Language of document : ECLI:EU:T:2002:53

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

(Quarta Secção Alargada)

28 de Fevereiro de 2002 (1)

«Auxílios de Estado - Auxílio ao funcionamento - Artigo 92.°, n.os 1 e 3, alínea d), do Tratado CE [que passou, após alteração, a artigo 87.°, n.os 1 e 3, alínea d), CE] - Condições de uma derrogação à proibição consagrada no artigo 92.°, n.° 1, do Tratado - Mercado de referência - Auxílios à exportação no sector do livro»

No processo T-155/98,

Société internationale de diffusion et d'édition (SIDE), com sede em Bagneux (França), representada por N. Coutrelis, advogado, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por G. Rozet e B. Mongin, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

apoiada por

República Francesa, representada por J.-F. Dobelle, G. de Bergues e F. Million, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

que tem por objecto um pedido de anulação do artigo 1.°, último período, da Decisão 1999/133/CE da Comissão, de 10 de Junho de 1998, relativa ao auxílio estatal concedido à Coopérative d'exportation du livre français (CELF) (JO 1999, L 44, p. 37),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Quarta Secção Alargada),

composto por: P. Mengozzi, presidente, R. García-Valdecasas, V. Tiili, R. M. Moura Ramos e J. D. Cooke, juízes,

secretário: D. Christensen, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 4 de Julho de 2001,

profere o presente

Acórdão

Factos na origem do litígio

1.
    A Société internationale de diffusion et d'édition (SIDE) é uma sociedade comissária estabelecida em França. As suas actividades consistem nomeadamente na exportação de livros em língua francesa para outros Estados-Membros da União Europeia e para países terceiros.

2.
    O CELF (Coopérative d'exportation du livre français, agindo sob o nome comercial de «Centre d'exportation du livre français»), que foi criado em 1977, é uma sociedade anónima cooperativa cujo objecto, segundo a última versão dos seus estatutos, é «tratar directamente das encomendas para o estrangeiro e os territórios e departamentos ultramarinos, de livros, brochuras e todos os suportes de comunicação e mais em geral executar todas as operações destinadas nomeadamente a desenvolver a promoção da cultura francesa através do mundo por meio dos suportes acima referidos». Os 101 cooperadores do CELF são na maioria editores estabelecidos em França, se bem que a cooperativa esteja aberta à participação de qualquer operador ligado à edição ou à difusão do livro francófono, independentemente do seu lugar de estabelecimento.

3.
    O CELF, à semelhança da SIDE, tem uma actividade comercial de difusão do livro dirigida principalmente para os países e as zonas não francófonas, dado que nas zonas francófonas, em especial da Bélgica, do Canadá e da Suíça, esta actividade é assegurada pelas redes de distribuição estabelecidas pelos editores.

4.
    Entre os diferentes operadores envolvidos na difusão do livro, os comissários, que só se dirigem aos retalhistas ou às colectividades, mas não ao utilizador final, permitem satisfazer as encomendas que os editores ou os seus distribuidores não consideram interessante satisfazer directamente. O comissário reúne as encomendas, individualmente pouco importantes, provenientes de diferentes clientes e dirige-se ao editor ou ao distribuidor, o qual só tem assim que fornecer um único ponto de entrega. Para os seus clientes livreiros ou institucionais, cujas encomendas dizem respeito a obras de diferentes editores, o comissário forma os pacotes respectivos e evita assim aos seus clientes terem de fazer múltiplas encomendas dirigidas a numerosos operadores. Em razão das despesas fixas ligadas ao tratamento de cada encomenda, a intervenção do comissário permite realizar ganhos ao nível do distribuidor e ao nível do cliente, o que a torna, assim, economicamente interessante.

5.
    Em 1979, enfrentando o CELF dificuldades financeiras, o sector, os editores, o Syndicat national de l'édition e as entidades públicas acordaram que ele devia ser mantido. Em consequência, foi decidida a concessão de subvenções compensatórias para o tratamento das encomendas de pequenas dimensões, que começou, na sua forma actual, em 1980.

