CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
HENRIK SAUGMANDSGAARD ØE
apresentadas em 15 de julho de 2021 (1)
Processo C‑401/19
República da Polónia
contra
Parlamento Europeu,
Conselho da União Europeia
«Recurso de anulação – Diretiva (UE) 2019/790 — Direitos de autor e direitos conexos — Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha — Comunicação ao público — Responsabilidade desses prestadores de serviços — Artigo 17.o — Isenção de responsabilidade — n.o 4, alíneas b) e c), in fine — Filtragem dos conteúdos colocados em linha pelos utilizadores — Liberdade de expressão e de informação — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 11.o, n.o 1 — Compatibilidade — Garantias que enquadram essa filtragem»
I. Introdução
1. Com o presente recurso, interposto com base no artigo 263.o TFUE, a República da Polónia pede ao Tribunal de Justiça, a título principal, que anule o artigo 17.o, n.o 4, alíneas b) e c), in fine, da Diretiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE (2) e, a título subsidiário, que anule este artigo 17.o na sua totalidade.
2. Este recurso convida o Tribunal de Justiça a examinar a questão da responsabilidade dos prestadores de serviços de partilha em linha quando os conteúdos protegidos pelos direitos de autor ou pelos direitos conexos são carregados (3) pelos utilizadores dos serviços.
3. Esta problemática já foi levada ao conhecimento do Tribunal de Justiça nos processos apensos C‑682/18, YouTube, e C‑683/18, Cyando, na perspetiva do quadro constituído pela Diretiva 2000/31/CE, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno («Diretiva sobre o comércio eletrónico») (4), e pela Diretiva 2001/29/CE, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (5). Desta vez, trata‑se de analisar o artigo 17.o da Diretiva 2019/790, que prevê um novo regime de responsabilidade aplicável aos prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha.
4. Como será explicado nestas conclusões, esta disposição impõe a esses prestadores obrigações de monitorização dos conteúdos que os utilizadores dos seus serviços colocam em linha, a fim de prevenir o carregamento das obras e material protegido que os titulares de direitos não desejam tornar acessíveis nesses serviços. Esta monitorização preventiva assumirá, regra geral, a forma de uma filtragem desses conteúdos, realizada com recurso a ferramentas informáticas.
5. Ora, essa filtragem suscita questões complexas, realçadas pela recorrente, tendo em conta a liberdade de expressão e de informação dos utilizadores dos serviços de partilha, garantida no artigo 11.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). O Tribunal de Justiça deverá, na sequência dos Acórdãos Scarlet Extended (6), SABAM (7) e Glawischnig‑Piesczek (8), determinar se, e sendo caso disso em que condições, essa filtragem é compatível com esta liberdade. Tratar‑se‑á, para o Tribunal, de ter em conta as vantagens, mas também os riscos, que implica essa filtragem e, nesse âmbito, de assegurar que se mantenha um «justo equilíbrio» entre, por um lado, o interesse dos titulares de direitos a uma proteção efetiva da sua propriedade intelectual e, por outro, o interesse desses utilizadores, e do público em geral, na livre circulação da informação em linha.
6. Nas presentes conclusões, explicarei que, na minha opinião, o legislador da União pode, no respeito da liberdade de expressão, impor certas obrigações de monitorização e de filtragem a certos intermediários em linha, desde que, no entanto, essas obrigações sejam enquadradas por garantias suficientes para minimizar o impacto dessa filtragem nesta liberdade. Uma vez que, na minha opinião, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 comporta tais garantias, proporei ao Tribunal de Justiça que declare que esta disposição é válida e, consequentemente, que negue provimento ao recurso da República da Polónia (9).
II. Quadro jurídico
A. Diretiva 2000/31
7. O artigo 14.o da Diretiva 2000/31, com a epígrafe «Armazenagem em servidor», dispõe, no seu n.o 1:
«Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista no armazenamento de informações prestadas por um destinatário do serviço, os Estados‑Membros velarão por que a responsabilidade do prestador do serviço não possa ser invocada no que respeita à informação armazenada a pedido de um destinatário do serviço, desde que:
a) O prestador não tenha conhecimento efetivo da atividade ou informação ilegal e, no que se refere a uma ação de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciam a atividade ou informação ilegal,
ou
b) O prestador, a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, atue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações.»
8. O artigo 15.o desta diretiva, com a epígrafe «Ausência de obrigação geral de vigilância», prevê, no seu n.o 1:
«Os Estados‑Membros não imporão aos prestadores, para o fornecimento dos serviços mencionados nos artigos 12.o, 13.o e 14.o, uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar ativamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes.»
B. Diretiva 2001/29
9. O artigo 3.o da Diretiva 2001/29, com a epígrafe «Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:
«1. Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
2. Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que seja acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, cabe:
a) Aos artistas intérpretes ou executantes, para as fixações das suas prestações;
b) Aos produtores de fonogramas, para os seus fonogramas;
c) Aos produtores de primeiras fixações de filmes, para o original e as cópias dos seus filmes; e
d) Aos organismos de radiodifusão, para as fixações das suas radiodifusões, independentemente de estas serem transmitidas por fio ou sem fio, incluindo por cabo ou satélite.»
10. O artigo 5.o desta diretiva, com a epígrafe «Exceções e limitações», dispõe, no seu n.o 3:
«Os Estados‑Membros podem prever exceções ou limitações aos direitos previstos nos artigos 2.o e 3.o nos seguintes casos:
[…]
d) Citações para fins como a crítica ou a análise, desde que relacionadas com uma obra ou outro material […];
[…]
k) Utilização para efeitos de caricatura, paródia ou pastiche;
[…]»
C. Diretiva 2019/790
11. O artigo 17.o da Diretiva 2019/790, com a epígrafe «Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha», dispõe:
«1. Os Estados‑Membros devem prever que os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha realizam um ato de comunicação ao público ou de colocação à disponibilização do público para efeitos da presente diretiva quando oferecem ao público o acesso a obras ou outro material protegido por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores.
Os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha devem, por conseguinte, obter uma autorização dos titulares de direitos a que se refere o artigo 3.o, n.os 1 e 2, da [Diretiva 2001/29], por exemplo, através da celebração de um acordo de concessão de licenças, a fim de comunicar ao público ou de colocar à disposição do público obras ou outro material protegido.
2. Os Estados‑Membros devem prever que, caso um prestador de serviços de partilha de conteúdos em linha obtenha uma autorização, por exemplo, através da celebração de um acordo de concessão de licenças, essa autorização compreenda também os atos realizados pelos utilizadores dos serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 3.o da [Diretiva 2001/29] se estes não agirem com caráter comercial ou se a sua atividade não gerar receitas significativas.
3. Quando os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha realizam atos de comunicação ao público ou de colocação à disposição do público nas condições estabelecidas na presente diretiva, a limitação da responsabilidade prevista no artigo 14.o, n.o 1, da [Diretiva 2000/31] não se aplica às situações abrangidas pelo presente artigo.
O disposto no primeiro parágrafo do presente número, não prejudica a possível aplicação do artigo 14.o, n.o 1, da [Diretiva 2000/31] a esses prestadores de serviços para fins não abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente diretiva.
4. Caso não seja concedida nenhuma autorização, os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha são responsáveis por atos não autorizados de comunicação ao público, incluindo a colocação à disposição do público, de obras protegidas por direitos de autor e de outro material protegido, salvo se os prestadores de serviços demonstrarem que:
a) Envidaram todos os esforços para obter uma autorização; e
b) Efetuaram, de acordo com elevados padrões de diligência profissional do setor, os melhores esforços para assegurar a indisponibilidade de determinadas obras e outro material protegido relativamente às quais os titulares de direitos forneceram aos prestadores de serviços as informações pertinentes e necessárias e, em todo o caso;
c) Agiram com diligência, após receção de um aviso suficientemente fundamentado pelos titulares dos direitos, no sentido de bloquear o acesso às obras ou outro material protegido objeto de notificação nos seus sítios Internet, ou de os retirar desses sítios e envidaram os melhores esforços para impedir o seu futuro carregamento, nos termos da alínea b).
5. Para determinar se o prestador de serviço cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do n.o 4, e à luz do princípio da proporcionalidade, devem ser tidos em conta, entre outros, os seguintes elementos:
a) O tipo, o público‑alvo e a dimensão do serviço e o tipo de obras ou material protegido carregado pelos utilizadores do serviço; e
b) A disponibilidade de meios adequados e eficazes, bem como o respetivo custo para os prestadores de serviços.
[…]
7. A cooperação entre os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e os titulares de direitos não resulta na indisponibilidade de obras ou outro material protegido carregado por utilizadores que não violem os direitos de autor e direitos conexos, nomeadamente nos casos em que essas obras ou outro material protegido estejam abrangidos por uma exceção ou limitação.
Os Estados‑Membros asseguram que os utilizadores em cada Estado‑Membro possam invocar qualquer uma das seguintes exceções ou limitações existentes ao carregar e disponibilizar conteúdos gerados por utilizadores em serviços de partilha de conteúdos em linha:
a) Citações, crítica, análise;
b) Utilização para efeitos de caricatura, paródia ou pastiche.
8. A aplicação do presente artigo não implica qualquer obrigação geral de monitorização.
Os Estados‑Membros devem prever que os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha facultem aos titulares de direitos, a pedido destes, informações adequadas sobre o funcionamento das suas práticas no que respeita à cooperação referida no n.o 4 e, caso sejam concluídos acordos de concessão de licenças entre prestadores de serviços e titulares de direitos, informações sobre a utilização dos conteúdos abrangidos pelos acordos.
9. Os Estados‑Membros devem prever que os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha criem um mecanismo de reclamação e de recurso eficaz e rápido, disponível para os utilizadores dos respetivos serviços em caso de litígio sobre o bloqueio do acesso a obras ou outro material protegido por eles carregado, ou a respetiva remoção.
Sempre que solicitem o bloqueio do acesso às suas obras ou outro material protegido específicos ou a remoção dessas obras ou desse material protegido, os titulares de direitos devem justificar devidamente os seus pedidos. As queixas apresentadas ao abrigo do mecanismo previsto no primeiro parágrafo são processadas sem demora injustificada e as decisões de bloqueio do acesso a conteúdos carregados ou de remoção dos mesmos são sujeitas a controlo humano. Os Estados‑Membros asseguram também a disponibilidade de mecanismos de resolução extrajudicial de litígios. Esses mecanismos permitem a resolução de litígios de forma imparcial e não privam o utilizador da proteção jurídica conferida pelo direito nacional, sem prejuízo do direito dos utilizadores a recursos judiciais eficazes. Em especial, os Estados‑Membros asseguram que os utilizadores tenham acesso a um tribunal ou a outro órgão jurisdicional pertinente para reivindicar a utilização de uma exceção ou limitação no que se refere às regras em matéria de direitos de autor e direitos conexos.
A presente diretiva não prejudica de modo algum as utilizações legítimas, como as utilizações abrangidas pelas exceções ou limitações previstas no direito da União […].
Os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha informam os seus utilizadores, nas suas condições gerais, da possibilidade de utilizarem obras e outro material protegido ao abrigo de exceções ou limitações aos direitos de autor e direitos conexos previstas no direito da União.
10. A partir de 6 de junho de 2019, a Comissão, em cooperação com os Estados‑Membros, deve organizar diálogos entre as partes interessadas com vista a debater as melhores práticas para a cooperação entre os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e os titulares de direitos. A Comissão, em consulta com os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha, os titulares de direitos, as organizações de utilizadores e outras partes interessadas pertinentes, e tendo em conta os resultados dos diálogos entre as partes interessadas, emite orientações sobre a aplicação do presente artigo, nomeadamente no que diz respeito à cooperação a que se refere o n.o 4. Aquando do debate sobre melhores práticas, devem ser tidos em especial consideração, entre outros aspetos, os direitos fundamentais e a utilização de exceções e limitações. Para efeitos desse diálogo entre as partes interessadas, as organizações de utilizadores têm acesso a informações adequadas dos prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha sobre o funcionamento das suas práticas no que diz respeito ao n.o 4.»
III. Factos na origem do presente recurso
A. Proposta de diretiva sobre o direito de autor no mercado único digital
12. Em 14 de setembro de 2016, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de diretiva relativa aos direitos de autor no mercado único digital (10). Esta proposta tinha como objetivo adaptar a legislação da União no domínio da propriedade literária e artística — direito de autor e direitos conexos ao direito de autor — em particular a Diretiva 2001/29, à evolução das tecnologias digitais (11). Visava também prosseguir a harmonização neste domínio de uma maneira que, continuando a garantir um nível elevado de proteção da propriedade intelectual, assegure uma ampla disponibilidade dos conteúdos criativos na União e mantenha, no ambiente digital, um «justo equilíbrio» com outros interesses públicos.
13. Neste contexto, o artigo 13.o da referida proposta visava, mais especificamente, corrigir o «Value Gap», a saber, a diferença entre o valor que os prestadores de serviços de partilha em linha retiram das obras e material protegido e as receitas que pagam aos titulares de direitos (12).
14. A este respeito, importa recordar que os serviços em causa, característicos da «Web 2.0» interativa e de que a YouTube (13), a Soundcloud ou ainda a Pinterest são os exemplos mais conhecidos, permitem a qualquer pessoa colocar automaticamente em linha os conteúdos que queira, sem seleção prévia pelos seus prestadores. Os conteúdos colocados em linha pelos utilizadores desses serviços — comummente designados «user‑generated content» ou «user‑uploaded content» — podem em seguida ser consultados em streaming (difusão em fluxo contínuo) a partir dos sítios Internet ou aplicações para equipamentos inteligentes associados aos referidos serviços — sendo essa consulta facilitada pelas funcionalidades de indexação, de pesquisa e de recomendação que aí se encontram geralmente — e isto a maior parte das vezes gratuitamente —, sendo os prestadores desses mesmos serviços geralmente remunerados pela venda de espaços publicitários. Uma quantidade gigantesca de conteúdos (14) é, assim, posta à disposição do público na Internet, incluindo uma parte considerável de obras e de outro material protegido.
15. Ora, a partir de 2015, os titulares de direitos, em particular os da indústria musical, alegaram que, enquanto esses serviços de partilha ocupam, de facto, um lugar importante na distribuição em linha de obras e de outro material protegido e que os seus prestadores retiram daí receitas publicitárias consideráveis, os referidos titulares não são por eles remunerados equitativamente. As receitas que estes prestadores pagam a esses mesmos titulares são, nomeadamente, insignificantes em relação às que os prestadores de serviços de streaming musical — como a Spotify — lhes pagam, embora estes dois tipos de serviços sejam muitas vezes percebidos pelos consumidores como fontes equivalentes de acesso aos referidos materiais. Daqui resulta também uma concorrência desleal entre os referidos serviços (15).
16. Para melhor compreender o argumento do «Value Gap», há que voltar ao quadro jurídico aplicável antes da adoção da Diretiva 2019/790 e às incertezas que o rodeavam.
17. Por um lado, o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, reconhece aos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer «comunicação ao público» das suas obras, incluindo a sua «colocação à disposição do público» por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido (16). São reconhecidos direitos semelhantes aos titulares de direitos conexos relativamente ao seu material protegido (17) nos termos do artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva (18). Por conseguinte, em princípio (19), um terceiro não pode «comunicar ao público» uma obra ou um objeto protegido, sem ter, previamente, obtido a respetiva autorização do ou dos titulares de direitos, autorização que assume geralmente a forma de um acordo de concessão de licença, outorgado contra remuneração (20). Ora, embora sempre tenha sido claro que a colocação em linha, por um utilizador, de uma obra ou de material protegido num serviço de partilha constitui um ato de «comunicação ao público» que necessita dessa autorização prévia, a questão de saber se os prestadores desses serviços devem eles próprios celebrar acordos de concessão de licenças e remunerar os titulares de direitos é objeto de uma controvérsia que opõe esses prestadores aos referidos titulares (21).
18. Por outro lado, o artigo 14.o da Diretiva 2000/31 contém um «porto seguro» (safe harbour) para os prestadores de serviços da sociedade da informação que consiste em armazenar conteúdos prestados por terceiros. Esta disposição prevê, em substância, que o prestador desse serviço está isento de qualquer responsabilidade que possa resultar (22) dos conteúdos ilegais que armazena a pedido dos utilizadores desse serviço desde que não tenha disso conhecimento ou, sendo caso disso, os suprima diligentemente. Ora, mais uma vez, levantava‑se uma controvérsia quanto à questão de saber se os prestadores dos serviços de partilha em linha podiam beneficiar dessa isenção em matéria de direitos de autor (23).
19. Estas controvérsias eram tanto mais vivas quanto o Tribunal de Justiça não tinha tido, até ao momento, a oportunidade de as decidir (24).
