Language of document : ECLI:EU:C:2017:162

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 2 de março de 2017 (1)

Processo C552/15

Comissão Europeia

contra

Irlanda

«Incumprimento de Estado — Livre prestação de serviços — Veículos automóveis — Aluguer ou aquisição em regime de locação financeira de um veículo automóvel por um residente num Estado‑Membro junto de um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro — Imposto sobre o registo — Pagamento integral do imposto no momento do registo — Requisitos do reembolso do imposto — Proporcionalidade»






 Introdução

1.        Os impostos sobre o registo de veículos automóveis não estão harmonizados no direito da União. Em princípio, os Estados‑Membros gozam do direito de fixar livremente, no seu direito nacional, as regras aplicáveis a este tipo de impostos. Contudo, não lhes é permitido agir de forma contrária aos princípios gerais do direito da União, em especial às liberdades do mercado interno. O presente processo tem por objeto a margem de manobra de que os Estados‑Membros dispõem nessa matéria.

2.        Tendo sido notificada pela Comissão Europeia para que procedesse à adaptação do seu regime de impostos sobre o registo às exigências da livre prestação de serviços no que diz respeito ao aluguer e à locação financeira de veículos automóveis, a Irlanda introduziu no seu direito nacional algumas alterações nesse sentido. No entanto, no caso dos veículos importados de outros Estados‑Membros para a Irlanda a fim de aí serem utilizados por um período de tempo limitado, a Comissão considera que as adaptações que foram introduzidas na legislação irlandesa são insuficientes e que esta é incompatível com a livre prestação de serviços. Não partilhando a Irlanda dessa posição, o litígio deve ser decidido pelo Tribunal de Justiça.

 Quadro jurídico do direito irlandês

3.        O artigo 131.o, n.o 4, do Finance Act 1992 (Lei de Finanças de 1992) estabelece uma proibição da utilização, no território irlandês, de veículos automóveis que não estejam registados na Irlanda, sem prejuízo de algumas exceções previstas em diversas disposições (2). A obrigação de registo deve ser cumprida no prazo de um mês a contar da entrada em circulação do veículo no território irlandês.

4.        O artigo 132.o, n.o 1, da referida lei, na redação que lhe foi dada pelo artigo 83.o, n.o 1, alínea d), do Finance Act 2012 (Lei de Finanças de 2012), cria um imposto especial sobre os veículos, denominado imposto sobre o registo. A obrigação fiscal relativa ao imposto sobre o registo nasce no momento do registo do veículo. O montante do imposto é calculado com base numa percentagem do valor de mercado, tendo em conta o nível de emissões de dióxido de carbono. Para os veículos mais poluentes, o imposto pode ascender a 36% do seu valor de mercado. O registo é precedido de uma inspeção ao veículo realizada num centro de inspeção técnica. Essa inspeção visa, nomeadamente, permitir determinar o valor de mercado do veículo.

5.        A obrigação de registo e pagamento do imposto sobre o registo abrange também os veículos alugados ou adquiridos em regime de locação financeira com base em contratos celebrados entre residentes no território irlandês e prestadores estabelecidos noutros Estados‑Membros.

6.        Em caso de saída do veículo do território irlandês e de cancelamento do registo do mesmo, o artigo 135.o‑D do Finance Act 1992, aditado por força do artigo 83.o, n.o 1, alínea j), do Finance Act 2012 e que entrou em vigor em 8 de abril de 2013, prevê um reembolso parcial do imposto sobre o registo. O montante do reembolso é calculado em função do valor de mercado do veículo no momento da sua saída. A fixação desse valor exige uma nova inspeção técnica, que deve ser realizada durante o mês anterior à saída. Do montante do reembolso é deduzida uma quantia fixa de 500 euros, a título de despesas administrativas.

7.        A partir de 1 de janeiro de 2016, o montante do reembolso é acrescido de juros, calculados de acordo com o regulamento de execução do artigo 135.o‑D do Finance Act 1992. Também a partir de 1 de janeiro de 2016, por força do artigo 49.o do Finance Act 2015 (Lei de Finanças de 2015), a dedução efetuada a título de despesas administrativas foi reduzida para 100 euros.

 Tramitação processual, fundamentação e argumentos das partes

 Tramitação processual

8.        Em 2003 e em 2006, a Comissão pediu esclarecimentos à Irlanda acerca da conformidade do imposto sobre o registo aplicável nesse Estado‑Membro com a livre prestação de serviços, tendo em conta os acórdãos Cura Anlagen (3) e Comissão/Dinamarca (4). Em 27 de janeiro de 2011, após uma reunião de consulta e um novo pedido de esclarecimentos em 2010, a Comissão dirigiu à Irlanda uma notificação para cumprir, tendo considerado que, ao impor aos residentes irlandeses que importam, a título temporário, veículos para o território desse Estado‑Membro o pagamento do valor integral do imposto sobre o registo desses veículos, sem possibilidade de redução do mesmo ou de obter o seu reembolso, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 56.o a 62.o TFUE. Em 28 de outubro de 2011, não se considerando satisfeita com a resposta da Irlanda, a Comissão emitiu um parecer fundamentado, no qual, no essencial, voltou a formular as mesmas críticas.

9.        Estas medidas levaram a Irlanda a introduzir a possibilidade de um reembolso parcial do imposto sobre o registo, no caso de saída do veículo do território irlandês. O sistema de reembolso entrou em vigor em 8 de abril de 2013.

