Language of document : ECLI:EU:C:2016:473

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 22 de junho de 2016 (1)

Processo C‑41/15

Gerard Dowling

Padraig McManus

Piotr Skoczylas

Scotchstone Capital Fund Limited

contra

Minister for Finance


Partes interessadas: Permanent TSB Group Holdings plc e Permanent TSB plc

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Irlanda)]

«Direito das sociedades — Diretiva 77/91/CEE — Proteção dos interesses dos acionistas relativamente ao capital de uma sociedade anónima — Decisão de execução 2011/77/UE — Concessão de assistência financeira à Irlanda — Recapitalização da Irish Life and Permanent plc — Diretiva 2001/24/CE — Medidas de saneamento»





No verão de 2011, ao assumir o controlo da

1.        Irish Life and Permanent Group Holdings plc (posteriormente Permanent TSB Group Holdings plc; a seguir «ILPGH» ou «Sociedade») e, ao mesmo tempo, da sua filial Irish Life and Permanent plc (posteriormente Permanent TSB plc; a seguir «ILP» ou «Banco»), o Governo irlandês violou disposições fundamentais do direito das sociedades da UE? Esta questão constitui o cerne do litígio que a High Court (Irlanda) foi chamada a dirimir.

2.        Em conformidade com a posição que defendi nas conclusões de 18 de fevereiro de 2016 no processo Kotnik e o. (2), considero, pelos motivos a seguir aduzidos, que os direitos concedidos aos acionistas pela Diretiva 77/91/CEE (a seguir «Segunda Diretiva») (3) não obstam a que um Estado‑Membro proceda à recapitalização urgente de uma instituição de crédito em dificuldades que revista um papel essencial na espinha dorsal da sua economia, nos casos em que, na ausência de tal recapitalização, essa economia possa ser gravemente prejudicada e, por seu turno, possa representar um risco para as economias de outros Estados‑Membros.

3.        Por conseguinte, no meu entender, a medida em apreço no presente processo foi adotada em conformidade com o direito da União. No entanto, essa é uma matéria cuja determinação compete, em última análise, à High Court.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Segunda Diretiva

4.        Nos termos do artigo 8.o da Segunda Diretiva, as ações não podem ser emitidas a um valor inferior ao seu valor nominal ou, na falta de valor nominal, ao seu valor contabilístico.

5.        De acordo com o artigo 25.o da Segunda Diretiva, qualquer aumento do capital deve ser deliberado pela assembleia‑geral, salvo quando previamente autorizado pelos estatutos, pelo ato constitutivo ou pela assembleia‑geral, nas condições estabelecidas naquela disposição.

6.        O artigo 29.o, n.o 1, dispõe que, em todos os aumentos do capital subscrito por entradas em dinheiro, as ações devem ser oferecidas com preferência aos acionistas, proporcionalmente à parte do capital representada pelas suas ações. Além disso, por força do artigo 29.o, n.o 4, o direito de preferência não pode ser limitado nem suprimido pelos estatutos ou pelo ato constitutivo, mas apenas por deliberação da assembleia‑geral, nas condições estabelecidas nessa disposição.

2.      Diretiva 2001/24/CE (4)

7.        Segundo o artigo 2.o da Diretiva 2001/24, com a epígrafe «Definições», entende‑se por «medidas de saneamento», as «medidas destinadas a preservar ou restabelecer a situação financeira de uma instituição de crédito, suscetíveis de afetar direitos preexistentes de terceiros, incluindo medidas que impliquem a possibilidade de suspensão de pagamentos, suspensão de medidas de execução ou redução dos créditos».

8.        Sob a epígrafe «Adoção de medidas de saneamento — lei aplicável», o artigo 3.o da Diretiva 2001/24 dispõe que só as autoridades administrativas ou judiciais do Estado‑Membro de origem têm competência para determinar a aplicação, numa instituição de crédito, inclusivamente em relação às sucursais estabelecidas noutros Estados‑Membros, de uma ou mais medidas de saneamento. Salvo disposição em contrário, tais medidas são aplicadas de acordo com as leis, regulamentos e procedimentos aplicáveis no Estado‑Membro de origem. Logo que produzam os seus efeitos no Estado‑Membro em que foram tomadas, as referidas medidas produzirão todos os seus efeitos de acordo com a legislação desse Estado‑Membro, em toda a União, sem nenhuma outra formalidade, inclusivamente em relação a terceiros nos outros Estados‑Membros, mesmo que as normas do Estado‑Membro de acolhimento que lhes sejam aplicáveis não prevejam tais medidas ou sujeitem a sua aplicação a condições que não se encontrem preenchidas.

9.        O artigo 9.o (com a epígrafe «Abertura de um processo de liquidação — Informações a prestar às outras autoridades competentes») estabelece regras substancialmente semelhantes às do artigo 3.o, a respeito das decisões de abertura de um processo de liquidação.

3.      Decisão 2011/77/UE (a seguir «decisão de execução») (5)

10.      A decisão de execução foi adotada com base no Regulamento (UE) n.o 407/2010 (6), em especial no seu artigo 3.o, n.o 3. Os considerandos 1 a 3 da decisão têm a seguinte redação:

«(1)      A Irlanda tem sido recentemente sujeita a uma pressão crescente nos mercados financeiros, em reflexo de preocupações quanto à sustentabilidade das suas finanças públicas perante as extensas medidas de apoio público ao enfraquecido setor financeiro. Devido à sua excessiva exposição a projetos imobiliários e de construção, o sistema bancário nacional sofreu grandes perdas com o colapso desses setores. A atual crise económica e bancária teve também um duro impacto nas finanças públicas da Irlanda, somando‑se ao impacto da recessão. A queda das receitas fiscais e o aumento da despesa cíclica, nomeadamente em consequência da subida do desemprego, contribuíram para um elevado défice das administrações públicas e para uma subida abrupta da dívida, em contraste com a favorável situação pré‑crise e apesar da aplicação de cinco importantes pacotes de consolidação orçamental desde meados de 2008. As medidas de apoio ao setor bancário, entre as quais significativas injeções de capital, contribuíram muito para deteriorar a situação das finanças públicas. As atuais inquietações do mercado refletem principalmente o facto de, com a crise, a solvência do Estado irlandês e o sistema bancário terem ficado inextricavelmente ligados, o que conduziu a uma subida abrupta dos rendimentos das obrigações do Estado, enquanto ao sistema bancário nacional era vedado o acesso ao financiamento no mercado internacional.

