Language of document : ECLI:EU:C:2020:1040

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

17 de dezembro de 2020 (*)

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Artigo 3.o, ponto 10 — Artigo 5.o, n.o 2 — Dispositivo manipulador — Veículos a motor — Motores diesel — Emissão de poluentes — Programa que atua sobre o calculador do controlo motor — Tecnologias e estratégias que permitem limitar a produção das emissões de poluentes»

No processo C‑693/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, por juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris, França), por Decisão de 26 de outubro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de outubro de 2018, no processo penal contra

X,

sendo intervenientes:

CLCV e o.,

A e o.,

B,

AGLP e o.,

C e o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz e P. G. Xuereb (relator), juízes,

advogado‑geral: E. Sharpston,

secretário: V. Giacobbo, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 7 de novembro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de X, por D. Lecat, P. Benson, J. Philippe, avocats, e R. B. A. Wollenschläger, Rechtsanwalt,

–        em representação de A e o., por C. Constantin‑Vallet, avocat,

–        em representação de B, por P. Peuvrel e X. Leuck, avocats,

–        em representação de AGLP e o., por F. Sartre, avocat,

–        em representação de C e o., por J. Bensaid e F. Verdier, avocats,

–        em representação do Governo francês, inicialmente, por D. Colas, J. Traband, E. Leclerc e A.‑L. Desjonquères, e, posteriormente, por J. Traband, E. Leclerc e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Palatiello e P. Pucciariello, avvocati dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por J.‑F. Brakeland, M. Huttunen e A. C. Becker, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 30 de abril de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, ponto 10, e do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra a sociedade X, fabricante de automóveis, por ter colocado no mercado francês veículos a motor equipados com um programa informático que pode alterar o sistema de controlo das emissões de gases poluentes em função das condições de condução que detetou.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        O Regulamento n.o 83 da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas (UNECE) — Prescrições uniformes relativas à homologação de veículos no que respeita à emissão de poluentes em conformidade com as exigências do motor em matéria de combustível (JO 2006, L 375, p. 242), define requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor.

4        O ponto 2.16 do referido regulamento enuncia:

«Para efeitos do disposto no presente regulamento, entende‑se por:

[…]

2.16.      “Dispositivo manipulador” (defeat device), qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à rotação do motor, às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normal do veículo. Esse elemento não será considerado como dispositivo manipulador se:

2.16.1.      se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo; ou

2.16.2.      se esse dispositivo não funcionar para além do necessário ao arranque do motor; ou

2.16.3.      se as condições estiverem substancialmente incluídas nos processos de ensaio de Tipo I ou de Tipo VI.»

5        Resulta do ponto 7.3.1.2 do Regulamento n.o 83 UNECE que a recirculação dos gases de escape [Exhaust Gas Recirculation (EGR)] figura entre os parâmetros do sistema antipoluição.

 Direito da União

 Decisão 97/836/CE

6        Em aplicação do artigo 1.o da Decisão 97/836/CE do Conselho, de 27 de novembro de 1997, relativa à adesão da Comunidade Europeia ao Acordo da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas relativo à adoção de prescrições técnicas uniformes aplicáveis aos veículos de rodas, aos equipamentos e às peças suscetíveis de serem montados ou utilizados num veículo de rodas e às condições de reconhecimento recíproco das homologações emitidas em conformidade com essas prescrições («acordo de 1958 revisto») (JO 1997, L 346, p. 78), a Comunidade Europeia aderiu a este acordo.

7        Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, desta decisão:

«Em conformidade com o n.o 5 do artigo 1.o do [acordo de 1958 revisto], a Comunidade declarará limitar a sua adesão à aplicação dos regulamentos da UNECE cuja lista figura no anexo II da presente decisão.»

8        Entre os regulamentos UNECE enumerados nesse anexo II figura o Regulamento n.o 83 UNECE.

 DiretivaQuadro

9        Nos termos do considerando 11 da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (JO 2007, L 263, p. 1), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1060/2008 da Comissão, de 7 de outubro de 2008 (JO 2008, L 292, p. 1) (a seguir «Diretiva‑Quadro»):

«[…] os novos regulamentos da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (UNECE) a que a Comunidade adira nos termos daquela decisão e as alterações dos regulamentos UNECE a que a Comunidade já tenha aderido deverão ser incorporados no procedimento de homologação comunitária, quer como requisitos para a homologação CE de veículos, quer como alternativas à legislação comunitária em vigor. […]»

10      O artigo 34.o, n.o 1, desta Diretiva‑Quadro prevê:

«Os regulamentos UNECE a que a Comunidade aderiu, enumerados na parte I do anexo IV e no anexo XI, constituem parte integrante do regime de homologação CE de veículos, nos mesmos termos que as diretivas e regulamentos específicos. Os regulamentos UNECE são aplicáveis às categorias de veículos indicadas nas colunas correspondentes, no quadro da parte I do anexo IV e no quadro do anexo XI.»

11      O artigo 35.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da referida Diretiva‑Quadro dispõe:

«Os regulamentos UNECE enumerados na parte II do anexo IV são reconhecidos como equivalentes às diretivas ou regulamentos específicos correspondentes na medida em que tenham o mesmo âmbito de aplicação e objeto.»

12      O Regulamento n.o 83 UNECE figura no anexo IV da Diretiva‑Quadro.

 Regulamento n.o 715/2007

13      Nos termos dos considerandos 1 e 4 a 6 do Regulamento n.o 715/2007:

«(1)      […] Os requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões deverão […] ser harmonizados a fim de evitar que os Estados‑Membros apliquem requisitos divergentes e de assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

[…]

(4)      […] novas reduções das emissões procedentes do setor dos transportes (aéreos, marítimos e rodoviários), dos agregados familiares e dos setores energético, agrícola e industrial para se atingirem os objetivos da UE em matéria de qualidade do ar. […]

(5)      Para atingir os objetivos da UE em matéria de qualidade do ar, é necessário um esforço contínuo de redução das emissões dos veículos. […]

(6)      A fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite de poluição atmosférica, afigura‑se, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões de óxido de azoto dos veículos equipados com motor diesel. […]»

14      O artigo 3.o, pontos 6 e 10, desse regulamento, prevê:

«Para efeitos do presente regulamento e das respetivas medidas de execução, entende‑se por:

[…]

6)      “Emissões pelo tubo de escape”, a emissão de gases e partículas poluentes.

