Language of document : ECLI:EU:C:2023:1031

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

21 de dezembro de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Artigo 4.o‑A, n.o 1 — Procedimentos de entrega entre os Estados‑Membros — Requisitos de execução — Motivos de não execução facultativa — Exceções — Execução obrigatória — Pena proferida à revelia — Conceito de “julgamento que conduziu à decisão” — Interessado que não esteve presente no julgamento nem em primeira instância nem em sede de recurso — Regulamentação nacional que prevê uma proibição absoluta de entrega do interessado quando uma decisão seja proferida à revelia — Obrigação de interpretação conforme»

No processo C‑398/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), por Decisão de 14 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de junho de 2022, no processo relativo à execução do mandado de detenção europeu emitido contra

RQ

sendo interveniente:

Generalstaatsanwaltschaft Berlin,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: F. Biltgen (relator), presidente de secção, N. Wahl e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Alemão, por J. Möller, P. Busche, M. Hellmann e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e H. Leupold, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo à execução, na Alemanha, de um mandado de detenção europeu emitido contra um nacional checo com vista à execução, na República Checa, de uma pena privativa de liberdade.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», dispõe:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro [de uma] pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [UE].»

4        O artigo 4.o‑A, n.o 1, desta decisão‑quadro, sob a epígrafe «Decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente», tem a seguinte redação:

«A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado‑Membro de emissão:

a)      Foi atempadamente,

i)      notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

e

ii)      informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

[…]»

 Direito alemão

5        O § 83, n.o 1, ponto 3, da Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei relativa à Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), de 23 de dezembro de 1982 (BGBl.1982 I, p. 2071), na sua versão publicada em 27 de junho de 1994 (BGBl. 1994 I, p. 1537) (a seguir «IRG»), prevê:

«A extradição é excluída quando:

[…]

3.      no caso de pedido para efeitos de execução de uma pena, o condenado não tiver estado presente na audiência de julgamento que conduziu à condenação […]»

 Direito checo

6        O § 64 do zákon č. 141/1961 Sb. o trestním řízení soudním (trestní řád) [Lei n.o 141/1961 sobre o Processo Penal (Código de Processo Penal)], de 29 de novembro de 1961 prevê que, em substância, após a primeira tentativa de notificação, a pessoa à qual um ato tem de ser notificado deve ser informada do local em que pode obter esse ato. Quando o referido ato não for recolhido num prazo de 10 dias, esse ato pode ser depositado na caixa de correio dessa pessoa, o que constitui a sua notificação.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7        Foi submetido ao Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio, pelas autoridades checas, um pedido destinado à execução de um mandado de detenção europeu emitido em 15 de junho de 2021 contra um nacional checo pelo Okresní soud v Ostravě (Tribunal de Primeira Instância de Ostrava, República Checa). Esse mandado de detenção europeu é relativo à detenção e entrega do interessado às referidas autoridades para efeitos de execução de uma pena privativa de liberdade de 15 meses, proferida por Sentença de 19 de junho de 2020, alterada em sede de recurso pelo Acórdão de 25 de agosto de 2020 do Krajský soud v Ostravě (Tribunal Regional de Ostrava, República Checa) (a seguir «acórdão proferido em sede de recurso»).

8        O acórdão proferido em sede de recurso levou a uma redução da pena proferida em primeira instância.

9        É facto assente que o interessado compareceu pessoalmente na audiência em primeira instância. Em contrapartida, o interessado não participou no processo de recurso e deixou de ser representado por um advogado.

10      A citação para comparecer em sede de recurso, que foi enviada para o endereço indicado pelo interessado às autoridades checas competentes como sua residência permanente, na qual este tinha recebido pessoalmente a citação para comparecer em primeira instância, foi depositada na caixa de correio do interessado em 17 de agosto de 2020, uma vez que este não foi recolhê‑la pessoalmente como tinha sido convidado a fazer na data anterior de 3 de agosto. Embora não exista prova de que o interessado tenha efetivamente recebido esta citação para comparecer em sede de recurso e este último tenha declarado se ter mudado para a Alemanha em agosto de 2020 sem disso ter informado as autoridades checas competentes, considera‑se que a referida citação para comparecer em sede de recurso foi, nos termos do § 64 do Código de Processo Penal, notificada ao interessado no décimo dia seguinte ao convite para a recolher.