(2)      Perante esta grave perturbação económica e financeira causada por ocorrências excecionais fora do controlo do Governo, as autoridades irlandesas pediram oficialmente assistência financeira à União Europeia, aos Estados‑Membros cuja divisa é o euro e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em 21 de novembro de 2010, para apoiar o regresso da economia a um crescimento sustentável, assegurar um sistema bancário em bom funcionamento e salvaguardar a estabilidade financeira na União e na zona euro. Em 28 de novembro de 2010, chegou‑se a acordo a nível técnico sobre um pacote global de medidas para o período de 2010 a 2013.

(3)      O projeto de programa de ajustamento económico e financeiro (programa) apresentado ao Conselho e à Comissão visa restaurar a confiança do mercado financeiro no setor bancário e no Estado irlandês, possibilitando o regresso da economia a um crescimento sustentável. Para alcançar esses objetivos, o programa contém três elementos principais: Em primeiro lugar, uma estratégia para o setor financeiro que compreende redimensionar, desendividar e reorganizar profundamente o setor bancário, complementada por uma recapitalização na medida do necessário. […] Em apoio a este ambicioso pacote de medidas, as autoridades irlandesas pedem assistência financeira à União, aos Estados‑Membros cuja divisa é o euro, assim como empréstimos bilaterais ao Reino Unido, à Suécia, à Dinamarca e ao FMI.»

11.      O artigo 1.o da decisão de execução dispõe:

«1.      A União concede à Irlanda um empréstimo no valor máximo de 22,5 mil milhões de euros, com um prazo médio de vencimento de 7½ anos.

[…]

4.      A primeira fração é disponibilizada aquando da entrada em vigor do Acordo de Empréstimo e do Memorando de Entendimento. Os pagamentos seguintes dependem de uma avaliação trimestral favorável efetuada pela Comissão, em consulta com o [Banco Central Europeu; a seguir ‘BCE’], do cumprimento, pela Irlanda, das condições gerais de política económica, conforme estabelecido na presente decisão e no Memorando de Entendimento.

[…]

8.      A Comissão decide do montante e do pagamento de frações complementares. A Comissão decide do montante das prestações.»

12.      O artigo 2.o da decisão de execução precisa que a Comissão gere a assistência a prestar à Irlanda, em coerência com os compromissos da Irlanda e com as recomendações do Conselho, e fixa as condições aplicáveis ao exercício dessa supervisão. O artigo 3.o da decisão de execução aprova o programa preparado pelas autoridades irlandesas e estabelece que o pagamento das frações sucessivas é sujeito à execução satisfatória do programa, que inclui, nomeadamente, as seguintes medidas:

«5.      Com vista a restaurar a confiança no setor financeiro, a Irlanda deve proceder a uma recapitalização adequada, a um desendividamento rápido e a uma reestruturação cuidadosa do sistema bancário, conforme estabelece o Memorando de Entendimento. […] Deve, nomeadamente:

a)      Tomar medidas para assegurar a recapitalização adequada dos bancos nacionais sob a forma de injeção de capitais próprios, se necessário, a fim de assegurar o respeito do requisito regulamentar mínimo de 10,5% do rácio Core Tier 1 durante todo o período de vigência do programa de assistência financeira da UE, procedendo simultaneamente a uma desalavancagem da atividade de financiamento, para atingir a meta de 122,5% do rácio empréstimos/depósitos até ao final de 2013;

[…]

7.      A Irlanda toma as seguintes medidas em 2011, em consonância com as especificações previstas no Memorando de Entendimento:

[…]

g)      Recapitalização dos bancos nacionais até ao final de julho de 2011 (sob reserva de um ajustamento adequado para as vendas esperadas de ativos no caso do Irish Life & Permanent), de acordo com os resultados de 2011 do [exame da adequação de capital prudencial; a seguir ‘PCAR’] e da [avaliação de liquidez prudencial; a seguir ‘PLAR’], divulgados pelo Banco Central da Irlanda em 31 de março de 2011;

[…]»

B –    Direito irlandês

13.      O Credit Institutions (Stabilisation) Act 2010 (Lei da estabilização das instituições de crédito, de 2010; a seguir «Act»), com alterações posteriores, aplica‑se às instituições de crédito que receberam apoio financeiro. Foi aprovado em 21 de dezembro de 2010.

14.      Entre os seus objetivos, que se encontram estabelecidos na section 4, contam‑se a resposta à perturbação grave e continuada da economia e dos sistemas financeiros e à ameaça para a estabilidade de certas instituições de crédito nacionais e do sistema financeiro em geral; a implementação do saneamento das instituições de crédito na Irlanda, designadamente no âmbito do programa; e a preservação ou restauração da posição financeira de uma «instituição relevante».

15.      Na section 2 são definidos alguns termos utilizados no Act, tais como «instituição de crédito» (uma entidade autorizada na Irlanda a receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e a conceder crédito em nome próprio) e «instituição relevante». Entende‑se por «instituição relevante», nos termos da subsection a) da section 2, uma pessoa coletiva que possua sede social na Irlanda e que seja, à data da entrada em vigor do Act, um banco autorizado que tenha recebido ou deva receber apoio financeiro do Minister for Finance (ministro das Finanças, a seguir «Ministro»); e, nos termos da subsection f), uma sociedade gestora de participações sociais de tal pessoa coletiva.