6.
    O subsídio de exploração concedido ao CELF visa compensar os custos adicionais de tratamento das pequenas encomendas feitas pelos livreiros estabelecidos no estrangeiro. O mesmo permite ao CELF responder a uma procura cuja satisfação, tendo em conta o aumento das despesas de transporte e o valor total da encomenda em questão, não é considerada rentável pelos editores ou pelo seus distribuidores. Deste modo, a concessão deste subsídio contribui para a difusão da língua francesa e para a divulgação da literatura francófona.

7.
    Na prática, o mecanismo de apoio funciona do seguinte modo. Os livreiros que tenham necessidade, em pequenas quantidades, de obras publicadas por diferentes editores fazem as suas encomendas ao CELF, que desempenha então o papel de um comissário à exportação. O subsídio visa especificamente permitir satisfazer as encomendas de montante inferior a 500 francos franceses (FRF), despesas de transporte não incluídas, que se considera serem inferiores ao limiar de rentabilidade. Um quarto do montante do subsídio concedido no ano anterior é pago no início do ano, sendo o saldo concedido no Outono, após exame pelos poderes públicos das previsões de actividade do CELF e dos fluxos da primeira parte do exercício. Nos três meses seguintes ao final do exercício deve ser fornecida ao Ministério da Cultura e da Francofonia francês uma conta de utilização do subsídio com um elenco dos documentos comprovativos.

8.
    Por carta de 20 de Março de 1992, o advogado da recorrente chamou a atenção dos serviços da Comissão para os auxílios à promoção, ao transporte e à comercialização do livro francês que o Ministério da Cultura e da Francofonia francês concedia ao CELF. Nessa carta, perguntou à Comissão se os auxílios em questão tinham ou não sido objecto de notificação em conformidade com as disposições do artigo 93.°, n.° 3, do Tratado CE (actual artigo 88.°, n.° 3, CE).

9.
    Por carta de 2 de Abril de 1992, a Comissão solicitou às autoridades francesas informações relativas às medidas de que o CELF beneficiava.

10.
    A Comissão indicou à SIDE, em 7 de Abril de 1992, que os auxílios em questão pareciam não ter sido notificados. A não notificação foi confirmada à SIDE por carta de 7 de Agosto de 1992.

11.
    Em 18 de Maio de 1993, a Comissão adoptou uma decisão de autorização dos auxílios em questão, cujo aviso foi publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 25 de Junho de 1993 sob o título «Auxílios aos exportadores de livros franceses» e o número «NN 127/92» (JO C 174, p. 6).

12.
    Por acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 18 de Setembro de 1995, SIDE/Comissão (T-49/93, Colect., p. II-2501, a seguir «acórdão SIDE»), a referida decisão foi anulada, na medida em que dizia respeito ao subsídio concedido exclusivamente ao CELF para compensar os custos adicionais de tratamento das pequenas encomendas de livros de língua francesa feitas por livreiros estabelecidos no estrangeiro.

13.
    Por carta de 17 de Outubro de 1995, a Comissão solicitou às autoridades francesas que a informassem, antes de examinar a possibilidade de dar início ao processo previsto no artigo 93.°, n.° 2, do Tratado, de quaisquer alterações que tivessem introduzido nos auxílios concedidos ao CELF à luz do acórdão SIDE. As autoridades francesas responderam, por carta de 5 de Dezembro de 1995, que não tinham introduzido quaisquer alterações nos auxílios em questão.

14.
    Em 7 de Junho de 1996 realizou-se uma reunião entre a SIDE e a Comissão. Em 28 de Junho de 1996, a SIDE comunicou à Comissão informações suplementares que considerava úteis.

15.
    Em 30 de Julho de 1996, a Comissão decidiu dar início ao processo previsto no artigo 93.°, n.° 2, do Tratado. O Governo francês foi informado do facto por carta de 21 de Agosto de 1996.

16.
    Em 5 de Dezembro de 1996, a Comissão publicou no Jornal Oficial das Comunidades Europeias uma comunicação em que convidava os terceiros interessados a apresentarem-lhe as suas observações sobre os auxílios em causa (JO C 366, p. 7).

17.
    Vários terceiros enviaram-lhe as suas observações durante os meses de Dezembro de 1996 e Janeiro de 1997. A recorrente comunicou as suas observações ao Governo francês por carta de 6 de Janeiro de 1997. A Comissão transmitiu seguidamente estas observações ao Governo francês por carta de 15 de Abril de 1997.

