Language of document : ECLI:EU:C:2024:328

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

LAILA MEDINA

apresentadas em 18 abril de 2024 (1)

Processo C760/22

FP,

QV,

IN,

YL,

VD,

JF,

OL

Interveniente:

Sofiyska gradska prokuratura

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária)]

«Pedido de decisão prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 47.° e 48.° — Diretiva (UE) 2016/343 — Direito de comparecer em julgamento em processo penal — Participação à distância na audiência de julgamento, por videoconferência, durante a pandemia de COVID‑19 — Obrigação de comparecer na audiência de julgamento»






I.      Introdução

1.        A digitalização da justiça tem implicações importantes para os direitos processuais fundamentais em processo penal, em especial o direito de comparecer em julgamento e o respeito pelos direitos de defesa. A necessidade de garantir a continuidade da justiça durante a pandemia de COVID‑19 e o interesse público de proteção da saúde pública levaram os Estados‑Membros e países de todo o mundo a introduzir nos seus sistemas a utilização da videoconferência em processos penais ou a aumentar e generalizar a sua utilização (2). O ressurgimento dos desafios em torno do «arguido à distância (3)» suscita questões delicadas sobre o equilíbrio adequado a alcançar entre o exercício dos direitos processuais fundamentais em processo penal e a utilização de meios digitais para administrar a justiça de forma eficaz.

2.        No direito da União, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva (UE) 2016/343 (4) estabelece o direito processual dos suspeitos e arguidos de comparecer no julgamento, que é um elemento essencial do direito fundamental a um tribunal imparcial consagrado nos artigos 47.° e 48.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). O processo principal levanta a questão de saber se esta disposição obsta a uma decisão tomada por um tribunal penal para permitir a um arguido participar por videoconferência no julgamento apesar da falta de uma base legal específica no direito nacional que preveja tais meios de participação. Por conseguinte, é conferida ao Tribunal de Justiça a oportunidade de interpretar pela primeira vez o direito de comparecer em julgamento no contexto da utilização de videoconferência ou de outras tecnologias de comunicação à distância.

II.    Quadro jurídico

 Direito da União Europeia

 Diretiva 2016/343

3.        Os considerandos 9, 33, 35 e 48 da Diretiva 2016/343 estabelecem:

«(9) A presente diretiva tem por objeto reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, estabelecendo normas mínimas comuns relativas a certos aspetos da presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento.

[…]

(33) O direito a um processo equitativo constitui um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática. Este direito está na base do direito dos suspeitos ou dos arguidos de comparecerem em julgamento e deverá estar garantido em toda a União.

[…]

(35) O direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto. Em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca.

[…]

(48) Uma vez que a presente diretiva estabelece normas mínimas, os Estados‑Membros deverão poder alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado. O nível de proteção concedido pelos Estados‑Membros não deverá nunca ser inferior às normas previstas pela Carta e pela [Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a seguir «CEDH»)], tal como interpretadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.»

4.        O artigo 1.° da Diretiva 2016/343, com a epígrafe «Objeto», dispõe:

«A presente diretiva estabelece normas mínimas comuns respeitantes:

[…];

b) ao direito de comparecer em julgamento em processo penal.»

5.        O artigo 8.° desta diretiva, com a epígrafe «Direito de comparecer em julgamento», dispõe nos seus n.os 1 e 2 o seguinte:

«1. Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

2. Os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que:

a) o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou

b) o suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.»

 Direito búlgaro

6.        O artigo 6.°a, n.° 2, da Zakon za merkite i deystviyata po vreme na izvanrednoto polozhenie, obyaveno s reshenie na Narodnoto sabranie ot 13.03.2020 i za preodolyavane na posleditsite (Lei Relativa às Medidas e aos Atos durante o Estado de Emergência Decretado pela Decisão da Assembleia Nacional de 13 de março de 2020 e sobre a Gestão dos seus Efeitos, a seguir «Lei relativa às Medidas durante o Estado de Emergência»), aplicável até 31 de maio de 2022, dispõe:

«Durante o estado de emergência, nomeadamente, o estado de emergência epidémica, e nos dois meses após o seu levantamento, as audiências de julgamento públicas podem ser realizadas […] à distância, desde que seja assegurada a comparência direta e virtual das partes no processo ou no procedimento. Será elaborada uma ata das audiências de julgamento realizadas, que deverá ser publicada sem demora, devendo o registo da audiência de julgamento ser conservado até ao termo do prazo de retificação e aditamento da ata, salvo disposição em contrário do Código de Processo Civil. O tribunal […] informa as partes caso o julgamento deva ser realizado à distância.»

7.        O artigo 55.° do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, a seguir «NPK»), dispõe:

«O arguido tem os seguintes direitos: […] participar no processo penal.»

8.        O artigo 269.° do NPK, dispõe:

«1) Nos processos em que o arguido seja acusado de uma infração penal grave, é obrigatória a sua comparência na audiência.

2) O tribunal pode ordenar a comparência do arguido igualmente nos processos em que a sua presença não seja obrigatória, quando tal seja necessário para o apuramento da verdade material.

3) Quando isso não obste ao apuramento da verdade material, o processo pode ser julgado à revelia do arguido se:

1. este não se encontrar na morada por ele indicada, ou tiver mudado de morada sem ter informado a autoridade competente em conformidade;

2. o seu local de residência na Bulgária não for conhecido e não tiver sido possível determiná‑lo no âmbito de uma pesquisa exaustiva;

3. este tiver sido regularmente citado, não tiver apresentado um motivo válido para a sua não comparência e tiver sido observado o procedimento previsto no artigo 247.°c, n.° 1, do NPK;

4. este se encontrar fora do território búlgaro e:

a) a sua residência for desconhecida;

b) não puder ser citado por outros motivos;

c) tiver sido regularmente citado e não tiver apresentado um motivo válido para a sua não comparência.»