16.      A section 7 do Act atribui ao Ministro poderes para propor à High Court a emissão das chamadas «Direction Orders», nos termos das quais é ordenado a uma instituição relevante que pratique (num dado prazo) ou que se abstenha de praticar (durante um dado período) qualquer ação. Neste contexto, a section 9 do Act regula o processo de emissão de Direction Orders e dispõe o seguinte:

«1)      Tão cedo quanto possível após a conclusão dos procedimentos previstos na section 7 relativamente a uma proposta de Direction Order, o Ministro requererá à [High] Court, no âmbito de um processo ex parte, a emissão de [uma Direction Order], nos termos da proposta pertinente de Direction Order.

2)      Após a apreciação do requerimento ex parte apresentado nos termos da subsection 1, se considerar que os requisitos da section 7 estão preenchidos e que o parecer do Ministro é razoável e não está viciado por um erro de direito, a [High] Court emitirá a Direction Order nos termos da proposta de Direction Order (ou de acordo com a alteração desses termos […]).

3)      Se o Ministro tiver declarado na proposta de Direction Order o objetivo de preservar ou restaurar a posição financeira de uma instituição de crédito e a [High] Court considerar que a proposta de Direction Order está, no todo ou em parte, em consonância com esse objetivo, a [High] Court declarará, na Direction Order em causa, que a Direction Order ou a sua parte relevante constitui uma medida de saneamento para os efeitos da [Diretiva 2001/24].

[…]»

17.      A section 11(1) do Act estabelece que a instituição em causa ou qualquer dos seus sócios poderá requerer à High Court a anulação de uma Direction Order. Nos termos da subsection 3, a High Court «anulará a Direction Order exclusivamente nos casos em que considerar que não foi cumprido algum dos requisitos da section 7 ou que o parecer do Ministro previsto na section 7(2) não é razoável ou está viciado por um erro de direito». Em alternativa, nos termos da subsection 4, nos casos em que for identificado um desses vícios, a High Court poderá alterar a Direction Order em vez de a anular.

18.      A section 47 do Act prevê a inclusão numa Direction Order de uma disposição destinada a permitir ao Ministro o exercício de qualquer poder que assista aos sócios da instituição em causa numa assembleia‑geral.

19.      De acordo com a section 52 do Act, «qualquer despacho proferido nos termos do presente Act que se declare ter sido proferido com o objetivo de preservar ou restaurar a posição financeira de uma instituição de crédito produzirá efeitos em conformidade com a [Diretiva 2001/24] ou com qualquer disposição legal que a aplique».

20.      Por último, a section 53 estabelece que, salvo nos casos em que o Act expressamente disponha noutro sentido, as suas disposições e qualquer despacho proferido ao seu abrigo produzirão efeitos, não obstante qualquer disposição em contrário nas outras regras enumeradas nessa section. A section 61 dispõe essencialmente que a emissão de uma Direction Order não deve ser interpretada no sentido de dar origem a um incumprimento contratual.

II – Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

21.      Resulta do despacho de reenvio que a ILP é uma instituição de crédito estabelecida na Irlanda. À data dos factos, a ILP era proprietária do Irish Life Group (a seguir «Irish Life»), que englobava a Irish Life Assurance plc e a Irish Life Investment Managers Ltd.

22.      A ILPGH é uma sociedade anónima irlandesa, que foi constituída com base num regime de compromisso aprovado pela High Court em janeiro de 2010 (7). Durante todo o período em causa, foi uma sociedade gestora de participações sociais que detinha a ILP a 100%. A ILPGH não possuía quaisquer outros ativos e não é (nem era à data dos factos) uma instituição de crédito.

23.      Os demandantes na ação principal (a seguir, conjuntamente, «demandantes») são sócios e acionistas da ILPGH. G. Dowling, P. McManus e P. Skoczylas são pessoas singulares. P. Skoczylas foi também, durante algum tempo, administrador da ILPGH, tendo sido eleito na assembleia‑geral extraordinária da ILPGH que teve lugar em 20 de julho de 2011 (a seguir «AGE»). A Scotchstone Capital Fund Limited é uma sociedade que pertence a P. Skoczylas, e que também é acionista da ILPGH.

24.      De 2008 em diante, a ILP e outros bancos irlandeses tornaram‑se excessivamente dependentes do apoio financeiro do Estado e da UE. Com o decorrer do tempo, e sem que a turbulência financeira desses anos se resolvesse, os esforços do Governo irlandês para apoiar os bancos não lograram convencer os mercados da viabilidade dos bancos nem da capacidade do Estado para continuar a apoiá‑los. No fim de 2010, tornou‑se evidente que a estabilidade financeira do Estado estava seriamente ameaçada, em grande parte devido aos compromissos estatais perante os bancos. O Estado garantiu depósitos na Irish Life no montante de cerca de 26 mil milhões de euros.

25.      Em novembro de 2010, o Estado irlandês assumiu compromissos juridicamente vinculativos perante a Comissão, o BCE e o FMI, nomeadamente o compromisso de recapitalizar os bancos irlandeses considerados viáveis, no contexto do programa. No âmbito do programa, o Banco Central da Irlanda comprometeu‑se a realizar o PCAR e a PLAR e, com base nos resultados destes exercícios, a apurar as necessidades de capital dos bancos. Esses resultados foram publicados em 31 de março de 2011. A Irlanda comprometeu‑se a assegurar a recapitalização, de acordo com as análises, até 31 de julho de 2011.

26.      Subsequentemente, o Banco Central da Irlanda, na qualidade de entidade reguladora independente, instruiu a ILP para mobilizar capital regulamentar no montante de 4 mil milhões de euros. Estas instruções eram vinculativas para a ILP e não foram objeto de impugnação.

27.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que, segundo um raciocínio de probabilidades: a) o capital necessário não poderia ter sido obtido junto de investidores privados; b) o capital necessário não poderia ter sido obtido junto dos acionistas existentes; e c) a incapacidade de efetuar a recapitalização no prazo concedido teria resultado na falência da ILP, quer devido à corrida à ILP por parte dos depositantes, à revogação da sua licença, à exigência do reembolso de vários títulos de dívida, à interrupção do financiamento ao abrigo do regime de apoio de emergência à liquidez (Emergency Liquidity Assistance) ou à conjugação de algumas dessas possibilidades ou de todas elas. Além disso: d) a falência da ILP teria, provavelmente, resultado num prejuízo total para os acionistas.