20. Neste contexto, alguns prestadores de serviços de partilha tinham simplesmente recusado celebrar acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos para as obras e material protegido colocados em linha pelos utilizadores dos seus serviços, considerando que não eram obrigados a fazê‑lo. Outros prestadores tinham, ainda assim, aceitado celebrar tais acordos, mas as suas condições não eram, segundo os titulares de direitos, equitativas, uma vez que estes últimos não podiam negociar numa base de igualdade com os referidos prestadores (25).
21. Dito isto, a proposta de diretiva visava, portanto, por um lado, que os titulares de direitos pudessem obter uma melhor remuneração pela utilização das suas obras e outro material protegido nos serviços de partilha em linha, ao afirmar a obrigação de os prestadores desses serviços celebrarem acordos de concessão de licenças com os referidos titulares (26).
22. Por outro lado, esta proposta visava permitir aos titulares de direitos controlar mais facilmente a utilização das suas obras e material protegido nos serviços em causa. A este respeito, o seu artigo 13.o obrigava os prestadores dos referidos serviços a recorrer, em substância, a tecnologias de reconhecimento automático de conteúdo já implementadas, voluntariamente, por alguns dentre eles, ou seja, ferramentas informáticas, cujo funcionamento será descrito mais adiante (27), que podem ser utilizadas nomeadamente no momento da colocação em linha de um conteúdo por um utilizador — daí a designação comum dessas ferramentas de «Upload filter» (filtros de colocação em linha) — para verificar, por intermédio de um processo automatizado, se esse conteúdo inclui uma obra ou outro material protegido e, sendo caso disso, bloquear‑lhe a difusão (28).
23. A proposta de diretiva, em especial o seu artigo 13.o, deu lugar a numerosos debates no Parlamento e no Conselho no âmbito do processo legislativo. Além disso, este processo foi marcado por intensas campanhas de lobbying por parte dos operadores económicos afetados e por demonstrações de oposição de uma parte da sociedade civil, dos meios académicos e dos defensores da liberdade de expressão, que alegavam efeitos nefastos para os prestadores de serviços de partilha que a obrigação de instalar «upload filters» poderia, na sua opinião, ter sobre essa liberdade (29).
24. A proposta de diretiva foi por fim aprovada pelo Parlamento em 26 de março de 2019 e pelo Conselho em 16 de abril de 2019 (30). Esta proposta foi oficialmente adotada enquanto Diretiva 2019/790, em 17 de abril de 2019. Devia ser transposta pelos Estados‑Membros o mais tardar até 7 de junho de 2021 (31).
B. Artigo 17.o da Diretiva 2019/790
25. Durante este processo legislativo, o artigo 13.o da proposta de diretiva sofreu diversas alterações. Foi adotado, numa redação sensivelmente diferente, como artigo 17.o da Diretiva 2019/790. Parece‑me oportuno apresentar desde já determinados aspetos fundamentais.
26. Primeiro, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 dirige‑se, como indica o seu título, aos «prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha» (32). Este conceito é definido no artigo 2.o, ponto 6, primeiro parágrafo, desta diretiva no sentido de que se refere a qualquer «prestador de um serviço da sociedade da informação que tem como principal objetivo ou um dos seus principais objetivos armazenar e facilitar o acesso do público a uma quantidade significativa de obras ou outro material protegido por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores, que organiza e promove com fins lucrativos». Independentemente do caráter aberto dos termos utilizados, deles resulta claramente que este artigo 17.o diz respeito aos «grandes» prestadores de serviços de partilha, considerados ligados ao «Value Gap» (33), e do qual esta definição procura, obviamente, refletir o funcionamento (34).
27. Segundo, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 enuncia, no seu n.o 1, primeiro parágrafo, que os prestadores de serviços de partilha «realizam um ato de comunicação ao público ou de colocação à dispo[si]ção do público para efeitos da presente diretiva quando oferecem ao público o acesso a obras ou outro material protegido por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores». Por conseguinte, como precisa o segundo parágrafo desse número, esses prestadores devem, em princípio, obter uma autorização dos titulares de direitos, por exemplo através da celebração de um acordo de concessão de licenças, relativo à utilização, nos seus serviços, de conteúdos protegidos colocados em linha pelos utilizadores (35). Assim, o legislador da União resolveu ex lege a controvérsia evocada no n.o 17 das presentes conclusões a favor desses titulares (36).
28. Esta obrigação está diretamente relacionada com o objetivo geral prosseguido pelo artigo 17.o da Diretiva 2019/790, a saber, «alcançar um mercado dos direitos de autor justo e que funcione corretamente» (37), ao incentivar o desenvolvimento do «mercado de concessão de licenças entre os titulares de direitos e os prestadores de serviços de partilha». Trata‑se de reforçar a posição desses titulares na negociação (ou na renegociação) de acordos de concessão de licenças com esses prestadores, a fim de garantir que esses acordos sejam «justos» e mantenham um «equilíbrio razoável para ambas as partes» (38) — e, ao fazê‑lo, corrigir o «Value Gap». A posição negocial dos referidos titulares é tanto mais reforçada quanto, em princípio, não são obrigados, por seu lado, a celebrar tais acordos com esses mesmos prestadores (39).
29. Terceiro, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 esclarece, no seu n.o 3, que, quando os prestadores de serviços de partilha realizam atos de «comunicação ao público» ou de «colocação à disposição do público», nas condições estabelecidas no n.o 1 deste artigo, a isenção de responsabilidade prevista no artigo 14.o da Diretiva 2000/31 não se aplica (40).
30. Quarto, o n.o 4 deste artigo 17.o esclarece que, se os prestadores de serviços de partilha não tiverem obtido autorização dos titulares de direitos, são responsáveis por atos «não autorizados» (41) de comunicação ao público realizados por intermédio dos seus serviços. Trata‑se de uma consequência lógica do que precede: uma vez que, doravante, se presume que esses prestadores realizam atos de «comunicação ao público» quando «dão acesso» às obras e outro material protegido carregados pelos utilizadores dos seus serviços, assumem uma responsabilidade direta (ou «primária») em caso de «comunicação» ilícita.
31. Em princípio, a responsabilidade direta que recai sobre a pessoa que realiza o ato ilegal de «comunicação ao público» é uma responsabilidade objetiva (42). Os prestadores de serviços de partilha devem, portanto, ser automaticamente responsáveis cada vez que uma obra ou material protegido é ilegalmente colocado em linha pelos seus serviços. A este título, podem ser, nomeadamente, condenados a pagar aos titulares de direitos em causa indemnizações por perdas e danos potencialmente consideráveis (43).
32. Contudo, uma vez que, por um lado, são os utilizadores dos serviços de partilha que colocam em linha os conteúdos que aí se encontram, sem uma seleção prévia dos seus prestadores a este respeito (44), e que, por outro, estes prestadores não conseguirão provavelmente obter autorização de todos os titulares dos direitos para todas as obras e outros material protegido, presentes e futuros, que podem assim ser aí carregados (45), tal responsabilidade objetiva forçaria os referidos prestadores a mudar completamente de modelo económico — e, nesse sentido, a abandonar o próprio modelo da «Web 2.0» interativa.
33. Por conseguinte, o legislador da União considerou que havia que prever, para esses mesmos prestadores, um mecanismo de responsabilidade específica (46). Em conformidade com o artigo 17.o, n.o 4, da Diretiva 2019/790, estes podem, em caso de «comunicação ao público» ilegal através dos seus serviços, eximir‑se a qualquer responsabilidade demonstrando que:
«a) Envidaram todos os esforços para obter uma autorização; e
b) Efetuaram, de acordo com elevados padrões de diligência profissional do setor, os melhores esforços para assegurar a indisponibilidade de determinadas obras e outro material protegido relativamente às quais os titulares de direitos forneceram aos prestadores de serviços as informações pertinentes e necessárias e, em todo o caso;
c) Agiram com diligência, após receção de um aviso suficientemente fundamentado pelos titulares dos direitos, no sentido de bloquear o acesso às obras ou outro material protegido objeto de notificação nos seus sítios Internet, ou de os retirar desses sítios e envidaram os melhores esforços para impedir o seu futuro carregamento, nos termos da alínea b)».
34. Duas dessas condições cumulativas estão no cerne do presente recurso. Os restantes números do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 serão apresentados à medida que o recurso seja analisado (47).
IV. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes
35. Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 24 de maio de 2019, a República da Polónia interpôs o presente recurso.
36. A República da Polónia pede que o Tribunal de Justiça se digne:
– anular o artigo 17.o, n.o 4, alíneas b) e c), in fine, isto é, na medida em que diz respeito à redação «e envidaram os melhores esforços para impedir o seu futuro carregamento, nos termos da alínea b)», da Diretiva 2019/790;
– subsidiariamente, na hipótese de o Tribunal de Justiça considerar que as normas impugnadas não podem ser dissociadas do resto do artigo 17.o desta diretiva sem que seja alterada a sua essência, anular este artigo na sua totalidade;
– condenar o Parlamento e o Conselho nas despesas.
37. O Parlamento pede ao Tribunal de Justiça que se digne:
– negar provimento ao recurso;
– condenar a República da Polónia nas despesas.
38. O Conselho pede que o Tribunal de Justiça se digne:
– julgar inadmissíveis os pedidos principais;
– a título subsidiário, negar provimento ao recurso na íntegra;
– condenar a República da Polónia nas despesas.
39. Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça, de 17 de outubro de 2019, foi admitida a intervenção do Reino de Espanha, da República Francesa, da República Portuguesa e da Comissão Europeia em apoio dos pedidos do Parlamento e do Conselho. Todos os intervenientes apresentaram articulados de intervenção, com exceção da República Portuguesa.
40. As partes e os intervenientes, com exceção do Governo português, estiveram representados na audiência de alegações realizada em 10 de novembro de 2020.
V. Análise
41. Em apoio do seu recurso, a República da Polónia invoca um fundamento único, relativo à violação do direito à liberdade de expressão e de informação, garantido no artigo 11.o, n.o 1, da Carta (48). Antes de examinar este fundamento quanto ao mérito (secção B), debruçar‑me‑ei brevemente sobre a admissibilidade do pedido (secção A).
A. Quanto à admissibilidade
42. O Parlamento, o Conselho, o Governo francês e a Comissão alegam que os pedidos principais da petição, na medida em que visam obter a anulação apenas das alíneas b) e c), in fine, do n.o 4 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, são inadmissíveis. Também partilho desta opinião.
43. Com efeito, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a anulação parcial de um ato da União só é possível se os elementos cuja declaração de invalidade é pedida forem destacáveis do resto desse ato. Este requisito não está cumprido quando essa anulação parcial tenha por efeito alterar a sua substância (49).
44. Ora, a anulação apenas das alíneas b) e c), in fine, do seu n.o 4 altera, manifestamente, a substância do artigo 17.o da Diretiva 2019/790. Como alegam o Parlamento, o Conselho, o Governo francês e a Comissão, as diversas disposições deste artigo 17.o constituem, no seu conjunto, um regime «complexo» de responsabilidade, que traduz o equilíbrio pretendido pelo legislador da União entre os direitos e interesses dos prestadores de serviços de partilha, dos utilizadores dos seus serviços e dos titulares dos direitos. A anulação apenas das disposições impugnadas teria por consequência substituir esse regime de responsabilidade por um regime ao mesmo tempo sensivelmente diferente e claramente mais favorável para esses prestadores. Por outras palavras, proceder a essa anulação parcial equivaleria, para o Tribunal de Justiça, a rever esse mesmo artigo 17.o, o que não pode fazer no âmbito de um processo de anulação nos termos do artigo 263.o TFUE.
45. Em contrapartida, é pacífico entre as partes que os pedidos apresentados a título subsidiário pela recorrente, com os quais pede a anulação integral do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, são admissíveis. Com efeito, por mais importante que seja este artigo, a sua anulação não altera a substância desta diretiva. Os numerosos artigos desta têm objetos diversos e estão repartidos por diferentes títulos e capítulos. O artigo 17.o da referida diretiva é, neste caso, destacável dos seus outros artigos, que poderiam perfeitamente subsistir em caso de declaração de anulação do primeiro (50).
B. Quanto ao mérito
46. O fundamento único invocado pela República da Polónia pode ser resumido em poucas palavras. Em substância, alega que, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 4, alíneas b) e c), in fine, da Diretiva 2019/790, os prestadores de serviços de partilha têm, para ficarem isentos de qualquer responsabilidade em caso de «comunicação ao público» ilegal de obras ou de outro material protegido nos seus serviços, de proceder a uma monitorização preventiva dos conteúdos que os utilizadores pretendem colocar em linha. Para o efeito, devem utilizar ferramentas informáticas que permitam a filtragem automática dos referidos conteúdos. Ora, esta monitorização preventiva constitui uma limitação ao exercício do direito à liberdade de expressão, garantido pelo artigo 11.o da Carta. Esta limitação não é compatível com esse instrumento, uma vez que viola o «conteúdo essencial» desse direito fundamental ou, pelo menos, não respeita o princípio da proporcionalidade.
47. Na contestação, o Parlamento e o Conselho, apoiados pelos Governos espanhol e francês e pela Comissão, contestam cada um destes pontos. Analisá‑los‑ei, portanto, sucessivamente nas secções seguintes. Antes de mais, debruçar‑me‑ei sobre o alcance das disposições impugnadas (secção 1). Em seguida, abordarei a questão da restrição do exercício do direito à liberdade de expressão e de informação (secção 2) e, por último, a questão da compatibilidade desta limitação com a Carta (secção 3).
1. Quanto ao alcance das disposições impugnadas
48. Para bem apreciar o alcance das condições de isenção de responsabilidade previstas no artigo 17.o, n.o 4, alíneas b) e c), in fine, da Diretiva 2019/790, é útil ter presente, enquanto termo de comparação, as que constam do artigo 14.o da Diretiva 2000/31. Em substância, nos termos deste artigo, um prestador está isento de qualquer responsabilidade que possa resultar de uma informação ilegal que armazene a pedido de um utilizador do seu serviço desde que, em primeiro lugar (a) não tenha disso conhecimento ou, em segundo lugar (b), sendo caso disso, tenha diligentemente removido ou bloqueado o acesso a essa informação. Na prática, não se espera desse prestador que monitorize as informações presentes nos seus servidores e que investigue, de forma ativa, as informações ilegais que aí se encontram (51). Em contrapartida, quando a existência e a localização dessa informação ilegal são levadas ao seu conhecimento, regra geral através de uma notificação enviada por um terceiro, esse prestador deve reagir retirando a informação em questão ou bloqueando o acesso à mesma — segundo um sistema de «notificação e retirada» (notice‑and‑take‑down) (52).
49. Em contrapartida, como alega a recorrente, para cumprir as condições previstas pelas disposições impugnadas, os prestadores de serviços de partilha devem efetuar uma monitorização preventiva das informações colocadas em linha pelos utilizadores desses serviços [secção a)]. Ora, para efetuar essa vigilância, esses prestadores deverão, em muitas situações, utilizar ferramentas informáticas que permitam a filtragem automática dos referidos conteúdos [secção b)].
a) Monitorização preventiva dos conteúdos colocados em linha pelos utilizadores[…]
50. Em primeiro lugar, recordo que, por um lado, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 4, alínea b) da Diretiva 2019/790, os prestadores de serviços de partilha devem efetuar, «de acordo com elevados padrões de diligência profissional os melhores esforços» para «assegurar a indisponibilidade» de determinadas obras e outro material protegido relativamente às quais os titulares de direitos forneceram aos prestadores de serviços as informações pertinentes e necessárias.
51. Por outro lado, em conformidade com a alínea c) desse número, quando recebem um aviso suficientemente fundamentado pelos titulares dos direitos, relativo à presença de obras ou outro material protegido nos seus serviços, esses mesmos prestadores devem não só agir com diligência para bloquear o acesso a esse material ou retirá‑lo dos seus sítios Internet (53), mas também efetuar os «melhores esforços» para «impedir o seu futuro carregamento» — seguindo, desta vez, uma lógica de «notificação e bloqueio permanente» (notice‑and‑stay‑down).
52. Em suma, as disposições impugnadas fazem recair sobre os prestadores de serviços de partilha obrigações de diligência — ou, dito de outra forma, obrigações de meios (54) — em matéria de monitorização dos seus serviços. Para «assegurar a indisponibilidade» das obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos e «impedir o seu futuro carregamento», esses prestadores devem adotar «todas as medidas que seriam tomadas por um operador diligente» (55) para detetar e bloquear ou remover, de forma ativa, de entre o volume de conteúdos que os utilizadores colocam em linha, os que reproduzem os objetos em questão (56).
53. Esta interpretação é confirmada pelo objetivo prosseguido no artigo 17.o da Diretiva 2019/790. Com efeito, ao abrigo do artigo 14.o da Diretiva 2000/31, os titulares de direitos deviam vigiar os serviços de partilha e levar ao conhecimento dos seus prestadores, através de notificações, os conteúdos contrafeitos que aí se encontravam, para que estes os retirem. Ora, como o Conselho recordou, o legislador da União considerou, aquando da adoção do referido artigo 17.o que esse sistema representava um encargo excessivo para os titulares de direitos e não lhes permitia controlar eficazmente a utilização das suas obras e outro material protegido nesses serviços (57). Em particular, os conteúdos retirados eram muitas vezes recolocados em linha pouco tempo depois, o que forçava estes últimos a multiplicar as notificações (58). Para corrigir o problema, as disposições impugnadas transferem para esses mesmos prestadores a responsabilidade de monitorizar os seus serviços (59).
