Language of document : ECLI:EU:C:2019:721

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

12 de setembro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual e industrial — Direito de autor e direitos conexos — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 2.°, alínea a) — Conceito de “obra” — Proteção das obras pelo direito de autor — Requisitos — Articulação com a proteção dos desenhos e modelos — Diretiva 98/71/CE — Regulamento (CE) n.° 6/2002 — Modelos de vestuário»

No processo C‑683/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), por Decisão de 21 de novembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de dezembro de 2017, no processo

Cofemel – Sociedade de Vestuário, SA,

contra

GStar Raw CV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, F. Biltgen, J. Malenovský (relator), C. G. Fernlund e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 12 de dezembro de 2018,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Cofemel – Sociedade de Vestuário, SA, por I. Bairrão e J. P. de Oliveira Vaz Miranda de Sousa, advogados,

–        em representação da G‑Star Raw CV, por A. Grosso Alves e G. Paiva e Sousa, advogados,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo, e P. Salvação Barreto, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. De Luca, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon e Z. Lavery, na qualidade de agentes, assistidos por J. Moss, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Samnadda, B. Rechena e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 2 de maio de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Cofemel – Sociedade de Vestuário, SA (a seguir «Cofemel»), à G‑Star Raw CV (a seguir «G‑Star») a propósito do respeito dos direitos de autor reivindicados pela G‑Star.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

 Convenção de Berna

3        O artigo 2.° da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (Ato de Paris de 24 de julho de 1971), na sua versão resultante da alteração de 28 de setembro de 1979 (a seguir «Convenção de Berna»), estabelece, designadamente, no seu n.° 7:

«Fica reservada às legislações dos países da União [instituída por esta convenção] a regulamentação do campo de aplicação das leis relativas às obras de arte aplicadas e aos desenhos e modelos industriais, assim como as condições de proteção dessas obras, desenhos e modelos […]. Para as obras protegidas unicamente como desenhos e modelos no país de origem, só pode ser reclamada num outro país da União [instituída pela referida convenção] a proteção especial concedida nesse país aos desenhos e modelos; todavia, se uma proteção especial não for concedida nesse país, essas obras serão protegidas como obras artísticas.»

 Tratado da OMPI sobre Direito de Autor

4        A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) adotou em Genebra, em 20 de dezembro de 1996, o Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, que foi aprovado, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2000/278/CE do Conselho, de 16 de março de 2000 (JO 2000, L 89, p. 6) (a seguir «Tratado da OMPI sobre Direito de Autor»).

5        Nos termos do artigo 1.°, n.° 4, do Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, intitulado «Relação com a Convenção de Berna»:

«As Partes Contratantes devem observar o disposto nos artigos 1.° a 21.° da Convenção de Berna e no respetivo anexo.»

 Direito da União

 Diretiva 2001/29

6        O considerando 60 da Diretiva 2001/29 enuncia:

«A proteção prevista na presente diretiva não prejudica as disposições legais nacionais ou comunitárias em outras áreas, tais como a propriedade industrial, [...]»

7        Os artigos 2.° a 4.° desta diretiva têm como epígrafe, respetivamente, «Direito de reprodução», «Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material», e «Direito de distribuição». Estas disposições impõem designadamente aos Estados‑Membros a obrigação de garantirem aos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir a reprodução das suas obras [artigo 2.°, alínea a)], o direito exclusivo de autorizar ou proibir a comunicação ao público (artigo 3.°, n.° 1) e o direito exclusivo de autorizar ou proibir a distribuição (artigo 4.°, n.° 1).

8        O artigo 9.° da referida diretiva, intitulado «Continuação da aplicação de outras disposições legais», prevê que esta não prejudica as disposições relativas a outros domínios. Várias versões linguísticas deste artigo, entre as quais as versões alemã, inglesa, espanhola, francesa e italiana, precisam que estes domínios incluem, nomeadamente, as patentes, as marcas, os desenhos e modelos e os modelos de utilidade. A versão portuguesa do referido artigo refere‑se, por sua vez, aos domínios das patentes, das marcas registadas e dos modelos de utilidade, sem mencionar o dos desenhos e modelos.