11      Em 10 de outubro de 2021, o interessado foi detido em Berlim (Alemanha) e colocado em prisão preventiva com base no mandado de detenção europeu em causa no processo principal. Declarou então às autoridades checas não consentir num processo de entrega simplificado.

12      Em 14 de outubro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio ordenou que o interessado fosse detido com vista à sua entrega às autoridades checas.

13      Depois de ter obtido, junto da autoridade judiciária de emissão em causa, precisões sobre as circunstâncias exatas em que o interessado tinha sido convocado, a Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Procuradoria‑Geral de Berlim, Alemanha) libertou o interessado e pediu ao órgão jurisdicional de reenvio que anulasse o mandado de detenção emitido para efeitos da extradição e declarasse ilícita a entrega do interessado pelo facto de o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG, que transpõe para o direito alemão o artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro 2002/584, constituir um obstáculo a tal entrega.

14      Por Despacho de 4 de novembro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio revogou o mandado de detenção europeu emitido para efeitos de extradição do interessado. Embora considerasse que o requisito da dupla incriminação do ato, ao qual está subordinada tal entrega e que consiste em verificar se os factos imputados constituem uma infração em ambos os Estados‑Membros que cooperam, estava preenchido no caso em apreço, decidiu suspender a decisão quanto ao pedido de que a entrega do interessado fosse declarada ilícita.

15      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser interpretado no sentido de que visa o julgamento que precede a decisão de primeira instância quando esta tenha sido reformada em sede de recurso num sentido favorável ao interessado.

16      O órgão jurisdicional de reenvio recorda a jurisprudência do Tribunal de Justiça decorrente do Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas (C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628), segundo a qual, em caso de processo penal de várias instâncias, este conceito visa o processo no âmbito do qual foi proferida decisão definitiva sobre a culpabilidade do interessado e sobre a condenação deste último numa pena na sequência de um novo exame, de facto e de direito, do processo quanto ao mérito, ou seja, da última instância quanto ao mérito.

17      O órgão jurisdicional de reenvio deduz daqui que, no caso em apreço, é o processo perante o órgão jurisdicional que decide em sede de recurso, no qual o interessado não participou, que é determinante para efeitos da aplicação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 e que, na medida em que o interessado não compareceu pessoalmente no âmbito deste último processo, há que declarar ilícita a sua entrega e recusar a execução do mandado de detenção europeu em causa no processo principal.

18      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à aplicabilidade da jurisprudência decorrente desse acórdão numa situação como a que está em causa no processo principal, na qual o interessado compareceu em primeira instância, mas não compareceu no âmbito do processo de recurso.

19      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio salienta, por um lado, que existem divergências na organização processual do recurso nos diferentes Estados‑Membros, nomeadamente quanto à obrigação, para o juiz nacional, de proceder, em caso de falta do interessado, a um exame quanto ao mérito da causa. É certo que pode ser o caso no direito checo e essa apreciação pode, como no presente processo, dar lugar a uma decisão que reforma a sentença de primeira instância num sentido favorável ao interessado. Todavia, se, como no direito alemão aplicável, tal obrigação não estiver prevista, a decisão proferida não é abrangida pelo conceito de «julgamento», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

20      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, se for negado provimento ao recurso sem que tenha sido efetuado um exame quanto ao mérito, a sentença proferida em primeira instância adquire força de caso julgado e é, deste modo, executória, o que implica que a entrega do interessado seja, na verdade, requerida para efeitos da execução dessa sentença. Daqui deduz que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «julgamento», na aceção desta disposição, visa a decisão a executar. O órgão jurisdicional de reenvio considera que esta interpretação vale igualmente quando, como no presente processo, a decisão de primeira instância foi reformada em sede de recurso num sentido favorável ao interessado, ainda que esta decisão de primeira instância não constitua então, ao contrário de uma decisão proferida em sede de recurso sem que tenha sido efetuado um exame quanto ao mérito, por si só a decisão a executar, mas deva ser conjugada com outra decisão proferida em recurso que reformou a primeira.

21      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se o princípio do primado do direito da União se opõe a uma regulamentação nacional, como a do § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG, que estabelece a condenação à revelia como «obstáculo absoluto» à entrega de pessoa objeto de um mandado de detenção europeu quando o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que esta regulamentação nacional transpõe para o direito alemão, só prevê, a este respeito, um motivo facultativo de recusa.