9.        O artigo 115.°, n.° 2, do NPK dispõe:

«O arguido não pode ser ouvido por um juiz delegado ou por videoconferência, exceto se se encontrar no estrangeiro e tal não obstar ao apuramento da verdade material.»

10.      O artigo 474.°, n.° 1, do NPK dispõe:

«A autoridade judiciária de outro Estado só poderá proceder à audição de uma pessoa que seja testemunha ou perito no processo penal e que esteja na República da Bulgária, por videoconferência ou por telefone, bem como ao interrogatório com participação do arguido, se tal não se revelar contrário aos princípios fundamentais da ordem jurídica búlgara. O interrogatório por videoconferência com a participação do arguido só poderá ter lugar com o consentimento deste último e após as autoridades judiciárias búlgaras participantes e as autoridades judiciárias do outro Estado terem chegado a acordo no que respeita às modalidades de realização da videoconferência.»

III. Apresentação sucinta dos factos e do processo principal

11.      FP foi acusado de fazer parte de uma organização criminosa com o objetivo de enriquecimento e da prática concertada de infrações tributárias nos termos do artigo 255.° do Nakazatelen kodeks (Código Penal, a seguir «NK»). Esta é uma infração grave nos termos do NK.

12.      FP conferiu mandato a um advogado de defesa desde o início do processo.

13.      Por Acórdão de 11 de abril de 2019, FP foi considerado culpado pelo anterior Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) e condenado a uma pena de prisão de seis meses, suspensa por três anos. Este acórdão foi revogado em sede de recurso. O processo foi remetido para outra secção do anterior Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), o Sofiyski gradski sad (Tribunal da Cidade de Sófia, Bulgária), que é o órgão jurisdicional de reenvio. A nova audiência de julgamento do processo teve início em 30 de junho de 2021.

14.      Na audiência preliminar pública de 12 de outubro de 2021, FP pediu para participar no processo à distância, através de uma ligação de comunicação online, com transmissão de imagem e som, uma vez que vivia e trabalhava no Reino Unido. Declarou conhecer todas as peças e documentos processuais e considerar que os seus direitos não ficariam prejudicados pela participação à distância.

15.      O advogado de FP esteve fisicamente presente na sala de audiências e declarou que quaisquer novas peças e documentos podiam ser transmitidas de forma eletrónica para FP para que este pudesse apreciá‑las em tempo útil. O advogado de FP também declarou que o aconselhamento do seu cliente podia ser realizado através de uma ligação à parte, que podia ter lugar com a interrupção da transmissão de vídeo e fora da sala de audiências.

16.      O órgão jurisdicional de reenvio permitiu a FP participar à distância na audiência pública de 12 de outubro de 2021, com base no artigo 6.°a, n.° 2, da Lei relativa às Medidas durante o Estado de Emergência, em conformidade com as garantias e condições estabelecidas pelo tribunal. Durante as audiências seguintes, com exceção da realizada em 28 de fevereiro de 2022, na qual esteve fisicamente presente, FP participou por videoconferência.

17.      Na audiência de julgamento agendada para 13 de junho de 2022, FP manifestou a vontade de continuar a participar à distância no processo. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio tinha dúvidas quanto a saber se esta possibilidade ainda existia ao abrigo do direito búlgaro, uma vez que o artigo 6.°a, n.° 2, da Lei relativa às Medidas durante o Estado de Emergência, deixou de se aplicar a partir de 31 de maio de 2022. O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o NPK não prevê a possibilidade de os arguidos participarem à distância nos processos, exceto em certos casos específicos, nenhum dos quais é aplicável ao presente processo. Contudo, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o direito búlgaro não proíbe expressamente a utilização da videoconferência.

18.      Tendo em conta a falta de uma base jurídica específica, o advogado de FP sugeriu que o seu cliente pudesse participar na audiência à distância, embora sendo considerado ausente.

19.      O órgão jurisdicional de reenvio não aceitou a proposta de considerar FP ausente. Entendeu que mesmo que FP não estivesse fisicamente presente na sala de audiências, podia participar efetivamente no julgamento.

20.      Na falta de uma base legal no direito nacional que permita a utilização da videoconferência, o órgão jurisdicional de reenvio considerou necessário verificar se é compatível com a Diretiva 2016/343 dar ao arguido a possibilidade de decidir a forma como cumpre o dever de participar no processo penal. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre se FP deve ser considerado presente, dadoque os seus direitos não foram violados e foram tomadas todas as medidas para garantir que não existe uma diferença substancial entre a sua presença física na sala de audiências e a sua participação no processo através de uma conexão online.

21.      À luz destas considerações, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O direito do arguido de comparecer em julgamento, ao abrigo do artigo 8.°, [n.°] 1, em conjugação com os considerandos 33 e 44 da Diretiva 2016/343, é violado se o arguido participar nas audiências de julgamento realizadas no âmbito do processo penal, por sua vontade expressa, através de uma ligação online, garantindo‑se que é representado na sala de audiências por um advogado por ele mandatado e que a ligação lhe permite acompanhar o andamento do processo, indicar e tomar conhecimento dos meios de prova, podendo ser ouvido sem obstáculos técnicos e beneficiando de uma comunicação eficaz e segura com o seu advogado?»

22.      Foram apresentadas observações escritas por FP, pelos Governos Húngaro e Letão, e pela Comissão Europeia.

IV.    Análise

A.      Quanto à reformulação da questão prejudicial

23.      Segundo jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.° TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas (5).

24.      No caso em apreço, a questão do órgão jurisdicional de reenvio decorre do facto de que, embora o NPK exija a comparência do arguido no processo penal quando essa pessoa é acusada de uma infração penal grave, não prevê a possibilidade de participar por videoconferência nesse processo. Resulta do despacho de reenvio prejudicial que existem determinadas situações nas quais a participação online é possível, nomeadamente na fase de inquérito e noutros procedimentos específicos. Contudo, estas situações não são aplicáveis ao processo principal (6).