 Diretiva 98/71/CE

9        O considerando 8 da Diretiva 98/71/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1998, relativa à proteção legal de desenhos e modelos (JO 1998, L 289, p. 28), tem a seguinte redação:

«Considerando que, na falta de harmonização dos direitos de autor, é importante estabelecer o princípio da cumulação da proteção ao abrigo da legislação em matéria de proteção específica dos desenhos e modelos registados com a proteção do direito de autor, deixando simultaneamente aos Estados‑Membros a liberdade de fixarem o alcance da proteção ao abrigo dos direitos de autor e as condições em que é conferida essa proteção.»

10      O artigo 1.° desta diretiva, intitulado «Definições», precisa, no seu ponto a), que o conceito de «desenho ou modelo» designa «a aparência da totalidade ou de uma parte de um produto, resultante das características, nomeadamente de linhas, contornos, cores, forma, textura e/ou materiais do próprio produto e/ou da sua ornamentação».

11      O artigo 17.° da referida diretiva, intitulado «Relação com o direito de autor», prevê:

«Qualquer desenho ou modelo protegido por um registo num Estado‑Membro de acordo com a presente diretiva beneficia igualmente da proteção conferida pelo direito de autor desse Estado a partir da data em que o desenho ou modelo foi criado ou definido sob qualquer forma. Cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido.»

 Regulamento (CE) n.° 6/2002

12      Nos termos do considerando 32 do Regulamento (CE) n.° 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (JO 2002, L 3, p. 1):

«Na falta de uma harmonização total da legislação em matéria de direitos de autor, é importante consagrar o princípio da cumulação da proteção específica dos desenhos ou modelos comunitários e da proteção pelo direito de autor, deixando simultaneamente aos Estados‑Membros toda a liberdade para determinar o alcance da proteção pelo direito de autor e as condições em que essa proteção é conferida.»

13      O artigo 3.°, alínea a), deste regulamento define o conceito de «desenho ou modelo» nos mesmos termos que o artigo 1.°, ponto a), da Diretiva 98/71.

14      O artigo 96.° do referido regulamento, intitulado «Relação com outras formas de proteção ao abrigo do direito nacional», prevê, no seu n.° 2:

«Qualquer desenho ou modelo protegido como desenho ou modelo comunitário beneficia igualmente da proteção conferida pela legislação dos Estados‑Membros em matéria de direitos de autor, a partir da data em que esse desenho ou modelo tenha sido criado ou definido sob qualquer forma. Cada Estado‑Membro determinará o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida, incluindo o grau de originalidade exigido.»

 Direito português

15      O artigo 2.° do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, intitulado «Obras originais», comporta um n.° 1 com a seguinte redação:

«As criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, quaisquer que sejam o género, a forma de expressão, o mérito, o modo de comunicação e o objetivo, compreendem nomeadamente:

[...]

i)      Obras de artes aplicadas, desenhos ou modelos industriais e obras de design que constituam criação artística, independentemente da proteção relativa à propriedade industrial;

[...]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16      A Cofemel e a G‑Star são duas sociedades que operam no setor da criação, da confeção e da comercialização de vestuário.

17      A G‑Star explora, desde a década de 1990, na qualidade de titular ou ao abrigo de contratos de licença exclusiva, as marcas GSTAR, GSTAR RAW, GSTAR DENIM RAW, GSRAW, GRAW e RAW. O vestuário criado, confecionado e comercializado sob estas marcas inclui, nomeadamente, um modelo de calças de ganga denominado ARC, bem como um modelo de sweatshirt e de tshirt denominado ROWDY.

18      A Cofemel também cria, confeciona e comercializa, sob a marca TIFFOSI, calças de ganga, sweatshirts e tshirts.

19      Em 30 de agosto de 2013, a G‑Star instaurou num tribunal português de primeira instância uma ação declarativa de condenação contra a Cofemel, pedindo que esta fosse condenada a cessar os atos de violação dos seus direitos de autor e os atos de concorrência desleal cometidos contra si, bem como a indemnizá‑la pelo prejuízo sofrido e, em caso de nova infração, a pagar‑lhe uma sanção pecuniária compulsória diária até à cessação desta. No âmbito desta ação, a G‑Star alegou, nomeadamente, que alguns dos modelos de calças de ganga, de sweatshirts e de tshirts produzidos pela Cofemel eram idênticos aos seus modelos ARC e ROWDY. A G‑Star alegou também que estes últimos modelos de vestuário constituíam criações intelectuais originais e que, por essa razão, deviam ser qualificados de «obras» que beneficiam de proteção conferida pelo direito de autor.