10.      Em 10 de julho de 2014, a Comissão dirigiu à Irlanda uma nova notificação para cumprir e, em seguida, em 26 de fevereiro de 2015, um parecer fundamentado complementar. Aí, a Comissão informou que o regime do imposto sobre o registo aplicável na Irlanda continuava a ser contrário à livre prestação de serviços, porque impunha o pagamento integral do imposto às pessoas que importassem veículos para a Irlanda por um período limitado, ao só permitir a posteriori que as mesmas obtivessem o reembolso parcial do imposto pago. Segundo a Comissão, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça que decorre do despacho VAV‑Autovermietung (5), essas regras são ilegais. Além disso, a Comissão considerou que as disposições irlandesas não previam o pagamento de juros sobre a parte do imposto sobre o registo reembolsada, sendo efetivamente deduzido desse reembolso, a título de despesas administrativas, um montante significativo. A Comissão convidou a Irlanda a adotar as medidas necessárias para dar cumprimento a esse parecer fundamentado complementar no prazo de dois meses a contar da sua receção.

11.      Por carta de 27 de abril de 2015, a Irlanda respondeu ao parecer fundamentado. Indicou que, em seu entender, atualmente, o regime do imposto sobre o registo era, em princípio, conforme com o direito da União. Todavia, acrescentou que o reembolso parcial do imposto em caso de saída do veículo seria acrescido de juros e que a dedução a título de despesas administrativas seria reduzida para 100 euros.

12.      Em 26 de outubro de 2015, a Comissão, tendo considerado que a Irlanda não tinha dado cumprimento ao parecer fundamentado dentro do prazo fixado (6), intentou a presente ação. Em 8 de janeiro de 2016, a Irlanda apresentou a contestação. Em 18 de fevereiro e 31 de março de 2016, respetivamente, as partes apresentaram a réplica e a tréplica. Por requerimento de 14 de abril de 2016, a Irlanda pediu que o processo fosse julgado pela Grande Secção. A audiência teve lugar em 22 de novembro de 2016.

 Fundamentos e argumentos da Comissão

13.      A Comissão censura à Irlanda não ter cumprido as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.o TFUE, ao impor aos residentes na Irlanda o pagamento integral do imposto sobre o registo, no momento da importação, para esse Estado‑Membro, de veículos automóveis alugados ou adquiridos em regime de locação financeira noutro Estado‑Membro, sem ter em consideração a duração prevista da sua utilização em território irlandês, quando os mesmos não se destinem a ser utilizados na Irlanda a título permanente nem sejam, na prática, objeto de tal utilização, e ao estabelecer condições para o reembolso desse imposto que vão além do estritamente necessário e proporcionado.

14.      Segundo a Comissão, o regime do imposto sobre o registo em vigor na Irlanda tem como consequência que o aluguer ou a locação financeira de um veículo noutro Estado‑Membro, para a sua utilização temporária na Irlanda, são manifestamente menos vantajosos do que o aluguer ou a locação financeira de um veículo na Irlanda. Considera, pois, que a regulamentação irlandesa constitui uma restrição à livre prestação de serviços de aluguer ou de locação financeira de veículos e, por conseguinte, viola o artigo 56.o TFUE.

15.      Quanto à questão relativa à aplicação do valor integral do imposto sobre o registo, independentemente do facto de o veículo ser registado na Irlanda a título permanente ou para efeitos de utilização temporária, a Comissão entende que essa regulamentação é ilegal à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça (7). Embora entenda que o regime de reembolso parcial do imposto em caso de importação possa revelar‑se suficiente no que respeita a veículos cuja duração de utilização no território irlandês não é conhecida no momento da sua importação, a mesma considera que, em contrapartida, quando a importação é feita para uma duração previamente conhecida, em especial, com base num contrato de aluguer ou de locação financeira, é desproporcionado impor o pagamento integral do imposto sem ter em conta esse fator. Com efeito, este regime sujeita a importação temporária de veículos à mesma carga fiscal que a importação por duração indeterminada.

16.      Além disso, as pessoas que importam veículos para o território irlandês, a título temporário, não são ressarcidas, recebendo juros, pelo período em que foram ilegalmente privadas do montante do imposto sobre o registo indevidamente cobrado, uma vez que a regulamentação irlandesa não prevê o reembolso com juros. Acresce que, sobre o montante do reembolso, são cobradas despesas administrativas que ascendem a 500 euros, o que constitui uma quantia considerável e desproporcionada.

 Argumentos da Irlanda

17.      Em primeiro lugar, a Irlanda alega que a Comissão mudou a sua posição no decurso da fase pré‑contenciosa. Enquanto, inicialmente, parecia ter aceitado o sistema de reembolso parcial do imposto em caso de exportação dos veículos da Irlanda e de cancelamento do registo dos mesmos, em seguida, mudou de opinião e, atualmente, já não autoriza de todo a cobrança integral do imposto sobre o registo no que diz respeito a veículos importados por um período previamente conhecido. A Comissão apoiou‑se no despacho do Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), mas a Irlanda chama a atenção para o facto de esse despacho ter sido proferido antes mesmo de a Comissão ter enviado a sua primeira notificação para cumprir de janeiro de 2011. Segundo a Irlanda, esta mudança da sua posição constitui uma violação do princípio da cooperação leal, consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, do princípio da boa administração e dos direitos de defesa da Irlanda.

18.      Em seguida, a Irlanda sustenta que a ação da Comissão é prematura, uma vez que, quando esta a intentou, estava informada do facto de que a reforma legislativa que autorizava o pagamento de juros sobre o montante reembolsado e que reduzia o montante das despesas administrativas para 100 euros entraria em vigor em 1 de janeiro de 2016. Segundo a Irlanda, estas alterações não podiam ser implementadas antes, porque a legislação fiscal só é alterada uma vez por ano, a 1 de janeiro.

19.      Por último, a Irlanda sustenta que a posição da Comissão é ambígua, dado que não permite concluir se os seus pedidos se baseiam num fundamento global ou em dois, ou mesmo três fundamentos separados, nem se as diferentes regras irlandesas que a mesma impugna constituem conjuntamente uma restrição à livre prestação de serviços, pelo facto de figurarem juntas, ou se cada uma delas constitui, separadamente, uma restrição desse tipo.