28.      Acresce que, no entender da High Court: e) a falência da ILP teria, provavelmente, tido consequências extremamente graves para o Estado irlandês, quer devido à corrida ao banco e ao subsequente acionamento da garantia estatal até cerca de 26 mil milhões de euros, ao efeito de contágio relativamente a outros bancos, à suspensão total ou parcial do financiamento ao Estado ao abrigo do programa, em virtude do incumprimento dos seus termos, às sanções impostas pelo TFUE ou à conjugação de algumas dessas possibilidades ou de todas elas. Provavelmente, as consequências negativas para o Estado teriam: f) agravado a ameaça à estabilidade financeira de outros Estados‑Membros e da União Europeia. A decisão do Estado de investir na recapitalização foi tomada em cumprimento das suas obrigações legais e no interesse do sistema financeiro do Estado, dos seus cidadãos e dos cidadãos da União Europeia.

29.      O Estado decidiu recapitalizar a ILP através da subscrição pelo Ministro de ações ordinárias no montante de 2,3 mil milhões de euros, através de capital contingente no montante de 0,4 mil milhões de euros, e através de um investimento de «reserva» de 1,1 mil milhões de euros. O preço a pagar por cada ação era de 0,06345 euros, o que representava um desconto de 10% sobre o preço médio de mercado em 23 de junho de 2011. O cálculo do número de ações cuja emissão seria necessária como contrapartida dos 2,3 mil milhões de euros resultou na aquisição pelo Ministro de 99,2% da Sociedade. No entender da High Court: g) ao contrário do que alegaram os demandantes, o preço das ações àquela data não era o resultado de um falso mercado. O preço das ações tinha vindo a descer durante os anos precedentes e caiu drasticamente aquando da publicação dos resultados da PLAR e do PCAR. Isso ficou a dever‑se, provavelmente, ao facto de o mercado ter duvidado da capacidade da ILP para conseguir a recapitalização necessária de forma atrativa para os investidores.

30.      A Comissão aprovou, ao abrigo das regras em matéria de auxílios estatais, o resgate e recapitalização da ILP através do investimento estatal (8). Para efeitos da Diretiva 2004/25/CE, a operação foi igualmente aprovada pela autoridade nacional competente (9).

31.      A proposta do Ministro foi apoiada pelo conselho de administração da ILP, que considerou que esta não dispunha de qualquer outra alternativa para conseguir a recapitalização necessária. A AGE foi convocada para aprovação das deliberações necessárias. Todavia, a proposta estatal não foi aceite pelos acionistas com direito de voto na AGE, que preferiam explorar outras vias de obtenção do capital necessário e que deram ao conselho de administração instruções para obter uma prorrogação do prazo para a recapitalização.

32.      Nem o Ministro nem o Banco Central da Irlanda estavam dispostos a solicitar essa prorrogação, pois, no seu entender, tendo em conta a origem do prazo, a prorrogação carecia do consentimento do Conselho Europeu, da Comissão, do BCE e do FMI. Por conseguinte, em 25 de julho de 2011, o Ministro apresentou uma proposta de Direction Order, em conformidade com as disposições do Act. O governador do Banco Central da Irlanda deu um parecer favorável, considerando que a Direction Order proposta era suscetível de alcançar os objetivos do Act. O presidente do conselho de administração da Sociedade remeteu o Ministro para a carta que tinha escrito após a AGE, em que reproduzia as posições dos acionistas discordantes.

33.      O requerimento ex parte para a emissão de uma Direction Order foi apresentado e deferido pela High Court em 26 de julho de 2011 (a seguir «Direction Order»), e o Ministro adquiriu 99,2% das ações da ILPGH. Consequentemente, foi necessário retirar as ações da Sociedade da cotação oficial na Irlanda e no Reino Unido. Por requerimento de 3 de agosto de 2011, os demandantes pediram à High Court para anular a Direction Order, nos termos da section 11 do Act. Por ter dúvidas sobre a necessidade e a razoabilidade das medidas propostas pelo Ministro, bem como sobre a possibilidade de estas estarem viciadas por um erro de direito, a High Court decidiu, em 2 de dezembro de 2014, suspender a instância e submeter as seguintes questões ao Tribunal de Justiça, a título prejudicial:

«1)      A [Segunda Diretiva] opõe‑se, em todas as circunstâncias, nomeadamente nas circunstâncias do presente caso, à emissão de uma Direction Order nos termos da section 9 do [Act], com base no parecer do Ministro das Finanças quanto à sua necessidade, nos casos em que tal Direction Order tenha por efeito o aumento do capital de uma sociedade sem a aprovação da assembleia‑geral; a atribuição de ações novas sem oferta com preferência aos acionistas existentes e sem a aprovação da assembleia‑geral; a redução do valor nominal das ações da sociedade sem a aprovação da assembleia‑geral e, para esse fim, a alteração do contrato e dos estatutos da sociedade sem a aprovação da assembleia‑geral?

2)      Relativamente à [Sociedade] e ao [Banco], a Direction Order emitida pela High Court nos termos da section 9 do [Act] violou o direito da União Europeia?»

34.      Os demandantes, a ILP, a ILPGH, a Irlanda, os Governos italiano e cipriota e a Comissão apresentaram observações escritas. Na audiência que teve lugar em 19 de abril de 2016, foram apresentadas observações orais pelos demandantes, pela ILP, pela ILPGH, pela Irlanda e pela Comissão.