22      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esta última disposição não foi plenamente transposta para o direito alemão uma vez que o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG não prevê a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução exercer um poder de apreciação em caso de condenação à revelia.

23      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que, no Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 69, 72, 73 e 76), o Tribunal de Justiça declarou que, embora a aplicação direta da Decisão‑Quadro 2002/584 esteja excluída, sendo esta última desprovida de efeito direto, não é menos verdade que uma autoridade judiciária de execução é obrigada a interpretar o direito nacional em conformidade com a referida decisão‑quadro a fim de alcançar o resultado prosseguido pela mesma, não sendo, no entanto, possível uma interpretação contra legem deste direito.

24      O órgão jurisdicional de reenvio considera que não está em condições de interpretar o § 83, n.o 1, ponto 3, da IRG no sentido de que lhe confere, no âmbito do exame do obstáculo à entrega do interessado, uma margem de apreciação que lhe permite declarar lícita esta entrega apesar das exceções previstas nos n.os 2 e 4 deste artigo. Entende que, em aplicação do artigo 4.o‑A, n.o 1, alíneas a) a d), da Decisão‑Quadro 2002/584 e da margem de apreciação que supostamente dispõe a este respeito, deve poder considerar que, atendendo às circunstâncias do presente processo, o direito de ser ouvido do interessado foi devidamente cumprido ainda que não tenha comparecido pessoalmente no âmbito do processo de recurso e que a entrega deste último é, por conseguinte, lícita. Com efeito, o próprio interessado não teria participado no processo de recurso uma vez que, após ter interposto recurso, permaneceu incontactável e não recolheu a citação para comparecer em sede de recurso que lhe tinha sido enviada para o endereço que tinha indicado às autoridades checas competentes, apesar de ter conhecimento do depósito da referida citação.

25      Nestas circunstâncias, o Kammergericht Berlin (Tribunal Regional Superior de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o conceito de “julgamento”, na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da [Decisão‑Quadro 2002/584], ser interpretado, no caso de ter havido recurso, no sentido de que abrange o julgamento que precede a decisão em primeira instância, se só o arguido tiver interposto recurso e tiver sido negado provimento a este ou a sentença da primeira instância tiver sido alterada em seu benefício?

2)      É compatível com o primado do direito da União que o legislador alemão, no § 83, n.o 1, ponto 3, da [IRG], tenha previsto que a condenação [à revelia] constitui um obstáculo absoluto à entrega, apesar de o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro [2002/584], prever que nesse caso apenas se verifica um motivo facultativo de recusa?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

26      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, essencialmente, se o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», que figura no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser interpretado no sentido de que visa o processo que levou à decisão de primeira instância quando esta tenha sido reformada em sede de recurso em benefício do interessado.

27      Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, quando, como no presente processo, o interessado não tenha comparecido pessoalmente no âmbito do processo de recurso que levou a uma decisão que reforma a decisão proferida em primeira instância, este processo é abrangido pelo conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

28      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser entendido como um conceito autónomo do direito da União e interpretado de maneira uniforme no seu território, independentemente das qualificações nos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 67, e de 22 de dezembro de 2017, Ardic, C‑571/17 PPU, EU:C:2017:1026, n.o 63).

29      Este conceito de julgamento que conduziu à decisão deve ser entendido no sentido de que designa o processo que condenou definitivamente a pessoa cuja entrega é solicitada no quadro da execução de um mandado de detenção europeu [Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 74, e de 23 de março de 2023, Minister for Justice and Equality (Revogação da suspensão), C‑514/21 e C‑515/21, EU:C:2023:235, n.o 52].

30      É a decisão judicial que se pronuncia definitivamente sobre o mérito da causa, no sentido de que já não é suscetível de recurso ordinário, que é determinante para o interessado, uma vez que afeta diretamente a sua situação pessoal atendendo à declaração de culpabilidade, bem como, eventualmente, à fixação da pena privativa de liberdade que deverá cumprir (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 83).

31      Por conseguinte, é ao nível desta etapa processual que a pessoa em causa deve poder exercer plenamente os seus direitos de defesa a fim de fazer valer, de maneira efetiva, o seu ponto de vista e de influenciar assim a decisão final que é suscetível de o privar da sua liberdade individual. O resultado a que esse processo conduz é desprovido de pertinência neste contexto (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 84).