25.      FP, o arguido no processo principal, foi autorizado a participar no julgamento até determinada fase do processo, enquanto a Lei relativa às Medidas durante o Estado de Emergência estava em vigor. Depois de essa lei deixar de ser aplicável, e na falta de outra disposição legal que previsse a participação online na audiência, FP pediu para continuar a participar à distância no julgamento, embora sendo tratado como ausente. O órgão jurisdicional de reenvio não atendeu a esse pedido por entender que considerar FP como ausente não era compatível com a sua participação efetiva no processo. O órgão jurisdicional de reenvio considerou que poderia autorizar FP a decidir como cumprir a obrigação de estar presente no processo penal (previsto no artigo 269.°, n.° 1, do NPK) e permitir‑lhe participar online desde que ficasse assegurada a sua plena participação no processo. No entanto, tem dúvidas sobre se esta decisão é compatível com o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343.

26.      Tendo em conta o exposto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que obsta a que um tribunal penal conceda a um arguido, que é obrigado a comparecer no julgamento de acordo com o direito nacional, a possibilidade de participar no processo por videoconferência, apesar da falta de uma disposição específica no direito nacional que permita esta forma de participação.


B.      Princípios gerais sobre o direito dos arguidos a comparecer na audiência de julgamento

27.      O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, estabelece que os Estados‑Membros devem assegurar que o suspeito ou arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

28.      Os princípios gerais relativos ao exercício do direito de comparecer no próprio julgamento foram estabelecidos na jurisprudência do Tribunal de Justiça com base na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

29.      Em especial, o Tribunal de Justiça recordou que, nos termos do considerando 47 da Diretiva 2016/343, esta respeita os direitos fundamentais e os princípios reconhecidos pela Carta e pela CEDH, incluindo o direito a um processo equitativo, a presunção de inocência e os direitos de defesa (7).

30.      Como resulta do considerando 33 desta diretiva, o direito de os suspeitos ou arguidos comparecerem no próprio julgamento assenta no direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 6.° da CEDH, ao qual correspondem, como precisam as Anotações relativas à Carta, o artigo 47.°, segundo e terceiro parágrafos, bem como o seu artigo 48.° Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve assegurar que a sua interpretação destas últimas disposições assegura um nível de proteção que não viola o garantido pelo artigo 6.° da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (8).

31.      Resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que a comparência do arguido tem uma importância crucial para efeitos de um processo penal equitativo e que a obrigação de garantir o direito de o arguido estar presente na sala de audiências é um dos elementos essenciais do artigo 6.° da CEDH (9).

32.      Além disso, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, embora o artigo 6.°, n.° 3, alínea c), da CEDH confira a qualquer pessoa acusada de um crime o direito a «defender‑se a si próprio ou ter a assistência de um defensor [...]», não especifica a forma de exercer esse direito. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem, assim, reiterado que a CEDH «deixa aos Estados Contratantes a escolha dos meios para garantir que [este direito] está assegurado nos seus sistemas judiciais, sendo a função do Tribunal de Justiça apenas verificar se o método escolhido é conforme com as exigências de um processo equitativo (10).»

33.      A este respeito, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos salientou que, à luz dos direitos de defesa garantidos, nomeadamente, pelo artigo 6.°, n.° 3, alínea c), da CEDH, a faculdade de o arguido participar na audiência implica o direito de essa pessoa participar efetivamente no seu julgamento (11). Em geral, isto inclui, nomeadamente, não só o seu direito de estar presente mas também de ouvir e acompanhar o processo (12).

34.      Com base nestas considerações, o Tribunal de Justiça considera que o direito de comparecer no próprio julgamento, consagrado no artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, deve ser garantido de modo que possa ser exercido, na fase judicial do processo penal, segundo modalidades que respeitem as exigências de um processo equitativo. Assim, este direito não se limita a garantir a simples presença do arguido nas audiências realizadas no âmbito do processo de que é objeto, mas exige que essa pessoa esteja em condições de participar efetivamente no mesmo e de exercer, para esse efeito, os direitos de defesa (13).

C.      A utilização da videoconferência em processo penal segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

35.      O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos analisou determinadas questões relacionadas com a realização de audiências por videoconferência na perspetiva do direito a um julgamento equitativo nos termos do artigo 6.° da CEDH. A sua jurisprudência fornece alguns princípios orientadores a este respeito (14).

36.      O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos procurou estabelecer princípios para o recurso a audiências online no seu Acórdão de princípio Marcello Viola/Itália (15). Este processo dizia respeito à alegada violação do artigo 6.° da CEDH relativamente à utilização da videoconferência em processo penal, conforme previsto na legislação italiana. Esta legislação foi adotada no contexto do combate contra os crimes da máfia. Deu a possibilidade a um tribunal penal de ordenar a participação do arguido na audiência à distância, quando estivessem preenchidas determinadas condições restritivas estabelecidas pela lei.

37.      Nesse acórdão, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos recorda, em primeiro lugar, os princípios básicos relativos à importância fundamental do direito do arguido a comparecer em julgamento e a participar efetivamente no julgamento (16).

38.      No que diz respeito à aplicação destes princípios ao caso concreto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos salientou, antes de mais, que a participação por videoconferência no processo estava expressamente prevista no direito italiano, que especificava os casos em que a videoconferência podia ser utilizada, a autoridade competente para o ordenar e as condições técnicas para a instalação de uma ligação audiovisual. Observou que o Tribunal Constitucional italiano o considerou compatível com a Constituição (italiana) e a CEDH.

39.      Além disso, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos salientou que, desde que a utilização deste método não seja proibida pelo direito interno e pelos instrumentos internacionais sobre a matéria, é autorizada para a obtenção de provas de testemunhas e peritos, possivelmente com a participação do arguido. Referiu‑se, neste contexto, a diversos instrumentos de direito internacional além da CEDH (17).