20      A Cofemel contestou alegando, nomeadamente, que os referidos modelos de vestuário não podem ser qualificados de «obras» que beneficiam de tal proteção.

21      O tribunal de primeira instância chamado a conhecer da ação intentada pela G‑Star julgou a ação parcialmente procedente e condenou a Cofemel, entre outros, a cessar a violação dos direitos de autor da G‑Star, a pagar a esta última uma quantia equivalente aos lucros que obteve com a venda do vestuário produzido em violação destes direitos de autor e a pagar‑lhe uma sanção pecuniária compulsória diária em caso de nova infração.

22      A Cofemel interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa (Portugal), que a confirmou. Fundamentando a sua decisão, aquele tribunal começou por considerar que o artigo 2.°, n.° 1, alínea i), do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos deve ser compreendido à luz da Diretiva 2001/29, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465), e de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798), no sentido de que a proteção do direito de autor conferida às obras de artes aplicadas, aos desenhos ou modelos industriais e às obras de design depende da sua originalidade, no sentido de serem o resultado da criação intelectual do seu autor, sem que seja exigido um grau particular de valor estético ou artístico. Em seguida, o referido tribunal considerou que, no caso vertente, os modelos de vestuário ARC e ROWDY da G‑Star constituíam obras que beneficiavam de uma proteção conferida pelo direito de autor. Por último, considerou que algum vestuário produzido pela Cofemel violava os direitos de autor da G‑Star.

23      Tendo a Cofemel interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), órgão jurisdicional de reenvio, aquele tribunal considera, em primeiro lugar, que é factualidade provada, primeiro, que os modelos de vestuário da G‑Star que são objeto do recurso de revista foram criados quer por designers que trabalhavam para a G‑Star quer por designers ao serviço desta e que lhe transmitiram por acordo os seus direitos de autor. Segundo, estes modelos de vestuário são fruto de conceitos e de processos de fabrico reconhecidos como inovadores no mundo da moda. Terceiro, comportam vários elementos específicos (efeito de três dimensões, esquema de montagem das peças, local de colocação de certos componentes, etc.) que foram parcialmente retomados pela Cofemel com vista à confeção do vestuário da sua marca.

24      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o artigo 2.°, n.° 1, alínea i), do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos inclui claramente as obras de artes aplicadas, os desenhos ou modelos industriais e as obras de design no elenco das obras que beneficiam da proteção conferida pelo direito de autor, mas não especifica qual é o grau de originalidade exigido para que determinados objetos sejam qualificados de obras desse tipo. Indica igualmente que esta questão, que está no cerne do litígio que opõe a Cofemel à G‑Star, não é consensual na jurisprudência nem na doutrina portuguesas. Por este motivo, interroga‑se sobre se há que considerar, à luz da interpretação da Diretiva 2001/29 consagrada pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 16 de julho de 2009, Infopaq International (C‑5/08, EU:C:2009:465), e de 1 de dezembro de 2011, Painer (C‑145/10, EU:C:2011:798), que a proteção garantida pelo direito de autor é conferida a estas obras do mesmo modo que a qualquer obra literária e artística, portanto, na condição de serem originais, no sentido de serem o resultado da criação intelectual do próprio autor, ou se é possível condicionar esta proteção à existência de um grau particular de valor estético ou artístico.

25      Foi nestas circunstâncias que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      […] [A] interpretação dada pelo TJUE ao [artigo] 2.°, [alínea] a), da Diretiva [2001/29] [opõe‑se] a uma legislação nacional — no caso, a norma constante do [artigo] 2.°, n.° 1, [alínea] i), do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC) — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design que, extravasando o fim utilitário que servem, gerem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, sendo a sua originalidade o critério central da atribuição da proteção, no âmbito dos direitos de autor[?]