[…]

10)      “Dispositivo manipulador” (defeat device), qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo.»

15      O artigo 4.o, n.os 1 e 2, do referido regulamento enuncia:

«1.      Os fabricantes devem demonstrar que todos os novos veículos vendidos, matriculados ou postos em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução. Os fabricantes devem igualmente demonstrar que todos os novos dispositivos de controlo da poluição de substituição sujeitos a homologação e que sejam vendidos ou entrem em circulação na Comunidade estão homologados em conformidade com o disposto no presente regulamento e respetivas medidas de execução.

Estas obrigações abrangem a observância dos limites de emissão definidos no anexo I e das medidas de execução referidas no artigo 5.o

2.      Os fabricantes devem garantir que sejam respeitados os procedimentos de homologação destinados a verificar a conformidade da produção, a durabilidade dos dispositivos de controlo da poluição e a conformidade em circulação.

Além disso, as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir que as emissões do tubo de escape e resultantes da evaporação sejam eficazmente limitadas, nos termos do presente regulamento, ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais. […]

[…]»

16      O artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007 prevê:

«1.      O fabricante deve equipar os veículos de forma a que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados de modo a permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução.

2.      A utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. A proibição não se aplica:

a)      Se se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo;

b)      Se esse dispositivo não funcionar para além do necessário ao arranque do motor;

ou

c)      Se as condições estiverem substancialmente incluídas nos processos de ensaio para verificação das emissões por evaporação e da média das emissões pelo tubo de escape.»

17      O anexo I deste regulamento, intitulado «Limites de emissão», prevê, nomeadamente, os valores limite de emissão de óxido de azoto.

 Regulamento n.o 692/2008

18      O artigo 1.o do Regulamento (CE) n.o 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008, que executa e altera o Regulamento n.o 715/2007 (JO 2008, L 199, p. 1), prevê:

«O presente regulamento institui medidas de aplicação dos artigos 4.o, 5.o e 8.o do Regulamento (CE) n.o 715/2007.»

19      Nos termos do artigo 2.o, ponto 18, do Regulamento n.o 692/2008:

«Para efeitos do disposto no presente regulamento, entende‑se por:

[…]

18.      “Sistema de controlo das emissões”, no contexto do sistema OBD [sistemas de diagnóstico a bordo], o sistema eletrónico de controlo responsável pela gestão do motor e qualquer componente do sistema de escape ou do sistema de evaporação relacionado com as emissões que envie ou receba sinais a esse/ou desse sistema de controlo.»

20      O anexo III do referido regulamento, intitulado «Verificação das emissões médias a condições ambientes (Ensaio do tipo 1)», dispõe:

«1.      Introdução

O presente anexo descreve o método a usar para o ensaio do tipo 1 que verifica as emissões médias a condições ambientes.

[…]»

21      O anexo XI do Regulamento n.o 692/2008, intitulado «Sistemas de diagnóstico a bordo (OBD) para os veículos a motor», prevê, no seu apêndice 2, relativo às «[c]aracterísticas essenciais da família de veículos»:

«[…]

Sistema de controlo das emissões:

[…]

–        recirculação dos gases de escape (com ou sem recirculação).

[…]»

 Direito francês

22      O artigo L. 213‑1 do code de la consommation (Código do Consumo) na sua versão aplicável até 18 de março de 2014, prevê:

«Quem, sendo ou não parte no contrato, enganar ou tentar enganar o outro contraente, por qualquer meio ou procedimento, mesmo por intermédio de terceiro, é punido com uma pena até dois anos de prisão e/ou com pena de multa até 35 000 euros, quando o engano incida sobre:

1°      a natureza, o tipo, a origem, as qualidades substanciais, a composição ou o teor dos princípios úteis dos produtos;

2°      a quantidade das coisas entregues ou a sua identidade mediante a entrega de produto diferente da coisa determinada que foi objeto do contrato; ou

3°      a sua aptidão para o uso, os riscos inerentes à utilização do produto, os controlos efetuados, o modo de utilização ou as precauções a tomar.»

23      O artigo L. 213‑1 deste código, na sua versão aplicável de 19 de março de 2014 a 30 de junho de 2016, dispõe:

«Quem, sendo ou não parte no contrato, enganar ou tentar enganar o outro contraente, por qualquer meio ou procedimento, mesmo por intermédio de terceiro, é punido com uma pena até dois anos de prisão e/ou com pena de multa até 300 000 euros, quando o engano incida sobre:

1°      a natureza, o tipo, a origem, as qualidades substanciais, a composição ou o teor dos princípios úteis dos produtos;

2°      a quantidade das coisas entregues ou a sua identidade mediante a entrega de produto diferente da coisa determinada que foi objeto do contrato; ou

3°      a sua aptidão para o uso, os riscos inerentes à utilização do produto, os controlos efetuados, o modo de utilização ou as precauções a tomar.

O montante da multa pode ser elevado, proporcionalmente à vantagem obtida com o incumprimento, a 10 % do volume de negócios médio anual, calculado com base no volume de negócios dos últimos três anos, conhecido à data dos factos.»

24      O artigo L. 213‑2 do referido código, na sua versão aplicável até 18 de março de 2014, enuncia:

«As penas previstas no artigo L. 213‑1 são elevadas ao dobro:

1°      Se os crimes previstos nesse artigo tiverem tido por consequência tornar perigosa para a saúde humana ou animal a utilização do produto;

2°      Se o crime ou a sua tentativa, previstos no artigo L. 213‑1, tiverem sido cometidos:

a)      mediante a utilização de pesos, medidas ou outros instrumentos falsos ou mal aferidos;

b)      mediante a utilização de manobras ou de procedimentos destinados a falsear as operações de análise ou de dosagem, pesagem ou medição, ou destinados a alterar fraudulentamente a composição, o peso ou o volume dos produtos, ainda que antes dessas operações; ou

c)      mediante o uso de indicações fraudulentas destinadas a persuadir no sentido da existência de uma operação anterior e exata.»

25      O artigo L. 213‑2 do mesmo código, na sua versão aplicável de 19 de março de 2014 a 30 de junho de 2016, prevê:

«I.‑      As penas previstas no artigo L. 213‑1 são elevadas para cinco anos de prisão e 600 000 euros de multa se o crime ou a sua tentativa, previstos nesse mesmo artigo, tiverem sido cometidos:

1°      mediante a utilização de pesos, medidas ou outros instrumentos falsos ou mal aferidos;

2°      mediante a utilização de manobras ou de procedimentos destinados a falsear as operações de análise ou de dosagem, pesagem ou medição, ou destinados a alterar fraudulentamente a composição, o peso ou o volume dos produtos, ainda que antes dessas operações; ou

3°      mediante o uso de indicações fraudulentas destinadas a persuadir no sentido da existência de uma operação anterior e exata.