40.      Tendo em conta o exposto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que «a participação do arguido no processo por videoconferência não é, enquanto tal, contrário à [CEDH]». No entanto, concluiu que cabe a esse tribunal assegurar que o recurso a tal medida em cada caso concreto serve um objetivo legítimo e que as regras que regulam a sua conduta são compatíveis com as exigências do respeito pelas garantias processuais, conforme previsto no artigo 6.° da CEDH (18).

41.      O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que, no caso concreto, a participação do recorrente nas audiências de recurso por videoconferência prosseguia objetivos legítimos nos termos da CEDH, nomeadamente, a prevenção da desordem, a prevenção do crime, a proteção das testemunhas e das vítimas de crimes no que diz respeito aos seus direitos à vida, liberdade e segurança, e cumprimento da exigência de «prazo razoável» em processos judiciais (19). Depois de examinar se as modalidades de condução do processo respeitavam os direitos da defesa, concluiu que o direito a um processo equitativo não tinha sido violado.

42.      Na jurisprudência subsequente sobre a utilização da videoconferência em processo penal, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos aplicou os princípios do Acórdão Marcello Viola, principalmente na perspetiva da eficácia da representação em juízo do arguido através de videoconferência (20). Por exemplo, no Acórdão da Grande Secção no processo Sakhnovskiy/Rússia (21), o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos  reiterou que a videoconferência como forma de participação no processo não é, enquanto tal, incompatível com o conceito de audiência pública e equitativa. Contudo, tem de ser garantido que o arguido consegue acompanhar o processo e ser ouvido sem impedimentos técnicos e que é assegurada uma comunicação eficaz e confidencial com um advogado (22).

43.      A jurisprudência existente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativa à utilização da videoconferência diz respeito principalmente a situações em que a sua utilização é deveras excecional e em que o arguido se queixou da utilização desse método de participação no processo. Até ao momento, não existe qualquer processo em que, pelo contrário, o arguido se queixe de que a falta de um quadro jurídico que lhe permita participar à distância no julgamento constitui uma violação do seu direito a comparecer ao julgamento (23).

44.      Curiosamente, no Acórdão Dijkhuizen/Países Baixos, o recorrente queixou‑se de que o seu direito a um processo equitativo tinha sido violado porque fora impedido de assistir ao julgamento fisicamente ou por videoconferência (24). Nesse processo, o recorrente foi detido num país terceiro, que impedia a extradição para potências estrangeiras de pessoas detidas como suspeitas pela prática de crimes nesse país terceiro. Apesar da lei dos Países Baixos prever a possibilidade de participar por videoconferência no julgamento, o recorrente recusou repetidamente esse modo de participação. Apenas o requereu numa fase adiantada do processo. Nessa altura, para que o tribunal nacional pudesse tomar todas as providências necessárias, o processo teria de ser novamente adiado. Por conseguinte, o tribunal nacional considerou que o arguido tinha renunciado ao seu direito a ser ouvido por videoconferência (25). O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concluiu que não havia violação do artigo 6.°, tendo em conta as circunstâncias específicas do processo.

45.      Mesmo que, tendo em conta as circunstâncias do processo, não tenha havido violação do direito a um processo equitativo, o Acórdão Dijkhuizen/Países Baixos continua a ser um exemplo relevante. Demonstra que podem existir situações em que o arguido quer comparecer por videoconferência no julgamento. A videoconferência pode ser utilizada como um meio para facilitar o exercício do direito a comparecer no julgamento em situações em que seria impossível ou extremamente difícil para o arguido estar fisicamente presente no julgamento.

46.      Considero também relevante salientar que a Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) do Conselho da Europa publicou as «Orientações sobre a utilização da videoconferência em processos judiciais» (a seguir «Orientações da CEPEJ») (26). As Orientações da CEPEJ fornecem um conjunto de medidas fundamentais que os Estados e os tribunais devem seguir para assegurar que a utilização da videoconferência em processos judiciais não prejudica o direito a um processo equitativo conforme consagrado no artigo 6.° da CEDH. As Orientações contêm quatro princípios fundamentais, um conjunto de orientações aplicáveis a todos os processos judiciais, enfatizando as particularidades do processo penal, e um conjunto de orientações sobre as questões organizacionais e técnicas da videoconferência.

47.      Os princípios estabelecidos nas Orientações da CEPEJ destacam a importância de preservar sempre o direito a um processo equitativo, o princípio da legalidade, a equidade no processo e os direitos de defesa. Mais concretamente, o primeiro princípio das Orientações da CEPEJ afirma que todas as garantias para um processo equitativo ao abrigo da CEDH se aplicam às audiências à distância em todos os processos judiciais. De acordo com o segundo princípio «os Estados devem estabelecer um quadro jurídico que forneça uma base clara para permitir aos tribunais realizar audiências à distância nos processos judiciais». De acordo com o terceiro princípio «cabe ao tribunal decidir, no âmbito do quadro jurídico aplicável, se determinada audiência deve ser realizada à distância, com o objetivo de assegurar a equidade global do processo». Por último, de acordo com o quarto princípio «o tribunal deve salvaguardar o direito de uma parte ser efetivamente assistida por um advogado em todos os processos, incluindo a confidencialidade da sua comunicação».

48.      No que diz respeito especificamente ao processo penal, as Orientações da CEPEJ estabelecem que, em circunstâncias em que «a legislação não exige o consentimento livre e informado do arguido, a decisão do tribunal relativamente à sua participação na audiência à distância deve servir um objetivo legítimo». Salientam também a importância de salvaguardar a participação efetiva do arguido e a representação em juízo.

49.      Resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e das Orientações da CEPEJ que a participação à distância no julgamento pode ser compatível com a CEDH, desde que se apliquem todas as garantias para um processo equitativo. A compatibilidade da participação à distância com o direito a um processo equitativo deve ser analisada em relação ao quadro jurídico e às condições e regras neste estabelecidas, a que está sujeita a utilização da videoconferência.