2)      […] [A] interpretação dada pelo TJUE ao [artigo] 2.°, [alínea] a), da Diretiva [2001/29] [opõe‑se] a uma legislação nacional — no caso, a norma constante do [artigo] 2.°, n.° 1, [alínea] i), do CDADC — que confira proteção jusautoral a obras de artes aplicadas, desenho ou modelo industriais ou obra de design se, à luz de uma apreciação particularmente exigente quanto ao seu caráter artístico, e tendo em conta as conceções dominantes nos círculos culturais e institucionais, merecerem ser qualificadas como “criação artística” ou “obra de arte”[?]»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

26      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional confira proteção, ao abrigo do direito de autor, a modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal, pelo facto de, extravasando o fim utilitário que servem, gerarem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético.

27      Nos termos do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29, os Estados‑Membros têm a obrigação de prever, em benefício dos autores, o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções das suas obras.

28      O termo «obra» a que esta disposição se refere também figura no artigo 3.°, n.° 1, e no artigo 4.°, n.° 1, da Diretiva 2001/29, relativos aos direitos exclusivos reconhecidos ao autor de uma obra em relação à comunicação desta ao público e à sua distribuição, bem como nos artigos 5.°, 6.° e 7.° desta diretiva, respeitantes, o primeiro, às exceções e limitações que podem ser introduzidas a estes direitos exclusivos e, os dois últimos, às medidas técnicas e às medidas de informação que asseguram a proteção dos referidos direitos exclusivos.

29      O conceito de «obra» visado por todas estas disposições constitui, conforme resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um conceito autónomo do direito da União que deve ser interpretado de modo autónomo e uniforme e que pressupõe que estejam reunidos dois elementos cumulativos. Por um lado, este conceito implica que exista um objeto original, no sentido de que este é uma criação intelectual do próprio autor. Por outro, a qualificação de obra está reservada aos elementos que sejam a expressão dessa criação (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de julho de 2019, Infopaq International, C‑5/08, EU:C:2009:465, n.os 37 e 39, e de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.os 33 e 35 a 37 e jurisprudência referida).

30      No que respeita ao primeiro destes elementos, decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, para que um objeto possa ser considerado original, é simultaneamente necessário e suficiente que reflita a personalidade do seu autor, manifestando as escolhas livres e criativas deste último (v., neste sentido, Acórdãos de 1 de dezembro de 2011, Painer, C‑145/10, EU:C:2011:798, n.os 88, 89 e 94, e de 7 de agosto de 2018, Renckhoff, C‑161/17, EU:C:2018:634, n.° 14).

31      Em contrapartida, quando a realização de um objeto tiver sido determinada por considerações técnicas, por regras ou por outras limitações, que não deixaram margem para o exercício de liberdade criativa, não se pode considerar que esse objeto tenha a originalidade necessária para poder constituir uma obra (v., neste sentido, Acórdão de 1 de março de 2012, Football Dataco e o., C‑604/10, EU:C:2012:115, n.° 39 e jurisprudência referida).

32      No que respeita ao segundo elemento evocado no n.° 29 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «obra» visado pela Diretiva 2001/29 implica necessariamente a existência de um objeto identificável com suficiente precisão e objetividade (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.° 40).

33      Com efeito, por um lado, as autoridades responsáveis pela proteção dos direitos exclusivos inerentes ao direito de autor devem poder conhecer com clareza e precisão o objeto assim protegido. O mesmo se diga dos terceiros a quem pode ser oposta a proteção reivindicada pelo autor desse objeto. Por outro lado, a necessidade de afastar qualquer elemento de subjetividade, prejudicial à segurança jurídica, no processo de identificação do referido objeto pressupõe que este último tenha sido expresso com objetividade (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.° 41).

34      Como o Tribunal de Justiça sublinhou, uma identificação que se baseia essencialmente em sensações, intrinsecamente subjetivas, da pessoa que apreende o objeto em causa não preenche o requisito de precisão e de objetividade exigido (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.° 42).

35      Quando um objeto apresenta as características recordadas nos n.os 30 e 32 do presente acórdão, constituindo, assim, uma obra, deve, nessa qualidade, beneficiar da proteção conferida pelo direito de autor, em conformidade com a Diretiva 2001/29, cabendo observar que o alcance desta proteção não depende do grau de liberdade criativa de que o seu autor dispôs e, por conseguinte não é inferior à proteção de que beneficia qualquer obra abrangida pela referida diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 1 de dezembro de 2011, Painer, C‑145/10, EU:C:2011:798, n.os 97 a 99).