18.
    Por cartas de 2 de Julho e 25 de Julho de 1997, a SIDE lamentou-se à Comissão da lentidão do processo.

19.
    O Governo francês respondeu à decisão da Comissão de dar início a um processo e às observações de terceiros por cartas datadas respectivamente de 12 de Dezembro de 1996 e 1 de Outubro de 1997. Em 29 de Outubro de 1997, realizou-se uma reunião entre os representantes da Comissão e as autoridades francesas. O Governo francês transmitiu ainda à Comissão informações e observações complementares por cartas de 30 de Outubro e 21 de Novembro de 1997.

20.
    Em 13 de Fevereiro de 1998, realizou-se uma reunião entre, por um lado, os representantes da Comissão e, por outro, as autoridades francesas e os representantes do CELF.

21.
    Por carta de 5 de Março de 1998, as autoridades francesas comunicaram à Comissão informações suplementares relativas, em especial, à natureza compensatória do auxílio. Por telecópias de 26 de Março e 10 de Abril de 1998, o CELF transmitiu-lhe informações actualizadas relativas aos custos suplementares associados ao tratamento das encomendas de pequenas dimensões e à natureza compensatória do auxílio. Por telecópia de 17 de Abril de 1998, o Ministério da Cultura forneceu igualmente à Comissão informações complementares. Por telecópia de 19 de Maio de 1998, as autoridades francesas comunicaram à Comissão outras informações.

22.
    Em 10 de Junho de 1998, a Comissão adoptou a Decisão 1999/133/CE, relativa ao auxílio estatal concedido à Coopérative d'exportation du livre français (CELF)(JO 1999, L 44, p. 37, a seguir «decisão impugnada»), comunicada ao advogado da recorrente em 23 de Julho de 1998.

23.
    No artigo 1.° da decisão impugnada, a Comissão verifica:

«O auxílio concedido [ao] CELF para o tratamento das encomendas de pequenas dimensões de livros de expressão francesa constitui um auxílio na acepção do n.° 1 do artigo 92.° do Tratado CE. Uma vez que o Governo francês não notificou este auxílio à Comissão antes de o aplicar, este foi concedido ilegalmente. No entanto, o auxílio é compatível por preencher as condições para beneficiar da derrogação prevista no n.° 3, alínea d), do artigo 92.° do referido Tratado.»

Tramitação processual e pedidos das partes

24.
    Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 29 de Setembro de 1998, a recorrente interpôs o presente recurso.

25.
    Por carta registada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 4 de Março de 1999, a República Francesa pediu ao Tribunal que a autorizasse a intervir na presente instância em apoio dos pedidos da recorrida.

26.
    A decisão impugnada foi igualmente objecto de um recurso de anulação interposto pela República Francesa, por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 8 de Setembro de 1998 (processo C-332/98), na medida em que a Comissão afastou a aplicação do artigo 90.°, n.° 2, do Tratado CE (actual artigo 86.°, n.° 2, CE).

27.
    Dado que os dois recursos contestam a validade do mesmo acto, o Tribunal de Primeira Instância, por despacho do presidente da Quarta Secção Alargada de 25 de Março de 1999, em conformidade com o disposto no artigo 47.°, terceiro parágrafo, do Estatuto (CE) do Tribunal de Justiça, suspendeu a presente instância até à prolação da decisão do Tribunal de Justiça pondo termo à instância no processo C-332/98.

28.
    Tendo o Tribunal de Justiça negado provimento ao recurso interposto pelo Governo francês nesse processo por acórdão de 22 de Junho de 2000, França/Comissão (C-322/98, Colect., p. I-4833), a presente instância prosseguiu.

29.
    Por despacho do presidente da Quarta Secção Alargada do Tribunal de Primeira Instância de 3 de Julho de 2000, a República Francesa foi autorizada a intervir em apoio dos pedidos da recorrida.

30.
    Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal (Quarta Secção Alargada) decidiu iniciar a fase oral. A recorrida e a interveniente responderam às questões escritas e apresentaram os documentos solicitados ao abrigo das medidas de organização do processo.

31.
    As partes foram ouvidas em alegações e nas respostas às questões colocadas pelo Tribunal na audiência de 4 de Julho de 2001.

32.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular o artigo 1.°, último período, da decisão recorrida;

-    condenar a recorrida nas despesas.