II.‑      As penas previstas no artigo L. 213‑1 são elevadas para sete anos de prisão e 750 000 euros de multa se o crime ou a sua tentativa, previstos nesse mesmo artigo:

1°      tiverem tido por consequência tornar perigosa para a saúde humana ou animal a utilização do produto;

2°      tiverem sido cometidos em associação criminosa.

III.‑      O montante das penas de multa previstas neste artigo pode ser elevado, proporcionalmente à vantagem obtida com o incumprimento, a 10 % do volume de negócios médio anual, calculado com base no volume de negócios dos últimos três anos, conhecido à data dos factos.»

26      Nos termos do artigo L. 213‑6 do Código do Consumo:

«As pessoas coletivas penalmente responsáveis, nos termos previstos no artigo 121‑2 do code pénal (Código Penal), pelos crimes definidos nos artigos L. 213‑1 a L. 213‑4 incorrem, além da multa calculada nos termos do artigo 131‑38 do Código Penal, nas penas previstas nos pontos 2° a 9° do artigo 131‑39 do mesmo código.

A proibição mencionada no ponto 2° do artigo 131‑39 do Código Penal incide sobre a atividade no exercício da qual ou por ocasião do exercício da qual o crime foi cometido.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

27      A sociedade X é uma fabricante de automóveis que comercializa veículos a motor no território francês. Resulta da decisão de reenvio que esta sociedade é acusada de ter colocado em circulação veículos equipados com um programa informático que podia detetar a fase de homologação desses veículos a fim de falsear os resultados dos controlos de emissões de gases poluentes, nomeadamente de óxido de azoto (NOx), efetuados durante essa fase.

28      Em 28 de setembro de 2015, na sequência de informações reveladas na imprensa, o vice‑presidente do conseil régional d’Île‑de‑France (Conselho Regional de Île‑de‑France, França), responsável pelos transportes, denunciou ao Procureur de Paris (Procurador de Paris, França) as práticas da sociedade X relativas à colocação no mercado de veículos equipados com esse programa informático.

29      Em 2 de outubro de 2015, o parquet de Paris (Procuradoria de Paris, França), considerando que estes factos deviam ser qualificados de «fraude agravada», submeteu ao Office central de lutte contre les atteintes à l’environnement et à la santé publique (serviço central de luta contra os atentados ao ambiente e à saúde pública) um pedido de abertura de um inquérito sobre as condições da colocação em circulação dos veículos em causa no mercado francês.

30      Paralelamente, a ministre française de l’Écologie, du Développement durable et de l’Énergie (ministra francesa da Ecologia, do Desenvolvimento Sustentável e da Energia) pediu ao Service national des enquêtes (SNE) (Serviço Nacional de Investigação) da Direction générale de la concurrence et de la répression des fraudes (Direção‑Geral da Concorrência, do Consumo e do Combate à Fraude) que procedesse a investigações a fim de determinar se os veículos comercializados no território francês estavam equipados com tal programa informático.

31      No âmbito da homologação parcial relativa às emissões de poluentes, os veículos são testados de acordo com um protocolo cujos parâmetros são definidos por via regulamentar, nomeadamente o perfil de velocidade seguido, a temperatura e o pré‑condicionamento do veículo. O perfil de velocidade utilizado para o teste de homologação, denominado «New European Driving Cycle» (NEDC), é realizado em laboratório e consiste na repetição de quatro ciclos urbanos, seguidos de um ciclo extraurbano. Permite, assim, verificar que a quantidade de NOx emitida é inferior ao limite máximo estabelecido no anexo I do Regulamento n.o 715/2007.

32      A válvula de recirculação dos gases de escape (a seguir «válvula EGR») é uma das tecnologias utilizadas pelos fabricantes de automóveis, entre os quais a sociedade X, para controlar e reduzir as emissões de NOx geradas pela combustão incompleta do combustível.

33      Quando é aberta, a válvula EGR permite que os gases de escape passem para o coletor de admissão, para serem queimados uma segunda vez e arrefecidos através de um permutador térmico. É controlada por um calculador de controlo motor, que é o sistema informático incorporado no veículo que comanda eletronicamente as diferentes funções integradas no mesmo, como as relativas à gestão do motor, à transmissão ou à segurança. A abertura da válvula EGR é comandada em tempo real pelo calculador, que envia instruções ao acionador desta válvula em função das informações fornecidas por diferentes sensores, nomeadamente de velocidade, de temperatura do motor ou de temperatura do ar. A eficácia da despoluição está, portanto, associada à abertura desta válvula que é comandada pelo código‑fonte do programa informático integrado no calculador.

34      O SNE anexou ao seu relatório os testes e ensaios efetuados pela Union technique de l’automobile, du motocycle et du cycle (UTAC) (União Técnica do Automóvel, do Motociclo e do Velocípede), que é o único organismo habilitado a realizar os testes de homologação dos veículos em França. Estes testes, cujo objetivo era determinar se se podia presumir a existência de fraude nos testes antipoluição, revelaram que as emissões de NOx de certos veículos da sociedade X controlados, eram multiplicadas por 2, por 3,4 ou por 3,6, consoante os veículos, relativamente aos valores verificados durante o procedimento de homologação desses veículos.

35      Os testes complementares confiados ao Institut français du Pétrole Energies Nouvelles (IFPEN) (Instituto Francês do Petróleo Novas Energias), a pedido do Ministério da Ecologia, do Desenvolvimento Sustentável e da Energia, relativos a três veículos dessa sociedade, permitiram também constatar que o nível das emissões de NOx era reduzido quando era detetada uma fase de homologação, sendo então significativamente aumentada a abertura da válvula EGR.

36      Em 16 de outubro de 2015, o presidente da filial francesa da sociedade X, no âmbito de um interrogatório em liberdade, declarou que não tinha sido informado do mecanismo de funcionamento desse programa informático e do seu caráter fraudulento e precisou que os veículos em que tal programa estava instalado iriam ser objeto de recolha para atualização do referido programa.