54. Em segundo lugar, como alega a República da Polónia, para cumprir os objetivos previstos nas disposições impugnadas, os prestadores de serviços de partilha devem tentar prevenir — ex ante — a colocação em linha de conteúdos contrafeitos, e não simplesmente remover — ex post — esses conteúdos.
55. A este respeito, resulta do considerando 66, da Diretiva 2019/790 que, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 4, alínea b), desta diretiva, os prestadores de serviços de partilha devem tentar «evitar» que as obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos «[estejam] disponíveis» nos seus serviços. A alínea c) deste número é ainda mais explícita quanto à natureza das medidas previstas, uma vez que indica que esses prestadores devem monitorizar para «impedir» «o futuro carregamento» das obras ou outro material protegido que tenham dado origem a um aviso dos titulares de direitos. Além disso, a expressão «nos termos da alínea b)» sublinha que a mesma coisa é esperada dos referidos prestadores nestas duas alíneas: devem tentar prevenir a colocação em linha — ou a recolocação em linha no âmbito do «stay‑down» — de determinados conteúdos ilícitos nos seus serviços.
56. Esta interpretação é, mais uma vez, confirmada pelo objetivo, prosseguido pelo artigo 17.o da Diretiva 2019/790, que consiste em permitir aos titulares de direitos controlar mais facilmente a utilização das suas obras nos serviços de partilha. Como alegou o Conselho, esta disposição visa reafirmar, no ambiente digital, o caráter exclusivo do direito de «comunicação ao público». As obrigações de diligência impostas aos prestadores de serviços de partilha pelas disposições impugnadas destinam‑se a assegurar que esses titulares possam efetivamente «interpor‑se entre eventuais utilizadores da sua obra e a comunicação ao público que esses utilizadores podem pretender fazer» (60) nesses serviços. Como sublinharam o Parlamento e o Conselho, os prestadores devem, portanto, tentar intervir antes da colocação dos conteúdos em linha, isto é, antes que as obras ou material protegido que podem reproduzir sejam efetivamente «comunicadas ao público» em violação desse direito exclusivo.
b) ... que necessitará, em muitas situações, da utilização de ferramentas de filtragem
57. Nesta fase das presentes conclusões, parece‑me útil explicar que algumas ferramentas informáticas permitem detetar automaticamente a colocação em linha ou a presença, num servidor, de determinadas informações. Especificamente, existem, para este efeito, ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo (Automatic Content Recognition, ou «ACR»), baseados em diferentes técnicas, a saber — da mais simples para a mais complexa — o «hashing», a «marcação digital» (watermarking) e a «impressão digital» («fingerprinting») (61).
58. Ora, desde a segunda metade dos anos 2000, essas ferramentas que utilizam muito especialmente esta última técnica (62), têm sido instaladas, voluntariamente, por determinados operadores de serviços de partilha e isso nomeadamente (63) para pesquisar ativamente conteúdos contrafeitos nos seus serviços (64). Com efeito, as ferramentas de reconhecimento por «impressão digital» podem filtrar automaticamente as obras e outro material protegido dos titulares de direitos entre os conteúdos carregados nos referidos serviços, ao comparar esses conteúdos, no momento da sua colocação em linha ou uma vez esta efetuada, com informações de referência prestadas pelos respetivos titulares (65). Quando essa comparação estabelece uma correspondência («match»), as referidas ferramentas dão em geral aos titulares de direitos em causa a opção de decidir, manual ou automaticamente, bloquear o conteúdo em causa, autorizar a sua colocação em linha e seguir a sua popularidade através de estatísticas de audiência, ou ainda «rentabilizá‑lo» inserindo‑lhe publicidade (66).
59. A proposta de diretiva integrava estes desenvolvimentos tecnológicos. A análise de impacto sublinhava a eficácia das ferramentas de reconhecimento por «impressão digital» em matéria de contrafação e a sua disponibilidade acrescida no mercado. Assim, esta proposta visava, recordo (67), tornar obrigatória a instalação dessas ferramentas pelos prestadores de serviços de partilha, uma vez que o objetivo era obrigar aqueles que ainda não o tinham feito a «atualizar‑se» e obrigar os outros a dar aos titulares de direitos um acesso transparente às suas ferramentas de reconhecimento (68).
60. Como não deixaram de sublinhar o Parlamento, o Conselho e o Governo espanhol, a versão final da Diretiva 2019/790 já não contém referências expressas às ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo. As alíneas b) e c), do n.o 4, do artigo 17.o, desta diretiva estão redigidas em termos gerais. Estas disposições não impõem, formalmente, aos prestadores de serviços de partilha a adoção de medidas ou de técnicas específicas com vista a alcançar os objetivos que prosseguem (69).
61. Segundo as recorridas e os intervenientes, as disposições impugnadas não obrigam, portanto, estes prestadores a recorrer a tais ferramentas. Dispõem de uma «margem de manobra» quanto às medidas e técnicas a aplicar com vista a alcançar os objetivos previstos nessas disposições. Neste âmbito, os referidos prestadores podiam «optar» pela utilização de ferramentas semelhantes — ou continuar a fazê‑lo, no caso dos que já as utilizam — ou até desenvolver «soluções inovadoras» (70). Em todo o caso, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 5, da Diretiva 2019/790, as medidas exigidas desses mesmos prestadores deviam ser examinadas caso a caso, à luz do princípio da proporcionalidade.
62. Deste modo, como defende a República da Polónia, afigura‑se‑me que as disposições impugnadas obrigam efetivamente os prestadores de serviços de partilha a utilizar, em muitas situações, essas ferramentas de reconhecimento de conteúdos (71). Na minha opinião, o legislador da União mudou simplesmente de método entre a proposta de diretiva e a sua adoção enquanto Diretiva 2019/790. Em vez de prever diretamente uma obrigação de instalar essas ferramentas, impô‑las indiretamente, através das condições de isenção de responsabilidade previstas nessas disposições.
63. Com efeito, por um lado, como a recorrente sublinhou com razão, há que ter presente o contexto factual em que se inscrevem as disposições impugnadas. O artigo 17.o da Diretiva 2019/790 diz respeito aos prestadores de serviços que armazenam e facilitam o acesso do público a uma «quantidade significativa de obras ou outro material protegido por direitos de autor». Por outras palavras, trata‑se de operadores que geram um volume importante, ou mesmo gigantesco, de conteúdos. Além disso, esses serviços de partilha são prestados de forma ininterrupta e estão acessíveis a um número considerável de utilizadores, podendo assim ser colocadas em linha a todo o momento quantidades consideráveis de novos conteúdos.
64. Em tal contexto, parece‑me evidente que, como alega a recorrente, os prestadores de serviços de partilha não podem fazer verificar pelos seus colaboradores a totalidade ou mesmo a maior parte dos conteúdos colocados em linha (72) — o que, de resto, o Parlamento reconhece. Assim, tenho dificuldade em compreender por que meios, diferentes da utilização de uma ferramenta de reconhecimento automático que lhes permita filtrar conteúdos carregados nos seus serviços, estes prestadores podem razoavelmente «assegurar a indisponibilidade» de obras e material protegido identificados pelos titulares de direitos e «impedir o seu futuro carregamento» nos seus serviços, em conformidade com os objetivos visados pelas disposições impugnadas (73) — e a referência do Parlamento e do Conselho a eventuais «soluções inovadoras» apenas dá, a este respeito, uma ajuda muito relativa (74). De resto, os recorridos e os intervenientes admitiram por meias palavras, na audiência, em resposta às questões do Tribunal de Justiça, que essas ferramentas serão, de facto, muitas vezes indispensáveis para esse efeito (75).
65. Por outro lado, recordo que os prestadores de serviços de partilha devem, para cumprir as obrigações de diligência que lhes são impostas, em conformidade com a redação do artigo 17.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2019/790, tomar medidas que respondam aos «mais elevados padrões de diligência profissional do setor». Como precisa o considerando 66, segundo parágrafo, desta diretiva, há que ter em conta, a este respeito, as «boas práticas da indústria» e a «tecnologia de ponta».
66. Ora, como já expliquei no n.o 58 das presentes conclusões, as ferramentas de reconhecimento por «impressão digital» já são utilizadas por diferentes prestadores de serviços de partilha, em relação a diversos tipos de conteúdos (76). Os outros prestadores que aceitam esses conteúdos nos seus serviços parecem, portanto, a priori, para cumprir as obrigações de diligência resultantes das disposições impugnadas, ter de se conformar com «as boas práticas da indústria» e a «tecnologia de ponta» aplicando essas ferramentas para filtrar essas categorias de conteúdos.
67. É certo que, como sublinharam os recorridos e os intervenientes, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 5, da Diretiva 2019/790, as medidas que se espera dos prestadores de serviços de partilha devem, em cada caso, ser conformes com o princípio da proporcionalidade. A este respeito, devem ser tidos em consideração, nomeadamente, em primeiro lugar, «[o] tipo, o público‑alvo e a dimensão do serviço e o tipo de obras ou material protegido carregado pelos utilizadores do serviço» e, em segundo, «[a] disponibilidade de meios adequados e eficazes, bem como o respetivo custo para os prestadores de serviços» (77). Neste âmbito, não se pode excluir que, em certos casos particulares, seja contrário a esse princípio exigir a certos prestadores que utilizem uma ferramenta de reconhecimento de conteúdo. Parece também que, no estado atual da tecnologia, essas ferramentas não são nem adequadas nem eficazes no que respeita a certos tipos específicos de obras e de material protegido (78).
68. No entanto, postos estes casos particulares à parte, é claro para mim que, em todas as situações em que diferentes ferramentas adequadas e eficazes estão disponíveis no mercado e não são injustificadamente caras, os prestadores de serviços de partilha têm a priori de as instalar para demonstrar que envidaram «todos os esforços» para prevenir a colocação em linha de conteúdos ilícitos e assim, cumprir as disposições impugnadas (79). No caso em apreço, podem, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, optar, de entre as ferramentas disponíveis, pelas que estejam mais bem adequadas às suas situações e aos recursos de que dispõem (80) — ou até os que estejam em melhores condições económicas, desenvolver essa ferramenta internamente.
69. Em resumo, para demonstrar que, em conformidade com as disposições impugnadas, envidaram «todos os esforços, de acordo com os mais elevados padrões de diligência profissional do setor» para «assegurar a indisponibilidade» de determinadas obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos e «impedir o seu futuro carregamento» nos seus serviços, os prestadores de serviços de partilha devem, em muitos casos, instalar ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo, a fim de filtrar os conteúdos que os utilizadores colocam em linha e, se for caso disso, bloquear alguns deles antes do seu carregamento (81).
2. Quanto à existência de uma limitação no exercício do direito à liberdade de expressão e de informação
70. Tendo sido clarificado o alcance das disposições impugnadas, trata‑se agora de iniciar o exame destas disposições à luz do direito à liberdade de expressão e de informação.
71. O direito garantido no artigo 11.o da Carta, que «compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras» corresponde ao previsto no artigo 10.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») (82). Nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, estes dois direitos têm, portanto, o mesmo sentido ou, em todo o caso, o mesmo âmbito. Daqui resulta que o artigo 11.o da Carta deve ser interpretado à luz do artigo 10.o da CEDH e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») correspondente.
72. Este direito fundamental é inegavelmente relevante no caso em apreço. Com efeito, como a República da Polónia e a Comissão evocaram nas respetivas observações, os serviços de partilha referidos no artigo 17.o da Diretiva 2019/790 têm especial importância para a liberdade de receber ou transmitir informações ou ideias.
73. Como alega a recorrente, a colocação em linha de conteúdos nos referidos serviços — quer se trate de vídeos, de fotografias, de textos, etc. — enquadra‑se no exercício do direito à liberdade de expressão e de informação (83). Essa colocação em linha também pode respeitar a outras liberdades conexas. Especialmente quando os conteúdos em questão constituem a expressão artística dos utilizadores que os carregam, a sua colocação em linha enquadra‑se no exercício da liberdade das artes, garantida no artigo 13.o da Carta e no artigo 10.o da CEDH (84).
74. Esclareço que é o que acontece independentemente da questão de saber se esses conteúdos violam ou não direitos de autor. O argumento contrário invocado pelo Parlamento procede, em minha opinião, de uma aproximação jurídica. Com efeito, o facto de uma informação ser protegida pelo direito de autor não tem o efeito de a excluir à partida do âmbito da liberdade de expressão (85). Embora se justifique, regra geral, restringir a difusão dessa informação, isso só é relevante na fase da análise das condições de admissibilidade de semelhante restrição a essa liberdade(86).
75. Ora, segundo a recorrente, as medidas de filtragem que os prestadores de serviços de partilha são obrigados a instalar para cumprir o artigo 17.o, n.o 4, alíneas b) e c), in fine, da Diretiva 2019/790 constituem, por natureza, «medidas preventivas» de controlo das informações dos utilizadores. Estas medidas implicam «restrições prévias», na aceção da jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 10.o da CEDH. As disposições impugnadas implicam, portanto, a instalação, nos serviços de partilha, de uma «censura geral automatizada de natureza preventiva» feita pelos seus prestadores. As referidas disposições caracterizam, assim, uma «ingerência», particularmente grave, do legislador da União na liberdade de expressão e de informação dos referidos utilizadores.
76. Em contrapartida, os recorridos e os intervenientes contestam que as disposições impugnadas impliquem tal «censura» ou qualquer «ingerência» nessa liberdade. Especialmente, segundo o Conselho, estas disposições — ou o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 de uma maneira geral — não têm por objeto restringir ex ante as informações que podem ser difundidas nesses serviços. Os utilizadores continuam a ser livres de carregar aí os conteúdos que quiserem. Simplesmente, em todas as situações em que os conteúdos colocados em linha sejam protegidos pelo direito de autor, esses mesmos prestadores devem obter uma autorização dos titulares de direitos em causa e, na sua falta, são responsáveis ex post.
77. À semelhança da recorrente, considero que as disposições impugnadas implicam efetivamente uma «ingerência» na liberdade de expressão dos utilizadores dos serviços de partilha. Devo, no entanto, fazer desde já uma precisão de ordem terminológica. O termo «censura» é, na verdade, polissémico. Assim sendo, resulta claramente das observações da recorrente que esta visa com isso a ideia de um controlo prévio das informações antes da sua divulgação. Neste contexto, os desenvolvimentos do Parlamento, do Conselho e do Governo espanhol, segundo os quais o termo «censura» não é relevante no caso em apreço, uma vez que o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 não implica nenhum controlo «político ou moral» das informações colocadas em linha nos serviços de partilha são, a meu ver, irrelevantes. Para evitar qualquer confusão suplementar, limitar‑me‑ei a utilizar, na presente secção, os termos «medidas preventivas» e «restrições prévias».
78. Feita esta precisão, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 não prevê simplesmente, como sustenta o Conselho, que os prestadores de serviços de partilha devem obter uma autorização para os conteúdos protegidos colocados em linha pelos utilizadores dos seus serviços e que, na sua falta, são por eles diretamente responsáveis. Como expliquei na secção anterior, as disposições impugnadas preveem também que os referidos prestadores estão isentos desta responsabilidade quando envidam «os melhores esforços» para prevenir a colocação em linha, por esses utilizadores, de conteúdos que reproduzem as obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos. Estes mesmos prestadores são assim levados a proceder à filtragem e ao bloqueio preventivos dos conteúdos em questão.
79. Ora, como alega a recorrente, a filtragem é, por natureza, uma «medida preventiva» de controlo das informações difundidas nesses serviços e as medidas de bloqueio que podem resultar desse controlo constituem «restrições prévias», na aceção da jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 10.o da CEDH (87): não para reprimir, mas para prevenir eventuais violações dos direitos de autor, uma vez que as informações que os utilizadores decidem colocar em linha são controladas, e as consideradas suscetíveis de causar essa violação são restringidas previamente à sua difusão (88).
80. Nestas situações, contrariamente ao que alega o Conselho, os utilizadores não são, portanto, «livres» de colocar em linha os conteúdos que quiserem nos serviços de partilha. As medidas de filtragem e de bloqueio aplicadas pelos seus prestadores vão restringir os conteúdos que podem carregar. Daqui resulta uma «ingerência» no exercício da liberdade de comunicação dos referidos utilizadores. A filtragem e o bloqueio de conteúdos antes da sua difusão implicam, além disso, uma «ingerência» na liberdade do público de receber informações (89).
81. O Parlamento e o Conselho contestam que os prestadores de serviços de partilha possam, enquanto operadores privados, escolher livremente as informações que pretendem ver difundidas nos seus serviços e, assim, decidir filtrar e bloquear conteúdos. Mesmo admitindo que isso constitui uma «ingerência» na liberdade de expressão dos utilizadores, esta não é, em todo o caso, imputável ao legislador da União.
