Language of document : ECLI:EU:T:2021:895

Processo T693/16 P RENVRX

(publicação por excertos)

HG

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção) de 15 de dezembro de 2021

«Recurso de decisão do Tribunal da Função Pública — Função pública — Funcionários — Afetação num país terceiro — Alojamento familiar colocado à disposição pela Administração — Incumprimento da obrigação de aí residir em família — Processo disciplinar — Sanção disciplinar de suspensão da subida de escalão — Reparação do prejuízo sofrido pela União Europeia — Artigo 22.° do Estatuto — Negação de provimento ao recurso quanto ao mérito — Anulação em recurso — Acórdão proferido em sede de recurso reexaminado pelo Tribunal de Justiça e anulado — Remessa ao Tribunal Geral»

1.      Funcionários — Direitos e obrigações — Dever de lealdade — Alcance — Constatação de incumprimento — Critérios de apreciação — Razões que motivaram a conduta do funcionário — Inclusão

(Estatuto dos Funcionários, artigo 11.°)

(cf. n.os 93‑98)

2.      Recursos de funcionários — Competência de plena jurisdição — Alcance — Possibilidade de ter em conta um fundamento suplementar em relação ao ato impugnado

(Estatuto dos Funcionários, artigos 22.°, terceiro parágrafo, e 91.°, n.° 1)

(cf. n.os 102, 104)

3.      Funcionários — Repetição do indevido — Âmbito de aplicação — Benefício em espécie concedido ao funcionário — Inclusão

(Estatuto dos Funcionários, artigo 85.°)

(cf. n.° 109)

4.      Funcionários — Repetição do indevido — Prazo de prescrição — Invocação por funcionário que incorreu em culpa grave — Procedimento de repetição do indevido e procedimento de reparação do prejuízo sofrido pela União em consequência de culpa grave em que o funcionário tiver incorrido — Diferentes condições de aplicação — Inadmissibilidade

(Estatuto dos Funcionários, artigos 22.° e 85.°)

(cf. n.os 112, 113)

5.      Funcionários — Regime disciplinar — Processo disciplinar — Falta a considerar para efeitos do processo disciplinar — Definição da falta pela Administração — Alteração da amplitude ou da natureza da falta durante a fase de inquérito — Admissibilidade relativamente ao respeito dos direitos de defesa

(Estatuto dos Funcionários, anexo IX, artigos 1.° a 3.° e 12.°, n.os 1 e 2)

(cf. n.° 159)

6.      Funcionários — Regime disciplinar — Tramitação processual — Respeito dos direitos de defesa — Medidas de instrução executadas pelos serviços de inquérito — Obrigação da administração de incluir essas medidas no processo transmitido ao Conselho de Disciplina e ao funcionário em causa

[Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 41.°, n.° 2, alínea b); Estatuto dos Funcionários, anexo IX, artigo 13.°, n.° 1]

(cf. n.° 163)

7.      Funcionários — Regime disciplinar — Sanção — Poder de apreciação da autoridade investida do poder de nomeação — Parecer do Conselho de Disciplina — Possibilidade de contestação do parecer pelo interessado no recurso da decisão de sanção — Condições — Tomada em consideração, na decisão de sanção, da apreciação feita pelo Conselho de Disciplina

(Estatuto dos Funcionários, anexo IX, artigos 3.° e 11.° a 18.°)

(cf. n.° 170)

8.      Funcionários — Regime disciplinar — Papéis e poderes respetivos do Conselho de Disciplina e da autoridade investida do poder de nomeação — Conselho de Disciplina — Poder de controlar a regularidade do processo de inquérito — Falta

(Estatuto dos Funcionários, anexo IX, artigos 17.° e 18.°)

(cf. n.° 240)

9.      Funcionários — Direitos e obrigações — Disposições especiais e derrogatórias aplicáveis aos funcionários cujos lugares de afetação sejam países terceiros — Colocação à disposição de um alojamento de função — Alojamento dimensionado para as necessidades da família do funcionário — Obrigação de aí residir em família — Violação — Culpa grave — Prejuízo sofrido pela União correspondente às rendas pagas para o alojamento de função — Obrigação do funcionário de reparar esse prejuízo