III – Análise

A –    Observações introdutórias

35.      A crise financeira não só suscitou a prolação de várias decisões importantes do Tribunal de Justiça (10) como encorajou a instauração de ações relacionadas com a adoção de medidas de auxílio às instituições de crédito em dificuldades (11). Habitualmente, essas medidas exigiam uma «repartição dos encargos» destinada, em primeiro lugar, a reduzir o montante do apoio financeiro público e, em segundo, a impedir as tentativas de especulação em empreendimentos de risco (comportamento dito «de risco moral»). Argumenta‑se que a ação principal respeita a esse tipo de medidas.

36.      No caso em apreço, não é controvertido (em primeiro lugar) o facto de que a Segunda Diretiva se aplica, em princípio, a sociedades como a ILP e a ILPGH, nem (em segundo lugar) que a ILP atravessava dificuldades económicas e estava obrigada a seguir as instruções do Banco Central da Irlanda. Pelo contrário, o que os demandantes contestam é a legalidade das medidas adotadas pelo Ministro. O seu argumento é, essencialmente, o de que poderiam ter sido adotadas outras medidas, menos onerosas, que não implicassem prescindir da aprovação da assembleia‑geral da ILPGH, o que, no seu entender, viola os artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva.

37.      Na verdade, o argumento principal dos demandantes é o de que é a ILP (e não a ILPGH) que é uma instituição de crédito. Alegam que, para manter a estabilidade financeira da economia irlandesa, o Ministro podia e devia ter circunscrito a sua intervenção à ILP, ao invés de pedir à High Court para fazer da ILPGH o alvo da maior parte das medidas impugnadas. Na sua perspetiva, a ILPGH é apenas uma sociedade gestora de participações sociais, com capital social autónomo do da ILP, que não estava vinculada pelas instruções do Banco Central da Irlanda, nem tão‑pouco era responsável pelas ações ou omissões da ILP.

38.      Para responder à primeira questão prejudicial formulada pela High Court, não é necessário responder a esse argumento. Porém, por se afigurar útil para permitir que a High Court se pronuncie no processo principal, considerarei esse argumento na resposta à segunda questão prejudicial, que, no meu entender, complementa a resposta à primeira. Por conseguinte, terminarei as presentes conclusões com uma resposta conjunta a ambas as questões.

B –    Primeira questão

1.      Observações preliminares

39.      A primeira questão está enunciada em termos gerais, não se limitando a referir apenas as circunstâncias do processo principal, de onde deduzo que a High Court pretende, em primeiro lugar, uma resposta de princípio do Tribunal de Justiça. Portanto, de acordo com a minha interpretação, com a sua primeira questão o órgão jurisdicional de reenvio pergunta essencialmente se, corretamente interpretados, os artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva se opõem à legislação de um Estado‑Membro que determina que, para fazer frente à perturbação da economia e do sistema financeiro e responder à ameaça à estabilidade de determinadas instituições de crédito desse Estado‑Membro e do sistema financeiro em geral, bem como para minimizar o risco de contaminação de outros Estados‑Membros, um órgão jurisdicional pode ordenar ao Governo que assuma, sem a aprovação da assembleia‑geral, o controlo de uma sociedade anónima a que se aplica aquela diretiva, que reveste importância sistémica na economia desse Estado‑Membro e que não pode, por si própria, satisfazer os requisitos regulamentares impostos por esse Estado‑Membro em matéria de supervisão prudencial das instituições financeiras.

40.      Consequentemente, o fio condutor da matéria em apreço é, mais uma vez, a questão do limite dos poderes dos Governos para, em tempos de crise, assumirem o controlo de uma instituição de crédito em dificuldades que constitua um dos pilares da economia de um Estado‑Membro. No caso vertente, o limite em causa é estabelecido pelos direitos que assistem aos acionistas, reunidos em assembleia‑geral, de vetar essa aquisição, nos termos da legislação da UE (no presente caso, os artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva).

2.      Abordagem geral em que se deve basear a decisão do Tribunal de Justiça

41.      Como já referi na parte introdutória das presentes conclusões, no meu entender, o Tribunal de Justiça deve adotar a abordagem que defendi no processo Kotnik e o. (12). Esse processo respeitava, entre outras matérias, aos limites impostos pelo direito das sociedades da UE à intervenção do Estado no setor financeiro enfraquecido, ainda que através de auxílios estatais. Explicarei adiante, nos n.os 44 a 51, qual era o objeto desse processo e em que medida é semelhante ao caso em apreço.

42.      Porém, antes de o fazer, começarei por recordar um princípio fundamental: o princípio da personalidade jurídica autónoma das sociedades anónimas, que constitui uma pedra angular do mercado interno e, em especial, a liberdade de estabelecimento consagrada nos artigos 49.o e 54.o do TFUE (13). O facto de uma sociedade anónima atravessar dificuldades financeiras não justifica, por si só, a negação dos direitos dos acionistas ao abrigo da Segunda Diretiva (14). Caso contrário, o artigo 17.o da Segunda Diretiva (15) seria privado de todo o efeito útil.

43.      Por esse motivo, deve ser prontamente rejeitado o argumento aduzido pela ILP, pela ILPGH e pela Irlanda, no sentido de que o artigo 65.o, n.o 1, alínea b), do TFUE justificaria uma derrogação da Segunda Diretiva, por motivos de supervisão prudencial das instituições financeiras, e de que o Tribunal de Justiça reconheceu que a reputação do setor financeiro nacional pode, em princípio, justificar restrições à livre circulação (16). Na verdade, uma medida nacional numa área objeto de harmonização exaustiva a nível da UE deve ser apreciada à luz das disposições dessa medida de harmonização e não das do direito primário (17). Acresce que o Tribunal de Justiça parece ter já apreciado e rejeitado um argumento semelhante (18).