33.
    Na audiência, a recorrente precisou que pedia igualmente a anulação da decisão impugnada na medida em que a Comissão verificou, no ponto XIII, segundo parágrafo, dos seus considerandos, que a recapitalização do CELF em 1980 não constituía um auxílio de Estado na acepção do artigo 92.°, n.° 1, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87.°, n.° 1, CE).

34.
    A recorrida e a interveniente concluem pedindo que o Tribunal se digne:

-    negar provimento ao recurso;

-    condenar a recorrente nas despesas.

Quanto à admissibilidade do pedido de anulação das apreciações feitas pela Comissão na decisão impugnada sobre a recapitalização do CELF em 1980

Argumentos das partes

35.
    A recorrida alega, sem deduzir uma questão prévia de inadmissibilidade, que a recapitalização do CELF em 1980 não estava relacionada com o mecanismo de auxílio ao tratamento das pequenas encomendas. Deste modo, não se encontra demonstrada qualquer relação entre este aumento de capital e o mecanismo de auxílio ao funcionamento representado pelo auxílio autorizado pela decisão impugnada.

36.
    A recorrente, em resposta a uma questão do Tribunal relativa à admissibilidade do seu pedido de anulação das apreciações feitas pela Comissão na decisão impugnada sobre o refinanciamento do CELF em 1980, indicou que deixava tal questão ao prudente critério do julgador.

Apreciação do Tribunal

37.
    Deve assinalar-se que a questão da recapitalização do CELF em 1980 foi tratada no ponto XIII, segundo parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada, e que a mesma não foi retomada na sua parte decisória.

38.
    A este respeito, recorde-se que, segundo jurisprudência constante, o recurso previsto no artigo 173.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo230.° CE) só pode ser interposto contra um acto que lesa interesses, isto é, um acto susceptível de afectar uma situação jurídica determinada. Ora, quaisquer que sejam os fundamentos em que o acto assenta, apenas a sua parte decisória é susceptível de produzir efeitos jurídicos e, em consequência, causar prejuízo. Quanto às apreciações formuladas pela Comissão nos fundamentos da decisão impugnada, as mesmas só podem ser submetidas ao controlo da legalidade pelo juiz comunitário, na medida em que, enquanto fundamentos de um acto lesivo, constituam o suporte necessário da sua parte decisória (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 17 de Setembro de 1992, NBV e NVB/Comissão, T-138/89, Colect., p. II-2181, n.° 31).

39.
    Além disso, para determinar se um acto ou uma decisão produz efeitos jurídicos vinculativos que afectem os interesses do recorrente, alterando de forma caracterizada a situação jurídica deste, há que atender à sua substância (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 22 de Março de 2000, Coca-Cola/Comissão, T-125/97 e T-127/97, Colect., p. II-1733, n.os 77 e 78, e jurisprudência aí citada).

40.
    Daqui resulta, no caso vertente, que o simples facto de a questão da recapitalização do CELF em 1980 ter sido tratada no ponto XIII, segundo parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada, e não na sua parte decisória, não implica que esta verificação não possa ser objecto de um recurso de anulação. No ponto XIII, segundo parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada, a Comissão chegou «à conclusão de que este aumento de capital não constituía um auxílio estatal, mas simplesmente uma tomada de participação, devido ao facto de os investidores privados nela terem igualmente tomado parte». Ora, esta conclusão não constitui o suporte necessário do dispositivo da decisão impugnada porque este só respeita ao auxílio concedido ao CELF para o tratamento das pequenas encomendas.

41.
    Em consequência, o pedido de anulação das apreciações feitas pela Comissão na decisão impugnada sobre a recapitalização do CELF em 1980 deve ser julgado inadmissível.

Quanto ao pedido de anulação do artigo 1.°, último período, da decisão impugnada

42.
    A recorrente invoca sete fundamentos de anulação em apoio do seu recurso. No âmbito do primeiro fundamento, assente num vício processual, a recorrente acusa a Comissão de não ter procedido a um exame diligente e imparcial da denúncia e das observações dos interessados. O segundo fundamento assenta em insuficiência de fundamentação. O terceiro fundamento assenta em erros de facto e o quarto fundamento em erros manifestos de apreciação. O quinto fundamento assenta numa violação do princípio da não discriminação. O sexto fundamento assenta numa violação do artigo 92.°, n.° 3, alínea d), do Tratado. Por fim, o sétimo fundamento assenta numa falta de coerência da decisão impugnada com os artigos 85.° e 86.° do Tratado CE (actuais artigos 81.° CE e 82.° CE).