D.      Quanto à utilização da videoconferência no processo penal ao abrigo da legislação da UE

50.      A utilização da videoconferência nos processos penais nacionais não está harmonizada ao nível da União. A harmonização das regras relativas à utilização da videoconferência diz respeito apenas a situações transfronteiriças abrangidas por legislação específica da União (27). O desenvolvimento mais recente a este respeito é a adoção do Regulamento (UE) 2023/2844 (28).

51.      A aplicação deste regulamento é feita sem prejuízo dos direitos processuais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no direito da União, como as diretivas relativas aos direitos processuais, incluindo a Diretiva 2016/343, e em particular, não prejudicam o direito de comparecer em julgamento (29). Além disso, as regras que o mesmo estabelece sobre o recurso à videoconferência para audições ou audiências em processos de cooperação judiciária em matéria penal não deverão aplicar‑se às audições ou audiências por meio de videoconferência para efeitos de obtenção de provas ou de realização de um julgamento que possa resultar numa decisão sobre a culpa ou a inocência de um suspeito ou de um arguido (30).

52.      Uma vez que o Regulamento 2023/2844 não é aplicável ao litígio no processo principal, não é necessário aprofundar mais as suas disposições. Basta referir que as suas disposições reconhecem a importância de obter o consentimento do arguido ou condenado quanto ao recurso à videoconferência para as audições ou audiências em processos de cooperação judiciária em matéria penal (31). Além disso, as circunstâncias específicas do processo devem justificar a utilização dessa tecnologia. Este regulamento também prevê disposições específicas para a conformidade da tecnologia de comunicação à distância com os princípios de proteção de dados e um elevado nível de cibersegurança (32).

E.      Quanto à questão de saber se o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 permite a participação por videoconferência no julgamento

53.      Esta parte da análise irá aprofundar a questão de saber se os Estados‑Membros podem prever que o direito de «comparecer» em julgamento, consagrado no artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, possa ser exercido por videoconferência, em especial quando essa presença tenha sido expressamente pedida pelo arguido e as condições da sua participação sejam efetivas.

54.      Segundo a jurisprudência referida acima (33), o Tribunal de Justiça deve assegurar que a sua interpretação do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 assegura um nível de proteção que não viola o garantido pelo artigo 6.° da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

55.      Resulta claramente da redação desta disposição do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 que os Estados‑Membros devem permitir a presença do suspeito ou do arguido no próprio julgamento (34).

56.      O Tribunal de Justiça interpretou esta disposição no Acórdão HN (Processo de um arguido afastado do território), no âmbito da questão de saber se os Estados‑Membros têm a possibilidade de tornar essa presença obrigatória. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 8.° da Diretiva 2016/343 se limita a prever e a enquadrar o direito de o suspeito ou o arguido comparecerem no próprio julgamento, bem como as exceções a este direito, sem impor ou proibir que os Estados‑Membros estabeleçam a obrigação de os suspeitos ou os arguidos comparecerem em julgamento (35).

57.      No mesmo contexto, o Tribunal de Justiça recordou que decorre do artigo 1.° desta diretiva que o seu objeto é estabelecer normas mínimas comuns respeitantes a certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal e ao direito de comparecer em julgamento em processo penal, e não proceder a uma harmonização exaustiva do processo penal (36).

58.      Nos termos do considerando 10 da Diretiva 2016/343, esta limita‑se a estabelecer as normas mínimas comuns sobre a proteção dos direitos processuais dos suspeitos e arguidos, a fim de reforçar a confiança nos sistemas de justiça penal entre os Estados‑Membros e, desse modo, facilitar o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal (37).

59.      Além disso, importa recordar que essa diretiva não pode ser interpretada, atendendo ao caráter mínimo do objetivo de harmonização que prossegue, como sendo um instrumento completo e exaustivo (38).

60.      Tendo em conta o alcance limitado da harmonização efetuada por esta diretiva e o facto de não regular a questão de saber se os Estados‑Membros podem exigir que o suspeito ou arguido compareça no julgamento, o Tribunal de Justiça considerou que a questão da comparência obrigatória é uma matéria exclusiva do direito nacional (39).

61.      Esta argumentação pode ser aplicada por analogia no que diz respeito à questão de saber se os Estados‑Membros podem prever que o direito a comparecer em julgamento pode ser exercido por videoconferência, a pedido do arguido. Esta disposição nada diz sobre tal possibilidade e, a fortiori, não regula a realização de um julgamento penal por videoconferência. O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 reconhece a importância capital da comparência do arguido para garantir um processo equitativo. A garantia fundamental do direito a comparecer abrange, como norma mínima, o direito a estar fisicamente presente na sala de audiências. Tendo em conta a importância da garantia fundamental associada à comparência física de suspeitos e arguidos, este direito não pode ser substituído pela presença virtual contra a vontade do arguido (40). Além disso, qualquer restrição ao direito de comparecer em julgamento deve servir um objetivo legítimo e cumprir o disposto no artigo 52.° da Carta.

62.      No entanto, como já foi salientado, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 estabelece um quadro jurídico para o direito dos suspeitos e arguidos de comparecer em julgamento. Uma vez que não especifica a forma como esse direito deve ser exercido, deixa aos Estados‑Membros um certo grau de discricionariedade na escolha dos meios para assegurar que esse direito seja garantido nos seus sistemas judiciais, permitindo‑lhes prever medidas adicionais para garantir a comparência em julgamento. Como resulta do considerando 48 da Diretiva 2016/343, os Estados‑Membros podem alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado (41). Este considerando também determina que o nível de proteção concedido pelos Estados‑Membros não deverá nunca ser inferior às normas previstas pela Carta e pela CEDH, tal como interpretadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

63.      Por conseguinte, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 não obsta a que os Estados‑Membros permitam que o direito a comparecer em julgamento possa ser exercido por videoconferência ou por outra tecnologia de comunicação à distância, a pedido expresso do arguido.