82. Na minha opinião, este argumento mistura duas situações. É verdade que os prestadores de serviços de partilha podem, no âmbito da liberdade de empresa e da liberdade contratual que lhes são garantidas no artigo 16.o da Carta, definir, nas condições de utilização dos seus serviços ou ainda das «normas da comunidade», uma política em matéria de conteúdos e exercer, por sua própria iniciativa, uma forma de «autorregulação» procedendo à filtragem e ao bloqueio de conteúdos que, em seu entender, violam essas regras. Nesta situação, não há «ingerência de autoridades públicas», na aceção do artigo 10.o da CEDH e do artigo 11.o da Carta na liberdade de expressão dos utilizadores (90).
83. Todavia, no caso em apreço, não está em causa, na minha opinião, a «autorregulação» dos prestadores de serviços de partilha. Independentemente da questão de saber se a proibição de colocação em linha de conteúdos contrafeitos figura nas suas condições gerais de utilização ou nas suas «normas comunitárias», a filtragem e o bloqueio de conteúdos são efetuados para cumprir as disposições impugnadas (91).
84. Por conseguinte, na minha opinião, a «ingerência» na liberdade de expressão dos utilizadores é efetivamente imputável ao legislador da União. Com efeito, é ele o instigador. De resto, o Parlamento e o Conselho reconhecem eles próprios que as disposições impugnadas visam, em substância, atribuir aos prestadores de serviços de partilha o ónus de controlar as violações do direito de autor cometidas nesses serviços. De certa forma, o legislador delegou nesses prestadores a tarefa de controlar a boa aplicação dos direitos de autor em ambiente digital. Ora, o legislador não pode, ao mesmo tempo, proceder a essa delegação e imputar toda a responsabilidade aos referidos prestadores pela ingerência nos direitos fundamentais dos utilizadores que daí resulta (92).
85. A minha convicção a este respeito não é afetada pelo argumento do Conselho de que as disposições impugnadas não «obrigam» os prestadores de serviços de partilha a proceder à filtragem e ao bloqueio dos conteúdos colocados em linha pelos utilizadores dos seus serviços, uma vez que o artigo 17.o, n.o 4, da Diretiva 2019/790 não impõe, stricto sensu, nenhuma «obrigação» a esses prestadores, limitando‑se a prever um mecanismo de isenção de responsabilidade que têm a «possibilidade» de utilizar quando não obtiverem autorização dos titulares de direitos.
86. Com efeito, na minha opinião, para apreciar a compatibilidade do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 com o artigo 11.o da Carta, há que ter em conta não só os seus termos mas também os seus efeitos concretos. Ora, tendo em conta o facto de, por um lado, os prestadores de serviços de partilha não conseguirem obter autorização dos titulares de direitos para um certo número de obras e de outro material protegido (93), ao passo que, por outro, os utilizadores podem, eventualmente, ainda assim, colocar em linha quantidades de conteúdos que reproduzem os objetos em questão, o recurso ao mecanismo de isenção previsto no artigo 17.o, n.o 4, da Diretiva 2019/790 será, para esses prestadores, não uma «possibilidade», mas uma necessidade, sob pena de suportarem um risco desmedido de responsabilidade. Assim, em muitos casos, as condições de isenção previstas nas disposições impugnadas constituem na prática, verdadeiras obrigações para os referidos prestadores. De resto, observo que o próprio n.o 5 do referido artigo 17.o se refere às «obrigações que […] incumbem [aos prestadores de serviços de partilha] por força do n.o 4» (o sublinhado é meu).
87. Na minha opinião, esse mecanismo de responsabilidade/isenção é uma técnica tão eficaz como uma obrigação direta para obrigar os operadores económicos em causa a procederem à filtragem preventiva dos conteúdos dos seus utilizadores. Como indiquei no n.o 62 das presentes conclusões, o legislador da União mudou simplesmente de método a este respeito. Todavia, estes diferentes métodos implicam os mesmos efeitos e devem, por essa razão, ser considerados da mesma maneira à luz dos direitos fundamentais (94).
3. Quanto à compatibilidade desta limitação com a Carta
88. Resulta da secção anterior que, como alega a República da Polónia, as disposições impugnadas implicam uma limitação no exercício do direito à liberdade de expressão, conforme garantido no artigo 11.o da Carta.
89. Assim sendo, a liberdade de expressão não é uma prerrogativa absoluta. Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, são admissíveis restrições ao exercício dessa liberdade desde que estas, em primeiro lugar, sejam «prevista[s] por lei», em segundo lugar, respeitem o «conteúdo essencial» dessa liberdade e, em terceiro lugar, respeitem o princípio da proporcionalidade.
90. De forma semelhante, em conformidade com o artigo 10.o, n.o 2, da CEDH e da jurisprudência do TEDH a ele relativa, é admissível uma ingerência na liberdade de expressão desde que, primeiro, seja «prevista pela lei», depois, prossiga um ou vários objetivos legítimos definidos no referido n.o 2 e, por fim, seja «necessária numa sociedade democrática» (95). Se estas condições diferirem parcialmente, nas suas formulações, das previstas no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, deve, novamente, considerar‑se que têm o mesmo sentido ou, pelo menos, o mesmo alcance (96).
91. Por conseguinte, analisarei, nas secções que se seguem, o cumprimento dos três requisitos previstos no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, interpretando‑os à luz da jurisprudência pertinente do TEDH. Neste contexto, exporei as razões pelas quais a limitação em causa é «prevista pela lei» [alínea a)], por que razão respeita o «conteúdo essencial» do direito à liberdade de expressão [alínea b)] e por que razão, desde que o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 seja interpretado de forma justa, respeita o princípio da proporcionalidade [alínea c)].
a) A restrição em causa é «prevista pela lei»
92. Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a condição de que qualquer restrição no exercício dos direitos fundamentais deve ser «prevista pela lei», na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, interpretada à luz da jurisprudência do TEDH relativa à condição equivalente prevista no artigo 10.o, n.o 2, da CEDH, implica não só que essa restrição deve ter uma base legal («existência da lei»), mas também que essa base legal deve revestir certas qualidades de acessibilidade e de previsibilidade («qualidade da lei») (97).
93. No caso em apreço, por um lado, a restrição em causa tem manifestamente base legal, uma vez que resulta de disposições adotadas pelo legislador da União.
94. No que respeita, por outro lado, à «qualidade» desta base legal, recordo que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça (98) e a do TEDH (99), a base legal que implica uma restrição ao exercício de um direito fundamental deve ser suficientemente acessível e previsível nos seus efeitos, isto é, ser enunciada com suficiente clareza e precisão para permitir aos interessados, recorrendo, se necessário, a aconselhamento especializado, regular a sua conduta.
95. Ora, considero que as disposições impugnadas apresentam um grau de clareza e de precisão suficiente para cumprir este padrão. É certo que a definição de «prestador de serviços de partilha de conteúdos em linha» prevista no artigo 2.o, n.o 6, da Diretiva 2019/790 e as disposições impugnadas contêm diversos conceitos abertos — «quantidade significativa de obras ou outro material protegido por direitos de autor»; «todos os esforços»; «elevados padrões de diligência profissional do setor», etc. — que geram um grau de incerteza quanto aos operadores económicos visados e às obrigações que lhes são impostas em cada situação. Todavia, segundo as explicações dadas pelo Parlamento e pelo Conselho, o recurso a estes conceitos visa garantir que essas disposições se possam adaptar a diferentes tipos de operadores e de situações, bem como à evolução da prática e das tecnologias, para resistirem à prova do tempo. Ora, em conformidade com a jurisprudência do TEDH, o legislador da União pode, sem violar o requisito de «previsibilidade», optar por dar aos textos que adota uma certa flexibilidade em vez de uma segurança jurídica absoluta (100). Além disso, as clarificações feitas nestas conclusões, e as que o Tribunal de Justiça fará no acórdão a proferir e em futuras decisões, contribuirão para precisar estes conceitos e eliminar as dúvidas subjacentes — o que, mais uma vez, cumpre o requisito de «previsibilidade» (101).
96. Feita esta precisão, observo que o Tribunal de Justiça (102) e o TEDH (103) também associam ao requisito de «previsibilidade» a questão de saber se a base legal da ingerência apresenta garantias suficientes contra o risco de ofensas arbitrárias ou abusivas aos direitos fundamentais (em conformidade com o princípio do «primado do direito»). Este aspeto é contestado pela recorrente no caso em apreço.
97. No entanto, a questão de saber se as disposições impugnadas apresentam garantias suficientes para proteger a liberdade de expressão dos utilizadores dos serviços de partilha contra as medidas de filtragem e de bloqueio excessivas ou arbitrárias também está relacionada com o caráter proporcionado da limitação resultante dessas disposições (104). Por conseguinte, para evitar as repetições, reservo esta questão para o exame da condição relativa ao respeito do princípio da proporcionalidade (105).
b) A restrição em causa respeita o «conteúdo essencial» do direito à liberdade de expressão
98. Importa recordar que a condição, enunciada no artigo 52.o, n.o 1, da Carta, de que qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos por este instrumento deve «respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades» implica que, quando uma medida viola esse «conteúdo essencial», não pode ser justificada. Essa medida é, então, considerada contrária à Carta e, tratando‑se de um ato da União, deve ser anulada ou declarada inválida, sem que seja necessário examinar a condição relativa ao respeito do princípio da proporcionalidade (106).
99. Com efeito, o legislador da União pode limitar o exercício de certos direitos fundamentais no interesse comum, para proteger outros direitos e interesses. Pode fazê‑lo, em particular, para proteger outro direito fundamental. Neste âmbito, dispõe de uma certa margem de apreciação para ponderar e encontrar um «justo equilíbrio» entre os diferentes direitos e interesses em presença (107). No entanto, esta margem de apreciação tem um limite absoluto. O «conteúdo essencial» de um direito fundamental constitui um «núcleo intocável», que deve permanecer livre de qualquer interferência. Por conseguinte, nenhum objetivo, por mais legítimo que seja, justifica determinadas violações — excecionalmente graves — dos direitos fundamentais. Por outras palavras, o fim não justifica todos os meios.
100. No caso em apreço, segundo a República da Polónia, as disposições impugnadas violam o «conteúdo essencial» do direito à liberdade de expressão. Com efeito, uma vez que a monitorização preventiva deve ser efetuada, nos termos dessas disposições, pelos prestadores de serviços de partilha em relação aos conteúdos colocados em linha pelos seus utilizadores, põe em causa esse direito enquanto tal, pelo facto de implicar a ingerência nesses conteúdos, e o seu eventual bloqueio, antes mesmo da sua difusão.
101. À semelhança dos recorridos e dos intervenientes, não partilho desta opinião.
102. É certo que as medidas preventivas de controlo da informação são geralmente consideradas ingerências particularmente graves na liberdade de expressão (108), devido aos excessos que podem acarretar. Essas medidas preventivas são, em princípio, reprovadas numa sociedade democrática, com o fundamento de que, ao restringir determinadas informações antes mesmo da sua difusão, impedem qualquer debate público sobre o conteúdo, privando assim a liberdade de expressão da sua própria função de vetor do pluralismo (109). Por estas razões, como sublinha a recorrente, muitos Estados‑Membros proíbem o controlo prévio generalizado da informação nas suas respetivas constituições.
103. Estas considerações são plenamente pertinentes no que respeita à Internet. Como a recorrente alega, esta rede reveste uma especial importância para a liberdade de receber ou transmitir informações ou ideias (110). O mesmo acontece, mais especificamente, quanto às grandes plataformas e redes sociais que, ao permitirem a qualquer pessoa que publique em linha os conteúdos que queira, e ao público aceder‑lhes, constituem ferramentas «sem precedente» para o exercício dessa liberdade (111). Desta forma essas plataformas participam numa forma de «democratização» da produção de informação e, ainda que geridas por operadores privados, são, de facto, infraestruturas essenciais para a expressão em linha (112). No estado atual dos meios de comunicação, o direito à liberdade de expressão implica, portanto, muito particularmente, a liberdade de aceder a essas plataformas e de aí se exprimir, em princípio, sem ingerência de autoridades públicas (113).
104. Ora, se as referidas autoridades impusessem, direta ou indiretamente (114), aos prestadores intermediários que controlam essas infraestruturas de expressão a obrigação de monitorizar preventivamente, de maneira geral, os conteúdos dos utilizadores dos seus serviços à procura de qualquer tipo de informações ilícitas, ou até simplesmente indesejáveis, essa liberdade de comunicação seria posta em causa enquanto tal. O «conteúdo essencial» do direito à liberdade de expressão, conforme previsto no artigo 11.o da Carta, seria então, na minha opinião, afetado.
105. Neste contexto, o artigo 15.o da Diretiva 2000/31 tem, na minha opinião, uma importância fundamental. Ao prever que não pode ser imposta aos prestadores intermediários uma «obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem», esta disposição impede que a informação em linha seja submetida a uma vigilância preventiva generalizada, delegada nesses intermediários. Garante, nessa medida, que a Internet continua a ser um espaço livre e aberto (115).
106. Por esta razão, inclino‑me a considerar a proibição prevista no artigo 15.o como um princípio geral do direito que regula a Internet, na medida em que concretiza, em ambiente digital, a liberdade fundamental de comunicação (116). Aliás, observo que o Tribunal de Justiça já aproximou, na sua jurisprudência, o respeito dessa liberdade e dessa proibição (117). Uma não pode ser posta em prática sem a outra. Daqui resulta, na minha opinião, que a referida proibição ultrapassa o âmbito do referido artigo 15.o e se impõe não só aos Estados‑Membros mas também ao legislador da União.
107. No entanto, contrariamente ao que alega a recorrente, o direito fundamental à liberdade de expressão, tal como concretizado pela proibição de uma «obrigação geral de vigilância», não se opõe a todos os tipos de obrigação de vigilância.
108. Com efeito, como recorda a Comissão, o Tribunal de Justiça admitiu, na sua jurisprudência relativa às decisões que podem ser proferidas contra intermediários em linha (118), que é possível ordenar a esse intermediário que «previna» determinadas infrações, exercendo uma forma de vigilância direcionada do seu serviço(119). Assim, distinguiu as obrigações de vigilância «gerais» das aplicáveis em casos «específicos» (120). De forma semelhante, o TEDH não considera as medidas preventivas de controlo da informação, incluindo as obrigações de bloqueio, incompatíveis por si só com o artigo 10.o da CEDH, na medida em que se inscrevam num âmbito específico (121). Este órgão jurisdicional admitiu mesmo, no seu Acórdão Delfi AS. c. Estónia, que se podia esperar de alguns intermediários que vigiassem ativamente os seus serviços à procura de determinados tipos de informações ilícitas (122).
109. A recorrente responde que, precisamente, a obrigação de vigilância imposta aos prestadores de serviços de partilha nos termos das disposições impugnadas é «geral». Com efeito, para «garantir a indisponibilidade» das obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos e «impedir que sejam carregados no futuro» nos seus serviços, esses prestadores devem, na prática, filtrar a totalidade dos conteúdos carregados por todos os utilizadores.
110. No entanto, à semelhança dos recorridos e dos intervenientes, considero que estas disposições impõem, na realidade, uma obrigação «específica» de vigilância (123). No entanto, devo reconhecer que a jurisprudência do Tribunal de Justiça (124) evoluiu recentemente quanto ao critério que distingue o «geral» do «específico».
111. Inicialmente, o Tribunal de Justiça parecia associar‑se à quantidade de informações a monitorizar. No Acórdão L’Oréal e o. (125), o Tribunal de Justiça declarou que o operador de um sítio de comércio eletrónico não podia ser obrigado a proceder à «vigilância ativa da totalidade dos dados relativos a cada cliente a fim de prevenir qualquer violação futura dos direitos de propriedade intelectual». No Acórdão Scarlet Extended, considerou que um fornecedor de acesso à Internet não podia ser obrigado, através de uma injunção, a instalar um sistema de filtragem aplicável a «todas as comunicações eletrónicas que transitam pelos seus serviços» e, portanto, «indistintamente a toda a sua clientela», a fim «de identificar na rede desse fornecedor a circulação de ficheiros eletrónicos que contenham uma obra musical, cinematográfica ou audiovisual sobre a qual o requerente alega ser titular de direitos de propriedade intelectual, com o objetivo de bloquear a transferência de ficheiros cujo intercâmbio viole direitos de autor» (126). No Acórdão SABAM (127), o Tribunal de Justiça seguiu o mesmo raciocínio relativamente à obrigação de o operador de uma plataforma de rede social instalar um sistema de filtragem semelhante. Por último, no Acórdão Mc Fadden (128), considerou que não pode ser imposta ao operador de uma rede local sem fio a obrigação de vigiar «todas as informações transmitidas» através dessa rede, mesmo que se tratasse de bloquear as cópias de uma única obra musical identificada pelo titular dos direitos (129).