43.
    Há que examinar o quarto fundamento.

44.
    O quarto fundamento articula-se em quatro partes. No quadro da primeira parte a recorrente alega que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação na definição do mercado de referência. A segunda parte assenta em erro manifesto de apreciação no que respeita à proporcionalidade do auxílio controvertido. A terceira parte assenta em erro manifesto de apreciação do impacte deste auxílio sobre a concorrência. Na quarta parte, a recorrente sustenta que a Comissão considerou, erradamente, que a recapitalização do CELF em 1980 não constituía um auxílio na acepção do artigo 92.° do Tratado.

45.
    Há que examinar a primeira parte do quarto fundamento, segundo a qual a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao escolher o mercado da exportação de livros de língua francesa em geral como mercado de referência.

Argumentos das partes

46.
    A recorrente recorda que o mercado em causa é o mercado específico da comissão à exportação, e não o da exportação de livros de língua francesa em geral, nem, por maioria de razão, o mercado do livro. Assinala que a própria Comissão utilizou o conceito da comissão à exportação para descrever o auxílio ao CELF. Assim, a Comissão confunde o mercado de um produto - o livro - com o que está em causa, ou seja, o mercado de um serviço, a comissão à exportação.

47.
    Sustenta que, se um cliente escolhe recorrer a um distribuidor ou a um comissário, não porque compara os preços ou a qualidade de dois serviços substituíveis, mas devido às especificidades da sua procura, é porque na realidade se trata de dois serviços de natureza diferente, satisfazendo necessidades diferentes e constituindo portanto dois mercados distintos. Esta distinção prender-se-ia com a natureza das prestações oferecidas por um comissário e um exportador. O comissário à exportação oferece uma prestação específica, a da rentabilização de encomendas isoladas pelo seu reagrupamento para serem tratadas em condições económicas de preços e de custos aceitáveis. Assim, o critério para a definição de um mercado distinto é a intermutabilidade (ou não) das prestações do ponto de vista da procura. Além disso, do ponto de vista da oferta, os editores recusam satisfazer encomendas inferiores a um certo limiar, o que torna indispensável o recurso a um comissário. O facto de os comissários à exportação não se limitarem a esta actividade não afecta a especificidade deste mercado.

48.
    Segundo a recorrente, a Comissão «afogou» o mercado abrangido pelo auxílio controvertido num mercado mais vasto, o da exportação de livros de língua francesa em geral, de modo que não procedeu a uma verdadeira apreciação do impacte deste auxílio sobre a concorrência e, portanto, a uma avaliação séria da conformidade do auxílio como o artigo 92.°, n.° 3, alínea d), do Tratado.

49.
    Este erro levou assim a Comissão a pensar que existe uma especificidade das pequenas encomendas, quando esta especificidade é simplesmente a do mercado da comissão à exportação. A este respeito, o compromisso do CELF de satisfazer todas as pequenas encomendas não é pertinente porque é precisamente a aceitação de todas as encomendas, por mais reduzidas que sejam, que distingue o comissário do distribuidor. De igual modo, segundo a recorrente, o facto de os livros encomendados não estarem em armazém não respeita especialmente a pequenas encomendas, sendo todo e qualquer comissário, por definição, um intermediário que faz encomendas aos editores quando recebeu as dos seus clientes, e que portanto não tem mercadorias em armazém. Além disso, esta mesma ignorância do mercado específico levou a Comissão a considerar que as duas empresas, que beneficiaram do auxílio controvertido em certo momento, estavam numa situação comparável à da recorrente.

50.
    Por fim, a recorrente alega que a Comissão devia ter pedido os dados que, em sua opinião, faltam para delimitar um mercado específico da comissão à exportação. A dificuldade em dispor de informações sobre o mercado da comissão à exportação não devia criar uma dificuldade na identificação deste mercado, mas sim na quantificação do mesmo.