20.      No essencial, a Irlanda afirma que, atualmente, a sua regulamentação relativa ao imposto sobre o registo é plenamente conforme com o direito da União. Em especial, segundo a mesma, o sistema de cobrança integral desse imposto no momento do registo do veículo e de eventual reembolso parcial do mesmo em caso de exportação e de cancelamento do registo do veículo é conforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça e não constitui uma restrição à livre prestação de serviços de aluguer e de locação financeira de veículos.

21.      Segundo a Irlanda, o despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), foi proferido a respeito do caso particular da regulamentação em vigor nos Países Baixos, segundo a qual o montante do imposto estava subordinado à duração da utilização do veículo no território desse Estado‑Membro. Em contrapartida, no regime irlandês, o montante do imposto sobre o registo é calculado em função do valor do veículo à data do seu registo, da mesma forma que o montante do reembolso no momento da sua exportação. O valor do veículo não depende, pois, unicamente da sua idade, mas também de outros fatores, nomeadamente da sua quilometragem, de modo que não é possível determiná‑lo previamente. O regime irlandês permite, portanto, fixar o montante do imposto em função da intensidade da utilização efetiva do veículo no território irlandês, o que não é permitido por um sistema em virtude do qual o montante do imposto dependa unicamente da duração da sua utilização no território do país.

22.      A alteração do sistema de cobrança do imposto sobre o registo recomendada pela Comissão causaria dificuldades administrativas importantes e implicaria inevitavelmente a necessidade de alterar o método de cálculo do reembolso, obrigando, pois, em substância, a uma alteração da base tributável. Ora, isso constituiria uma ingerência ilegítima na liberdade de que os Estados‑Membros dispõem para definir o seu sistema de tributação sobre veículos.

23.      Além disso, a duração da utilização do veículo no território irlandês nunca é conhecida previamente com certeza, dado que o contrato de aluguer pode ser denunciado, prorrogado ou alterado de outra forma, de modo que o veículo poderia continuar registado e a ser utilizado na Irlanda para além do período que tivesse sido objeto de tributação. Eventuais sistemas de pagamentos adicionais implicariam exatamente os mesmos encargos que o sistema de reembolso em caso de exportação do veículo atualmente em vigor.

24.      Quanto às críticas relativas ao não pagamento de juros sobre o montante do imposto reembolsado e ao caráter excessivo da dedução efetuada a título de despesas administrativas, a Irlanda salienta que esses problemas foram resolvidos com a introdução das alterações legislativas que entraram em vigor em 1 de janeiro de 2016.

 Análise

25.      Na petição inicial, a Comissão invoca, no essencial, três problemas: a cobrança integral do imposto sobre o registo, no momento do registo de veículos importados para serem utilizados no território da Irlanda por um período previamente conhecido; o não pagamento de juros aquando do reembolso parcial do imposto sobre o registo, em caso de exportação e de cancelamento do registo do veículo; e a dedução, nesse momento, de uma quantia de 500 euros, a título de despesas administrativas. Estes problemas, dos quais o mais importante é evidentemente o primeiro, devem ser sucessivamente examinados. No entanto, antes de mais, é conveniente examinar as reservas de natureza formal formuladas pela Irlanda.

 Críticas de natureza formal formuladas pela Irlanda

26.      A Irlanda censura à Comissão ter mudado a sua posição no decurso do processo, apresentar críticas de natureza ambígua e ter intentado prematuramente uma ação perante o Tribunal de Justiça.

27.      Em primeiro lugar, embora a Irlanda não invoque diretamente qualquer fundamento relativo à inadmissibilidade da ação, há que observar que, em meu entender, não se verificou o menor incumprimento por parte da Comissão que pudesse justificar tal censura. As críticas constantes da petição inicial correspondem às que a Comissão tinha formulado na notificação para cumprir complementar de 10 de julho de 2014 e no parecer fundamentado complementar de 26 de fevereiro de 2015. Por conseguinte, na sua petição, a Comissão não ampliou nem alterou as críticas que já tinha formulado na fase pré‑contenciosa.

28.      O facto de, do ponto de vista formal, a Comissão ter exposto estas críticas no âmbito de um processo por incumprimento iniciado anteriormente, no qual formulou críticas de natureza mais geral, não altera esta apreciação. O procedimento inicial foi aberto quando o regime irlandês do imposto sobre o registo não previa absolutamente nenhum tipo de limitação do montante desse imposto no que diz respeito aos veículos utilizados na Irlanda a título temporário, quer fosse por via de um reembolso quer por outro método. Por conseguinte, é lógico que, nessa fase, as críticas da Comissão tenham incidido, de maneira geral, sobre a inadequação da regulamentação irlandesa às exigências da livre prestação de serviços à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

29.      Todavia, o procedimento por incumprimento não é encerrado quando o Estado‑Membro adota quaisquer medidas a fim de dar cumprimento ao direito da União. A Comissão deve certificar‑se de que essas medidas tornam as disposições nacionais real e efetivamente conformes com o direito da União. Caso a mesma considere que as medidas adotadas pelo Estado‑Membro não garantem a plena conformidade com o direito da União, tem o direito de formular críticas mais específicas relativamente às questões ainda não resolvidas. Em meu entender, a este respeito, é irrelevante que uma decisão concreta do Tribunal de Justiça, neste caso, o despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), já tenha sido proferida à data da primeira notificação para cumprir. Com efeito, a jurisprudência do Tribunal de Justiça é conhecida tanto pela Comissão como pelos Estados‑Membros, que são obrigados a dar‑lhe cumprimento, independentemente das notificações para cumprir que, para esse efeito, a Comissão lhes dirija. Além disso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça é apenas a interpretação das disposições do direito da União, neste caso, das disposições do Tratado FUE, pelo que a Comissão não é, de modo algum, obrigada a indicar decisões específicas às quais o Estado‑Membro seja obrigado a dar cumprimento. Basta que a Comissão indique a norma correspondente do direito da União, e o Estado‑Membro, se aceitar as críticas da Comissão, é obrigado a adaptar a sua legislação à referida norma, tendo em conta toda a jurisprudência do Tribunal de Justiça aplicável nesse caso.