112. Atualmente, o Tribunal de Justiça parece associar‑se ao esclarecimento da matéria investigada. A este respeito, no Acórdão Glawischnig‑Piesczek (130), que respeitava desta vez ao domínio da difamação, o Tribunal de Justiça considerou que a obrigação do operador de uma rede social de vigiar todas as informações colocadas em linha nessa rede (131) devia ser considerada «específica» pelo facto de se tratar de procurar e bloquear uma informação difamante «precisa» (132), não estando o prestador obrigado a proceder a uma «apreciação autónoma» da legalidade das informações filtradas e que, pelo contrário, podia «recorrer a técnicas e a meios de pesquisa automatizados» (133).
113. Esta evolução da jurisprudência do Tribunal de Justiça (134) é, na minha opinião, justificada. Embora precise os seus limites em seguida (135), refiro aqui que considerar que uma obrigação de vigilância é «geral» uma vez que obriga, de facto, um prestador intermediário a efetuar uma filtragem, com o auxílio de ferramentas informáticas, de todas as informações colocadas em linha pelos utilizadores do seu serviço, ainda que se trate de procurar infrações específicas, equivaleria, de forma lamentável, a ignorar os desenvolvimentos tecnológicos que tornam possível essa filtragem e a privar o legislador da União de um meio útil para lutar contra certos tipos de conteúdos ilegais.
114. No caso em apreço, para atingir os objetivos visados nas disposições impugnadas, os prestadores de serviços de partilha devem, na verdade, monitorizar todos os conteúdos que os seus utilizadores colocam em linha. Todavia, trata‑se de procurar, entre esses conteúdos, as «obras ou outro material protegido específicos» relativamente aos quais os titulares de direitos lhes tenham comunicado previamente as «informações pertinentes e necessárias» [artigo 17.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2019/790] ou um «aviso suficientemente fundamentado» [alínea c) do referido n.o 4]. Explicarei mais precisamente que conteúdos devem ser bloqueados no seguimento das presentes conclusões (136). No entanto, nesta fase da análise, estes elementos são suficientes, na minha opinião, para demonstrar que estas disposições preveem com efeito, indiretamente, uma obrigação de monitorização «específica» e para excluir uma violação do «conteúdo essencial» do direito à liberdade de expressão (137).
115. Para terminar, esclareço que, embora o legislador da União não possa delegar nos intermediários em linha o ónus de fazer uma monitorização preventiva generalizada das informações partilhadas ou transmitidas graças aos seus serviços, pode, na minha opinião, sem violar o «conteúdo essencial» da liberdade de expressão, optar por impor determinadas medidas de monitorização ativa, sobre determinadas informações ilícitas específicas, a determinados intermediários em linha. Observo, aliás, que o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 se inscreve, a este respeito, na linha de uma série de comunicações e recomendações da Comissão (138) e de novas regulamentações (139) que se destinam, neste sentido, a pôr determinados intermediários — em particular, as grandes «plataformas» — a contribuir para a luta contra certos tipos de conteúdos ilícitos. No entanto, em cada caso, deverá ser assegurado o respeito do princípio da proporcionalidade. Esta forma de delegação da fiscalização da legalidade em linha (140) a determinados intermediários é acompanhada, nomeadamente, de riscos para a liberdade de expressão dos utilizadores dos seus serviços e não pode, portanto, ser feita sem garantias suficientes para estes últimos (141).
c) A restrição em causa respeita o princípio da proporcionalidade
116. Falta agora examinar a condição relativa ao respeito do princípio da proporcionalidade, que se subdivide, de acordo com os termos do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, em duas subcondições: as restrições em causa devem ser, primeiro, «necessárias» e, depois, «corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros».
117. O respeito da segunda subcondição não é objeto de debate entre as partes. Tendo em conta o objetivo geral prosseguido pelo artigo 17.o da Diretiva 2019/790 (142), a restrição em causa responde à «necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros», a saber, os direitos de autor e os direitos conexos dos titulares. Recordo que a propriedade intelectual está protegida enquanto direito fundamental, nomeadamente (143), no artigo 17.o, n.o 2, da Carta e no artigo 1.o do Protocolo n.o 1 à CEDH (144). As disposições impugnadas constituem, assim, «medidas positivas de proteção» adotadas pelo legislador da União para assegurar aos referidos titulares o exercício real e eficaz dos seus direitos de propriedade intelectual nas suas relações com os prestadores de serviços de partilha (145).
118. Em contrapartida, as partes estão em desacordo quanto à questão de saber se a limitação em causa respeita a primeira subcondição. A este respeito, esclareço que o exame do caráter «necessário», na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, de uma restrição ao exercício de um direito fundamental garantido por esta engloba, na realidade, a fiscalização de três requisitos cumulativos: com efeito, há que verificar se essa restrição é (1) «adequada» (2) «necessária» e (3) proporcionada stricto sensu (146). Examinarei separadamente estes três requisitos nas secções que se seguem.
1) A restrição em causa é «adequada»
119. O requisito relativo ao caráter «adequado» da restrição em causa não parece ser contestado pela República da Polónia. Em todo o caso, à semelhança do Parlamento e do Conselho, considero‑o cumprido.
120. Com efeito, no âmbito da análise do caráter adequado de uma dada medida, o Tribunal de Justiça deve verificar não se essa medida constitui o melhor meio para alcançar o objetivo prosseguido, mas se é adequada para contribuir para a realização desse objetivo (147).
121. Ora, no caso em apreço, as obrigações de monitorização que impendem sobre os prestadores de serviços de partilha nos termos das disposições impugnadas são adequadas para contribuir para o objetivo prosseguido pelo legislador da União. Ao transferir para esses prestadores o ónus de monitorizar os seus serviços e de lutar ativamente contra os conteúdos contrafeitos que aí se podem encontrar, essas disposições, por um lado, incentivam fortemente os referidos prestadores a celebrar acordos de concessão de licenças com os titulares de direitos (148) e, por outro, permitem aos referidos titulares controlar mais facilmente a utilização das suas obras e material protegido nesses serviços (149).
2) A restrição em causa é «necessária»
122. Em contrapartida, a República da Polónia alega que a restrição ao exercício do direito à liberdade de expressão que resulta das alíneas b) e c), in fine, do n.o 4 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 vai além do que é «necessário» para a realização do objetivo prosseguido pelo legislador da União. Na sua opinião, as obrigações previstas na alínea a) e na alínea c), in principio, desse número eram suficientes a este respeito. Por um lado, a obrigação que incumbe aos prestadores de serviços de partilha, em conformidade com a referida alínea a), de desenvolver «todos os esforços» para obter uma autorização dos titulares de direitos reforça a posição negocial destes últimos. Por outro lado, a obrigação que recai sobre esses mesmos prestadores, nos termos da referida alínea c), in principio, de agir com diligência, após receção de um aviso suficientemente fundamentado, no sentido de bloquear o acesso às obras ou outro material protegido objeto de notificação nos seus sítios Internet, ou de os retirar desses sítios garante uma proteção eficaz dos direitos desses titulares.
123. Não partilho deste entendimento.
124. A este respeito, recordo que o teste de «necessidade» equivale a verificar se existem medidas alternativas tão eficazes como a medida escolhida para atingir o objetivo prosseguido, que sejam menos restritivas (150).
125. Ora, como sustentam, em substância, o Parlamento e o Conselho, um regime de responsabilidade que impõe apenas as obrigações previstas na alínea a) e na alínea c), in principio, do n.o 4 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 não é claramente tão eficaz para atingir o objetivo prosseguido pelo legislador da União como um regime que prevê, além disso, as obrigações decorrentes da alínea b) e da alínea c), in fine, desse número — ainda que as primeiras obrigações sejam efetivamente menos restritivas para o direito à liberdade de expressão que as segundas (151).
126. Com efeito, por um lado, se, como alega a recorrente, a obrigação de os prestadores de serviços de partilha envidarem «todos os esforços» para obter uma autorização dos titulares de direitos já reforça, por si só, a posição desses titulares na negociação de acordos de concessão de licenças com esses prestadores, o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 não visa apenas assegurar que os referidos titulares recebem uma remuneração equitativa pela utilização das suas obras e outro material protegido nesses serviços. Trata‑se, mais amplamente, de garantir que esses mesmos titulares possam controlar efetivamente tal utilização e, em especial, se o desejarem, impedir que esses objetos estejam disponíveis nesses serviços.
127. A este respeito é inegável, por outro lado, que, como salientam os recorridos, um sistema de notificação e retirada, como o que resulta do artigo 14.o da Diretiva 2000/31 e é retomado, em substância, no artigo 17.o, n.o 4, alínea c), in principio, da Diretiva 2019/790, não permite aos titulares em causa oporem‑se à utilização ilícita das suas obras nos serviços de partilha tão eficazmente quanto um sistema, como o que resulta das disposições impugnadas, que impõe, além disso, aos prestadores desses serviços obrigações de monitorização.
3) A restrição em causa é «proporcionada» stricto sensu
128. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição ao exercício de um direito fundamental garantido pela Carta é considerada «proporcionada», no sentido estrito do termo, se os inconvenientes causados pela medida em causa não forem desproporcionados relativamente aos fins pretendidos (152).
129. No caso em apreço, as disposições impugnadas opõem‑se, por um lado, ao direito à liberdade de expressão garantido no artigo 11.o da Carta e, por outro, ao direito de propriedade intelectual, protegido no artigo 17.o, n.o 2, deste instrumento. Como recordam o Parlamento, o Conselho e o Governo espanhol, não há «prevalência automática» do primeiro direito sobre o segundo (153). A apreciação da proporcionalidade dessas disposições deve, portanto, ser efetuada, retomando a redação do Tribunal de Justiça, «respeitando a necessária conciliação das exigências ligadas à proteção dos diferentes direitos [fundamentais]» e de um «justo equilíbrio» entre eles (154). Por outro lado, em matéria de direitos de autor, o Tribunal de Justiça tem insistido especialmente na necessidade de manter esse «justo equilíbrio», o ambiente digital (155).
130. Ora, a República da Polónia alega que o legislador da União não manteve, precisamente, esse equilíbrio no artigo 17.o da Diretiva 2019/790. Na sua opinião, o prejuízo causado à liberdade de expressão pelas disposições impugnadas é excessivo relativamente às vantagens que podem proporcionar em termos de proteção dos direitos de propriedade intelectual.
131. Pela minha parte, considero, à semelhança do Parlamento, do Conselho e da Comissão, que o legislador da União podia optar por retomar o equilíbrio inerente ao regime de responsabilidade aplicável aos prestadores de serviços de partilha [subsecção i)]. O novo regime de responsabilidade adotado implica, contudo, riscos importantes para a liberdade de expressão [subsecção ii)], que necessitam de prever garantias suficientes para minimizar esses riscos [subsecção iii)], o que, na minha opinião, o legislador da União fez [subsecção iv)].
i) O legislador da União podia legitimamente substituir por um novo equilíbrio o que tinha inicialmente implementado
132. A isenção de responsabilidade prevista, para os prestadores intermediários, no artigo 14.o da Diretiva 2000/31 reflete um equilíbrio entre, nomeadamente, a liberdade de expressão e os direitos de propriedade intelectual, desejado pelo legislador da União aquando da adoção desta diretiva. Na altura, este pretendia favorecer o desenvolvimento desses prestadores, a fim de estimular mais genericamente o crescimento do comércio eletrónico e dos «serviços da sociedade da informação» no mercado interno. Importava, portanto, não impor aos referidos prestadores uma responsabilidade que pudesse pôr em risco a sua atividade. Os interesses dos titulares de direitos deviam ser salvaguardados e ponderados com a liberdade de expressão dos internautas no âmbito do sistema de «notificação e retirada», bem como no âmbito das injunções que podem ser proferidas relativamente a esses mesmos prestadores (156).
133. Como alega o Conselho, as circunstâncias mudaram indubitavelmente desde então. O aparecimento dos serviços da «Web 2.0» implicou vantagens e riscos económicos e sociais novos, que afetaram os diferentes interesses em jogo. Neste contexto, o legislador da União tinha a possibilidade de reexaminar as opções que tinha feito cerca de vinte anos antes, analisar essa alteração das circunstâncias e avaliar essas vantagens e esses riscos (157).
134. A este propósito, como sublinharam o Parlamento, o Conselho e o Governo francês, o legislador da União […] dispõe de um amplo poder de apreciação nos domínios em que a sua ação implica opções de natureza tanto política como económica ou social, e em que é chamado a efetuar apreciações e avaliações complexas (158). Adaptar os direitos de autor ao ambiente digital e fixar, na matéria, um regime de responsabilidade para os serviços de partilha em linha que assegure um justo equilíbrio entre todos os direitos e interesses em jogo é, indubitavelmente, uma tarefa «complexa» (159).
135. De forma semelhante, o TEDH reconhece uma ampla margem de apreciação às autoridades públicas quando têm de gerir um equilíbrio entre diferentes direitos protegidos pela CEDH (160). Esta margem de apreciação era tanto mais importante, no caso em apreço, quanto se tratava, para o legislador da União, de regular, em princípio, não discursos políticos, mas a utilização de obras e outro material protegido (161).
136. Num contexto amplamente debatido (162), o legislador da União fez uma opção política a favor das indústrias criativas. Considerou que o anterior equilíbrio entre os direitos e interesses em jogo já não era satisfatório e que, para continuar a assegurar aos titulares de direitos um elevado nível de proteção (163), havia que adotar um novo regime de responsabilidade para determinados prestadores de serviços da «Web 2.0», impondo‑lhes determinadas obrigações de monitorização dos conteúdos colocados em linha pelos utilizadores dos seus serviços. Tendo em conta a ampla margem de apreciação de que o legislador dispunha, considero que essa opção não era, em princípio, desproporcionada.
137. Mais especificamente, a proporcionalidade das disposições contestadas reside, na minha opinião, na combinação dos elementos avançados pelos recorridos e pelos intervenientes, a saber, em primeiro lugar, a importância do prejuízo económico causado aos titulares de direitos pela colocação ilegal das suas obras em serviços de partilha em linha, tendo em conta a gigantesca quantidade de conteúdos carregados nesses serviços e a rapidez da troca de informações na Internet (164), em segundo lugar, o facto de, por essas mesmas razões, o sistema de «notificação e retirada» só dificilmente permitir a esses titulares o controlo da utilização das suas obras nos referidos serviços, em terceiro, as dificuldades que enfrentam para processar os utilizadores responsáveis e, em quarto lugar, o facto de as obrigações de monitorização dizerem respeito a prestadores de serviços intermediários específicos. Quanto a este último ponto, observo que os prestadores de serviços de partilha, através da promoção dos conteúdos que efetuam (165), exercem uma certa influência nas informações a que o público acede. Estes aspetos tendem, em certa medida (166), a aproximar esses prestadores dos intermediários tradicionais como os editores, pelo que pode ser proporcionado adotar, no que lhes diz respeito, um regime de responsabilidade específico, diferente do aplicável aos outros serviços de fornecedores de armazenagem (167).
138. Acresce que, como alegam os Governos espanhol e francês, o TEDH, no seu Acórdão Delfi AS c. Estónia, declarou que não era desproporcionado, no âmbito de uma ponderação entre a liberdade de expressão, na aceção do artigo 10.o da CEDH, e o direito à honra, garantido no artigo 8.o desta Convenção, manter um grande portal de atualidades em linha responsável por não ter impedido a publicação de certos tipos de comentários ilícitos deixados por utilizadores no seu sítio Internet na sequência de um artigo ou, pelo menos, por não os ter retirado num curto prazo por sua própria iniciativa.
139. Ora, nesse seu acórdão, o TEDH considerou, em primeiro lugar, a dimensão do dano causado por esses comentários, tendo em conta a velocidade de circulação das informações em linha (168) e, em segundo, o facto de, embora o sistema de «notificação e retirada» possa constituir em muitos casos uma ferramenta adequada para a ponderação dos direitos e interesses de todos os interessados, não ser suficiente para pôr termo ao grave dano que resulta desses comentários (169). O TEDH também salientou, em terceiro lugar, que teria sido difícil para a vítima intentar ações contra os autores dos comentários e em quarto, que o operador do portal de atualidades exercia uma certa influência sobre os comentários postados pelos utilizadores, de modo que se podia justificar a adoção de uma abordagem específica em matéria de responsabilidade em relação a esse intermediário (170). Era, portanto, possível uma certa analogia com o presente processo (171).
ii) Riscos inerentes a um regime de responsabilidade como o que resulta das disposições impugnadas
140. Como alega, em substância, o Parlamento, na medida em que a filtragem que os prestadores de serviços de partilha devem efetuar, nos termos das disposições impugnadas, impedirá a difusão, nesses serviços, de conteúdos que violam direitos de autor ou direitos conexos, a limitação ao exercício do direito à liberdade de expressão que resulta dessas disposições é, no que respeita a esses conteúdos, justificada.