44.      Feitas estas observações, conforme já expliquei nos n.os 93 a 121 das minhas conclusões no processo Kotnik e o. (19), para onde remeto na íntegra, não subscrevo o entendimento dos demandantes de que a Segunda Diretiva se opõe a que um Estado‑Membro adote medidas urgentes para preservar a estabilidade financeira no seu território e para minimizar o risco de contágio. Pelos motivos aduzidos nas referidas conclusões, partilho, em concreto, as dúvidas da High Court (20) sobre a possibilidade de a linha jurisprudencial que designarei por«jurisprudência Pafitis» (21) legitimar a interpretação da Segunda Diretiva no sentido propugnado pelos demandantes:

45.      Em primeiro lugar, tal como no processo Kotnik e o., do ponto de vista factual, as circunstâncias que deram origem à jurisprudência Pafitis eram drasticamente diferentes das circunstâncias dos processos atualmente submetidos ao Tribunal de Justiça. Na realidade, conforme foi discutido na audiência, embora reconhecendo, no n.o 57 do acórdão Pafitis e o. (22),que a Segunda Diretiva continua a aplicar‑se em caso de «simples regime de saneamento» — como acontecia nas circunstâncias desse processo —, o Tribunal de Justiça não tomou posição a respeito das medidas de saneamento que devam ser consideradas extraordinárias.

46.      Em segundo lugar, o objetivo fundamental da Segunda Diretiva e, em especial, do seu artigo 25.o é justamente preservar o equilíbrio de poderes entre os diferentes órgãos de uma sociedade anónima (e entre os acionistas individuais), especialmente em caso de conflitos entre si (23), e não proibir a intervenção de um Estado‑Membro nessa sociedade para responder a uma perturbação grave da sua economia com potencial risco de contágio. Efetivamente, a própria diretiva reconhece que pode ser necessário a um Estado‑Membro aprovar legislação que conflitue com os poderes da assembleia‑geral, quando tal for necessário para evitar um prejuízo grave e iminente (24).

47.      Por último, como bem referiu a Irlanda, o estado atual da cooperação e integração europeia nos domínios financeiro e monetário evoluiu drasticamente desde a data em que os referidos acórdãos foram proferidos, tanto ao nível do direito primário (25) como do direito derivado (26). Estes constituem os principais motivos pelos quais o Tribunal de Justiça não deve aderir rigidamente à jurisprudência Pafitis.

48.      Além disso, na minha perspetiva, o caso em apreço não suscita questões substancialmente diferentes das que estavam em causa no processo Kotnik e o.

49.      Como é evidente, os factos do processo Kotnik e o. não são iguais aos que estão em causa no presente processo. Enquanto o processo Kotnik e o. respeitava à imposição de uma medida de recapitalização interna (bail‑in), a instrumentos financeiros híbridos e à dívida subordinada, no caso vertente a Direction Order implicava, designadamente, um aumento do capital social. No entanto, na ação principal, o efeito combinado do aumento maciço do capital social da ILPGH e da incapacidade dos acionistas para exercerem os direitos de preferência resultou na privação dos acionistas originais (que atualmente detêm menos de 1% das ações) dos poderes que as suas ações lhes conferiam — por outras palavras, na diluição dos seus direitos. Por conseguinte, a Direction Order também implica, de facto, uma medida de repartição de encargos (27).

50.      Além disso, também é verdade que o processo Kotnik e o. respeita principalmente à legislação em matéria de auxílios estatais e não ao direito das sociedades da UE. Porém, com a quinta questão prejudicial submetida naquele processo, o Ustavno sodišče (Tribunal Constitucional da Eslovénia) procurou determinar se a comunicação da Comissão no domínio dos auxílios estatais ao setor bancário (28) violava aversão reformulada da Segunda Diretiva, ou seja, a Diretiva 2012/30 (o que, no meu entender, não acontecia). Para dar uma resposta útil, tive em conta o facto de que uma leitura mais ampla daquela questão exige também a análise da compatibilidade das disposições nacionais que confiam a adoção das medidas de repartição de encargos ao banco central nacional, tal como previsto na comunicação, com aquela diretiva. Nas conclusões acima mencionadas, considerei que a resposta a essa questão mais abrangente deveria ser a de que, nas circunstâncias subjacentes àquele processo, tais disposições não eram incompatíveis com a Diretiva 2012/30/UE(29).

51.      Portanto, no meu entender, as questões suscitadas na quinta questão do processo Kotnik e o. e as do presente processo são, em larga medida, as mesmas. Consequentemente, a abordagem deve ser a mesma nos dois processos.

3.      Características específicas da ação principal

52.      Descrevi no n.o 44 supra a abordagem geral que deve inspirar o Tribunal de Justiça na apreciação do caso vertente. Neste ponto, gostaria de salientar algumas características específicas deste caso.

a)      Contexto financeiro e económico da recapitalização

53.      No que respeita ao contexto financeiro e ao contexto económico em que a recapitalização ocorreu, dificilmente poderá haver dúvidas quanto à sua natureza excecional — e não apenas de uma perspetiva nacional. Na verdade, as circunstâncias eram tão excecionais que o Conselho reconheceu, na decisão de execução (v., em especial, o seu considerando 2), que exigiam a adoção do programa. Subscrevendo esse entendimento, a Comissão aprovou, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), do TFUE, as medidas de auxílio estatal relativas ao resgate e à restruturação da ILP, com vista à sanação de uma perturbação grave da economia irlandesa (v. n.o 30 supra). Nenhuma dessas decisões foi impugnada, pelo que as avaliações de política nelas compreendidas são definitivas.

54.      Neste cenário, o Tribunal de Justiça tem reconhecidamente — e corretamente — sustentado, de acordo com a jurisprudência Pafitis, que o facto de as regras nacionais serem classificadas internamente como «especiais» ou «excecionais» não justifica, só por si, a derrogação das regras da Segunda Diretiva (30). Todavia, essa afirmação não deve ser mal interpretada, no sentido de abranger uma situação de magnitude internacional como a que esteve na origem da ação principal.