37      Em 15 e 18 de dezembro de 2015, a pedido da sociedade X, um escritório de advogados enviou aos investigadores um documento destinado a demonstrar que o sistema EGR não podia ser considerado um «dispositivo manipulador», na aceção do Regulamento n.o 715/2007.

38      Em 19 de fevereiro de 2016, na sequência deste inquérito, o Procurador da República remeteu a acusação a três juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris, França). No despacho de acusação, a sociedade X é acusada de, desde 1 de setembro de 2009, no território francês, ter enganado os adquirentes de veículos com motor diesel de geração Euro 5 e Euro 6 sobre as qualidades essenciais dos referidos veículos, devido à presença de um dispositivo manipulador contrário ao Regulamento n.o 715/2007, e sobre os controlos efetuados, com a circunstância agravante de os factos terem tido como consequência tornar a utilização das mercadorias perigosas para a saúde humana ou animal.

39      Os juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris) ordenaram uma peritagem judicial para proceder a uma análise dos resultados dos testes efetuados pela autoridade administrativa, a saber, testes realizados pela UTAC e pelo IFPEN, e a quaisquer outras análises técnicas, a fim de descrever o mecanismo do programa informático em causa e de explicar os seus efeitos no aumento das emissões de NOx pelos veículos equipados com o mesmo. No seu relatório apresentado em 26 de abril de 2017, o perito considerou que os veículos em causa estavam equipados com um dispositivo que permitia a deteção do procedimento de homologação, a adaptação do funcionamento da recirculação dos gases de escape queimados com vista a essa homologação e a redução, para efeitos desse procedimento, das emissões de NOx. Considerou que os seus sistemas de controlo das emissões tinham sido manipulados a fim de aumentar a abertura da válvula EGR quando era detetada uma fase de homologação. A diminuição da abertura dessa válvula em condições normais de utilização dos veículos reduzia a eficácia do sistema de controlo das emissões e traduzia‑se num aumento das emissões de NOx.

40      Segundo o perito, se o funcionamento da válvula EGR em condições normais de utilização tivesse sido idêntico ao funcionamento constatado durante os procedimentos de homologação, os veículos em causa teriam produzido muito menos NOx, o seu consumo e a sua potência teriam sido reduzidos e as operações de manutenção teriam sido mais frequentes e mais onerosas. Graças à manipulação efetuada, os veículos tinham maior capacidade de aceleração, maior potência, menor acumulação de sujidade nos coletores de admissão, nas válvulas e na câmara de combustão, o que contribuía para a longevidade e a fiabilidade do motor. Assim, sem essa manipulação, os veículos em causa não teriam sido homologados.

41      Em 28 de março de 2017, a sociedade X foi convocada para comparecer perante os juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris). Beneficiando do estatuto de témoin assisté (testemunha assistida), recusou responder às questões que lhe foram colocadas. As autoridades judiciárias do Estado‑Membro da sede social da sociedade X recusaram igualmente transmitir os elementos do inquérito solicitados pelos juízes de instrução. Por outro lado, constituíram‑se partes civis mais de 1 200 pessoas no âmbito desta instrução.

42      Os juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris) explicam que, uma vez que os dispositivos que permitem atuar sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões dos veículos podem revestir diferentes formas, importava precisar o que abrange o conceito de «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, dado que esta disposição define este conceito recorrendo a vários conceitos que ainda não foram objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça.

43      Uma vez que a qualificação de «fraude», prevista no âmbito da instrução penal em causa no processo principal, assenta na qualificação de «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, e do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, os juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris) consideram que é necessário interpretar as referidas disposições para tomar uma decisão tanto sobre a eventual constituição de arguida da sociedade X como sobre a remessa ou não dos autos para julgamento no termo da instrução.

44      Nestas circunstâncias, os juízes de instrução do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris) decidiram suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Interpretação do conceito de “elemento”

a)      O que abrange o conceito de “elemento”, previsto no artigo 3.o, [ponto 10], do Regulamento n.o 715/2007, que define o dispositivo manipulador (defeat device)?

b)      Pode um programa integrado no calculador do controlo motor ou, de modo mais geral, que atua sobre este, ser considerado um “elemento” na aceção deste artigo?

2)      Interpretação do conceito de “sistema de controlo das emissões”

a)      O que abrange o conceito de “sistema de controlo das emissões” previsto no artigo 3.o, [ponto 10], do Regulamento n.o 715/2007, que define o dispositivo manipulador (defeat device)?

b)      Este “sistema de controlo das emissões” inclui apenas as tecnologias e estratégias que visam tratar e reduzir as emissões (nomeadamente [de] NOx) após a sua formação, ou integra igualmente as diferentes tecnologias e estratégias que permitam limitar na origem a produção das emissões, tais como a tecnologia EGR?

3)      Interpretação do conceito de “dispositivo manipulador” (defeat device)

a)      Configura um “dispositivo manipulador”, na aceção do artigo 3.o, [ponto 10], do Regulamento n.o 715/2007, um dispositivo que deteta qualquer parâmetro relacionado com o desenrolar dos procedimentos de homologação previstos pelo [Regulamento n.o 715/2007], a fim de ativar ou potenciar, durante esses procedimentos, o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, e, assim, obter a homologação do veículo?

b)      Em caso de resposta afirmativa, este dispositivo manipulador é proibido nos termos do disposto no artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007?

c)      Pode um dispositivo como o descrito na terceira questão, alínea a), ser qualificado de “dispositivo manipulador” se a ativação reforçada do sistema de controlo das emissões for efetiva, não só durante os procedimentos de homologação, mas também de forma pontual, sempre que as condições exatas detetadas para potenciar o sistema de controlo das emissões durante os procedimentos de homologação se reúnam em circulação real?

4)      Interpretação das exceções previstas no artigo 5.o [do Regulamento n.o 715/2007]

a)      O que abrangem as três exceções previstas no artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007]?

b)      A proibição do dispositivo manipulador que ativa ou potencia o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, especificamente, durante os procedimentos de homologação, pode ser excluída por um dos três fundamentos elencados no artigo 5.o, n.o 2 [deste regulamento]?

c)      O retardar do envelhecimento do motor ou da acumulação de sujidade no mesmo faz parte dos imperativos para “proteger o motor de danos ou acidentes” ou “para garantir um funcionamento seguro do veículo” que podem justificar a presença de um dispositivo manipulador na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), [do referido regulamento]?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

45      A sociedade X invoca a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial pelo facto de, em primeiro lugar, não ser necessária uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas para que o órgão jurisdicional de reenvio se possa pronunciar no processo principal. A este respeito, alega que tal resposta não é suscetível de influenciar a caracterização dos elementos constitutivos do crime de fraude agravada, que lhe é imputado, no direito penal francês.