141. No entanto, a relação que o legislador da União estabeleceu, nas referidas disposições, entre a responsabilidade dos prestadores dos serviços de partilha e a eficácia dessa filtragem acarreta um risco importante para a liberdade de expressão, a saber, o de um «sobrebloqueio» de conteúdos lícitos.
142. Esse risco de «sobrebloqueio» existe, em geral, quando as autoridades públicas consideram os prestadores intermediários responsáveis pelas informações ilícitas fornecidas pelos utilizadores dos seus serviços. Para evitar qualquer risco de responsabilidade, esses intermediários podem ter tendência para ser excessivamente zelosos e para bloquearem exageradamente essas informações à mínima dúvida quanto à sua licitude (172).
143. No caso em apreço, o problema advém, mais especificamente, de os prestadores de serviços de partilha, para evitar qualquer risco de responsabilidade em relação aos titulares de direitos, impedirem sistematicamente a disponibilização, nos seus serviços, de todos os conteúdos que reproduzam as obras e outro material protegido, relativamente aos quais tenham recebido «informações pertinentes e necessárias» ou um «aviso suficientemente fundamentado» destes últimos, incluindo os que não violam os seus direitos (173).
144. Com efeito, além do facto de alguns dos utilizadores que pretendam colocar em linha os conteúdos em causa poderem dispor de uma licença relativa às obras e materiais em questão, os titulares de direitos não têm um monopólio absoluto sobre a utilização do seu material protegido. O artigo 5.o, n.o 3, da Diretiva 2001/29 contém, a este respeito, uma lista de exceções e limitações ao direito exclusivo de «comunicação ao público». Estas exceções e limitações asseguram, em princípio, um «justo equilíbrio» entre, por um lado, o interesse desses titulares à proteção da sua propriedade intelectual e, por outro, a proteção dos interesses e dos direitos fundamentais dos utilizadores de material protegido, bem como do interesse geral (174) — nomeadamente o acesso do público à cultura. Em especial, várias das referidas exceções e limitações, entre as quais as relativas à citação, à crítica, à análise (175) e as relativas à caricatura, à paródia e ao pastiche (176) fazem prevalecer, nos respetivos âmbitos de aplicação, o direito à liberdade de expressão e de criação dos utilizadores sobre o interesse dos referidos titulares.
145. Ora, precisamente, uma parte significativa dos conteúdos colocados em linha pelos utilizadores nos serviços de partilha consiste em utilizações, ou até reapropriações criativas, de obras e de outro material protegido que podem ser abrangidos por essas exceções e limitações (177).
146. No entanto, a questão de saber se uma tal exceção ou limitação é aplicável a um determinado conteúdo depende do contexto e necessita de uma certa análise (178). A linha que separa uma utilização legítima da contrafação pode revelar‑se, em casos diferentes, discutível (179). Em todas as situações equívocas, pode parecer mais simples aos prestadores de serviços de partilha impedir a colocação à disposição de determinados conteúdos em vez de eles próprios terem de litigar, no âmbito de uma eventual ação de responsabilidade intentada pelos titulares de direitos, pela aplicação dessas exceções ou limitações (180).
147. O risco de «sobrebloqueio» que acabo de descrever é acrescido, no caso em apreço, pelo facto de as condições de isenção previstas no artigo 17.o, n.o 4, alínea b), e alínea c), in fine, da Diretiva 2019/790 obrigarem de facto, num grande número de casos, os prestadores de serviços de partilha a recorrer a ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo.
148. A este respeito, importa não perder de vista os limites inerentes às ferramentas em causa, limites que a recorrente sublinhou devidamente e que, de resto, já foram constatados pelo Tribunal de Justiça nos seus Acórdãos Scarlet Extended e SABAM (181). Com efeito, as ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo detetam, precisamente, conteúdos, e não violações dos direitos de autor. Essas ferramentas, especialmente as que funcionam segundo a técnica da «impressão digital» conseguem detetar correspondências, isto é reconhecer que o conteúdo de um dado ficheiro reproduz, no todo ou em parte, o de um ficheiro de referência (182). Em contrapartida, como alega a República da Polónia, as referidas ferramentas não conseguem, no estado atual, apreciar o contexto em que a obra reproduzida é utilizada e, nomeadamente, identificar a aplicação de uma exceção ou limitação ao direito de autor (183). O risco de «sobrebloqueio» é tão mais importante quanto aumenta a capacidade dessas mesmas ferramentas para reconhecer correspondências em extratos cada vez mais curtos (por exemplo, alguns segundos para um fonograma). A sua utilização arrasta, portanto, o risco de privar os utilizadores de um espaço de expressão e de criação permitidos pelas referidas exceções e limitações (184). Além disso, a capacidade das ferramentas de reconhecimento automático para identificar conteúdos contrafeitos depende da precisão e da veracidade das informações prestadas pelos titulares de direitos. A utilização destas ferramentas pode, portanto, provocar reclamações injustificadas relativas, por exemplo, a obras pertencentes ao domínio público (185), com base em informações de referência erradas ou abusivas (risco dito de «sobre reclamação») (186).
iii) Necessidade de prever garantias suficientes para minimizar esses riscos
149. Tendo em conta os riscos de «sobre bloqueio» descritos na subsecção precedente, um regime de responsabilidade como o que resulta das disposições impugnadas deve, na minha opinião, ser acompanhado de garantias suficientes para minimizar esses riscos e, assim, assegurar que a amplitude da ingerência na liberdade de expressão seja enquadrada com precisão (187). De uma maneira geral, qualquer forma de delegação, pelas autoridades públicas, do controlo da legalidade em linha nos prestadores intermediários (188), que tome a forma de obrigação de monitorização imposta direta ou indiretamente a esses intermediários, deve ser acompanhada dessas garantias.
150. Mais especificamente, considero que esse regime se deve inscrever num quadro legal que fixe regras claras e precisas que regulem o alcance e a aplicação das medidas de filtragem que devem ser executadas pelos prestadores de serviços visados, suscetíveis de assegurar aos utilizadores desses serviços uma proteção eficaz contra o bloqueio abusivo ou arbitrário das informações que pretendem colocar em linha (189).
151. Sublinho também que, quando a restrição dos direitos fundamentais procede da própria legislação da União e lhe é, portanto, imputável, como sucede no caso em apreço (190), o legislador da União tem uma parte importante de responsabilidade a este respeito. Não pode, em tal hipótese, deixar totalmente aos Estados‑Membros — ou, a fortiori, aos prestadores de serviços encarregados da aplicação dessa legislação — o cuidado de estabelecer essas garantias. Deve, pelo contrário, definir pelo menos a sua substância (191). Assim sendo, uma vez que se trata, no caso em apreço, de uma diretiva, que diz respeito acima de tudo a um domínio técnico, certas modalidades de aplicação deverão ser especificadas pelos Estados‑Membros — e pela Comissão (192).
152. Acrescento que a necessidade do legislador da União de prever a substância destas garantias é indispensável para assegurar a aplicação uniforme da legislação da União em todos os Estados‑Membros — sendo essa uniformidade tanto mais necessária quanto está em causa, no caso em apreço, uma diretiva de harmonização adotada com base no artigo 114.o TFUE. Os prestadores de serviços de partilha, que operam a nível internacional, não devem ter de se sujeitar a 27 regimes nacionais de responsabilidade que podem divergir quanto ao alcance das obrigações de filtragem que lhes são impostas. Sobretudo, os utilizadores destes serviços devem beneficiar de uma proteção substancialmente idêntica contra as medidas de bloqueio abusivas ou arbitrárias, qualquer que seja o Estado‑Membro em que se encontrem.
153. Em suma, embora o legislador da União disponha de uma ampla margem de apreciação para decidir do princípio de um regime de responsabilidade como o previsto nas disposições impugnadas, não pode, em contrapartida, economizar nas garantias suficientes para minimizar os riscos daí resultantes para a liberdade de expressão. Na minha opinião, compete ao Tribunal de Justiça proceder a um controlo escrupuloso do cumprimento deste requisito (193).
iv) Garantias previstas no caso em apreço
154. A República da Polónia alega que o legislador da União não cumpriu o referido requisito no caso em apreço. Na sua opinião, as disposições impugnadas não são acompanhadas de nenhuma garantia suscetível de enquadrar a amplitude da ingerência na liberdade de expressão dos utilizadores dos serviços de partilha.
155. Em contrapartida, os recorridos e os intervenientes alegam que o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 comporta um «sistema completo de garantias». Com efeito, as disposições impugnadas são indissociáveis dos n.os 5, 7, 8 e 9 deste artigo. Estes números estabelecem regras claras e precisas que definem o alcance e a aplicação das medidas que devem ser executadas pelos prestadores de serviços de partilha e preservam, nessa medida, um «justo equilíbrio» entre os direitos de propriedade intelectual e a liberdade de expressão.
156. O n.o 5 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, que indica, recordo, que as medidas que devem ser tomadas por cada fornecedor devem ser apreciadas, tendo em conta o princípio da proporcionalidade, à luz de elementos como a «dimensão do serviço» ou o «custo» das ferramentas disponíveis, parece‑me ser mais relevante para a questão do respeito da liberdade de empresa, que não é o objeto do presente processo, do que no que respeita à liberdade de expressão. Considero, portanto, desnecessário voltar atrás.
157. Em contrapartida, os n.os 7, 8 e 9 deste artigo contêm efetivamente, na minha opinião, garantias significativas para proteger os utilizadores dos serviços de partilha contra as medidas de bloqueio abusivas ou arbitrárias dos seus conteúdos. Analisá‑las‑ei, portanto, nas subsecções seguintes.
– Direito às utilizações legítimas do material protegido (n.o 7) e o mecanismo de reclamação (n.o 9)
158. Os recorridos e os intervenientes salientaram, com razão, o facto de uma das principais garantias destinadas a limitar o risco de os prestadores de serviços de partilha impedirem, ao abrigo das disposições impugnadas, a colocação à disposição, nos seus serviços, de conteúdos que reproduzem de forma legítima as obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos figurar no n.o 7 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790.
159. Com efeito, por um lado, o primeiro parágrafo deste número prevê que «a cooperação entre os prestadores de serviços de partilha […] e os titulares de direitos (194) não resulta na indisponibilidade de obras ou outro material protegido carregado por utilizadores que não violem os direitos de autor e direitos conexos, nomeadamente nos casos em que essas obras ou outro material protegido estejam abrangidos por uma exceção ou limitação» (195).
160. Por outro lado, em conformidade com o segundo parágrafo do referido número, os Estados‑Membros devem assegurar que os utilizadores possam invocar as exceções e limitações correspondentes (a) à citação, à crítica, à análise e (b) à utilização para efeitos de caricatura, paródia ou pastiche (196) quando colocam em linha conteúdos nos serviços de partilha.
161. Daqui resulta que o legislador da União reconheceu expressamente direitos subjetivos em matéria de direitos de autor aos utilizadores dos serviços de partilha. Atualmente, esses utilizadores têm o direito, oponível aos prestadores desses serviços e aos titulares de direitos, de utilizar de modo legítimo, material protegido, nos referidos serviços, incluindo o direito de invocar exceções ou limitações aos direitos de autor e aos direitos conexos (197). Este reconhecimento, pelo legislador, da importância dessas exceções e limitações para os utilizadores coincide com a jurisprudência do Tribunal de Justiça que, ela própria, recentemente reconheceu que «comportam direitos» em benefício destes últimos (198).
162. Sublinho que, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790, os utilizadores podem invocar todas as exceções e limitações previstas pelo direito da União (199), e em especial as enunciadas no artigo 5.o da Diretiva 2001/29 — na medida em que, no entanto, constam do direito nacional aplicável. Ora, enquanto este artigo 5.o deixa aos Estados‑Membros a faculdade de transporem as exceções e limitações que enumera (200), esse mesmo n.o 7 obriga atualmente estes últimos a preverem, pelo menos, as exceções e limitações relativas à citação e à paródia no seu direito interno (201), tendo em conta a especial importância destas para a liberdade de expressão.
163. Daqui decorre, concretamente, que os prestadores de serviços de partilha não estão legalmente autorizados a bloquear ou a retirar os conteúdos que fazem utilizações legítimas de obras ou outro material protegido pelo facto de esses conteúdos violarem os direitos de autor (202). Deixam, nomeadamente, de poder excluir, nas suas condições gerais de utilização ou no âmbito de contratos celebrados com os titulares de direitos, a aplicação de exceções e limitações, ao prever, por exemplo, que uma mera alegação por estes últimos de uma violação dos direito de autor basta para justificar essa medida de bloqueio ou de remoção (203). Pelo contrário, esses prestadores devem informar os seus utilizadores, nessas mesmas condições gerais, que podem utilizar obras e outro material protegido no âmbito das referidas exceções e limitações (204).
164. Em minha opinião, ao adotar o n.o 7 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, o legislador da União, consciente dos riscos de «sobre bloqueio» (205) que podem resultar do regime de responsabilidade que implementou, e para assegurar um «justo equilíbrio» entre os direitos e interesses em jogo e proteger a liberdade de expressão dos utilizadores dos serviços de partilha (206), previu um limite claro e preciso para as medidas de filtragem e de bloqueio que devem ser aplicadas pelos prestadores desses serviços nos termos do n.o 4 deste artigo.
165. A este respeito, o Parlamento, o Conselho e a Comissão sublinharam, com razão, que esse mesmo n.o 7, tendo em conta o caráter imperativo dos termos utilizados no seu primeiro parágrafo — «não resulta» (207) —, impõe uma obrigação de resultado aos prestadores de serviços de partilha: são obrigados ao resultado de não impedir a colocação à disposição, nos seus serviços, de conteúdos que reproduzem legitimamente obras e outro material protegido, ainda que essas obras e material tenham sido identificados pelos titulares de direitos. O limite das medidas de filtragem e de bloqueio admissíveis está, portanto, claramente traçado: não devem ter por objeto ou por efeito impedir essas utilizações legítimas. Esta disposição contribui, portanto, para contrariar a tendência para o «zelo» desses prestadores e, assim, enquadrar a amplitude da ingerência na liberdade de expressão para que esta seja limitada à difusão dos conteúdos que violam as regras dos direitos de autor.
166. A República da Polónia responde, no entanto, que, tendo em conta as limitações inerentes ao funcionamento das ferramentas de reconhecimento de conteúdos, evocadas no n.o 148 das presentes conclusões, e nomeadamente a sua incapacidade para identificar a aplicação das exceções e limitações aos direitos de autor, o artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790 constitui mais um voto piedoso do que uma garantia efetiva. Na prática, os conteúdos abrangidos por estas exceções e limitações serão bloqueados automaticamente pelas referidas ferramentas. Esta disposição não é, portanto, suscetível de assegurar aos utilizadores dos serviços de partilha uma proteção eficaz contra o bloqueio abusivo ou arbitrário dos seus conteúdos.
167. A argumentação da recorrente sobre esta questão reflete uma divergência fundamental de pontos de vista entre as partes e os intervenientes no que respeita ao alcance desse n.o 7 e ao modo concreto como os direitos dos utilizadores devem ser respeitados na prática. Com efeito, foram discutidas a este respeito duas interpretações distintas desta disposição no Tribunal de Justiça.
168. Segundo uma primeira interpretação, na qual a República da Polónia baseia o seu recurso, e que é, aliás, avançada pelos Governos espanhol e francês, o (único) mecanismo (208) que assegura, na prática, que as medidas de filtragem e de bloqueio adotadas pelos prestadores de serviços de partilha, nos termos das disposições impugnadas, não impedem a colocação à disposição, nos seus serviços, das utilizações legítimas de obras e de outro material protegido é o «mecanismo de reclamação e de recurso» que, em conformidade com o n.o 9 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, esses prestadores devem tornar disponível para os utilizadores dos respetivos serviços «em caso de litígio sobre o bloqueio do acesso a obras ou outro material protegido por eles carregado, ou a respetiva remoção».
169. Concretamente, os prestadores de serviços de partilha devem, em conformidade com a vontade dos titulares de direitos, bloquear ex ante todos os conteúdos que reproduzam, no todo ou em parte, as obras e outro material protegido identificados por estes últimos — independentemente da questão de saber se violam os seus direitos —, cabendo a um utilizador que considera que faz uma utilização legítima desse material, por exemplo, no âmbito de uma exceção ou limitação, apresentar uma queixa nesse sentido. Admitindo que essa queixa seja fundada, o conteúdo em causa deve ser colocado em linha, ex post, no termo do seu exame. Esclareço que, embora a recorrente e os Governos espanhol e francês coincidam na sua compreensão do artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790, opõem‑se radicalmente quanto às consequências que daí devem ser retiradas (209).