64.      Dito isto, quando os Estados‑Membros permitem que o arguido exerça o seu direito de comparecer em julgamento à distância, as regras previstas não podem prejudicar o objetivo prosseguido pela Diretiva 2016/343(42). A este respeito, o seu considerando 9 dispõe que esta diretiva tem por objeto reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal estabelecendo normas mínimas relativas ao direito a comparecer em julgamento. Por conseguinte, os Estados‑Membros devem assegurar que o direito de um suspeito ou arguido a comparecer em julgamento, consagrado no artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 seja garantido de forma que possa ser exercido de maneira que cumpra as exigências de um processo equitativo, em conformidade com o segundo e terceiro parágrafos do artigo 47.° da Carta e do seu artigo 48.° Mais concretamente, essa pessoa deve ser capaz de participar efetivamente no julgamento e exercer efetivamente os seus direitos de defesa.

65.      O Governo da Letónia referiu‑se especificamente ao exemplo da sua legislação nacional, que confere aos arguidos a possibilidade de participar por videoconferência no julgamento, com o seu consentimento pleno e informado, de um modo que garante o seu direito a um processo equitativo.

66.      Em circunstâncias em que o quadro legislativo nacional relevante cumpra as exigências de um processo equitativo, em que o suspeito ou arguido solicite a aplicação desse método de participação e participa efetivamente no próprio julgamento, não se pode considerar que essa pessoa renunciou ao seu direito a comparecer em julgamento, garantido nos termos do artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343.

67.      Dado o alcance limitado da harmonização da Diretiva 2016/343 e o alcance limitado da questão no processo principal, não faria sentido tentar dar uma orientação exaustiva sobre as exigências de um processo equitativo realizado com participação à distância. Limitar‑me‑ei à observação seguinte. A utilização da videoconferência em processo penal e, mais amplamente, a digitalização dos julgamentos não é um objetivo independente, mas um meio de reforçar a equidade do processo penal (43) como parte de uma abordagem da justiça «centrada nas pessoas» (44). Neste contexto, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 permite que os Estados‑Membros prevejam a possibilidade de participação à distância dos suspeitos e arguidos no julgamento, desde que garantam o respeito pelo direito a um processo equitativo.

F.      Quanto à aplicação no presente processo

68.      No caso em apreço, resulta do despacho de reenvio que o órgão jurisdicional de reenvio reconheceu o direito do arguido a participar por videoconferência no processo, apesar da falta de uma disposição legal específica no direito búlgaro que permita tal modo de participação nas circunstâncias em que uma pessoa é pronunciada por uma infração penal grave (45). Com efeito, a disposição legislativa que permitia tais meios de participação durante o estado de emergência devido à pandemia de COVID‑19 já não era aplicável quando se realizou a audiência no processo principal.

69.      Por conseguinte, as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio centram‑se na compatibilidade da decisão desse tribunal de permitir a participação por videoconferência no processo com o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, apesar da falta de uma base legal específica.

70.      A resposta a estas dúvidas resulta da análise da secção anterior. Na medida em que o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, não regulamenta a utilização da videoconferência em processos penais, não obsta a que uma legislação nacional, como no caso do direito búlgaro, que prevê a presença física obrigatória no caso de infrações penais qualificadas como graves e que não prevê a participação online como regra processual geral. Na atual fase de desenvolvimento do direito da União, cabe aos Estados‑Membros decidir se preveem a possibilidade de participação à distância em julgamentos penais, e em que situações (46).

71.      A fortiori, o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 não estabelece o direito dos arguidos ou suspeitos de escolher entre a presença física ou por videoconferência.

72.      Além disso, não resulta das informações apresentadas no Tribunal de Justiça que FP tenha sido privado de uma possibilidade efetiva de exercer o seu direito de comparecer em julgamento devido à falta de meios técnicos que permitissem a participação à distância (47).

73.      Na falta de harmonização a nível da União Europeia, como a Comissão salientou, no essencial, não se pode considerar que o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343 regula a situação do processo principal, em que o tribunal penal toma uma decisão de permitir a utilização da videoconferência apesar da falta de legislação nacional que permita esta forma de participação. O facto de o órgão jurisdicional de reenvio adotar todas as medidas necessárias para garantir que a videoconferência fosse realizada de forma que respeite o direito a um processo equitativo não altera a conclusão acima referida, dado que não existe harmonização ao nível da União, nem base legal específica. Por conseguinte, a legalidade de uma decisão adotada pelo órgão jurisdicional de reenvio deve ser analisada à luz do direito nacional.

74.      Resulta das considerações anteriores que o artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva 2016/343, deve ser interpretado no sentido de que não regula a utilização da videoconferência em processo penal, o que cabe aos Estados‑Membros decidir. Mais concretamente, esta disposição não regula uma situação em que um tribunal penal concede a um arguido, que é obrigado a comparecer em julgamento nos termos do direito nacional, a possibilidade de participar por videoconferência no processo, apesar da falta de uma disposição explícita no direito nacional que permita essa forma de participação.

V.      Conclusão

75.      À luz do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) da seguinte forma:

«O artigo 8.°, n.° 1, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal,

deve ser interpretado no sentido de que não regula a utilização da videoconferência em processo penal, o que cabe aos Estados‑Membros decidir. Mais concretamente, esta disposição não regula uma situação em que um tribunal penal concede a um arguido, que é obrigado a comparecer em julgamento nos termos do direito nacional, a possibilidade de participar por videoconferência no processo, apesar da falta de uma disposição expressa no direito nacional que permita essa forma de participação.»


1      Língua original: inglês.


2      V., Gabinete das Instituições Democrática e dos Direitos Humanos da OSCE, The Functioning of Courts in the Covid19 Pandemic: A Primer, 2 de novembro de 2020 (disponível em https://www.osce.org/odihr/469170); Sanders, A. «Video‑hearings in Europe before, during and after the Covid‑19 Pandemic», International Journal for Court Administration, Vol. 12, 2021, pp. 1‑21.