46      Em segundo lugar, a sociedade X considera que o facto de fazer depender a caracterização da infração da interpretação do Regulamento n.o 715/2007 viola o princípio da legalidade dos crimes e das penas.

47      Em terceiro lugar, a sociedade X sustenta que não existe, nesta fase, nenhum litígio perante o órgão jurisdicional de reenvio relacionado com as questões submetidas, pelo que estas últimas são puramente hipotéticas. Uma vez que não tomou posição sobre essas questões, estas mais não são do que um mero pedido de opinião consultiva sobre regras de direito da União.

48      Em quarto lugar, as questões submetidas não foram objeto de debate contraditório, o que viola o princípio da boa administração da justiça.

49      Em quinto lugar, ainda que as questões submetidas reflitam o raciocínio do órgão jurisdicional de reenvio, a sociedade X considera que a decisão de reenvio não expõe com a clareza necessária as razões pelas quais esse órgão jurisdicional considera que a interpretação das disposições do Regulamento n.o 715/2007 é útil para a resolução do litígio no processo principal, nem o nexo que existe entre essa interpretação e esse litígio. A este respeito, a referida sociedade precisou igualmente que as questões prejudiciais tinham sido submetidas de forma prematura, uma vez que, nesta fase do inquérito, o quadro factual ainda não tinha sido determinado com suficiente precisão.

50      Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 25 e jurisprudência referida].

51      Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 26 e jurisprudência referida].

52      No caso em apreço, importa observar, antes de mais, que a decisão de reenvio contém uma exposição fundamentada do quadro jurídico e factual do litígio no processo principal bem como das razões pelas quais o órgão jurisdicional de reenvio considerou que a resposta às questões submetidas nesse litígio é necessária para proferir a sua decisão.

53      Resulta igualmente da decisão de reenvio que a qualificação de «fraude agravada», prevista no direito nacional, para factos como os imputados à sociedade X, depende da questão de saber se o programa informático em causa no processo principal pode ser considerado um «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, cuja utilização é proibida por força do artigo 5.o, n.o 2, desse regulamento.

54      Nestas circunstâncias, não se pode considerar que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal.

55      Seguidamente, no que respeita à constatação dos elementos constitutivos do crime de fraude agravada no direito penal francês, há que recordar que, na medida em que, no âmbito de um processo previsto no artigo 267.o TFUE, a interpretação do direito nacional e o exame dos requisitos nele previstos são da exclusiva competência do órgão jurisdicional de reenvio (Acórdão de 13 de novembro de 2018, Čepelnik, C‑33/17, EU:C:2018:896, n.o 24 e jurisprudência referida), a argumentação apresentada pela sociedade X quanto a este aspeto não basta para ilidir a presunção de pertinência evocada no n.o 51 do presente acórdão.

56      O mesmo se aplica à argumentação da sociedade X relativa ao princípio da legalidade dos crimes e das penas. Com efeito, o Regulamento n.o 715/2007 não institui sanções penais, pelo que este princípio não é pertinente para efeitos da apreciação da admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial.

57      Por último, não pode ser acolhida a argumentação da sociedade X segundo a qual as questões prejudiciais submetidas não foram objeto de debate contraditório, uma vez que o artigo 267.o TFUE não subordina o recurso ao Tribunal de Justiça ao caráter contraditório do processo no órgão jurisdicional de reenvio [Acórdão de 16 de julho de 2020, Governo della Repubblica italiana (Estatuto dos juízes de paz italianos), C‑658/18, EU:C:2020:572, n.o 63].

58      Por conseguinte, o pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto ao mérito

 Quanto à primeira questão

59      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «elemento», na aceção desta disposição, um programa informático integrado no calculador do controlo motor ou que atua sobre este.

60      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 define o «dispositivo manipulador» como «qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».

61      Resulta desta disposição que a mesma não define o conceito de «elemento».

62      A este respeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito da União não forneça nenhuma definição deve fazer‑se de acordo com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte (Acórdão de 1 de outubro de 2020, Entoma, C‑526/19, EU:C:2020:769, n.o 29).

63      Em primeiro lugar, há que salientar que a expressão «elemento» designa, no seu sentido habitual, um objeto fabricado com vista à sua integração num conjunto funcional.

64      Em segundo lugar, resulta do artigo 3.o, ponto 10, deste regulamento que o conceito de dispositivo manipulador visado nesta disposição designa «qualquer» elemento. A este respeito, à semelhança do Governo francês e da Comissão, há que considerar que essa definição de dispositivo manipulador confere, portanto, um amplo alcance ao conceito de «elemento», que abrange tanto as peças mecânicas como os elementos eletrónicos que comandam a ativação de tais peças, desde que atuem sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduzam a sua eficácia.

65      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a abertura da válvula EGR é comandada em tempo real por um dos calculadores do controlo motor que constitui um sistema informático incorporado no veículo. Assim, em função das informações fornecidas por diferentes sensores, nomeadamente de velocidade ou de temperatura do motor, esse calculador envia instruções ao acionador da válvula EGR. A eficácia da despoluição está associada à abertura desta válvula, que é comandada pelo código‑fonte do programa informático integrado no calculador.

66      Por conseguinte, uma vez que atua sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduz a sua eficácia, um programa informático, como o que está em causa no processo principal, integrado no calculador do controlo motor, constitui um «elemento», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007.

67      Esta interpretação ampla do conceito de «elemento» é corroborada pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste, como resulta do seu considerando 6, em reduzir consideravelmente as emissões de NOx dos veículos equipados com motor diesel, a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite de poluição.

68      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «elemento», na aceção desta disposição, um programa informático integrado no calculador do controlo motor ou que atue sobre este, desde que atue sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduza a sua eficácia.

 Quanto à segunda questão

69      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «sistema de controlo das emissões», na aceção desta disposição, abrange apenas as tecnologias e a estratégia dita «de pós‑tratamento dos gases de escape», que reduzem as emissões a jusante, ou seja, depois da sua formação, ou de que inclui também as que, à semelhança do sistema EGR, reduzem as emissões a montante, ou seja, durante a sua formação.