30.      Por conseguinte, considero que a fase pré‑contenciosa foi conduzida de forma regular e que a petição não está afetada de qualquer vício que a pudesse tornar inadmissível. Pelas mesmas razões, considero que a Comissão não violou o seu dever de cooperação leal, o princípio da boa administração ou os direitos de defesa da Irlanda.

31.      Quanto à crítica relativa à ambiguidade da posição adotada pela Comissão na sua petição, basta salientar que decorre claramente da petição que a crítica principal diz respeito à obrigação de pagar antecipada e integralmente o imposto sobre o registo, enquanto, segundo a Comissão, o não pagamento de juros e o elevado montante da dedução efetuada em caso de reembolso da parte do imposto indevidamente cobrada são elementos que reforçam os efeitos negativos que essa exigência implica para a livre prestação de serviços de aluguer e de locação financeira de veículos. Contudo, pelas razões acima expostas, entendo que, mesmo que o sistema de reembolso do imposto fosse conforme com o princípio da livre prestação de serviços, esses dois outros elementos, considerados separadamente, poderiam constituir um incumprimento das obrigações decorrentes dessa liberdade. Importa, pois, examiná‑los individualmente.

32.      Por último, no que diz respeito à crítica relativa ao caráter prematuro da propositura da ação, deve, antes de mais, salientar‑se que, do ponto de vista formal, a Comissão goza do direito de propor uma ação, desde que o prazo indicado no parecer fundamentado tenha expirado sem que o Estado‑Membro tivesse dado cumprimento às suas exigências. É, portanto, a situação existente à data do termo do prazo que constitui o ponto de referência para a apreciação da existência de um incumprimento pelo Estado‑Membro das obrigações que lhe incumbem (8). Caso contrário, os Estados‑Membros poderiam protelar indefinidamente a propositura de uma ação pela Comissão, anunciando sempre novos prazos para dar cumprimento ao parecer fundamentado.

33.      No que diz respeito ao presente processo, importa igualmente acrescentar que a obrigação de reembolsar com juros os impostos indevidamente cobrados, por um lado, e a proibição de estabelecer regras aplicáveis a esse reembolso, que sejam contrárias ao princípio da efetividade, por outro, eram conhecidas pela Irlanda muito antes da propositura da presente ação. Tendo a Irlanda finalmente reconhecido que as referidas críticas tinham fundamento, nada se opunha, pois, a que, paralelamente à introdução do sistema de reembolso parcial do imposto sobre o registo, que ocorreu em 2013, implementasse uma regulamentação nesse sentido.

34.      Deve salientar‑se igualmente que o objetivo principal do processo por incumprimento não é punir o Estado‑Membro, mas levá‑lo a cumprir o direito da União. Não é menos certo que, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os impostos cobrados em violação do direito da União devem ser restituídos com juros (9). O acórdão do Tribunal de Justiça que declara esse incumprimento pode constituir a base do pedido desse reembolso. Há, pois, um interesse geral na propositura da ação pela Comissão e na prossecução da mesma até que o Tribunal de Justiça profira o seu acórdão, mesmo que o incumprimento tenha sido eliminado antes da prolação desse acórdão (10).

35.      Pelas razões expostas, em meu entender, cabe julgar improcedentes os fundamentos e argumentos relativos ao caráter desleal e irregular do procedimento conduzido pela Comissão, apresentados pela Irlanda.

 Fundamento relativo à cobrança integral do imposto sobre o registo

36.      Importa recordar que a Comissão censura à Irlanda a aplicação de restrições à livre prestação de serviços de aluguer e de locação financeira de veículos, ao cobrar integralmente o imposto sobre o registo de veículos (sem prejuízo da possibilidade de reembolso parcial posterior), no momento do seu registo, que é obrigatório em caso de utilização por um período superior a um mês, mesmo quando o período de utilização previsto do veículo no território irlandês seja conhecido previamente. Essa regulamentação, que não estabelece devidamente qualquer diferenciação entre a importação de um veículo por um período limitado e uma importação a título permanente, tem como consequência tornar menos interessante a utilização dos serviços de aluguer ou de locação financeira de veículos oferecidos por prestadores de outros Estados‑Membros do que a utilização dos serviços prestados por empresas nacionais. Com efeito, a utilização dos primeiros implica um considerável ónus financeiro — a saber, a necessidade de suportar antecipadamente a totalidade do imposto sobre o registo, embora o montante realmente devido possa ser manifestamente inferior — e administrativo, exigindo a realização de uma inspeção técnica do veículo, antes da sua entrada em circulação, para determinar o seu valor de mercado, de que resulta o montante do imposto.

37.      Os impostos do tipo do imposto sobre o registo irlandês não estão harmonizados no direito da União, de modo que os Estados‑Membros podem exercer livremente as suas competências fiscais, desde que respeitem o direito da União (11). À luz do direito da União, a situação em que o veículo deva ser ou seja, de facto, utilizado de forma permanente no território de determinado Estado‑Membro exige um tratamento diferente da situação em que essa condição não se verifique, na qual o veículo só é utilizado nesse Estado‑Membro a título temporário. No primeiro caso, em princípio, o Estado‑Membro pode tributar a utilização do veículo, por exemplo, cobrando um imposto sobre o registo. Em contrapartida, no segundo caso, a tributação da utilização do veículo, que limita potencialmente as liberdades do mercado único, exige uma justificação adicional. Além disso, essa tributação deve ser concebida de forma proporcionada ao objetivo que prossegue (12).