170. De acordo com uma segunda interpretação, avançada pelo Parlamento, pelo Conselho e pela Comissão, o direito dos utilizadores dos serviços de partilha de utilizarem legitimamente material protegido, previsto no artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790, deve ser tido em conta ex ante pelos prestadores desses serviços, no próprio processo de filtragem. Com efeito, as disposições impugnadas e este n.o 7 devem ser lidos em conjunto, e as obrigações que preveem aplicadas «simultaneamente». «Todos os esforços» que esses prestadores devem envidar, em conformidade com essas disposições, para prevenir a colocação em linha de obras e material protegido identificados pelos titulares de direitos não podem, portanto, traduzir‑se, na prática, num bloqueio preventivo e sistemático dessas utilizações legítimas. O mecanismo de reclamação e de recurso previsto no n.o 9 deste artigo 17.o constitui uma garantia suplementar, e última, para as situações em que, apesar da obrigação que consta desse mesmo n.o 7, os referidos prestadores bloqueiam, por erro, esses conteúdos legítimos.
171. Subscrevo esta última interpretação, que decorre, na minha opinião, de uma análise literal, sistemática e histórica do artigo 17.o da Diretiva 2019/790.
172. Antes de mais, no plano textual, recordo que, nos termos do artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790, a cooperação entre titulares de direitos e prestadores de serviços de partilha não deve resultar na «indisponibilidade» de conteúdos que reproduzem legitimamente obras ou outro material protegido. A interpretação segundo a qual esses conteúdos podiam ser sistematicamente bloqueados ex ante, desde que os utilizadores pudessem obter o seu restabelecimento ex post, está longe, a meu ver, de ser a forma mais natural de compreender essa redação (210).
173. Em seguida, no plano sistemático, como alega a Comissão, as disposições impugnadas e esse mesmo n.o 7 devem ser conjugados à luz do n.o 9, terceiro parágrafo, do referido artigo 17.o, segundo o qual a referida diretiva «não prejudica de modo algum» as utilizações legítimas de obras e de material protegido. Ora, se os conteúdos em causa devessem ser sistematicamente bloqueados ex ante, cabendo aos utilizadores apresentar queixa para obterem a sua colocação em linha, essas utilizações legítimas seriam, evidentemente, «prejudicadas» de uma certa maneira.
174. Observo igualmente que a questão das utilizações legítimas de material protegido é referida não só no considerando 70 da Diretiva 2019/790, que trata do mecanismo de reclamação, mas também no seu considerando 66, primeiro parágrafo (211), relativo às medidas preventivas que devem ser implementadas pelos prestadores de serviços de partilha de acordo com as disposições impugnadas. Além disso, nos termos do referido considerando 70, primeiro parágrafo, este dispositivo visa «facilitar» — e não «permitir» — essas utilizações legítimas.
175. Por último, os trabalhos preparatórios tendem a confirmar esta interpretação. A este respeito, observo que o artigo 17.o, n.o 9, da Diretiva 2019/790 remonta ao artigo 13.o, n.o 2, da proposta de diretiva. Essa proposta não continha nenhuma disposição relativa às utilizações legítimas das obras e outro material protegido. Esta disposição foi acrescentada, através de alterações, aquando da primeira leitura do texto no Parlamento e do Conselho. Nessas alterações, o mecanismo de reclamação e de recurso tinha especificamente por objetivo permitir essas utilizações legítimas (212). Ora, após a primeira rejeição do texto pelo Parlamento em 5 de julho de 2018, nas versões posteriores do texto, e na que veio a ser adotada, a questão dos direitos dos utilizadores e a do mecanismo de reclamação e de recurso foram separadas em duas disposições distintas.
176. Este processo legislativo também demonstra, em minha opinião, que a intenção do legislador da União evoluiu a este respeito. Embora o artigo 13.o da proposta de diretiva fosse unilateralmente favorável aos titulares de direitos, este artigo 13.o transformou‑se, aquando da sua adoção sob a forma do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, numa disposição complexa que procura reconhecer e ponderar os diferentes interesses em jogo. Como alegou o Conselho, o legislador optou por proteger, nesta disposição, tanto os titulares de direitos como os utilizadores. Como sublinha o Parlamento, este artigo 17.o reflete um compromisso delicado a este respeito. Esta evolução não pode ser ignorada na sua interpretação (213).
177. Além disso, a interpretação, avançada pelo Parlamento, pelo Conselho e pela Comissão, segundo a qual os direitos dos utilizadores, nos termos do artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790, devem ser tidos em conta ex ante, e não apenas ex post, assegura, além disso, a proporcionalidade da limitação ao exercício do direito à liberdade de expressão resultante das disposições impugnadas (214).
178. A este respeito, é verdade que o mecanismo de reclamação e de recurso previsto no artigo 17.o, n.o 9, da Diretiva 2019/790 constitui simultaneamente uma garantia essencial e um avanço importante em relação à Diretiva 2000/31 (215). Trata‑se de uma componente necessária de qualquer sistema de filtragem, tendo em conta o risco de «sobre bloqueio» que daí decorre. O legislador da União rodeou igualmente este dispositivo de «sub‑garantias» processuais. O referido mecanismo deve ser «eficaz e rápido» e as queixas assim apresentadas processadas «sem demora injustificada». Por outras palavras, os prestadores de serviços de partilha são obrigados a agir, nesta matéria, com a mesma diligência de que devem fazer prova no caso dos avisos recebidos dos titulares dos direitos, no âmbito do artigo 17.o, n.o 4, alínea c), da Diretiva 2019/790 (216). Além disso, os titulares de direitos devem justificar «devidamente» os seus pedidos de bloqueio e as queixas devem ser sujeitas a controlo humano.
179. Acresce que, em conformidade com o mesmo n.o 9, os Estados‑Membros também devem assegurar a disponibilidade de mecanismos extrajudiciais para a resolução de litígios entre utilizadores e titulares de direitos. Tais mecanismos são úteis para permitir a resolução imparcial desses litígios. Mais importante ainda, na minha opinião, os Estados‑Membros são obrigados a prever «recursos judiciais eficazes» na matéria. A este respeito, no seu Acórdão UPC Telekabel Wien (217), o Tribunal de Justiça sublinhou, em substância, que tal direito a um recurso judicial efetivo é indispensável para assegurar o exercício, em linha, do direito à liberdade de expressão.
180. Todavia, embora estas garantias processuais sejam importantes, não são, por si só, suficientes para garantir um «justo equilíbrio» entre os direitos de autor e a liberdade de expressão dos utilizadores.
181. Em primeiro lugar, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça e a jurisprudência do TEDH, a existência de tais garantias processuais não dispensa as autoridades públicas de zelarem pela minimização do efeito colateral de uma medida de filtragem e de bloqueio. Trata‑se de requisitos distintos e cumulativos.
182. Com efeito, estes dois órgãos jurisdicionais declararam em várias ocasiões que qualquer medida de filtragem e de bloqueio deve ser «estritamente delimitada», no sentido de que deve visar conteúdos ilícitos e não ter efeito arbitrário ou excessivo sobre os conteúdos lícitos (218). No seu Acórdão L’Oréal e o. (219), o Tribunal de Justiça declarou, no mesmo sentido, que as medidas de vigilância imposta a um intermediário não devem criar obstáculos às utilizações lícitas do seu serviço. Por último, no seu Acórdão UPC Telekabel Wien (220), declarou que uma medida de bloqueio não deve «[privar] desnecessariamente» os internautas da possibilidade de partilharem licitamente informações e de lhes acederem.
183. Esta jurisprudência não implica que o direito à liberdade de expressão se oponha a tais medidas, desde que possam provocar o mínimo bloqueio de conteúdos lícitos. O termo «desnecessariamente», utilizado pelo Tribunal de Justiça, reflete, na minha opinião, a ideia de que a eficácia da proteção dos direitos dos titulares pode justificar certos casos de «sobre bloqueio».
184. No entanto, deve haver, também aqui, um «justo equilíbrio» entre a eficácia da filtragem e o seu efeito colateral. Como resulta, em substância, da jurisprudência do TEDH, não é possível, numa sociedade democrática, exigir uma eficácia absoluta — e, dessa forma, um «risco zero» quanto às eventuais violações dos direitos de autor — quando isso tenha por efeito bloquear um número considerável de conteúdos lícitos (221).
185. O Governo francês contrapõe que, segundo a sua interpretação do artigo 17.o da Diretiva 2019/790, as medidas de filtragem que os prestadores de serviços de partilha devem adotar, nos termos das disposições impugnadas, cumprem esse requisito, uma vez que são «estritamente delimitadas» aos conteúdos que reproduzem, no todo ou em parte, as obras e material protegido identificados pelos titulares de direitos.
186. Esta argumentação não pode ser acolhida. Com efeito, resulta dos Acórdãos Scarlet Extended e SABAM que um sistema de filtragem que bloqueie sistematicamente os conteúdos que utilizam legitimamente material protegido viola de forma desproporcionada a liberdade de expressão e de informação (222). É o que acontece, na minha opinião, precisamente porque o efeito colateral dessa filtragem é demasiado importante para ser compatível com essa liberdade — e isso, independentemente da questão de saber se os utilizadores lesados beneficiam de um direito de recurso contra o bloqueio da sua informação, aspeto que o Tribunal de Justiça nem sequer evocou nesses acórdãos.
187. Há boas razões para isto. Por um lado, no caso em apreço, o bloqueio preventivo de todos os conteúdos que reproduzem as obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos tem o efeito de imputar sistematicamente o ónus da inércia aos utilizadores, uma vez que a difusão de conteúdos legítimos não pode ocorrer sem que estes apresentem uma queixa, com sucesso. Se esses utilizadores tivessem sistematicamente de invocar os seus direitos no âmbito do mecanismo de reclamação, é muito provável que muitos deles renunciassem a fazê‑lo, nomeadamente, por falta de conhecimentos suficientes para avaliar se a utilização que fazem desse material é legítima e se, logo, há fundamentos para apresentar essa queixa (223). O «sobre bloqueio» preventivo de todas essas utilizações legítimas e a inversão sistemática do ónus dos utilizadores de demonstrarem essa legitimidade correria o risco de provocar assim, a curto ou a longo prazo, um «chilling effect» na liberdade de expressão e de criação, que se traduziria numa quebra da atividade desses mesmos utilizadores (224).
188. Por outro lado, a troca de informações em linha caracteriza‑se, nomeadamente, pela sua rapidez. Mais especificamente, certos tipos de conteúdos carregados nos serviços de partilha só são procurados pelo público durante um curto período, nomeadamente os que se referem a eventos de atualidade (225). Estes conteúdos tornam‑se assim, muitas vezes, obsoletos em alguns dias. Atrasar a colocação em linha desses conteúdos através de um bloqueio ex ante sistemático pode fazer‑lhes perder toda a atualidade e qualquer interesse para o público. Assim, contrariamente aos Governos espanhol e francês, considero que esse bloqueio sistemático é particularmente problemático, ainda que apenas «temporário», uma vez que a restauração dos conteúdos no termo da análise das queixas dos utilizadores não permite reparar o dano causado à liberdade de expressão destes últimos (226).
189. Em segundo lugar, observo que o Tribunal de Justiça insiste, na sua jurisprudência recente, na necessidade de «salvaguardar o efeito útil» das exceções e limitações aos direitos de autor, tendo em conta a sua importância para a manutenção de um «justo equilíbrio» entre os direitos e interesses em jogo, muito particularmente quando visam garantir o respeito da liberdade de expressão — como é o caso da utilização para fins de citação, de crítica ou de análise e da caricatura, de paródia ou de pastiche (227).
190. Ora, precisamente para «salvaguardar o efeito útil» destas exceções e limitações, importa, na minha opinião, assegurar que as medidas preventivas adotadas nos termos das disposições impugnadas não entravem sistematicamente o direito de os utilizadores fazerem uso delas. Embora os titulares de direitos disponham, em ambiente digital, de possibilidades de controlo do seu material protegido sem equivalente no «mundo real» — uma vez que as ferramentas de reconhecimento de conteúdo lhes conferem virtualmente meios para impedir todas as utilizações desse material, incluindo o que não é abrangido pelo seu monopólio, como a paródia —, há que proteger igualmente essas mesmas exceções e limitações. O perigo, a este respeito, é que uma proteção total de certas criações intelectuais se faça em detrimento de outras formas de criação também socialmente desejáveis (228).
191. Na minha opinião, decorre de tudo o que precede, que, em conformidade com uma leitura conjunta das disposições impugnadas e do artigo 17.o, n.o 7, da 2019/790, as medidas de filtragem que os prestadores de serviços de partilha têm de aplicar devem ser conformes com duas obrigações cumulativas: devem tentar prevenir a colocação em linha de conteúdos que reproduzam de forma ilícita as obras e o material protegido identificados pelos titulares de direitos, embora sem resultar na indisponibilidade dos conteúdos que reproduzem esse material de forma lícita.
192. Contrariamente ao que alega a recorrente, os prestadores de serviços de partilha não podem, portanto, «aplicar qualquer medida disponível» para proteger os direitos de propriedade intelectual dos titulares (229). «Todos os esforços» e a «diligência profissional» de que devem fazer prova a este respeito devem ser interpretados tendo em conta o artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790. Uma vez que esses prestadores se encontram numa posição profissional bilateral relativamente aos utilizadores e aos titulares de direitos, devem agir «diligentemente» relativamente a estas duas categorias.
193. O artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790 obriga, assim, esses prestadores — mas também as autoridades administrativas e judiciais dos Estados‑Membros quando supervisionam a aplicação desse artigo (230) — a considerarem o efeito colateral das medidas de filtragem que implementam (231). Não podem, portanto, bloquear preventiva e sistematicamente os conteúdos suscetíveis de serem abrangidos, nomeadamente, pelas exceções e limitações aos direitos de autor. Devem ter em conta, ex ante, o respeito dos direitos dos utilizadores. Convido o Tribunal de Justiça a afirmar sem ambiguidade, no seu acórdão a proferir, que se trata da justa interpretação deste artigo 17.o
– Proibição das obrigações gerais de monitorização (n.o 8)
194. O n.o 8 do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 dispõe que «[a] aplicação [deste] artigo não implica qualquer obrigação geral de monitorização». Por conseguinte, as disposições impugnadas também devem ser lidas à luz deste número.
195. Ora, ao reafirmar a proibição dessa «obrigação» (232), o legislador da União suscitou, na minha opinião, outra garantia significativa para a liberdade de expressão. Com efeito, esta proibição enquadra o alcance das medidas de filtragem que se podem esperar de qualquer prestador intermediário e, no caso em apreço, dos prestadores de serviços de partilha.
196. A este respeito, podem ser retirados ensinamentos do Acórdão Glawischnig‑Piesczek, que evoquei anteriormente (233). Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça, interpretando a referida proibição, na sua versão resultante do artigo 15.o da Diretiva 2000/31, considerou que podia ser imposto ao operador de uma rede social, através de uma medida inibitória judicial, a obrigação de pesquisar e de bloquear, entre as informações colocadas em linha na sua rede «[uma] informação precisa, […] cujo conteúdo foi analisado e apreciado por um órgão jurisdicional competente […] que, na sequência da sua apreciação, a declarou ilegal» (234). Assim, o órgão jurisdicional podia exigir desse operador que bloqueasse o acesso a todas as informações de conteúdo idêntico ao dessa. A medida inibitória podia até ser alargada às informações equivalentes, desde que o referido operador não estivesse obrigado a proceder a uma «apreciação autónoma» da sua licitude e que pudesse, pelo contrário, «recorrer a técnicas e a meios de pesquisa automatizados» (235).
197. Daqui resulta, de um modo geral, que, embora os prestadores intermediários estejam, do ponto de vista técnico, bem colocados para lutar contra a presença de certas informações ilícitas difundidas por intermédio dos seus serviços (236), não se pode esperar que façam «apreciações autónomas» da legalidade das informações em causa. Esses prestadores intermediários não têm geralmente a perícia e sobretudo a independência necessária — a fortiori quando sobre eles paira a ameaça de uma pesada responsabilidade (237). Não podem, portanto, ser transformados em árbitros da legalidade em linha, responsáveis pela decisão de questões jurídicas complexas (238).
198. Por conseguinte, a fim de minimizar o risco de «sobre bloqueio» e, assim, garantir o respeito do direito à liberdade de expressão, um prestador intermediário só pode, na minha opinião, ser obrigado a filtrar e bloquear informações cuja ilicitude tenha sido previamente demonstrada por um juiz ou, na sua falta, informações cujo caráter ilícito se impõe desde logo, ou seja, manifestamente, sem que seja nomeadamente necessário contextualizá‑lo (239).
199. Aliás, observo que as obrigações de monitorização que o TEDH, no seu Acórdão Delfi A.S. c. Estónia, considerou justificadas respeitavam a informações manifestamente ilícitas (240). Na sua jurisprudência subsequente, o TEDH esclareceu que, tratando‑se de informações cujo caráter ilícito não se impõe desde logo e necessita de uma análise contextual, não se pode exigir semelhante monitorização (241). Para este último tipo de informações, para obter a retirada é necessária uma notificação devidamente fundamentada, que forneça os elementos de contexto suscetíveis de tornar a ilegalidade evidente, ou até, quando tal notificação não seja suficiente a este respeito, uma injunção judicial.