70      A título preliminar, importa recordar que existem duas estratégias que podem ser aplicadas pelos fabricantes nos seus veículos com motores diesel, a fim de reduzir as emissões poluentes. Por um lado, a estratégia dita «interna do motor», como o sistema EGR), que consiste em reduzir a formação de poluentes no próprio motor, e, por outro, a estratégia dita de «pós‑tratamento dos gases de escape», que consiste em tratar as emissões dos gases de escape após a sua formação.

71      O Regulamento n.o 715/2007 não define, enquanto tal, o conceito de «sistema de controlo das emissões», mas recorda, no seu preâmbulo, que, tendo em conta o objetivo de redução das emissões por ele visado, é necessário prever dispositivos destinados a medir e, portanto, a controlar as emissões durante a utilização de um veículo.

72      Segundo a jurisprudência recordada no n.o 62 do presente acórdão, a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito da União não forneça nenhuma definição deve fazer‑se de acordo com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte.

73      Antes de mais, há que salientar que, no plano literal, o sistema de controlo das emissões constitui um componente de um veículo que tem por objetivo controlar as suas emissões.

74      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que o sistema EGR é um dispositivo que tem por único objetivo reduzir, e, portanto, controlar, as emissões de NOx. Por conseguinte, não se pode deduzir do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 que esse dispositivo não pode, tecnicamente, fazer parte do sistema de controlo das emissões, uma vez que permite controlar o volume de emissão de NOx em função de parâmetros preestabelecidos.

75      Além disso, esta interpretação é confirmada pelo contexto em que se inscreve o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007. Esta disposição, que figura no capítulo I do referido regulamento, consagrado ao objeto, ao âmbito de aplicação e às definições do mesmo, deve ser examinada à luz das diferentes disposições deste regulamento bem como do quadro regulamentar da homologação dos veículos a motor na União Europeia em que este regulamento se insere.

76      A este respeito, há que recordar que o anexo IV, parte I, da Diretiva‑Quadro enumera os atos legislativos que estabelecem os requisitos materiais que devem estar preenchidos para que seja concedida a homologação de um veículo a motor. O Regulamento n.o 715/2007 figura nesse anexo e prevê, no seu artigo 5.o, que o fabricante deve equipar os veículos de modo que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados, a fim de permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução. No que respeita ao controlo das emissões, este artigo impõe requisitos técnicos específicos, que foram estabelecidos pelo Regulamento n.o 692/2008. Este último regulamento remete, por sua vez, no que respeita a determinados requisitos técnicos relativos à homologação de modelos de veículos, para o Regulamento n.o 83 UNECE.

77      No que respeita, em primeiro lugar, ao Regulamento n.o 715/2007, o seu artigo 4.o, n.o 2, prevê que as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir que, nomeadamente, as emissões do tubo de escape sejam eficazmente limitadas ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais. A este respeito, o artigo 3.o, ponto 6, desse regulamento define o conceito de «emissões pelo tubo de escape» como «a emissão de gases e partículas poluentes».

78      Estas disposições fixam, portanto, apenas o objetivo que deve ser alcançado pelos fabricantes, a saber, limitar as emissões pelo tubo de escape, sem precisar os meios necessários para o atingir.

79      Por conseguinte, o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, examinado à luz das outras disposições deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «sistema de controlo das emissões» não exclui as tecnologias e a estratégia que reduzem as emissões a montante, a saber, durante a sua formação.

80      Em segundo lugar, há que salientar que o Regulamento n.o 83 UNECE, e nomeadamente o seu ponto 2.16, se refere igualmente ao conceito de «sistema de controlo das emissões», sem precisar, contudo, se este conceito remete para as medidas adotadas para tratar as emissões após a sua formação ou para as destinadas a limitar tal formação.

81      Com efeito, a referida disposição define o «dispositivo manipulador» em termos comparáveis aos do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007. Por conseguinte, não se pode deduzir desse ponto 2.16 que o «sistema de controlo das emissões», na aceção desta disposição, abrange apenas as tecnologias e a estratégia que reduzem as emissões de gases de escape após a sua formação e não as destinadas a limitar tal formação.

82      Além disso, o ponto 7.3.1.2 do Regulamento n.o 83 UNECE, intitulado «Sistema de controlo da poluição», indica que o sistema EGR é um desses parâmetros. Resulta, assim, destas disposições que o sistema EGR é abrangido pelo conceito de «sistema de controlo das emissões».

83      Em terceiro lugar, embora o Regulamento n.o 692/2008, no seu artigo 2.o, ponto 18, defina o «sistema de controlo das emissões» como sendo, «no contexto do sistema OBD, o sistema eletrónico de controlo responsável pela gestão do motor e qualquer componente do sistema de escape ou do sistema de evaporação relacionado com as emissões que envie ou receba sinais a esse/ou desse sistema de controlo» e embora este mesmo regulamento contenha numerosas disposições relativas aos diferentes sistemas de tratamento das emissões situadas no sistema de escape dos veículos e os qualifique de «sistemas de controlo de emissões», enumera igualmente, sob essa mesma qualificação, sistemas internos do motor destinados a limitar a formação das emissões. Deste modo, o apêndice 2 do anexo XI do referido regulamento inclui expressamente a recirculação dos gases de escape na lista dos sistemas de controlo das emissões. Ora, é esse o objeto do sistema EGR.

84      Por outro lado, importa recordar que, nos procedimentos de homologação de veículos a motor, o nível das emissões é sempre medido à saída do tubo de escape, como resulta do anexo 3 do Regulamento n.o 692/2008. Assim, não se pode fazer uma diferenciação entre a estratégia que reduz as emissões de gases de escape após a sua formação e a destinada a limitar tal formação.

85      Resulta, assim, do contexto do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 que o conceito de «sistema de controlo das emissões» abrange tanto as tecnologias e a estratégia interna do motor dos veículos destinadas a reduzir as emissões após a sua formação como as destinadas a limitar tal formação.

86      Por último, esta interpretação é igualmente corroborada pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

87      Com efeito, como se refere no considerando 1 do Regulamento n.o 715/2007, os requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões deverão ser harmonizados, nomeadamente, para garantir esse objetivo. Por outro lado, o considerando 5 deste regulamento indica que, para atingir os objetivos da União em matéria de qualidade do ar, é necessário um esforço contínuo de redução das emissões dos veículos. O seu considerando 6 precisa que, a fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite de poluição atmosférica, se afigura, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões de NOx dos veículos equipados com motor diesel.