38.      No que diz respeito aos impostos como o imposto sobre o registo irlandês, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que, no caso de veículos alugados ou adquiridos em regime de locação financeira num Estado‑Membro que não o da tributação, o seu objetivo pode ser alcançado através de impostos cujo montante varie em função da duração da utilização do veículo no seu território (13). A cobrança integral do imposto, como no caso de veículos utilizados de forma permanente no território do Estado de tributação, não preenche, pois, o requisito da proporcionalidade e é contrária ao princípio da livre prestação de serviços, atualmente consagrado no artigo 56.o TFUE (14).

39.      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, nos casos em que tenha sido celebrado um contrato de aluguer ou de locação financeira de um veículo por duração determinada, quando a entrada em circulação do veículo no território de um Estado‑Membro faz nascer uma obrigação de pagamento integral de um imposto, sem que seja tida em conta a duração da utilização prevista desse veículo no território do referido Estado‑Membro, a mera possibilidade de um reembolso parcial do imposto, posterior à saída do veículo do território do mesmo, não basta para garantir a conformidade com o princípio da livre prestação de serviços (15).

40.      Esta é a jurisprudência que a Comissão invoca no presente processo, assinalando que, à semelhança da legislação neerlandesa examinada no processo que deu origem ao despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), a regulamentação irlandesa também não preenche o requisito da proporcionalidade, uma vez que exige o pagamento integral do imposto sobre o registo quando a duração da utilização do veículo no território da Irlanda é previamente conhecida.

41.      O despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), procede à aplicação, numa situação concreta, dos princípios acima enunciados. No processo principal que deu origem a esse acórdão, o sujeito passivo tinha sido obrigado a pagar, por um aluguer por dois meses, um imposto correspondente a quase metade do preço de catálogo do veículo (16). Face a estas circunstâncias factuais, o Tribunal de Justiça considerou desproporcionadas as disposições que regulavam a cobrança do imposto sobre os veículos nos Países Baixos. Todavia, não me parece que se possa considerar que as conclusões do Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao despacho VAV‑Autovermietung têm alcance geral.

42.      Para além do facto de a regulamentação irlandesa poder conduzir a situações análogas (17), o simples facto de, em situações transfronteiriças, cobrar um imposto cujo montante se sabe antecipadamente que ultrapassará o montante devido, potencialmente de forma considerável, desincentiva necessariamente os destinatários das prestações de serviços de utilizarem serviços transfronteiriços e os prestadores de os prestar. Além disso, há que observar que, como a Comissão salientou nos articulados que apresentou, essa solução põe ao mesmo nível a tributação do aluguer ou da locação financeira de um veículo, por um lado, e a da aquisição da propriedade do mesmo, por outro. Isto reduz, pois, a atratividade da utilização de serviços de aluguer ou de locação financeira, incluindo os de caráter transfronteiriço. Por último, esta solução implica igualmente o congelamento de importantes recursos financeiros, o que constitui outro inconveniente, sobretudo para as pessoas que exercem uma atividade económica, para quem os fundos que não podem ser investidos equivalem a uma perda.

43.      Por conseguinte, em meu entender, não há dúvida alguma de que não só a inexistência de reembolso do imposto indevidamente cobrado mas também a obrigação de pagamento da totalidade do imposto, quando o veículo não se destina a ser utilizado a título permanente no Estado de tributação, e efetivamente não o é, constituem uma restrição à livre prestação de serviços de aluguer e de locação financeira de veículos, proibida, em princípio, pelo artigo 56.o TFUE. Essa restrição só poderia ser justificada por razões imperiosas de interesse geral, desde que fosse proporcionada ao objetivo prosseguido.

44.      Em resposta à crítica que a Comissão formula com base no despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), a Irlanda apresenta dois argumentos. Em primeiro lugar, alega que a regulamentação neerlandesa em causa não fazia acompanhar o reembolso parcial do imposto do pagamento de juros. Em segundo lugar, assinala que, no que diz respeito aos veículos utilizados a título temporário, essa regulamentação previa um imposto calculado em função da duração da referida utilização, ao passo que o imposto irlandês é calculado com base no valor do veículo e na sua quilometragem, o que visa refletir a intensidade da utilização efetiva do veículo no território irlandês.

45.      Quanto à questão dos juros, observe‑se, antes de mais, que, durante o período de referência para a apreciação do alegado incumprimento da Irlanda, ou seja, à data do termo do prazo fixado no parecer fundamentado, a legislação irlandesa também não previa o pagamento de juros. Em seguida, e de modo bem mais importante, nada no despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), indica que foi devido ao não pagamento de juros que o Tribunal de Justiça julgou a regulamentação neerlandesa contrária ao princípio da livre prestação de serviços. O problema principal nesse acórdão não eram os juros, mas sim a obrigação de pagar integralmente o imposto, sem que fosse tida em conta a duração da utilização prevista do veículo no território neerlandês. A questão dos juros não distingue, portanto, o presente processo do processo que deu origem ao despacho VAV‑Autovermietung, de modo que impeça a aplicação no primeiro das conclusões relativas ao segundo. Cabe, pois, examinar o segundo argumento apresentado pela Irlanda.

46.      A Irlanda afirma que a jurisprudência atual do Tribunal de Justiça diz respeito quer aos regimes em que não era possível qualquer reembolso de imposto quer, como no processo que deu origem ao despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558), a um sistema em que o montante do reembolso era calculado em função da duração da utilização do veículo no território dos Países Baixos. Ora — assinala a mesma —, no sistema irlandês, o montante do reembolso é calculado com base no valor atual de mercado do veículo no momento da sua saída, que depende, em especial, da sua quilometragem, pelo que a tributação resultante da comparação entre esse valor e aquele que o mesmo tinha no momento do registo é proporcional à intensidade da utilização efetiva do veículo no território irlandês. Ora, como o valor de mercado do veículo no momento da sua saída não é conhecido, uma vez que depende não só da idade do veículo mas também da sua quilometragem, o objetivo do regime irlandês, que é tributar a intensidade da utilização efetiva do veículo, não poderia ser realizado mediante um imposto calculado exclusivamente com base na duração prevista da utilização na Irlanda.