32      No que se refere, mais concretamente, a uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que o processo decorreu em duas instâncias sucessivas, a saber, uma primeira instância seguida de um processo de recurso, o Tribunal de Justiça declarou que só a instância que conduziu à decisão proferida na fase de recurso é, deste modo, pertinente para efeitos da aplicação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, desde que tal instância tenha conduzido a uma decisão que já não é suscetível de recurso ordinário e que, portanto, conhece definitivamente do mérito (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 90).

33      Daqui decorre que o elemento determinante para efeitos da qualificação de um processo no sentido de ser abrangido pelo conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, é o facto de esse processo resultar numa sentença que constitui uma condenação definitiva e que, por consequência, resolve definitivamente o processo quanto ao mérito.

34      Por conseguinte, um processo de recurso como o que está em causa no processo principal, que deu lugar a uma decisão que reforma a decisão proferida em primeira instância e que resolve assim definitivamente o processo em causa, o que cabe, no entanto, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, é abrangido por este conceito.

35      Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que um processo de recurso que deu lugar a uma decisão que reforma a decisão proferida em primeira instância e resolve assim definitivamente o processo é abrangido pelo conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção desta disposição.

 Quanto à segunda questão

36      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o princípio do primado do direito da União se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que transpôs o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, que, no geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos da execução de uma pena quando o interessado não tenha comparecido pessoalmente no âmbito do processo que levou à decisão em causa.

37      A este respeito, importa recordar que a Decisão‑Quadro 2002/584 consagra, no seu artigo 1.o, n.o 2, a regra segundo a qual os Estados‑Membros são obrigados a executar todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. Salvo em circunstâncias excecionais, as autoridades judiciárias de execução só podem, deste modo, recusar a execução de tal mandado nas situações, taxativamente indicadas, previstas na referida decisão‑quadro. A execução de um mandado de detenção europeu apenas pode estar subordinada a uma das condições taxativamente aí previstas. Consequentemente, enquanto a execução do mandado de detenção europeu constitui o princípio, a recusa da sua execução é concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 50).

38      Assim, a Decisão‑Quadro 2002/584 enuncia explicitamente, por um lado, os motivos obrigatórios (artigo 3.o desta decisão‑quadro) e, por outro, os motivos facultativos (artigos 4.o e 4.o‑A da referida decisão‑quadro) de não execução do mandado de detenção europeu. Em particular, o 4.o‑A da mesma decisão‑quadro limita a possibilidade de recusar executar um mandado de detenção europeu enumerando, de maneira precisa e uniforme, as condições em que o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento em que a pessoa em causa não tenha estado presente não podem ser recusados (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 53).

39      Resulta da redação do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 que esta disposição prevê um motivo facultativo de não execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que resultou na sua condenação. Não obstante, esta faculdade tem quatro exceções, enunciadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) desta disposição, que privam a autoridade judiciária de execução em causa da possibilidade de recusar a execução do mandado de detenção europeu que lhe foi dirigido (v., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni, C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 40).

40      Por conseguinte, a autoridade judiciária de execução dispõe da faculdade de recusar a execução de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão em causa, salvo se o mandado de detenção europeu indicar que as condições enunciadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 estão preenchidas (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 54).

41      Daqui resulta que a autoridade judiciária de execução tem de proceder à execução de um mandado de detenção europeu, não obstante a ausência do interessado no processo que conduziu à decisão em causa, quando a existência de uma das circunstâncias referidas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, desta decisão‑quadro tiver sido demonstrada (Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas, C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 55).

42      O Tribunal de Justiça teve ocasião de especificar que, na medida em que este artigo 4.o‑A prevê um caso de não execução facultativa de um mandado de detenção europeu, uma autoridade judiciária de execução pode, em todo o caso, mesmo depois de ter constatado que as circunstâncias referidas no número anterior do presente acórdão não abrangem a situação da pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu, ter em conta outras circunstâncias que lhe permitam garantir que a entrega do interessado não implica uma violação dos direitos de defesa deste último (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de agosto de 2017, Zdziaszek, C‑271/17 PPU, EU:C:2017:629, n.o 107, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 51 e jurisprudência referida).