88      O artigo 4.o do Regulamento n.o 715/2007 impõe ao fabricante que demonstre que as medidas técnicas que adotou garantem que as emissões, nomeadamente, do tubo de escape sejam eficazmente limitadas, ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais.

89      Por conseguinte, a interpretação do conceito de «sistema de controlo das emissões» que figura no artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, segundo a qual este conceito abrange tanto as tecnologias e a estratégia interna do motor dos veículos que visam reduzir as emissões após a sua formação como as destinadas a limitar tal formação, é conforme com o objetivo prosseguido por este regulamento. Com efeito, como a advogada‑geral salientou no n.o 106 das suas conclusões, a limitação do alcance deste conceito apenas às tecnologias e à estratégia que reduzem as emissões de gases de escape após a formação privaria o Regulamento n.o 715/2007 de uma parte considerável do seu efeito útil.

90      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «sistema de controlo das emissões», na aceção desta disposição, abrange tanto as tecnologias e a estratégia dita «de pós‑tratamento dos gases de escape», que reduzem as emissões a jusante, ou seja, depois da sua formação, como as que, à semelhança do sistema EGR, reduzem as emissões a montante, ou seja, durante a sua formação.

 Quanto à terceira questão, alíneas a) e c)

91      Com a sua terceira questão, alíneas a) e c), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «dispositivo manipulador», na aceção desta disposição, um dispositivo que deteta qualquer parâmetro relacionado com o desenrolar dos procedimentos de homologação previstos por esse regulamento, a fim de melhorar o desempenho do sistema de controlo das emissões durante esses procedimentos e obter, assim, a homologação do veículo, ainda que essa melhoria se possa igualmente verificar, de forma pontual, em condições normais de utilização do veículo.

92      Importa recordar que, no âmbito da homologação parcial relativa às emissões de poluentes, os veículos são testados segundo o perfil de velocidade NEDC, que consiste na repetição, em laboratório, de quatro ciclos urbanos seguidos de um ciclo extraurbano. Permite, nomeadamente, verificar se a quantidade de NOx emitida é inferior ao limite previsto no Regulamento n.o 715/2007. Os ciclos de testes para as emissões dos veículos no âmbito deste procedimento não se baseiam nas condições reais de circulação.

93      O programa informático em causa no processo principal permite detetar os parâmetros correspondentes aos dos testes efetuados em laboratório segundo o perfil NEDC e, se for caso disso, aumentar o nível de abertura da válvula EGR para redirecionar uma parte maior dos gases de escape para o coletor de admissão e reduzir, assim, as emissões do veículo testado. Este programa informático permite, portanto, intensificar o funcionamento da válvula EGR para que as emissões respeitem os limites fixados pelo Regulamento n.o 715/2007. Resulta da decisão de reenvio que, quando o referido programa não deteta o perfil NEDC e considera, por essa razão, que o veículo se encontra em condições normais de utilização, verificam‑se emissões de NOx superiores às obtidas na fase de testes que, além disso, não respeitam os limites fixados pelo Regulamento n.o 715/2007.

94      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que essa disposição faz parte (Acórdão de 18 de novembro de 2020, Kaplan International colleges UK, C‑77/19, EU:C:2020:934, n.o 39 e jurisprudência referida).

95      Resulta, antes de mais, da redação do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 que um dispositivo manipulador visa reduzir «a eficácia [do sistema de controlo das emissões] em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo».

96      Por conseguinte, pode deduzir‑se da redação desta disposição que um dispositivo como o sistema EGR em causa no processo principal, instalado para assegurar uma limitação das emissões em conformidade com o Regulamento n.o 715/2007, deve estar operacional tanto durante o período de testes de homologação em laboratório como durante a utilização do veículo em condições normais.

97      No que respeita, seguidamente, ao contexto em que se inscreve o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, resulta do n.o 77 do presente acórdão que, por força do artigo 4.o, n.o 2, desse regulamento, as medidas técnicas adotadas pelos fabricantes deverão ser adequadas para garantir, nomeadamente, que as emissões do tubo de escape sejam eficazmente limitadas ao longo da vida normal dos veículos e em condições de uso normais. Além disso, o artigo 5.o, n.o 1, do referido regulamento prevê que o fabricante deve equipar os veículos de modo que os componentes que afetam as emissões devam permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, os limites de emissões previstos pelo mesmo regulamento e pelas suas medidas de execução.

98      Há que observar que este contexto não revela elementos que permitam fazer uma distinção entre o funcionamento do dispositivo controvertido durante a fase de testes de homologação e durante a condução em condições normais de utilização dos veículos. Com efeito, como a advogada‑geral observou no n.o 124 das suas conclusões, a instalação de um dispositivo cuja única finalidade seja assegurar o respeito dos limites de emissões previstos pelo Regulamento n.o 715/2007 apenas durante a fase dos testes de homologação seria contrária à obrigação de assegurar uma limitação efetiva das emissões em condições normais de utilização do veículo.

99      Por conseguinte, há que adotar uma interpretação do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 segundo a qual constitui um «dispositivo manipulador», na aceção desta disposição, um programa informático, como o que está em causa no processo principal, que altera o nível das emissões dos veículos em função das condições de condução que deteta e só garante o respeito dos limites de emissões quando essas condições correspondem às aplicadas durante os procedimentos de homologação. Tal dispositivo constitui, portanto, um dispositivo manipulador, ainda que a melhoria do desempenho do sistema de controlo das emissões se possa igualmente verificar, de forma pontual, em condições normais de utilização do veículo.

100    Esta interpretação é, por último, corroborada pelo objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 715/2007 que, como resulta dos n.os 86 e 87 do presente acórdão, consiste em reduzir consideravelmente as emissões de NOx e em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

101    Com efeito, o facto de as condições normais de utilização dos veículos poderem excecionalmente, como resulta da decisão de reenvio, corresponder às condições de condução aplicadas durante os procedimentos de homologação, e melhorar assim, de forma pontual, o desempenho do dispositivo em questão, não é relevante para esta interpretação, uma vez que, em condições normais de utilização dos veículos, o objetivo de redução das emissões de NOx não é habitualmente alcançado.