36      Atendendo a esta jurisprudência, a resposta à primeira questão implica, em primeiro lugar, que se determine se, em geral, os modelos podem ser qualificados de «obras», na aceção da Diretiva 2001/29.

37      A este respeito, há que começar por salientar que, nos termos do artigo 17.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a propriedade intelectual é protegida.

38      Decorre da redação desta disposição que os objetos que constituem propriedade intelectual beneficiam da proteção conferida pelo direito da União. Em contrapartida, desta disposição não resulta que tais objetos ou categorias de objetos devam todos beneficiar de proteção idêntica.

39      Deste modo, o legislador da União adotou diferentes atos de direito derivado com o objetivo de assegurar a proteção da propriedade intelectual, nomeadamente, por um lado, das obras protegidas pelo direito de autor, visadas pela Diretiva 2001/29, bem como, por outro, dos desenhos e modelos abrangidos quer pela Diretiva 98/71, aplicável aos desenhos e modelos registados num Estado‑Membro, quer pelo Regulamento n.° 6/2002, aplicável aos desenhos e modelos protegidos a nível da União.

40      Ao proceder assim, o legislador da União considerou que os objetos protegidos ao abrigo de um desenho ou de um modelo não são, em princípio, equiparáveis aos que constituem obras protegidas pela Diretiva 2001/29.

41      Esta opção legislativa é conforme com a Convenção de Berna, cujos artigos 1.° a 21.° a União, embora não seja parte contratante nesta convenção, está obrigada a respeitar por força do artigo 1.°, n.° 4, do Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, no qual é parte (v., neste sentido, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Levola Hengelo, C‑310/17, EU:C:2018:899, n.° 38 e jurisprudência referida).

42      Com efeito, o artigo 2.°, n.° 7, da Convenção de Berna autoriza as suas partes contratantes a concederem aos desenhos e modelos industriais uma proteção específica, diferente da proteção prevista em benefício das obras literárias e artísticas abrangidas por esta convenção e que eventualmente exclua essa proteção, bem como a determinarem as condições de tal proteção. Ao mesmo tempo, a referida disposição também não exclui que estas duas proteções possam ser cumuladas.

43      Neste contexto, o legislador da União optou por um sistema segundo o qual a proteção conferida aos desenhos e modelos e a que é assegurada pelo direito de autor não se excluem mutuamente.

44      Com efeito, no que respeita aos desenhos e modelos, o artigo 17.° da Diretiva 98/71 enuncia, no seu primeiro período, que os desenhos e modelos que foram registados num Estado‑Membro de acordo com esta diretiva beneficiam igualmente da proteção conferida pelo direito de autor do Estado‑Membro em que esses desenhos ou modelos foram registados, a partir da data em foram criados ou definidos sob qualquer forma. Em seguida, o mesmo artigo precisa, no seu segundo período, que o âmbito dessa proteção e as condições em que é conferida pelo direito de autor, incluindo o grau de originalidade exigido, são determinados por cada Estado‑Membro. Quanto aos desenhos e modelos protegidos a nível da União, o artigo 96.°, n.° 2, do Regulamento n.° 6/2002 prevê um regime análogo ao que resulta do artigo 17.° da Diretiva 98/71.

45      Estas duas disposições devem, elas próprias, ser apreendidas, respetivamente, à luz do considerando 8 da Diretiva 98/71 e do considerando 32 do Regulamento n.° 6/2002, que evocam expressamente o princípio de uma «cumulação» da proteção dos desenhos e modelos, por um lado, com a proteção pelo direito de autor, por outro.

46      No que se refere ao direito de autor, resulta do artigo 9.° da Diretiva 2001/29, intitulado «Continuação da aplicação de outras disposições legais», que deve ser interpretado tendo em conta, nomeadamente, todas as suas versões linguísticas (v., neste sentido, Acórdão de 4 de fevereiro de 2016, C & J Clark International e Puma, C‑659/13 e C‑34/14, EU:C:2016:74, n.° 122 e jurisprudência referida), bem como à luz do considerando 60 desta diretiva, que a mesma diretiva não prejudica as disposições nacionais ou da União existentes noutros domínios, nomeadamente as que dizem respeito aos desenhos e modelos.