(Estatuto dos Funcionários, artigos 11.° e 22.° e anexo X, artigo 5.°, n.° 1)

(cf. n.os 295, 300, 302)

10.    Funcionários — Regime disciplinar — Processo disciplinar — Prazos — Obrigação de a Administração agir num prazo razoável — Apreciação

(Estatuto dos Funcionários, artigos 22.° e 85.°; Regulamento n.° 966/2012 do Parlamento e do Conselho, artigo 81.°)

(cf. n.os 307‑310)

11.    Funcionários — Direitos e obrigações — Denúncia de factos que levem à presunção de existência de possíveis atividades ilegais ou de incumprimento grave — Proteção contra processos disciplinares — Limites

(Estatuto dos Funcionários, artigo 22.°A, n.° 1)

(cf. n.° 315)

12.    Recursos de funcionários — Competência de plena jurisdição — Alcance — Possibilidade de redução da reparação financeira que é exigida de um funcionário por culpa grave — Contribuição da instituição para a plena realização do seu prejuízo

(Estatuto dos Funcionários, artigos 22.°, terceiro parágrafo e 91.°, n.° 1)

(cf. n.os 318, 319)

Resumo

O recorrente, HG, foi afetado como consultor a uma delegação da Comissão Europeia num país terceiro entre 2008 e 2013. Nesse contexto, a Comissão pôs à sua disposição, sob certas condições, um apartamento de função arrendado por esta, correspondente às necessidades da família de HG, a partir de setembro de 2008, por um período de dois anos.

Ora, o recorrente apenas ocupou esse apartamento alguns dias durante a semana, sem a sua família, o que justificou com a persistência de problemas familiares e de perturbações internas do apartamento, de que informou a chefe da administração da delegação logo em outubro de 2008.

No termo de um inquérito realizado pelo Organismo Europeu de Antifraude (OLAF), que recomendava que a Comissão instaurasse um processo disciplinar contra o recorrente e recuperasse do mesmo as rendas pagas pelo apartamento, e de seguida de um inquérito do Serviço de Investigação e Disciplina da Comissão (IDOC), esta última decidiu, em julho de 2014, a abertura de tal processo no Conselho de Disciplina tendo em vista a aplicação de uma sanção por violação de várias obrigações estatutárias e tendo em vista o reembolso das rendas com base no artigo 22.° do Estatuto dos Funcionários da União Europeia (a seguir «Estatuto»), relativo à reparação pelos funcionários dos prejuízos sofridos pela União em consequência dos atos desses funcionários. Em finais de outubro de 2014, esse conselho emitiu um parecer, no qual propunha à Comissão que recuperasse do recorrente as rendas pagas pelos meses de janeiro de 2009 a agosto de 2010 e que lhe aplicasse uma sanção de suspensão da subida de escalão por um período de 18 meses.

Em fevereiro de 2015, a autoridade investida do poder de nomeação (AIPN) da Comissão adotou uma decisão (a seguir «decisão controvertida») em conformidade com o parecer do Conselho de Disciplina.

Tendo a reclamação apresentada pelo recorrente contra a decisão controvertida sido indeferida, este interpôs um recurso no Tribunal da Função Pública destinado, nomeadamente, à anulação da decisão controvertida e, a título subsidiário, à redução do montante a reembolsar à Comissão. No entanto, o Tribunal da Função Pública negou provimento a esse recurso (1).

Em sede de recurso interposto pelo recorrente, o Tribunal Geral anula o acórdão de primeira instância, com o fundamento de que o Tribunal da Função Pública tinha desvirtuado os autos, cometido erros de direito e violado o dever de fundamentação. (2) Todavia, pronunciando‑se quanto ao mérito, o Tribunal Geral confirma, em substância, a sanção disciplinar aí proferida, reduzindo o montante da reparação financeira devida à Comissão. No seu acórdão, o Tribunal Geral precisa, nomeadamente, o alcance do dever de lealdade que incumbe aos funcionários, as condições da responsabilidade financeira de um funcionário em consequência de culpa grave em que tiver incorrido e as regras que regem os processos disciplinares.