51.
    A recorrida afirma que não existe mercado separado e específico da comissão à exportação de livros de língua francesa. Existe um mercado da exportação de tais livros, mercado em que o CELF se encontra em concorrência com outros operadores. Com efeito, o comissário só tem um papel de intermediário: o produto vendido não lhe é específico. Além disso, não é contestado que os comissários à exportação exercem outras actividades para além da comissão propriamente dita, como a actividade clássica de livreiro. Assim, segundo a Comissão, era difícil dispor de dados sobre um eventual mercado da comissão à exportação em sentido estrito. Observa que a SIDE e os outros operadores que afirmam actuar neste mercado não forneceram qualquer elemento que permita distinguir o seu volume de negócios relativo à comissão à exportação do das suas outras actividades.

52.
    Quanto à afirmação de que todos os comissários à exportação tratam as pequenas encomendas, a Comissão indica que as encomendas de menos de 500 FRF representam uma parte diminuta do volume de negócios dos comissários à exportação (menos de 5% do volume de negócios do CELF, quando ele beneficia do auxílio controvertido), que só o CELF se comprometeu contratualmente perante o Ministério da Cultura a aceitar as pequenas encomendas, sendo precisamente este compromisso uma das razões do auxílio, e que os comissários à exportação se interessam sobretudo pelos clientes institucionais. Daí podia legitimamente deduzir que os comissários à exportação, que não o CELF, tratavam poucas encomendas de montante inferior a 500 FRF.

53.
    A República Francesa assinala que, no ponto X dos considerandos da decisão impugnada, a Comissão procedeu a uma análise detalhada das informações transmitidas não só pelo seu governo mas igualmente pela recorrente.

54.
    Considera que, a fim de demonstrar a existência de um mercado específico da comissão à exportação, seria necessário provar que o serviço de exportação de livros de língua francesa e o de comissão à exportação são, um e outro, exclusivos. Acrescenta que, do ponto de vista da procura, uma parte importante das encomendas provenientes do estrangeiro são dirigidas directamente aos distribuidores tradicionais sem passar pelos comissários. Sublinha que, do lado da oferta, os comissários à exportação têm geralmente outras actividades económicas. Por conseguinte, não é possível distinguir um mercado específico da comissão à exportação de livros de língua francesa.

Apreciação do Tribunal

55.
    O artigo 92.°, n.° 1, do Tratado prevê que, «[s]alvo disposição em contrário do presente Tratado, são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.» O n.° 3, alínea d), do referido artigo determina que podem ser considerados compatíveis com o mercado comum «[o]s auxílios destinados a promover a cultura e a conservação do património, quando não alterem as condições das trocas comerciais e da concorrência na Comunidade num sentido contrário ao interesse comum».

56.
    A fim de apurar se, no caso vertente, as condições da concorrência são alteradas num sentido contrário ao interesse comum na acepção do artigo 92.°, n.° 3, alínea d), do Tratado, é necessário examinar, antes de mais, a definição do mercado das prestações em causa. Para o efeito, há que recordar que a Comissão definiu o mercado em que examinou os efeitos do auxílio controvertido como sendo o da exportação de livros de língua francesa em geral.

57.
    Quanto à definição material do mercado, recorde-se que, para se considerar que é objecto de um mercado suficientemente distinto, o serviço ou o bem em causa deve poder ser individualizado por características particulares que o diferenciem de outros serviços ou bens a ponto de ser pouco intermutável com eles e sofrer a sua concorrência apenas de maneira pouco sensível. Neste quadro, o grau de intermutabilidade entre produtos ou serviços deve ser avaliado em função das características objectivas destes, bem como em função da estrutura da procura, da oferta no mercado e das condições de concorrência (acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 21 de Outubro de 1997, Deutsche Bahn/Comissão, T-229/94, Colect., p. II-1689, n.° 54, e jurisprudência aí citada).

58.
    No caso sub judice, há que recordar, como resulta do artigo 1.° da decisão impugnada, que o auxílio controvertido é concedido ao CELF para o tratamento das pequenas encomendas de livros de língua francesa. A Comissão explicou, na audiência, que o objecto do auxílio controvertido era compensar uma parte doscustos de gestão das pequenas encomendas de tais livros, de modo que o CELF não factura a totalidade destes custos aos seus clientes.