47      Deste modo, a Diretiva 2001/29 mantém sem alterações a existência e o âmbito das disposições em vigor em matéria de desenhos e modelos, incluindo o princípio da «cumulação» evocado no n.° 45 do presente acórdão.

48      Atendendo a todas estas disposições, deve considerar‑se que os modelos podem ser qualificados de «obras», na aceção da Diretiva 2001/29, se preencherem as duas exigências mencionadas no n.° 29 do presente acórdão.

49      Nestas condições, há que examinar, em segundo lugar, se podem ser qualificados de «obras», à luz destas exigências, modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal, que, extravasando o fim utilitário que servem, geram, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético, devendo observar‑se que as interrogações deste órgão jurisdicional se prendem com a questão de saber se tal elemento de originalidade estética constitui o critério central da atribuição da proteção prevista pela Diretiva 2001/29.

50      A este respeito, há que começar por precisar que a proteção dos desenhos e modelos, por um lado, e a proteção conferida pelo direito de autor, por outro, prosseguem objetivos fundamentalmente diferentes e estão sujeitas a regimes distintos. Com efeito, como o advogado‑geral salientou, em substância, nos n.os 51 e 55 das suas conclusões, a proteção dos desenhos e modelos visa objetos que, embora sejam novos e individualizados, apresentem caráter utilitário e possam ser produzidos em massa. Além disso, esta proteção destina‑se a ser aplicada durante um período limitado, mas suficiente, para permitir rentabilizar os investimentos necessários à criação e à produção desses objetos, sem, contudo, entravar excessivamente a concorrência. Pelo seu lado, a proteção associada ao direito de autor, cuja duração é muito significativamente superior, é reservada aos objetos que merecem ser qualificados de obras.

51      Por estas razões, como o advogado‑geral também salientou no n.° 52 das suas conclusões, a concessão de proteção pelo direito de autor a um objeto protegido como desenho ou modelo não pode pôr em causa as finalidades e a efetividade respetivas destas duas proteções.

52      Daqui decorre que, embora a proteção dos desenhos e modelos e a proteção associada ao direito de autor possam, por força do direito da União, ser concedidas cumulativamente a um mesmo objeto, esta cumulação só pode ser admitida nalgumas situações.

53      A este respeito, há que salientar que, por um lado, como decorre do sentido habitual do termo «estética», o efeito estético suscetível de ser produzido por um modelo é o resultado da sensação intrinsecamente subjetiva de beleza vivida por cada pessoa que olha para esse modelo. Por conseguinte, esse efeito de natureza subjetiva não permite, em si mesmo, caracterizar a existência de um objeto identificável com suficiente precisão e objetividade, na aceção da jurisprudência mencionada nos n.os 32 a 34 do presente acórdão.

54      Por outro lado, é efetivamente verdade que considerações de ordem estética fazem parte da atividade criativa. Contudo, não se pode deixar de reconhecer que a circunstância de um modelo gerar um efeito estético não permite, por si só, determinar se esse modelo constitui uma criação intelectual que reflete a liberdade de escolha e a personalidade do seu autor, preenchendo, assim, a exigência de originalidade evocada nos n.os 30 e 31 do presente acórdão.

55      Daqui resulta que a circunstância de modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal gerarem, extravasando o fim utilitário que servem, um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético não é suscetível de justificar que esses modelos sejam qualificados de «obras» na aceção da Diretiva 2001/29.

56      Face ao exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional confira proteção, ao abrigo do direito de autor, a modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal, pelo facto de, extravasando o fim utilitário que servem, gerarem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético.

 Quanto à segunda questão

57      Atendendo à resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

58      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma legislação nacional confira proteção, ao abrigo do direito de autor, a modelos como os modelos de vestuário em causa no processo principal, pelo facto de, extravasando o fim utilitário que servem, gerarem um efeito visual próprio e marcante do ponto de vista estético.

Prechal

Biltgen

Malenovský

Fernlund

 

Rossi

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de setembro de 2019.

O Secretário

 

A Presidente da Terceira Secção

A. Calot Escobar

 

A. Prechal


*      Língua do processo: português.