47.      Todavia, em meu entender, este argumento apoia‑se num mal‑entendido, que resulta da confusão entre os objetivos do imposto e as regras de tributação do mesmo.

48.      Na audiência, o agente da Irlanda, em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal de Justiça, afirmou que o imposto sobre o registo tem por objetivo compensar os custos públicos decorrentes da utilização de veículos, nomeadamente os custos ambientais e sociais, bem como os respeitantes à manutenção da infraestrutura rodoviária, ao sistema de controlo do tráfego rodoviário e à aprovação de veículos. Acrescentou que o imposto era concebido de modo a que os utilizadores de veículos onerosos pagassem mais e de forma a incentivar a aquisição de veículos menos poluentes para o meio ambiente.

49.      São objetivos análogos que, geralmente, a tributação da utilização de veículos prossegue em todos os Estados‑Membros (18). Esses objetivos constituem, sem dúvida, razões imperiosas de interesse geral que justificam essa tributação. Contudo, por força da jurisprudência acima referida, deve ainda examinar‑se se esses objetivos não podem ser atingidos mediante um imposto que tenha em conta, desde a data da sua liquidação, a duração prevista da utilização do veículo no território irlandês.

50.      No caso de impostos como o imposto sobre o registo irlandês, que são pagos de uma só vez, o objetivo de compensar os custos públicos decorrentes da utilização do veículo só pode ser realizado globalmente, o que significa que o montante dos impostos cobrados sobre todos os veículos registados nesse país deve cobrir o montante dos custos que resultam da sua utilização. Com efeito, ao contrário, por exemplo, do imposto incluído no preço dos combustíveis, um imposto único não toma de modo algum em consideração a quilometragem nem, de maneira geral, a intensidade da utilização do veículo depois do seu registo e da liquidação do imposto. O imposto cobrado sobre um veículo utilizado mais intensamente contribui, pois, de forma consideravelmente menor para a compensação dos custos efetivamente gerados pela sua utilização do que o imposto pago sobre um veículo utilizado ocasionalmente. A diminuição mais rápida do valor do veículo relacionada com uma sua maior utilização não corrige esse desequilíbrio, dado que a referida diminuição do seu valor não depende exclusivamente da quilometragem, mas também da idade do veículo e de uma série de outros fatores.

51.      Um raciocínio similar pode ser aplicado no caso de veículos destinados a uma utilização no território de um Estado‑Membro por um período determinado. Da mesma maneira que, no caso dos veículos destinados a uma utilização permanente nesse Estado‑Membro, o montante do imposto cobre potencialmente toda a duração de «vida» do veículo (a não ser que o mesmo saía do país), o montante do imposto cobrado sobre um veículo registado por um período determinado só deve cobrir a duração do período de utilização no território do Estado‑Membro de registo. Esse montante é inscrito na dotação destinada a cobrir, de maneira geral, os custos decorrentes da utilização de todos os veículos registados no país. Não deve, pois, refletir exatamente a intensidade da utilização do referido veículo, tal como o montante do imposto que onera um veículo registado a título permanente não reflete a intensidade da sua utilização posterior. Isso não impede a realização dos objetivos da tributação, dado que, por natureza, esses objetivos não são executados separadamente, veículo a veículo, mas sim globalmente.

52.      Como resulta das considerações precedentes, os objetivos do imposto sobre o registo irlandês podem ser realizados através de um cálculo do imposto que tenha em conta a duração prevista da utilização do veículo no território irlandês. Quando essa duração é previamente conhecida, o facto de o nível do montante cobrado a título desse imposto corresponder ao nível do montante cobrado sobre um veículo registado a título permanente é, portanto, desproporcionado ao objetivo, acima referido, relativo à restrição da livre prestação de serviços de aluguer e de locação financeira de veículos, exatamente como ocorria no processo que deu origem ao despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558).

53.      Isso também não impede que os utilizadores de veículos mais caros paguem relativamente mais nem que seja incentivada a utilização de veículos menos poluentes. Com efeito, a base de tributação ficaria constituída pelo valor de mercado do veículo e pelo seu nível de emissões, com a aplicação de um fator adicional correspondente à duração da utilização prevista no território irlandês.

54.      Entendo que esta solução não viola a competência de que gozam os Estados‑Membros para tributarem a utilização de veículos de forma mais gravosa do que exige a obrigação de respeitarem o direito da União, neste caso, a livre prestação de serviços.

55.      Com efeito, esta solução não restringe a liberdade de os Estados‑Membros definirem os objetivos do imposto e as suas características fundamentais, como o seu montante ou a base de tributação. Em contrapartida, a obrigação que consiste em os veículos destinados a uma utilização no território de um dado Estado‑Membro por um período determinado serem tributados proporcionalmente à duração desse período resulta das exigências das liberdades do mercado único, interpretadas à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida. Por essa razão, para estabelecer essa proporção, os Estados‑Membros não podem definir métodos que, no essencial, eliminem as vantagens que resultam da possibilidade de pagar apenas a parte do imposto proporcional à duração da utilização do veículo, por exemplo, exigindo um montante sensivelmente superior ao montante efetivamente devido (19), mesmo que a diferença viesse a ser reembolsada posteriormente e que esse reembolso incluísse o pagamento de juros.