3      V. Poulin, A.B., «Criminal Justice and Videoconferencing Technology: The Remote Defendant», Tulane Law Review, 2004 (78), p. 1089.


4      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).


5      Acórdão de 30 de janeiro de 2024, Direktor na Glavna direktsia „Natsionalna politsia“pri MVR ‑ Sofia (C‑118/22, EU:C:2024:97, n.° 31 e jurisprudência referida).


6      Resulta do pedido de decisão prejudicial que o NPK prevê a possibilidade de participação online em caso de provas oferecidas pelo arguido, de um despacho de prisão preventiva em fases anteriores ao julgamento, de fiscalização jurisdicional dessa prisão preventiva ou no caso de processos relativos à cooperação judiciária internacional em matéria penal.


7      Acórdão de 8 de dezembro de 2022, HYA e o. (Impossibilidade de interrogar testemunhas de acusação) (C‑348/21, EU:C:2022:965, n.° 39).


8      Ibid, n.° 40.


9      Ibid, n.° 41, citando, para o efeito, TEDH, 18 de outubro de 2006, Hermi/Itália, CE:ECHR:2006:1018JUD001811402, § 58.


10      TEDH, 2 de novembro de 2010, Sakhnovskiy/Rússia, CE:ECHR:2010:1102JUD002127203, § 95.


11      V., para o efeito, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, HYA e o. (Impossibilidade de interrogar testemunhas de acusação) (C‑348/21, EU:C:2022:965, n.° 42) e TEDH, 5 de outubro de 2006,  Marcello Viola/Itália, CE:ECHR:2006:1005JUD004510604, §§ 52 e 53, TEDH, 15 de dezembro de 2011, e Al‑Khawaja e Tahery/Reino Unido, CE:ECHR:2011:1215JUD002676605, § 142).


12      TEDH, 5 de outubro de 2006,  Marcello Viola/Itália, CE:ECHR:2006:1005JUD004510604, § 53.


13      V., para o efeito, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, HYA e o. (Impossibilidade de interrogar testemunhas de acusação)  (C‑348/21, EU:C:2022:965, n.° 44).


14      V., Tema Central — Artigo 6.º (face penal), Audiências por videoconferência, Secretaria do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (disponível em https://ks.echr.coe.int/web/echr‑ks/article‑6‑criminal).


15      TEDH, 5 de outubro de 2006,  CE:ECHR:2006:1005JUD004510604, § 65.


16      Ibid, §§ 49‑62. V. n.os 31 a 33 acima das presentes conclusões.


17      Ibid, n.° 66, que menciona, em particular, a Convenção europeia de auxílio judiciário mútuo em matéria penal e a Convenção relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados‑Membros da União Europeia, de 29 de maio de 2000.


18      V., para o efeito, TEDH, 5 de outubro de 2006, Marcello Viola/Itália, CE:ECHR:2006:1005JUD004510604, § 67 e TEDH, 27 de novembro de 2007, Asciutto/Itália, CE:ECHR:2007:1127JUD003579502, § 64.


19      TEDH, 5 de outubro de 2006, Marcello Viola/Itália, CE:ECHR:2006:1005JUD004510604, § 72.


20      Estes processos dizem respeito principalmente à Rússia. V. Kamber, K., «The Right to a Fair Online Hearing», Human Rights Law Review, Vol. 22, 2022 (22), pp. 1‑21, p. 19.


21      TEDH, 2 de novembro de 2010, CE:ECHR:2010:1102JUD002127203.


22      TEDH, 2 de novembro de 2010, CE:ECHR:2010:1102JUD002127203, § 98.


23      Além disso, tanto quanto sei, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos não se pronunciou em concreto sobre um pedido relativo à utilização da videoconferência durante a pandemia de forma generalizada, como forma de garantir a continuidade da justiça durante a imposição do estado de emergência. Há um processo pendente, Stephan Kucera c. Austria, Processo n.° 13810/22, relativa à decisão de um órgão jurisdicional austríaco de realizar uma audiência oral num processo penal administrativo por videoconferência, com base nas regras processuais destinadas à prevenção da disseminação da COVID‑19.


24      TEDH, 8 de junho de 2021, CE:ECHR:2021:0608JUD006159116.


25      Nas circunstâncias específicas do processo, «tendo em conta que o processo em causa fazia parte de um julgamento penal substancial e complexo, no qual estavam envolvidos sete suspeitos, todos residentes em diferentes países na altura» e «a recusa repetida e inequívoca do recorrente» em cooperar em qualquer audiência por videoconferência, o TEDH considerou que o Tribunal de Recurso dos Países Baixos «tinha o direito de desconsiderar o pedido feito pelo advogado do recorrente nas suas alegações finais para protelar mais uma vez o processo para que o recorrente pudesse participar por videoconferência» (v. § 56, 60 e 61 do Acórdão Dijkhuizen/Países Baixos).


26      Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ), Orientações sobre a utilização da videoconferência em processos judiciais, documento adotado pela CEPEJ na sua 36.ª reunião plenária, junho de 2021 (disponível em https://edoc.coe.int/en/efficiency‑of‑justice/10706‑guidelines‑on‑videoconferencing‑in‑judicial‑proceedings.html).


27      V. artigo 24.° da Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1) e o artigo 10.° da Convenção elaborada pelo Conselho em conformidade com o artigo 34.° do Tratado da União Europeia, relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados‑Membros da União Europeia (JO 2000, C 197, p. 3).


28      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2023, relativo à digitalização da cooperação judiciária e do acesso à justiça em matéria civil, comercial e penal com incidência transfronteiriça, e que altera determinados atos no domínio da cooperação judiciária (JO L 2023/2844, 27.12.2023).