Apreciação do Tribunal Geral

No que respeita, antes de mais, ao dever de lealdade que se impõe aos funcionários por força, nomeadamente, do artigo 11.° do Estatuto, o Tribunal Geral enuncia que a apreciação da lealdade de uma pessoa equivale à apreciação do seu comportamento relativamente à entidade ou à pessoa à qual essa lealdade é devida em função do contexto e que, por conseguinte, as razões que levaram um funcionário a adotar um certo comportamento entram em linha de conta para determinar se foi desleal para com a União. Não obstante, o Tribunal confirma a conclusão da decisão controvertida que declara a falta de lealdade do recorrente, precisando que, no caso de um funcionário que pediu um alojamento de função dimensionado para as necessidades da sua família, o dever de lealdade exige que ele o ocupe com a família ou que faça saber que renuncia ao mesmo quando dificuldades persistentes impeçam, além de um prazo razoável, a mudança da sua família para esse alojamento.

Assim, o Tribunal Geral procede, em seguida, ao exame da eventual responsabilidade financeira do recorrente ao abrigo do artigo 22.° do Estatuto, que prevê a possibilidade de exigir que um funcionário repare, total ou parcialmente, o prejuízo sofrido pela União em consequência de culpa grave em que tiver incorrido no exercício, ou por causa do exercício das suas funções.

Recorda, a título preliminar, a possibilidade de o juiz que conhece do mérito, quando exerce uma competência de plena jurisdição com base no artigo 22.° do Estatuto, fornecer a sua própria apreciação e fundamentação para determinar a responsabilidade financeira de um funcionário, bem como acrescentar, a esse título, fundamentos suplementares em relação à decisão controvertida.

O Tribunal Geral confirma, em seguida, a qualificação do comportamento do recorrente, a saber, o uso irregular prolongado do seu apartamento de função, além de um prazo razoável, sem iniciar uma diligência com a delegação para o voltar a pôr à disposição, de culpa grave suscetível de desencadear a sua responsabilidade financeira por força do artigo 22.° do Estatuto. Além disso, durante todo o período do arrendamento, a União sofreu um prejuízo correspondente à totalidade das rendas pagas pelo apartamento de função de dimensão familiar atribuído ao recorrente, sem que o arrendamento de tal apartamento fosse justificado e sem que daí se pudesse retirar qualquer utilidade. O facto, invocado pelo recorrente, de o arrendamento não poder ser rescindido no primeiro ano não tem pertinência para esta conclusão.

Todavia, exercendo a sua competência de plena jurisdição, o Tribunal Geral verifica que a Comissão, representada, no caso em apreço, no local pela chefe de administração da delegação, contribuiu para a plena realização do prejuízo que sofreu quando poderia ter reduzido o seu alcance. Nessa perspetiva, a chefe de administração da delegação deveria ter exigido ao recorrente que abandonasse o seu alojamento de função, em vez de se limitar a recordar‑lhe a irregularidade da sua situação. Assim, e à luz da globalidade das circunstâncias do caso concreto, o Tribunal Geral estima ex aequo et bono que a reparação devida pelo recorrente para reparação do prejuízo sofrido pela União deve ser reduzida.