102    Atendendo às considerações precedentes, há que responder à terceira questão, alíneas a) e c), que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «dispositivo manipulador», na aceção desta disposição, um dispositivo que deteta qualquer parâmetro relacionado com o desenrolar dos procedimentos de homologação previstos nesse regulamento, a fim de melhorar o desempenho do sistema de controlo das emissões durante esses procedimentos e obter, assim, a homologação do veículo, ainda que essa melhoria se possa igualmente verificar, de forma pontual, em condições normais de utilização do veículo.

 Quanto à terceira questão, alínea b), e à quarta questão

103    A título preliminar, há que salientar que a terceira questão, alínea b), e a quarta questão dizem respeito a todas as exceções previstas no artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Ora, resulta da decisão de reenvio que as exceções previstas no artigo 5.o, n.o 2, alíneas b) e c), deste regulamento não são pertinentes para efeitos da resolução do litígio no processo principal. Por conseguinte, não é necessário proceder à interpretação das alíneas b) e c) do referido artigo 5.o, n.o 2.

104    Assim, com as referidas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, como o que está em causa no processo principal, que melhora sistematicamente o desempenho do sistema de controlo das emissões dos veículos durante os procedimentos de homologação relativamente ao que se verifica em condições normais de utilização, pode ser abrangido pela exceção à proibição desses dispositivos prevista nesta disposição, quando esse dispositivo contribua para prevenir o envelhecimento do motor ou a acumulação de sujidade no mesmo.

105    Nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, a utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. Todavia, esta proibição admite três exceções, entre as quais a que figura na alínea a) da referida disposição, segundo a qual a proibição não se aplica quando «se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo».

106    Importa observar que os conceitos de «dano» e de «acidente» não são definidos no artigo 5.o do Regulamento n.o 715/2007 nem nos outros artigos do referido regulamento.

107    Há que recordar que resulta da jurisprudência referida no n.o 62 do presente acórdão que, na falta de qualquer definição destes conceitos no Regulamento n.o 715/2007, a determinação do significado e do alcance desses termos deve fazer‑se, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, de acordo com o seu sentido habitual na linguagem comum, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte.

108    Como a advogada‑geral observou no n.o 135 das suas conclusões, no seu sentido habitual na linguagem comum, o termo «acidente» refere‑se a um acontecimento imprevisto e súbito que causa danos ou perigos, como ferimentos ou a morte. O termo «dano» refere‑se, por sua vez, a um prejuízo que resulta geralmente de uma causa violenta ou súbita.

109    Por conseguinte, um dispositivo manipulador que reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões justifica‑se desde que, segundo o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007, permita proteger o motor de danos súbitos e excecionais.

110    A este respeito, há que salientar que a acumulação de sujidade e o envelhecimento do motor não podem ser considerados um «acidente» ou um «dano», na aceção desta disposição, uma vez que, como a Comissão observa, esses acontecimentos são, em princípio, previsíveis e inerentes ao funcionamento normal do veículo.

111    Esta interpretação é corroborada pelo contexto do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007, que enuncia uma exceção à proibição da utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, bem como pelo objetivo prosseguido pelo referido regulamento. Com efeito, qualquer exceção deve ser objeto de interpretação estrita, que permita salvaguardar o seu efeito útil e respeitar a sua finalidade (v., por analogia, Acórdão de 3 de setembro de 2014, Deckmyn e Vrijheidsfonds, C‑201/13, EU:C:2014:2132, n.os 22 e 23).

112    Uma vez que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 constitui uma exceção à proibição da utilização de dispositivos manipuladores que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões, deve ser objeto de interpretação estrita.

113    Tal interpretação é igualmente corroborada pelo objetivo visado pelo Regulamento n.o 715/2007, que consiste em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e melhorar a qualidade do ar na União, o que implica uma redução efetiva das emissões de NOx ao longo da vida normal dos veículos. A proibição prevista no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do referido regulamento ficaria esvaziada da sua substância e privada de qualquer efeito útil se os fabricantes fossem autorizados a equipar os veículos automóveis com tais dispositivos manipuladores com o único objetivo de proteger o motor contra a acumulação de sujidade e o envelhecimento.

114    Por conseguinte, como a advogada‑geral observou no n.o 146 das suas conclusões, só os riscos imediatos de danos que criem um perigo concreto na condução do veículo são suscetíveis de justificar a existência de um dispositivo manipulador.

115    Atendendo às considerações precedentes, há que responder à terceira questão, alínea a), e à quarta questão que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, como o que está em causa no processo principal, que melhora sistematicamente, durante os procedimentos de homologação, o desempenho do sistema de controlo das emissões dos veículos a fim de respeitar os limites de emissões fixados por esse regulamento e obter, assim, a homologação desses veículos, não pode ser abrangido pela exceção à proibição de tais dispositivos prevista nessa disposição, relativa à proteção do motor contra danos ou acidentes e ao funcionamento seguro do veículo, ainda que esse dispositivo contribua para prevenir o envelhecimento do motor ou a acumulação de sujidade no mesmo.

 Quanto às despesas

116    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, deve ser interpretado no sentido de que constitui um «elemento», na aceção desta disposição, um programa informático integrado no calculador do controlo motor ou que atue sobre este, desde que atue sobre o funcionamento do sistema de controlo das emissões e reduza a sua eficácia.

2)      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «sistema de controlo das emissões», na aceção desta disposição, abrange tanto as tecnologias e a estratégia dita «de póstratamento dos gases de escape», que reduzem as emissões a jusante, ou seja, depois da sua formação, como as que, à semelhança do sistema de recirculação dos gases de escape, reduzem as emissões a montante, ou seja, durante a sua formação.

3)      O artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «dispositivo manipulador», na aceção desta disposição, um dispositivo que deteta qualquer parâmetro relacionado com o desenrolar dos procedimentos de homologação previstos nesse regulamento, a fim de melhorar o desempenho do sistema de controlo das emissões durante esses procedimentos e obter, assim, a homologação do veículo, ainda que essa melhoria se possa igualmente verificar, de forma pontual, em condições normais de utilização do veículo.

4)      O artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador, como o que está em causa no processo principal, que melhora sistematicamente, durante os procedimentos de homologação, o desempenho do sistema de controlo das emissões dos veículos a fim de respeitar os limites de emissões fixados por esse regulamento e obter, assim, a homologação desses veículos, não pode ser abrangido pela exceção à proibição de tais dispositivos prevista nessa disposição, relativa à proteção do motor contra danos ou acidentes e ao funcionamento seguro do veículo, ainda que esse dispositivo contribua para prevenir o envelhecimento do motor ou a acumulação de sujidade no mesmo.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.