Language of document : ECLI:EU:C:2005:386

Processo C‑105/03

Processo penal

contra

Maria Pupino

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo giudice per le indagini preliminari (juiz de instrução criminal) do Tribunale di Firenze]

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Artigos 34.° UE e 35.° UE – Decisão‑Quadro 2001/220/JAI – Estatuto da vítima em processo penal – Protecção das pessoas vulneráveis – Inquirição de menores como testemunhas – Efeitos de uma decisão‑quadro»

Sumário do acórdão

1.        Questões prejudiciais – Apresentação ao Tribunal de Justiça – Órgão jurisdicional nacional na acepção do artigo 35.° UE – Conceito – Juiz de instrução criminal – Inclusão

(Artigo 35.° UE)

2.        Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Decisão‑quadro tendo em vista a aproximação das legislações – Pedido de interpretação que implica o princípio da interpretação do direito nacional em conformidade – Competência para proceder a essa interpretação

[Artigo 234.° CE; artigos 35.° UE e 46.°, alínea b), UE]

3.        União Europeia – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Estados‑Membros – Deveres – Direito de cooperação leal com as instituições

4.        União Europeia – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Decisão‑quadro tendo em vista a aproximação das legislações nacionais – Execução pelos Estados‑Membros – Dever de interpretação do direito nacional em conformidade – Limites – Respeito dos princípios gerais do direito – Interpretação contra legem do direito nacional – Inadmissibilidade

[Artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE; artigo 34.°, n.° 2, alínea b), EU]

5.        União Europeia – Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Estatuto da vítima em processo penal – Decisão‑Quadro 2001/220/JAI – Protecção das pessoas particularmente vulneráveis – Modalidades – Condições para o depoimento de crianças em idade terna – Audição à margem da audiência pública e antes da realização da mesma – Admissibilidade – Limites

(Decisão‑Quadro 2001/220/JAI do Conselho, artigos 2.°, 3.° e 8.°, n.° 4)

1.        Uma vez que um Estado‑Membro tenha declarado aceitar a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial sobre a validade e interpretação dos actos a que se refere o artigo 35.° UE, este é competente para responder à questão prejudicial colocada por um juiz de instrução criminal. O juiz de instrução criminal que actua no âmbito de um processo penal actua, efectivamente, no exercício de uma função jurisdicional, pelo que deve considerar‑se um «órgão jurisdicional de um Estado‑Membro» na acepção do referido artigo.

(cf. n.os 20, 22)

2.        Por força do artigo 46.°, alínea b), UE, o regime previsto no artigo 234.° CE é aplicável ao artigo 35.° UE, sob reserva das condições constantes deste último artigo. À semelhança do artigo 234.° CE, o artigo 35.° UE subordina a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial à condição de o órgão jurisdicional «considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa», de modo que a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à admissibilidade das questões prejudiciais colocadas ao abrigo do artigo 234.° CE é, em princípio, aplicável aos pedidos de decisão prejudicial apresentados ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 35.° UE.

Consequentemente, a presunção de pertinência das questões prejudiciais colocadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais só pode ser ilidida em casos excepcionais, quando é manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema é hipotético, ou ainda quando o Tribunal não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas. Com excepção desses casos, o Tribunal de Justiça, em princípio, está obrigado a pronunciar‑se sobre as questões prejudiciais relativas à interpretação dos actos referidos no artigo 35.°, n.° 1, UE.

Neste contexto, independentemente do grau de integração pretendido pelo Tratado de Amesterdão no processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa na acepção do artigo 1.°, segundo parágrafo, UE, é perfeitamente lógico que os autores do Tratado da União Europeia tenham considerado útil prever, no âmbito do título VI deste Tratado, consagrado à cooperação policial e judiciária em matéria penal, o recurso a institutos jurídicos com efeitos análogos aos previstos no Tratado CE, tendo em vista contribuir eficazmente para a prossecução dos objectivos da União. A competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial do artigo 35.° UE ficaria privada do essencial do seu efeito útil se os particulares não tivessem o direito de invocar as decisões‑quadro com vista a obter uma interpretação conforme do direito nacional nos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros.

(cf. n.os 19, 28‑30, 36, 38)

3.        Seria difícil para a União cumprir eficazmente a sua função se o princípio da cooperação leal, que implica nomeadamente que os Estados‑Membros adoptem todas as medidas necessárias, gerais ou especiais, adequadas a assegurar a execução das suas obrigações derivadas do direito comunitário, não se impusesse igualmente no âmbito da cooperação policial e judiciária em matéria penal constante do título VI do Tratado CE, integralmente fundada na cooperação entre os Estados‑Membros e as instituições.

(cf. n.° 42)

4.        O carácter vinculativo das decisões‑quadro adoptadas com fundamento no título VI do Tratado da União Europeia, consagrado à cooperação policial e judiciária em matéria penal, está formulado em termos idênticos aos do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE, no que respeita às directivas. Cria, para as autoridades nacionais, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional. Desta forma, ao aplicar o direito interno, o órgão jurisdicional chamado a proceder à sua interpretação é obrigado a fazê‑lo, na medida do possível, à luz do texto e das finalidades da decisão‑quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última e de se conformar, assim, com o artigo 34.°, n.° 2, alínea b), UE.

A obrigação de o juiz nacional se referir ao conteúdo de uma decisão‑quadro quando procede à interpretação das regras pertinentes do seu direito nacional está contudo limitada pelos princípios gerais de direito, em especial os da segurança jurídica e da não retroactividade. Estes princípios opõem‑se nomeadamente a que a referida obrigação conduza a determinar ou a agravar, com base numa decisão‑quadro e independentemente de uma lei adoptada para a sua aplicação, a responsabilidade penal de quem a viole.

Do mesmo modo, o princípio da interpretação conforme não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional. No entanto, este princípio exige que o órgão jurisdicional nacional tome em consideração, sendo caso disso, o direito nacional no seu todo para apreciar em que medida este pode ser objecto de uma interpretação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela decisão‑quadro.

(cf. n.os 34, 43‑45, 47, 61, disp.)

5.        Os artigos 2.°, 3.° e 8.°, n.° 4, da Decisão‑Quadro 2001/220/JAI, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, enunciam um certo número de objectivos entre os quais os que consistem em assegurar às vítimas particularmente vulneráveis um tratamento específico o mais adaptado possível à sua situação. Estas disposições devem ser interpretadas no sentido de que o órgão jurisdicional nacional deve ter a possibilidade de autorizar que crianças de tenra idade, que aleguem ter sido vítimas de maus tratos, prestem o seu depoimento segundo modalidades que permitam assegurar a estas crianças um nível adequado de protecção, por exemplo, sem ser na audiência pública e antes da sua realização. As condições de depoimento adoptadas devem, contudo, ser compatíveis com os princípios jurídicos fundamentais do Estado‑Membro em causa, conforme prevê o artigo 8.°, da referida decisão‑quadro, da mesma forma que não devem privar o suspeito ou arguido do direito a um processo equitativo, como é enunciado no artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

(cf. n.os 54, 57, 59, 61, disp.)