necessárias à execução do acórdão.

 Quanto às despesas

99      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Nos termos do artigo 134.o, n.o 2, do mesmo regulamento, se forem várias as partes vencidas, o Tribunal Geral decide sobre a repartição das despesas.

100    Tendo a Comissão sido vencida no essencial, há que a condenar nas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

1)      Os pedidos de indemnização são julgados improcedentes.

2)      A decisão da Comissão Europeia de 28 de março de 2017 de indeferimento do pedido de assistência de Amador Rodríguez Prieto é anulada.

3)      A Comissão é condenada a suportar as suas próprias despesas e as despesas efetuadas por A. Rodríguez Prieto.

Collins

Barents

Passer

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 4 de abril de 2019.

O Secretário

 

O Presidente

E. Coulon

 

      A. M. Collins


*      Língua do processo: francês.