59.
    Por conseguinte, deve examinar-se se os serviços de exportação de livros de língua francesa em geral e os da comissão à exportação são intermutáveis no que se refere ao tratamento das encomendas de valor inferior a 500 FRF.

60.
    A este respeito, a intermutabilidade destes serviços é contestada pela própria justificação do auxílio em questão. Segundo o ponto VI, primeiro parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada, o subsídio de exploração concedido ao CELF permite-lhe «satisfazer encomendas consideradas não rentáveis pelos editores ou seus distribuidores associados devido à importância dos custos de transporte que implicam em relação ao seu valor total». Acrescenta-se no ponto VI, terceiro parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada que, «entre os diferentes intervenientes do sector da distribuição de livros, os comiss[ários] que só tratam com os retalhistas e as organizações, mas não com os clientes finais, satisfazem encomendas cujo tratamento é considerado demasiado oneroso pelos editores ou seus distribuidores».

61.
    Além disso, o próprio Governo francês sublinhou que o «mecanismo de auxílio não é de qualquer modo susceptível de afectar a actividade dos editores que asseguram eles próprios a distribuição das suas obras ou a dos distribuidores clássicos. Por um lado, estes operadores nunca tratam as encomendas em causa através do auxílio, uma vez que consideram o seu volume insuficiente e, por outro, beneficiam indirectamente do auxílio uma vez que é junto deles que [o] CELF se abastece. O auxílio só pode, por conseguinte, ter uma eventual incidência sobre a concorrência a nível dos operadores que exercem uma actividade de comiss[ário] à exportação» (ponto VIII, quinto parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada). Acrescentou que «as encomendas cujo mecanismo de auxílio visa permitir o seu tratamento não relevam do mercado normal, ainda que existam operadores que as aceitem pontualmente» (ponto VIII, sexto parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada).

62.
    Por fim, na audiência, a Comissão admitiu que, se os editores e os distribuidores podem aceitar encomendas de valor inferior a 500 FRF, é apenas mediante um suplemento de preço tal que as torna demasiado caras para os clientes.

63.
    Dado que os editores e os distribuidores não aceitam as pequenas encomendas sem tal suplemento de preço, o serviço de um comissário é um serviço de natureza diferente, satisfazendo necessidades diferentes. Com efeito, em razão deste custo adicional, o facto de os editores e os distribuidores aceitarem, em teoria, encomendas de valor inferior a 500 FRF não basta para demonstrar que os seus serviços são intermutáveis com os dos comissários. O mercado em que o efeito do auxílio controvertido deve ser examinado não pode ter igualmente operadores económicos que não são realmente activos no referido mercado. Em consequência, o mercado de referência deve ser o mercado da comissão à exportação, dado quesó os comissários são realmente abrangidos pelo tratamento das encomendas de valor inferior a 500 FRF, constituindo este mercado um mercado distinto do mercado da exportação de livros de língua francesa em geral.

64.
    Além disso, o facto de os editores e os distribuidores só aceitarem estas encomendas mediante o pagamento de um suplemento de preço demonstra que eles próprios lhes dão um tratamento distinto relativamente à sua actividade geral de distribuição e de exportação de livros de língua francesa. Este tratamento distinto constitui um elemento que corrobora a existência de um mercado específico.

65.
    Quanto à afirmação da Comissão de que não dispunha de dados precisos permitindo-lhe delimitar o mercado relevante como sendo o mercado da comissão à exportação, verifica-se que este mesmo problema foi suscitado por esta instituição no quadro do processo que deu origem ao acórdão SIDE. Como resulta do n.° 70 desse acórdão, a Comissão sustentou que cabia à recorrente provar a existência de um submercado específico para a comissão à exportação e adiantou o argumento segundo o qual a Comissão só é obrigada a fazer uma investigação aprofundada sobre as condições do mercado quando lhe sejam fornecidas informações detalhadas na fase do procedimento administrativo.

66.
    O Tribunal rejeitou esta argumentação. Afirmou, no n.° 71 do acórdão SIDE, que «a argumentação da Comissão [equivalia] a exigir que os concorrentes de empresas beneficiárias de um auxílio estatal não notificado lhe forneçam dados a que, na maior parte dos casos, não têm acesso e que só podem obter por intermédio da própria Comissão, junto dos Estados-Membros que concedem estes auxílios».