Na medida em que o recorrente invoca a prescrição quinquenal prevista no artigo 85.° do Estatuto em caso de pedido de reposição do indevido e, a título subsidiário, a prevista no Regulamento do orçamento geral da União (3), o Tribunal salienta que, para recuperar um benefício em espécie, como a prestação de um apartamento de função, as instituições podem, consoante as circunstâncias, recorrer quer a uma ação de reposição do indevido ao abrigo do referido artigo 85.°, quer ao procedimento previsto pelo artigo 22.° do Estatuto, sublinhando simultaneamente que os procedimentos previstos por estas duas disposições se distinguem tanto na sua natureza como nas condições de fundo e de adoção das decisões em questão. Ora, tendo a Comissão recorrido, no caso em apreço, ao procedimento previsto no artigo 22.° do Estatuto, a prescrição quinquenal prevista no artigo 85.° do Estatuto não se lhe aplica nem, aliás, o previsto no Regulamento do orçamento geral da União. Na falta de um prazo de prescrição legal para a adoção de uma decisão ao abrigo do artigo 22.°, a Comissão apenas estava obrigada, por força da exigência de segurança jurídica, a adotá‑lo num prazo razoável, o que era o caso, no caso em apreço, tendo em conta todas as circunstâncias próprias do processo.

Além disso, o Tribunal Geral recusa‑se a reconhecer ao recorrente a qualidade de denunciante na aceção do artigo 22.°‑A do Estatuto como circunstância atenuante no que respeita à sua responsabilidade financeira. Com efeito, mesmo que o recorrente tivesse denunciado, com razão, o comportamento fraudulento de um colega, não pode invocar uma qualidade de denunciante, admitindo que essa qualidade pudesse ter configurado uma circunstância atenuante, uma vez que os factos denunciados já eram conhecidos e nada tinham que ver com os factos que lhe são imputados.

Por último, quanto às regras que regem os processos disciplinares, o Tribunal recorda que a possível falta imputada ao funcionário não deve ser cristalizada logo na fase de inquérito que antecede o processo disciplinar propriamente dito mas que podem ser realizados ajustamentos a este respeito no decurso do inquérito, tendo em conta a sua tramitação. Mais especificamente, em caso de processo disciplinar no Conselho de Disciplina, a falta imputada ao funcionário em causa está definida no relatório da AIPN que acompanha a consulta do referido conselho, que é posterior a essa fase de inquérito.

Contrariamente ao que sustentava o recorrente, compete à AIPN — e, sendo caso disso, ao órgão jurisdicional chamado a decidir — verificar a regularidade do processo de inquérito, e depois de todo o processo disciplinar, e não ao Conselho de Disciplina, que só deve controlar a regularidade da tramitação do processo que nele decorre. Todavia, se este último considerar o processo de inquérito prévio insuficiente, cabe‑lhe completá‑lo com as suas próprias questões, ou mesmo com uma instrução contraditória.

No que respeita às medidas de instrução dos serviços de inquérito, o Tribunal exige, para efeitos do respeito dos direitos de defesa, que façam parte do processo transmitido ao Conselho de Disciplina e ao interessado, a fortiori quando a AIPN ou o Conselho de Disciplina se baseiam no resultado dessas medidas.

Por último, o Tribunal Geral precisa que, no caso de um recurso que pede apenas a anulação da decisão final da AIPN que aplica uma sanção, os fundamentos e alegações que o funcionário em causa invoca contra as apreciações contidas no parecer do Conselho de Disciplina que precede essa decisão só são inoperantes na medida em que a decisão final se afasta claramente dessas apreciações ou não as tenha claramente em conta.


1      Acórdão de 19 de julho de 2016, HG/Comissão (F‑149/15, EU:F:2016:155).


2      O Tribunal Geral já tinha anulado o acórdão de primeira instância, por Acórdão de 19 de julho de 2018, HG/Comissão (T‑693/16 P, não publicado, EU:T:2018:492), com o fundamento de que a formação de julgamento do Tribunal da Função Pública tinha sido composta de forma irregular. Todavia, esse primeiro acórdão proferido em sede de recurso foi, por seu lado, anulado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 26 de março de 2020, Reapreciação Simpson/Conselho e HG/Comissão (C‑542/18 RX II e C‑543/18 RX II, EU:C:2020:232), e o processo foi remetido ao Tribunal Geral.


3      Artigo 81.° do Regulamento (UE, Euratom) n.° 966/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, relativo às disposições financeiras aplicáveis ao orçamento geral da União e que revoga o Regulamento (CE, Euratom) n.° 1605/2002 (JO 2012, L 298, p. 1).