56.      Também não me convence o argumento apresentado pela Irlanda, segundo o qual a cobrança de um imposto sobre o registo de montante proporcional à duração prevista da utilização do veículo no território irlandês não cumpriria o objetivo prosseguido porque essa duração pode posteriormente sofrer alterações, nomeadamente uma prorrogação, por exemplo, por efeito de uma alteração do contrato de aluguer ou de locação financeira. De facto, dado que a obrigação de pagar o imposto sobre o registo está ligada à obrigação de registar o veículo, o registo de um veículo destinado a uma utilização temporária pode ser efetuado igualmente a título temporário, pela duração da utilização prevista do veículo no território nacional. Desta forma, no caso de uma prorrogação do contrato de aluguer ou de locação financeira, o utilizador deverá proceder a um novo registo e, portanto, pagar um novo imposto. Em contrapartida, em caso de redução do período de utilização, o consumidor terá interesse em reclamar o reembolso do imposto pago em excesso. Por conseguinte, esta solução não se me afigura difícil de implementar.

57.      É certo que é possível imaginar casos em que, em virtude de uma longa duração da utilização prevista do veículo ou devido ao conteúdo do contrato com base no qual essa utilização é feita, o uso do veículo por um período determinado e que, num plano formal, é previamente conhecido, se aproxima de uma utilização permanente, de modo que pode justificar a cobrança integral do imposto. No entanto, as disposições irlandesas objeto do presente processo não introduzem uma diferenciação desse tipo relativamente à duração ou ao conteúdo do contrato que serve de base à utilização do veículo no território irlandês. Esta questão não foi debatida entre as partes, tendo a Irlanda, ao longo do processo, defendido a sua regulamentação na totalidade. Também não vejo a possibilidade de o Tribunal de Justiça proceder a essa análise no acórdão que virá a proferir no presente processo.

58.      À luz das considerações precedentes, considero que a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.o TFUE, ao impor aos residentes na Irlanda o pagamento integral do imposto sobre o registo, no momento do registo de um veículo automóvel adquirido em regime de locação financeira ou alugado noutro Estado‑Membro, sem ter em consideração a duração da utilização do referido veículo na Irlanda, quando o mesmo não se destine a ser essencialmente utilizado na Irlanda a título permanente nem, de facto, foi utilizado dessa forma.

 Críticas relativas ao não pagamento de juros e ao montante da dedução

59.      Como já recordei anteriormente, a Irlanda deu cumprimento ao parecer fundamentado da Comissão, no que diz respeito ao fundamento relativo ao não pagamento de juros e ao montante demasiado elevado da dedução efetuada, a título de despesas administrativas, aquando do reembolso da parte do imposto sobre o registo indevidamente cobrada, mas só o fez em 1 de janeiro de 2016, ou seja, após o termo do prazo fixado no parecer fundamentado e, mesmo, depois da propositura da presente ação. Ora, como a data do termo do prazo fixado no parecer fundamentado é a data relevante para a apreciação dos incumprimentos do Estado‑Membro, devem ser examinadas as críticas relativas a estas duas questões.

60.      Em meu entender, estas críticas são, aliás, independentes da solução dada ao primeiro fundamento, relativo à cobrança integral do imposto sobre o registo de veículos importados a título temporário para o território irlandês.

61.      Com efeito, tanto no caso de o Tribunal de Justiça vir a julgar que a obrigação de pagar integralmente o imposto sobre o registo de veículos importados para o território da Irlanda a título temporário é incompatível com o direito da União como no caso de vir a considerar que o sistema de reembolso parcial desse imposto é suficiente à luz do referido direito, a parte que excede o montante devido relativamente ao período de utilização efetiva do veículo na Irlanda constitui um imposto cobrado em violação do direito da União. Isto resulta diretamente da jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida (20).

62.      Ora, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os Estados‑Membros têm a obrigação de restituir com os respetivos juros os impostos cobrados em violação do direito da União. Esta obrigação é a consequência e o complemento dos direitos conferidos aos sujeitos de direito pelas disposições do direito da União (21). Por conseguinte, o não pagamento de juros sobre o montante do imposto cobrado em violação da livre prestação de serviços constitui um incumprimento, pelo Estado‑Membro, das obrigações que lhe incumbem por força da referida liberdade.

63.      Evidentemente, se o Tribunal de Justiça julgar procedente o fundamento relativo à obrigação de pagar integralmente o imposto sobre o registo de veículos registados a título temporário, invocado pela Comissão, o sistema de reembolso não poderá de modo algum ser aplicado aos veículos registados por um período previamente conhecido, de maneira que a questão relativa aos juros também deixará de existir. Todavia, mesmo nesse caso, a decisão que o Tribunal de Justiça venha a proferir sobre esse ponto será fundamental no que diz respeito à possibilidade de as pessoas que tenham sofrido um prejuízo decorrente da falta de pagamento de juros agirem judicialmente.

64.      A Comissão também censura à Irlanda ter violado as obrigações que lhe incumbem no âmbito da livre prestação de serviços, ao deduzir uma quantia de 500 euros, a título de despesas administrativas, da parte do imposto indevidamente cobrada e sujeita a reembolso. Segundo a Comissão, essa dedução é excessiva e injustificada e, em certos casos, pode absorver uma parte considerável do montante reembolsado, desincentivando, além disso, os residentes na Irlanda de utilizarem serviços de aluguer ou de locação financeira de veículos oferecidos por prestadores de outros Estados‑Membros. Por seu lado, a Irlanda afirma que os recursos resultantes dessa dedução são destinados ao financiamento da instauração de um sistema de reembolso dos impostos sobre o registo indevidamente cobrados.

65.      Quanto a este ponto, em meu entender, há que aderir aos argumentos da Comissão. Em princípio, a obrigação de restituição dos impostos cobrados em violação do direito da União diz respeito à totalidade dos impostos indevidamente cobrados (e dos juros), e o processo de restituição está submetido, em especial, ao princípio da efetividade, por força do qual o reembolso do imposto não pode ser excessivamente dificultado ou impossibilitado na prática (22). Por conseguinte, os Estados‑Membros não podem limitar arbitrariamente o montante efetivo do reembolso, por exemplo, instituindo, sob qualquer forma, uma dedução considerável, uma vez que isso equivale a impossibilitar, na prática, a recuperação, pelo contribuinte, de uma parte significativa do imposto indevidamente pago.