200. De forma específica, como expliquei nas minhas Conclusões nos processos apensos YouTube e Cyando (242), transposto para o domínio dos direitos de autor, decorre do Acórdão Glawischnig‑Piesczek que, embora, em conformidade com o artigo 15.o da Diretiva 2000/31, um prestador intermediário não possa ser obrigado a proceder a uma filtragem generalizada das informações que armazena à procura de qualquer contrafação, esta disposição não se opõe, a priori, a que esse prestador seja obrigado a proceder a um bloqueio relativamente a um ficheiro específico, que faz uma utilização ilícita de uma obra protegida, previamente declarada por um juiz. A referida disposição não se opõe, neste âmbito, a que o prestador seja obrigado a detetar e bloquear não apenas as cópias idênticas desse ficheiro mas também outros ficheiros equivalentes, ou seja, os que fazem a mesma utilização da obra em questão.
201. Esta interpretação é, em minha opinião, transponível, mutatis mutandis, para o artigo 17.o, n.o 8, da Diretiva 2019/790. Na medida em que, no sistema deste artigo 17.o, o caráter ilícito dos conteúdos a filtrar não tenha sido previamente estabelecido por um órgão jurisdicional, só pode tratar‑se, conforme expliquei no n.o 198 das presentes conclusões, de procurar conteúdos que, tendo em conta as informações fornecidas pelos titulares de direitos, se afiguram manifestamente contrafeitos. Nos termos das disposições impugnadas, lidas à luz deste n.o 8, as medidas de filtragem que os prestadores de serviços de partilha têm de utilizar, nos termos das disposições impugnadas, devem, portanto, em minha opinião, limitar‑se aos conteúdos que são «idênticos» ou «equivalentes» às obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos (243).
202. A primeira categoria evocada no número precedente visa, concretamente, as reproduções idênticas, sem elementos adicionais ou valor acrescentado, das obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos. A segunda diz respeito aos conteúdos que reproduzem esse material da mesma maneira, muito embora apresente alterações insignificantes, de forma que o público não as diferencia do material original (por exemplo, no caso de simples alterações técnicas destinadas a contornar o sistema de filtragem, como uma alteração de formato, a inversão ou a alteração da velocidade da imagem, etc.) (244). A deteção destas duas categorias de conteúdos não exige dos prestadores de serviços de partilha que façam uma «apreciação autónoma» da sua legalidade — a contrafação afigurar‑se‑á manifesta tendo em conta as informações «pertinentes e necessárias» fornecidas pelos titulares de direitos — e poderá ser realizada com o auxílio de «técnicas e […] meios de pesquisa automatizados» (245).
203. Em contrapartida, não se pode exigir aos prestadores de serviços de partilha que também filtrem preventivamente os conteúdos que, reproduzindo obras e material protegido identificados pelos titulares de direitos, diferem sensivelmente destes últimos, como é o caso das reutilizações de extratos de obras noutros contextos, de conteúdos «transformativos», etc., que podem ser abrangidos por exceções e limitações aos direitos de autor. A identificação de contrafações que aí se podem encontrar implica, por parte desses prestadores, «apreciações autónomas», uma vez que lhes é necessário avaliar o contexto dessas utilizações. Ora, como sustenta a República da Polónia, as complexas questões dos direitos de autor relativas, nomeadamente, ao alcance exato das exceções e limitações não podem ser deixadas aos referidos prestadores. Não compete a esses mesmos prestadores decidir dos limites da criatividade em linha, examinando eles próprios, por exemplo, se o conteúdo que um utilizador planeia carregar preenche os requisitos da paródia. Tal delegação implicaria um risco de «sobre bloqueio» inaceitável. Tais questões devem ser deixadas ao cuidado do juiz.
– Consequências que decorrem do que precede
204. Na minha opinião, resulta das secções que precedem que o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 contém garantias suficientes para enquadrar o alcance da limitação do exercício do direito à liberdade de expressão resultante das disposições impugnadas.
205. Por um lado, em conformidade com o n.o 7 deste artigo, os prestadores de serviços de partilha não estão autorizados a bloquear preventivamente, nos termos das disposições impugnadas, todos os conteúdos que reproduzem as obras e outro material protegido identificados pelos titulares de direitos, incluindo os suscetíveis de ser lícitos. Por outro lado, nos termos do n.o 8 do referido artigo, esses prestadores só podem ser obrigados a detetar e bloquear os conteúdos que sejam «idênticos» e «equivalentes» a esse material, ou seja, cuja ilicitude se afigura manifesta tendo em conta as informações «pertinentes e necessárias» fornecidas pelos titulares de direitos. Nesses casos, sendo a contrafação altamente provável, esses conteúdos podem presumir‑se ilícitos. É proporcionado, portanto, bloqueá‑los preventivamente, cabendo aos utilizadores em causa demonstrar a sua licitude — por exemplo, o facto de disporem de uma licença, ou de a obra ser na realidade no domínio público (246) — no âmbito do mecanismo de reclamação. Em suma, «todos os esforços» impostos aos prestadores de serviços de partilha, em conformidade com as disposições impugnadas, consistem em bloquear essas contrafações manifestas (247).
206. Inversamente, em todas as situações equívocas — curtos extratos de obras incluídas em conteúdos mais longos, obras «transformativas», etc. — nas quais, em especial, a aplicação de exceções e limitações aos direitos de autor é razoavelmente previsível, os conteúdos em causa não podem ser objeto de uma medida de bloqueio preventivo.
207. Com efeito, como sublinharam o Parlamento, o Conselho e a Comissão, a obrigação de resultado, prevista no artigo 17.o, n.o 7, primeiro parágrafo, da Diretiva 2019/790, de não impedir a colocação em linha de conteúdos legítimos é, a este respeito, mais restritiva do que as obrigações de envidar «todos os esforços» resultantes das disposições impugnadas, que constituem obrigações de meios (248). Isto significa que o legislador da União pretendeu, na minha opinião, corretamente, assegurar que, nesse caso, os prestadores de serviços de partilha privilegiem a liberdade de expressão. Por outras palavras, o legislador considerou que os «falsos positivos», que consistem em bloquear conteúdos legais, são mais graves do que os «falsos negativos», que consistem em deixar passar determinados conteúdos ilícitos.
208. Assim, como sustentaram o Parlamento, o Conselho e a Comissão, nestas situações equívocas, os conteúdos em causa devem presumir‑se lícitos e, consequentemente, não se podendo impedir a sua colocação em linha.
209. A dificuldade reside na definição de soluções práticas para aplicar esta dicotomia com o auxílio de ferramentas de reconhecimento automático de conteúdo que, em muitas situações, os prestadores de serviços de partilha deverão utilizar. Aliás, a recorrente alega que o legislador da União não previu, na Diretiva 2019/790, nenhuma solução concreta a este respeito.
210. Assim sendo, na minha opinião, cabe ao legislador da União, como já referi, prever a substância das garantias necessárias para minimizar os riscos em matéria de liberdade de expressão decorrente das disposições impugnadas. Em contrapartida, como alegou o Conselho, num domínio que implica a tomada de medidas técnicas como o que está em causa no presente processo, e tendo em conta o facto de o artigo 17.o da Diretiva 2019/790 se aplicar a diferentes tipos de prestadores, de serviços e de material protegido, compete aos Estados‑Membros e à Comissão concretizar as suas modalidades (249).
211. Na prática, estas soluções consistem em integrar, nas ferramentas de reconhecimento de conteúdo, parâmetros que permitam ajudar a distinguir o manifesto do equívoco. Isto pode variar consoante os tipos de material protegido e de exceções em causa. Tratar‑se‑á, por exemplo, de ter em conta taxas de correspondência detetadas por essas ferramentas, e de fixar limites acima dos quais o bloqueio automático se justifica, e abaixo dos quais a aplicação de uma exceção, como a citação, é razoavelmente possível (250). Uma tal solução pode ser associada a um mecanismo que permita aos utilizadores indicar (flagging), durante ou imediatamente após a colocação em linha, se, segundo eles, beneficiam de uma exceção ou limitação, o que implica, para o prestador em causa, fazer uma análise manual do conteúdo em causa para verificar se a aplicação dessa exceção ou limitação é manifestamente excluída ou, pelo contrário, razoavelmente possível (251).
212. De uma maneira geral, uma vez que se trata de diferentes tipos de prestadores, de serviços e de obras ou de material protegido, a definição dessas soluções práticas não pode ser deixada aos referidos prestadores nem, contrariamente ao que alega o Governo francês, ser totalmente deixada aos titulares de direitos (252). Tendo em conta a importância das referidas soluções para a liberdade de expressão, estas não devem ser definidas de uma forma opaca apenas por aquelas partes privadas, mas de forma transparente sob a supervisão das autoridades públicas.
213. Na minha opinião, é precisamente aí que reside a utilidade do diálogo entre as partes envolvidas previsto pelo legislador da União no artigo 17.o, n.o 10, da Diretiva 2019/790. Esta disposição prevê o dever da Comissão, em cooperação com os Estados‑Membros, organizar diálogos entre os prestadores de serviços de partilha, os titulares de direitos, as organizações de utilizadores e as outras partes envolvidas interessadas com vista a debater as «melhores práticas para a cooperação entre os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e os titulares de direitos». Nesta base, a Comissão deve emitir orientações sobre a aplicação deste artigo 17.o, em particular no que diz respeito à maneira de implementar as disposições impugnadas. Neste processo devem ser tidos em «especial consideração» «a necessidade de manter um equilíbrio entre os direitos fundamentais e a utilização de exceções e limitações». Assim, a Comissão, com o auxílio das partes interessadas, deve propor soluções práticas que permitam a aplicação das disposições impugnadas, no respeito dos n.os 7 e 8 do referido artigo 17.o (253).
214. Por último, esclareço que, como sustenta a Comissão, e de acordo com o que referi no n.o 183 das presentes conclusões, a obrigação prevista no artigo 17.o, n.o 7, da Diretiva 2019/790 não significa que os mecanismos que conduzam a um número reduzido de casos de «falsos positivos» sejam automaticamente contrários a esta disposição. No entanto, a taxa de erro deve ser a mais baixa possível. Daqui resulta que, nos casos em que não seja possível, no estado atual da tecnologia, tratando‑se, por exemplo, de certos tipos de obras e de material protegido, utilizar uma ferramenta de filtragem automática sem implicar uma taxa de «falso positivo» considerável, a utilização dessa ferramenta deve, na minha opinião, ser excluída nos termos desse n.o 7 (254).
215. A interpretação sugerida nas presentes conclusões não é posta em causa pelo argumento dos Governos espanhol e francês de que é imperativo bloquear preventivamente a totalidade dos conteúdos que reproduzem, no todo ou em parte, o material protegido identificado pelos titulares de direitos para eliminar qualquer risco de difusão de um conteúdo ilícito num serviço de partilha, uma vez que essa difusão lhes pode causar um dano «irreparável», tendo em conta a rapidez da troca de informações na Internet.
216. Com efeito, na minha opinião, embora o risco de dano grave e iminente gerado por uma tentativa de colocação em linha de um conteúdo manifestamente contrafeito possa justificar uma medida de bloqueio preventivo desse conteúdo (255), os referidos titulares não podem exigir o «risco zero» quanto às eventuais violações dos seus direitos, como indiquei no n.o 184 das presentes conclusões. Seria desproporcionado aplicar essas medidas a todos os casos, mais discutíveis, de potenciais danos, eventualmente causados, por exemplo, por conteúdos «transformativos» suscetíveis de serem ou não abrangidos no âmbito das exceções e limitações aos direitos de autor, que não estão em concorrência direta com o material protegido original (256). Para essas situações, adotar medidas preventivas semelhantes pode, pelo contrário, causar danos «irreparáveis» à liberdade de expressão, pelas razões que expliquei no n.o 188 destas conclusões.
217. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou em várias ocasiões «que não decorre de forma alguma do artigo 17.o, n.o 2, da Carta que o direito de propriedade intelectual seja intangível e que a sua proteção deva, assim, ser assegurada de forma absoluta» (257).
218. De resto, a interpretação sugerida nas presentes conclusões não deixa os titulares de direitos sem proteção no que respeita a esses conteúdos equívocos. Não se trata, nomeadamente, de rever o alcance do direito de comunicação ao público enquanto tal (258). Com efeito, o facto de determinados conteúdos que reproduzem de forma ilícita as suas obras e outro material protegido não serem bloqueados no momento da colocação em linha não impede esses titulares, nomeadamente (259), de pedir a retirada e o bloqueio permanente dos conteúdos em questão através de um aviso, em conformidade com o artigo 17.o, n.o 4, alínea c), da Diretiva 2019/790 (260), que contenha explicações razoáveis sobre os motivos pelos quais, por exemplo, a aplicação de uma exceção deve ser excluída (261). O prestador em causa deverá, pelo seu lado, examinar esse aviso de forma diligente e decidir se, à luz desses novos elementos, a ilegalidade é evidente (262). Pressupondo que seja esse o caso, o prestador em causa deve, sob pena de ser responsabilizado, bloquear prontamente o acesso ao conteúdo ou retirá‑lo do seu sítio Internet. Como sublinha a Comissão, resulta do considerando 66, segundo parágrafo, da Diretiva 2019/790 (263) que o legislador da União tinha previsto que, em certos casos, esta maneira de proceder fosse a única a permitir garantir a indisponibilidade de um determinado conteúdo. Na hipótese de a ilegalidade não ser evidente tendo em conta estas explicações, por o conteúdo em causa suscitar questões jurídicas complexas e/ou novas em matéria de direitos de autor, a intervenção do juiz, único competente para decidir tais questões, será em princípio necessária. Caberá então aos titulares de direitos recorrer a uma autoridade judicial, com base nomeadamente no artigo 8.o, n.o 3, da Diretiva 2001/29, a fim de que essa autoridade decida sobre esse conteúdo e, admitindo que seja ilícito, ordene o seu bloqueio.
219. Como justamente observou o Parlamento, isso assegura um «justo equilíbrio» entre as diligências impostas aos utilizadores, em certos casos, para obter a colocação em linha dos seus conteúdos e as exigidas aos titulares de direitos, noutros casos para obter a sua retirada (264).
4. Conclusão quanto à compatibilidade da restrição em causa com a Carta
220. Resulta de todas as considerações precedentes que a restrição ao exercício do direito à liberdade de expressão e de informação resultante das disposições impugnadas, como interpretadas nas presentes conclusões, preenche todas as condições previstas no artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Esta restrição é, portanto, na minha opinião, compatível com este instrumento. Consequentemente, entendo que deve ser negado provimento ao recurso da República da Polónia (265).
C. Post‑scriptum
221. Após a redação das presentes conclusões, durante a sua tradução pelos serviços do Tribunal de Justiça, foram publicados dois documentos importantes.
222. Por um lado, foi proferido o Acórdão YouTube e Cyando (266). O raciocínio adotado pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão no que respeita às Diretivas 2000/31 e 2001/29, que não posso aqui analisar em pormenor, não põe em causa, na minha opinião, as considerações desenvolvidas nas presentes conclusões (267).
223. Por outro lado, a Comissão publicou as suas orientações sobre a aplicação do artigo 17.o da Diretiva 2019/790 (268). No essencial, retomam o que a Comissão tinha defendido no Tribunal de Justiça e refletem as explicações que constam dos n.os 158 a 219 das presentes conclusões. No entanto, as referidas orientações indicam também, de modo inédito, que os titulares de direitos devem ter a possibilidade de «reservar» (earmark) o material cuja colocação em linha não autorizada seja «suscetível de lhes causar um prejuízo económico significativo». Esses prestadores devem fazer prova de uma diligência particular relativamente a este material. É ainda indicado que estes últimos não cumprem as suas obrigações de «melhores esforços» se permitirem a colocação em linha de conteúdos que reproduzam esse mesmo material apesar de tais «reservas». Se tal deve ser entendido no sentido de que esses mesmos prestadores devem bloquear ex ante conteúdos mediante a simples alegação de um risco de prejuízo económico importante pelos titulares de direitos — não contendo as orientações outro critério que limite objetivamente o mecanismo de «reserva» a casos particulares (269) —, ainda que esses conteúdos não sejam manifestamente contrafeitos, não o posso subscrever, a menos que alterasse tudo o que expus nestas conclusões.
VI. Quanto às despesas
224. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Uma vez que, na minha opinião, deve ser negado provimento ao recurso da República da Polónia e que o Parlamento e o Conselho apresentaram requerimento nesse sentido, este Estado‑Membro deve ser condenado nas despesas. No entanto, os Governos espanhol e francês e a Comissão, que intervieram no litígio, devem suportar as suas próprias despesas, em conformidade com o artigo 140.o, n.o 1, deste regulamento.
VII. Conclusão
225. Tendo em atenção todas as considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça:
– negue provimento ao recurso da República da Polónia;
– condene este Estado‑Membro nas despesas; e
– condene o Reino de Espanha, a República Francesa e a Comissão Europeia a suportarem as suas próprias despesas.