43      No âmbito dessa apreciação, a autoridade judiciária de execução poderá, assim, tomar em consideração o comportamento demonstrado pelo interessado. Com efeito, é nessa fase do procedimento de entrega que pode ser prestada especial atenção, nomeadamente, ao facto de o interessado ter procurado escapar à notificação da informação que lhe foi dirigida (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 52 e jurisprudência referida).

44      Daqui decorre que, quando verifica que uma das condições previstas no artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 está preenchida, uma autoridade judiciária de execução não pode ser impedida de se certificar de que os direitos de defesa da pessoa em causa foram respeitados, tomando devidamente em consideração, a este respeito, todas as circunstâncias que caracterizam o processo que lhe cabe apreciar, incluindo as informações de que ela própria eventualmente disponha.

45      No caso em apreço, decorre das informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a regulamentação alemã em causa no processo principal obriga, de forma geral, a autoridade judiciária de execução em causa a recusar executar o mandado de detenção europeu em caso de condenação à revelia. Esta regulamentação não deixa à referida autoridade judiciária de execução nenhuma margem de apreciação para efeitos da verificação da existência de uma das situações indicadas, respetivamente, nas alíneas a) a d) do artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, com base nas circunstâncias do presente processo, se se puder considerar que os direitos de defesa do interessado foram respeitados e, por conseguinte, para decidir executar o mandado de detenção europeu em causa.

46      Nestas condições, há que observar que tal regulamentação nacional é contrária ao artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

47      Há que recordar que o Tribunal de Justiça declarou que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que não impõe a um órgão jurisdicional nacional que não aplique uma disposição do direito nacional incompatível com as disposições da Decisão‑Quadro 2002/584, sendo esta desprovida de efeito direto. No entanto, as autoridades dos Estados‑Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais, estão obrigadas a proceder, tanto quanto possível, a uma interpretação conforme do seu direito nacional que lhes permita assegurar um resultado compatível com a finalidade prosseguida por esta decisão‑quadro (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 109).

48      Efetivamente, embora as decisões‑quadro não possam produzir efeito direto, o seu caráter vinculativo cria, não obstante, para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação conforme do seu direito interno a partir do termo do prazo de transposição destas decisões‑quadro. Quando aplicam o direito nacional, essas autoridades estão, deste modo, obrigadas a interpretá‑lo, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da decisão‑quadro em causa, a fim de alcançar o resultado por ela prosseguido, excluindo‑se, contudo, uma interpretação contra legem do direito nacional. Assim, o princípio da interpretação conforme exige que se tome em consideração o direito interno no seu todo e se apliquem métodos de interpretação por este reconhecidos, a fim de garantir a plena eficácia da decisão‑quadro em causa e alcançar uma solução conforme com o objetivo por ela prosseguido (Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 72 a 77).

49      Daqui decorre que incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, interpretar a regulamentação nacional em causa no processo principal, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da Decisão‑Quadro 2002/584.

50      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o‑A, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que uma regulamentação nacional que transpôs esta disposição que, de forma geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena quando a pessoa não tiver comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu à decisão em causa é contrária à referida disposição. Um órgão jurisdicional nacional está obrigado, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a interpretar esta regulamentação nacional, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da referida decisão‑quadro.

 Quanto às despesas

51      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

1)      O artigo 4.oA, n.o 1, da DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que um processo de recurso que deu lugar a uma decisão que reforma a decisão proferida em primeira instância e resolve assim definitivamente o processo é abrangido pelo conceito de «julgamento que conduziu à decisão», na aceção desta disposição.

2)      O artigo 4.oA, n.o 1, da DecisãoQuadro 2002/584, conforme alterada pela DecisãoQuadro 2009/299, deve ser interpretado no sentido de que uma regulamentação nacional que transpôs esta disposição que, de forma geral, exclui a possibilidade de uma autoridade judiciária de execução executar um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena quando a pessoa não tiver comparecido pessoalmente no julgamento que conduziu à decisão em causa é contrária à referida disposição. Um órgão jurisdicional nacional está obrigado, tomando em consideração todo o seu direito interno e aplicando os métodos de interpretação por este reconhecidos, a interpretar esta regulamentação nacional, tanto quanto possível, à luz da letra e da finalidade da referida decisãoquadro.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.