66.      A este respeito, a argumentação da Irlanda não me convence. A obrigação de restituir os impostos cobrados de forma incompatível com o direito da União impende sobre o Estado‑Membro por força desse direito. Este não pode subordinar o cumprimento dessa obrigação à assunção, pelas pessoas que têm direito ao reembolso, das despesas que o Estado‑Membro deve suportar para dar cumprimento a essa obrigação. Isto é ainda mais válido quando o Estado‑Membro organiza o seu sistema de cobrança do imposto de maneira a tornar inevitável, em certos casos, o reembolso parcial do mesmo. Todos os encargos relacionados com a organização desse sistema devem ser financiados através dos impostos cobrados em conformidade com o direito da União, e não mediante a realização de deduções sobre as quantias devidas às pessoas que têm direito ao reembolso.

67.      Os Estados‑Membros podem cobrar encargos a título dos atos administrativos relacionados com o cumprimento das obrigações que para si decorrem do direito da União, mas essas receitas não podem ultrapassar os custos efetivos decorrentes da prática de um determinado ato relativo a uma pessoa específica e não podem servir para cobrir os custos de organização do sistema administrativo no seu conjunto. Em caso algum essas receitas podem atingir um montante tal que limitassem substancialmente os benefícios que, para os sujeitos de direito, decorrem dos direitos que lhes são conferidos pelo direito da União.

68.      Por esta razão, considero que, tanto ao recusar o pagamento de juros no ato do reembolso dos montantes do imposto sobre o registo como ao deduzir, no mesmo ato, uma quantia de 500 euros a título de despesas administrativas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 56.o TFUE.

 Conclusões

69.      À luz de todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça julgue procedente a ação intentada pela Comissão Europeia no âmbito do presente processo e acolha os pedidos formulados pela mesma. De acordo com o artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, cabe condenar a Irlanda nas despesas.


1 Língua original: polaco.


2      Essas exceções dizem essencialmente respeito a veículos importados a título temporário para o território irlandês por não residentes na Irlanda ou por pessoas que exerçam uma atividade profissional noutro Estado‑Membro.


3      Acórdão de 21 de março de 2002 (C‑451/99, EU:C:2002:195).


4      Acórdão de 15 de setembro de 2005 (C‑464/02, EU:C:2005:546).


5      Despacho de 29 de setembro de 2010 (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558).


6      Recordo que as disposições relativas ao reembolso do imposto sobre o registo acrescido de juros, bem como à redução das despesas administrativas, só entraram em vigor em 1 de janeiro de 2016.


7      Despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, dispositivo).


8      V., em especial, acórdãos de 6 de outubro de 2009, Comissão/Espanha (C‑562/07, EU:C:2009:614, n.os 23 e 24), e de 5 de fevereiro de 2015, Comissão/Bélgica (C‑317/14, EU:C:2015:63, n.o 34).


9      Acórdão de 30 de junho de 2016, Câmpean (C‑200/14, EU:C:2016:494, n.o 37).


10      V., igualmente, no que diz respeito à responsabilidade por violação do direito da União, acórdãos de 7 de fevereiro de 1973, Comissão/Itália (39/72, EU:C:1973:13, n.o 11), e de 19 de março de 1991, Comissão/Bélgica (C‑249/88, EU:C:1991:121, n.o 41).


11      Acórdão de 26 de abril de 2012, van Putten (C‑578/10 a C‑580/10, EU:C:2012:246, n.o 37 e jurisprudência referida).


12      Acórdão de 26 de abril de 2012, van Putten (C‑578/10 a C‑580/10, EU:C:2012:246, n.os 46, 47 e 53 e jurisprudência referida).


13      Acórdão de 21 de março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, EU:C:2002:195, n.o 69); despachos de 27 de junho de 2006, van de Coevering (C‑242/05, EU:C:2006:43, n.o 30); de 22 de maio de 2008, Ilhan (C‑42/08, não publicado, EU:C:2008:305, n.o 22); e de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, n.o 26).


14      V., em especial, acórdão de 21 de março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, EU:C:2002:195, último travessão do dispositivo), e despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, n.o 21).


15      Despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, n.os 26 a 28 e dispositivo).


16      Despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, n.os 5, 8 e 12).


17      O registo de veículos e, por conseguinte, o pagamento do imposto sobre o registo são obrigatórios em caso de utilização do veículo por um período superior a um mês, sendo que a taxa máxima desse imposto pode ascender a 36% do valor do veículo (v. n.os 3 e 4 das presentes conclusões).


18      V., por exemplo, acórdão de 21 de março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, EU:C:2002:195, n.o 66), no qual são evocados os objetivos da regulamentação austríaca.


19      Nos seus articulados, a Comissão dá um exemplo com dados quantitativos. Mesmo que, como afirma a Irlanda na sua tréplica, os cálculos da Comissão fossem exagerados, o certo é que a própria Irlanda chega a um resultado em que o imposto sobre o registo cobrado inicialmente excede 2,5 vezes o montante efetivamente devido.


20      V., em especial, acórdão de 21 de março de 2002, Cura Anlagen (C‑451/99, EU:C:2002:195, n.o 69), e despacho de 29 de setembro de 2010, VAV‑Autovermietung (C‑91/10, não publicado, EU:C:2010:558, n.o 26).


21      Acórdão de 30 de junho de 2016, Câmpean (C‑200/14, EU:C:2016:494, n.o 37).


22      Acórdão de 30 de junho de 2016, Câmpean (C‑200/14, EU:C:2016:494, n.o 39).