55.      Feitas estas considerações, tenho de admitir maiores reticências em aceitar o argumento de que o direito da União impunha à Irlanda uma obrigação de recapitalização nos termos em que o fez. Esse argumento é aduzido pela ILP, pela ILPGH e pela Irlanda, com o objetivo de reforçar a distinção entre o caso vertente e a jurisprudência Pafitis. É certo que, nos termos do artigo 3.o, n.o 5, alínea a), da decisão de execução, existia uma perceção comum de que a Irlanda deveria adotar medidas para assegurar a recapitalização adequada dos bancos nacionais sob a forma de injeção de capitais próprios, se necessário, a fim de assegurar o respeito dos requisitos regulamentares mínimos durante todo o período de vigência do programa de assistência financeira da UE, procedendo simultaneamente a uma desalavancagem da atividade de financiamento para atingir a meta do rácio empréstimos/depósitos. Além disso, de acordo com o artigo 3.o, n.o 7, alínea g), a Irlanda devia recapitalizar os bancos nacionais até ao final de julho de 2011 (sob reserva de um ajustamento adequado para as vendas esperadas de ativos da ILP), de acordo com os resultados da PLAR e do PCAR. Porém, a decisão de execução não exigia à Irlanda que procedesse à recapitalização da forma estabelecida na Direction Order. Essa decisão foi deixada à discricionariedade da Irlanda. Por outras palavras, o direito da União não impôs à High Court a emissão da Direction Order.

56.      Além disso, a «obrigação» de recapitalização fazia parte da contrapartida da assistência financeira prestada no âmbito do programa de apoio que a Irlanda recebeu a seu pedido. Na verdade, de acordo com os artigos 1.o, n.o 4, e 3.o, n.o 2, da decisão de execução, a recapitalização dos bancos nacionais, incluindo a ILP, era apenas uma condição do auxílio. Neste contexto, como a Comissão corretamente observou na audiência, a decisão de execução assenta, em última instância, no artigo 122.o, n.o 2, do TFUE, uma disposição que refere a concessão de «ajuda financeira», sob certas «condições», ao invés de atribuir à UE poderes para estabelecer objetivos vinculativos de política económica (31).

57.      Portanto, não é indiscutível que a UE tenha imposto unilateralmente uma obrigação. Pela mesma razão, não é necessário determinar se, como sustenta o Governo italiano, o Regulamento n.o 407/2010 e, pela mesma ordem de ideias, a decisão de execução, constituem lex specialis relativamente à Segunda Diretiva.

b)      Natureza da medida impugnada

58.      Outro aspeto que desejo salientar é a natureza da Direction Order. A Direction Order foi emitida, de acordo com o procedimento estabelecido no Act, pela High Court, ou seja, por um órgão imparcial e independente. Trata‑se de uma decisão judicial, o que também diferencia o caso em apreço da jurisprudência Pafitis. Nessa linha jurisprudencial, o ministro competente decidia autonomamente, de acordo com a lei aplicável, da aplicação às empresas com graves dificuldades financeiras do regime previsto nessa lei. O ministro tinha igualmente poderes para transferir o controlo das empresas para uma sociedade encarregada de proceder à restruturação, cujo capital era integralmente subscrito pelo Estado, e para ratificar as deliberações dessa sociedade a respeito do aumento de capital das empresas em causa. Portanto, esses processos indiciavam uma ingerência governamental ilimitada na autonomia das sociedades anónimas.

59.      O facto de a Direction Order ter sido emitida por um órgão jurisdicional impõe considerações adicionais. Com efeito, a Segunda Diretiva reconhece a importância e a autoridade das decisões judiciais, referindo‑se‑lhes várias vezes (32). Em especial, de acordo com o seu artigo 30.o, a redução do capital não tem de ser deliberada por assembleia‑geral se for ordenada por decisão judicial. A esse respeito, pode ser defendido que a independência dos órgãos judiciais se distingue da independência de alguns outros reguladores que, ainda que não respondam perante os governos nacionais, claramente não estão imunes a considerações de política (33).

60.      Os demandantes, invocando determinadas decisões dos tribunais irlandeses (34), consideram que a Direction Order não é uma decisão judicial, mas uma decisão administrativa de natureza provisória.

61.      Não subscrevo este entendimento.

62.      Em primeiro lugar, a jurisprudência invocada pelos demandantes foi proferida no contexto da fixação, ao abrigo do direito irlandês, do critério de fiscalização aplicável no âmbito de um pedido de anulação de uma Direction Order, nos termos da section 11 do Act. Uma vez que a Direction Order tinha sido emitida por um órgão jurisdicional e não por um órgão administrativo, a aplicação do critério habitualmente utilizado na fiscalização judicial dos atos administrativos afigurava‑se excluída. Contudo, essa questão de direito interno não altera o facto de que, para efeitos da Segunda Diretiva, existe uma decisão judicial.

63.      Em segundo lugar, o facto de a Direction Order ter sido emitida no âmbito de um procedimento ex parte ou de poder ser anulada no âmbito de um procedimento previsto na section 11 do Act constitui uma questão de direito processual irlandês que não releva para a interpretação da Segunda Diretiva. Devo acrescentar que o órgão jurisdicional de reenvio afirmou que o Ministro comunicou abertamente à High Court a posição da maioria dos acionistas na assembleia‑geral extraordinária.

64.      Por último, mas não menos importante, a tese dos demandantes sugere que os órgãos jurisdicionais irlandeses aprovaram cegamente a proposta de Direction Order do Ministro, sem procederem a qualquer tipo de apreciação do seu mérito. Esse argumento não é admissível.

65.      Portanto, para efeitos da Segunda Diretiva, a Direction Order é uma decisão judicial e não uma simples medida administrativa.

c)      Pertinência da Diretiva 2001/24

66.      A Irlanda, apoiada pela ILP e pela ILPGH, afirma que a Direction Order é uma «medida de saneamento», na aceção do artigo 2.o da Diretiva 2001/24. Sustentando que a Diretiva 2001/24 é lex posterioretspecialis relativamente à Segunda Diretiva, o Governo irlandês considera que tal medida se sobrepõe aos direitos atribuídos aos acionistas pela Segunda Diretiva.