29      Considerando 55 do Regulamento 2023/2844.


30      Considerando 43 do Regulamento 2023/2844.


31      V. considerando 44 e artigo 6.° do Regulamento 2023/2844. Nos termos do artigo 6.°, n.° 2, deste regulamento, o consentimento deve ser dado de forma voluntária e inequívoca. Há uma exceção à exigência de consentimento quando, «[s]em prejuízo do princípio de um processo equitativo e do direito de recurso nos termos do direito processual nacional», a participação presencial numa audição ou audiência «constitua uma ameaça grave para a segurança pública ou para a saúde pública, que se mostre real e atual ou previsível».


32      V. considerandos 21 e 22 do Regulamento 2023/2844.


33      N.° 30 das presentes conclusões.


34      Acórdão de 15 de setembro de 2022, HN (Processo de um arguido afastado do território) (C‑420/20, EU:C:2022:679, n.° 32).


35      Idem, n.° 40).


36      Ibid, n.° 41.


37      Acórdão de 19 de setembro de 2018, Milev (C‑310/18 PPU, EU:C:2018:732, n.° 46).


38      Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido)  (C‑688/18, EU:C:2020:94, n.° 30).


39      V., neste sentido, Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido)  (C‑688/18, EU:C:2020:94, n.° 42).


40      V. n.° 48 acima das presentes conclusões. V., igualmente, European Criminal Bar Association, Statement of Principles on the use of Videoconferencing in Criminal Cases in a PostCovid 19 World, 6 de setembro de 2020 (disponível em https://www.ecba.org/extdocserv/20200906_ECBAStatement_videolink.pdf). Sobre a importância do consentimento, podemos salientar que o Conseil Constitutionnel (Conselho Constitucional, França), na sua eminente decisão n.º 2020‑872 QPC, de 15 de janeiro de 2021, M. Krzystof B. (disponível em https://www.conseil‑constitutionnel.fr/decision/2021/2020872QPC.htm), declarou inconstitucional um despacho governamental adotado no contexto da pandemia COVID‑19 que permitia o recurso à utilização de videoconferência sem o consentimento do interessado perante todas as jurisdições penais, com exceção das criminais. O Conseil Constitutionnel (Conselho Constitucional) salientou que o recurso à utilização da videoconferência num grande número de processos era uma mera faculdade do tribunal, sem estar sujeito a nenhuma condição legal. V., a este respeito, a título indicativo, Danet, A., «Visioconférence dans le procès pénal : ‟jeu du chat et de la souris” ?» Gazette du Palais, 2021 No 11, pp. 21‑24.


41      Esta disposição reflete essencialmente a regra prevista no artigo 82.°, n.° 2, TFUE, segundo a qual a adoção de regras mínimas relativas aos direitos dos particulares em processo penal não impede os Estados‑Membros de manterem ou introduzirem um nível mais elevado de proteção das pessoas.


42      V., por analogia, Acórdão de 1 de agosto de 2022, TL (Falta de intérprete e de tradução)  (C‑242/22 PPU, EU:C:2022:611, n.° 77).


43      V. n.° 47 acima.


44      V. n.°5 das Conclusões do Conselho «Acesso à justiça — aproveitar as oportunidades da digitalização», , JO 2020, C 342I, p. 1, que reafirma que «o desenvolvimento digital do setor da justiça deverá ser centrado nas pessoas, devendo pautar‑se constantemente pelos princípios fundamentais dos sistemas judiciários, nomeadamente a independência e a imparcialidade dos órgãos jurisdicionais, a garantia de tutela jurisdicional efetiva e o direito a um julgamento equitativo e público, num prazo razoável». Noutras áreas da minha capacidade académica, defendi a posição de que a digitalização não é um objetivo em si mesmo, mas parte de uma abordagem à justiça «centrada nas pessoas», que visa promover o direito fundamental à proteção judicial efetiva. Um exemplo a este respeito poderia ser a situação de um arguido que não possa comparecer fisicamente na sala de audiências devido ao seu estado de saúde ou idade: Medina, L., «People‑centred Justice and the European Court of Justice», Lex & Forum, Vol.I, 2023, Sakkoulas, pp. 5‑10, na p. 7. V., também, Peristeridou, C., e de Vocht, D., «I’m Not a Cat! Remote Criminal Justice and a Human‑Centred Approach to the Legitimacy of the Trial», Maastricht journal of European and comparative law, 2023, Vol. 30, pp. 97—106. 


45      V. n.° 25 das presentes conclusões.


46      Existem diversas abordagens a este respeito que refletem as diferenças entre as tradições e sistemas jurídicos dos Estados‑Membros. V., a título indicativo, Gabinete das Instituições Democráticas e dos Direitos Humanos da OSCE, The Functioning of Courts in the Covid19 Pandemic: A Primer, op. cit. Nota de rodapé 2; Carrera, S., Mitsilegas V. e Stefan, M., Criminal Justice, Fundamental Rights and the Rule of Law in the Digital Age, Report of CEPS and QMUL Task Force, CEPS, Queen Mary University of London, Brussels, May 2021, pp. 36‑45. A doutrina discute o risco de «desumanização» da justiça ou o risco de «falta de solenidade do processo judicial»: v. Kamber, K., «The Right to a Fair Online Hearing» Human Rights Law Review, 2022, Vol. 22, pp. 1—21; Leborne, J., «La vidéojustice : la justice pénale à l’ère de la vidéo» Cahiers Droit, Sciences & Technologies, 2021, pp. 93‑109 ; Funck, J.F., «La vidéoconférence en matière pénale : approche critique, pratique et prospective» Journal des Tribunaux, 2021, pp. 257‑264, at p. 264, que reflete sobre o futuro da justiça criminal após a pandemia e observa que «dans un monde d’après, qu’il nous appartient de rendre meilleur, veillons à l’humanité de la justice» («No mundo após [a pandemia], que temos de tornar num lugar melhor, asseguremos a humanidade da justiça»).


47      FP não alegou, por exemplo, que estivesse detido no Reino Unido sem ter sido autorizado a viajar para a Bulgária ou que o seu estado de saúde ou idade o impedissem de viajar para a Bulgária.