67.
    No caso sub judice, a Comissão só justifica a sua escolha do mercado de referência retomando as afirmações do Governo francês. Assim, escreve no ponto X, vigésimo parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada que «o Governo francês duvida que seja possível definir, a não ser de uma forma puramente teórica, um mercado da comissão à exportação para os livros de língua francesa». Acrescenta no ponto X, vigésimo sexto parágrafo, dos considerandos da mesma decisão que «as autoridades francesas consideram, por conseguinte, que não é possível dispor de dados sobre um eventual mercado da comissão à exportação em sentido restrito». Segundo ela, «[m]esmo se interrogássemos individualmente cada um dos operadores que afirmam exercer a actividade em causa, é pouco provável que todos tenham uma contabilidade analítica suficientemente exacta para a isolar». Por fim, declara, no ponto X, vigésimo sétimo parágrafo, dos considerandos da decisão impugnada, que o Governo francês só lhe forneceu os volumes de negócios à exportação realizados pelos operadores estabelecidos em França e conhecidos por tratarem o tipo de encomendas dirigidas normalmente aos comissários.

68.
    Estas citações demonstram que a Comissão nem sequer tentou verificar se lhe era possível obter os dados pertinentes a fim de distinguir o mercado da comissão à exportação do da exportação de livros de língua francesa em geral. Ora, comoresulta do ponto X, décimo quinto, vigésimo sétimo e vigésimo oitavo parágrafos, dos considerandos da decisão impugnada, o número de operadores que praticam a comissão à exportação é conhecido.

69.
    Além disso, na audiência, a Comissão não respondeu à questão do Tribunal destinada a saber se tinha pedido à recorrente e aos outros operadores que fornecessem informações permitindo distinguir o seu volume de negócios relativo à comissão à exportação do correspondente às suas outras actividades.

70.
    Ora, conforme resulta da facturação efectuada em 1 de Abril de 1999 a 31 de Março de 2000 pela recorrente enquanto comissário à exportação, é perfeitamente possível diferenciar estes volumes de negócios. Por outro lado, no ponto VI, décimo terceiro parágrafo, dos considerandos (nota 4) da decisão impugnada, a mesma diferenciação foi efectuada quanto aos volumes de negócios do CELF.

71.
    Em consequência, a Comissão devia ter examinado os efeitos do auxílio em questão sobre a concorrência e sobre as trocas comerciais entre os outros operadores que exercem a mesma actividade que aquela à qual o auxílio foi concedido, no caso presente, o tratamento das pequenas encomendas de livros de expressão francesa. Ao escolher o mercado da exportação de livros de língua francesa em geral como mercado de referência, a Comissão não pôde apreciar o verdadeiro impacte do auxílio sobre a concorrência. Assim, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação quanto à definição do mercado.

72.
    Atendendo ao que precede, não há que verificar os dados relativos aos concorrentes do CELF. Com efeito, ao considerar-se que a definição do mercado é errada, a parte que o CELF detém no mercado em causa deve igualmente ser recalculada.

73.
    Nestas condições, cabe acolher a primeira parte do quarto fundamento, relativa à definição do mercado. Daqui resulta que o pedido de anulação do artigo 1.°, último período, da decisão impugnada deve ser julgado procedente, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos e argumentos invocados pela recorrente.

Quanto às despesas

74.
    Por força do artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrida sido vencida, há que condená-la a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas da recorrente em conformidade com o pedido desta.

75.
    A República Francesa, que interveio na instância, suportará as suas próprias despesas, em aplicação do artigo 87.°, n.° 4, primeiro e terceiro parágrafos, do Regulamento de Processo.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção Alargada)

decide:

1)    O artigo 1.°, último período, da Decisão 1999/133/CE da Comissão, de 10 de Junho de 1998, relativa ao auxílio estatal concedido à Coopérative d'exportation du livre français (CELF), é anulado.

2)    A recorrida suportará as suas próprias despesas e as da recorrente.

3)    A República Francesa suportará as suas próprias despesas.

Mengozzi
García-Valdecasas
Tiili

        Moura Ramos                        Cooke

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 28 de Fevereiro de 2002.

O secretário

O presidente

H. Jung

P. Mengozzi


1: Língua do processo: francês.