67.      Nas minhas conclusões no processo Kotnik e o. (35),afirmei que uma «medida de saneamento» contém três elementos cumulativos: deve i) ser adotada pelas autoridades administrativas ou judiciais competentes de um Estado‑Membro; ii) ter como objetivo preservar ou restabelecer a situação financeira de uma instituição de crédito; e iii) afetar potencialmente direitos de terceiros. Estes requisitos afiguram‑se satisfeitos no que respeita à Direction Order (36).

68.      Todavia, não creio que seja necessário adotar uma posição oficial sobre a questão de saber se a Diretiva 2001/24 afasta a aplicação das disposições da Segunda Diretiva. Uma vez que a primeira foi adotada muitos anos depois desta, seria legítimo perguntar por que motivo a Diretiva 2001/24 não contém uma disposição que lhe atribua prevalência sobre a Segunda Diretiva (37).

69.      Além disso, as duas diretivas assentam em bases jurídicas diferentes (38) e têm âmbitos de aplicação ratione personae diferentes (a Segunda Diretiva aplica‑se às sociedades anónimas e a Diretiva 2001/24 às instituições de crédito). Os seus objetivos também são diferentes: enquanto a Segunda Diretiva visa «assegurar uma equivalência mínima da proteção dos acionistas e dos credores destas sociedades» (39), a Diretiva 2001/24 limita‑se a estabelecer (como refere a Comissão) um sistema de reconhecimento mútuo das medidas de saneamento e dos processos de liquidação, sem procurar harmonizar a legislação nacional nessa matéria (conforme decorre do seu considerando 6) (40). No meu entender, não é claro que os dois instrumentos legislativos sejam incompatíveis.

70.      Pelo contrário, afigura‑se‑me que as duas diretivas tendem a complementar‑se. Por um lado, o acórdão Pafitis e o. (41)esclareceu que a Segunda Diretiva se aplica, em princípio, às sociedades anónimas, independentemente de serem ou não instituições de crédito. Por outro lado, a Diretiva 2001/24 não regula os direitos dos acionistas. Com efeito, de acordo com o considerando 8 da Diretiva 2001/24, «[d]eterminadas medidas, nomeadamente as que afetam […] os direitos […] dos acionistas, não necessitam de ser abrangidas pela presente diretiva para produzirem todos os seus efeitos nos Estados‑Membros, na medida em que, segundo as regras de Direito Internacional Privado, a lei aplicável é a do Estado de origem». Nessa conformidade, o considerando 10 precisa que os «acionistas […] não devem ser tidos como terceiros para efeitos da» Diretiva 2001/24.

71.      Estas considerações levam‑me a concordar com o Governo cipriota quando sustenta que as duas diretivas devem ser objeto de uma interpretação harmonizada que assegure a unidade e a coerência do direito da União.

72.      Assim, afigura‑se‑me que a interpretação mais congruente é a que propugna, em primeiro lugar, que as medidas de saneamento que afetam os direitos dos acionistas não são reguladas pela Diretiva 2001/24, mas pela lei do Estado de origem — no caso vertente, o direito irlandês e, especificamente, o Act — e, em segundo lugar, como já referi nos n.os 58 e 59 supra, que a Segunda Diretiva reconhece implicitamente a autoridade das decisões judiciais.

4.      Observações finais

73.      Com base nas considerações precedentes, entendo que o caso em apreço levanta essencialmente as mesmas questões do processo que foram suscitadas no processo Kotnik e o. E deve portanto ser objeto de uma abordagem largamente idêntica. As circunstâncias da ação principal confirmam este entendimento.

74.      Os demandantes alegam que, caso assim seja considerado, isso consubstanciaria um recuo do Tribunal de Justiça relativamente à sua jurisprudência, com efeitos retroativos, o que contraria o princípio da segurança jurídica.

75.      Essas críticas são totalmente improcedentes.

76.      Em primeiro lugar, essa tese não tem em conta a diferença entre, por um lado, a clarificação ou adaptação da jurisprudência e, por outro, a sua subversão (o Tribunal de Justiça refere expressamente a intenção de se desviar da sua jurisprudência (42)). O caso em apreço não justifica a rejeição da jurisprudência Pafitis — pelo contrário, tende a confirmá‑la, por princípio. Trata‑se simplesmente de distinguir as situações e a jurisprudência pertinente.

77.      Em segundo lugar, relativamente à aplicação retroativa, basta dizer que, a este respeito, os demandantes têm razão. Todavia, essa é uma característica intrínseca ao mecanismo de reenvio prejudicial instituído pelos Tratados e não configura qualquer violação do princípio da segurança jurídica (43). Em todo o caso, não foi deduzido qualquer pedido de limitação dos efeitos das decisões no tempo, nem é provável que o Tribunal de Justiça desse provimento a tal pedido (44).

78.      Portanto, quanto à questão de princípio, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão prejudicial no sentido de que, corretamente interpretados, os artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva não se opõem à legislação de um Estado‑Membro que determina que, para fazer frente à perturbação da economia e do sistema financeiro e responder à ameaça à estabilidade de determinadas instituições de crédito desse Estado‑Membro e do sistema financeiro em geral, bem como para atenuar o risco de contágio de outros Estados‑Membros, um órgão jurisdicional pode ordenar ao Governo que assuma sem a aprovação da assembleia‑geral, o controlo de uma sociedade anónima a que se aplica aquela diretiva, que reveste importância sistémica na economia desse Estado‑Membro e que não pode, por si própria, satisfazer os requisitos regulamentares impostos por esse Estado‑Membro em matéria de supervisão prudencial das instituições financeiras.

79.      Porém, ainda não abordei os aspetos específicos do presente caso, que constituem o objeto da minha resposta à segunda questão prejudicial.

C –    Segunda questão

80.      Com a sua segunda questão, a High Court pretende saber se a Direction Order «violou o direito da União Europeia».

81.      Essa questão é concisa, direta e pertinente. Porém, suscita diversas questões de natureza formal.

1.      Competência do Tribunal de Justiça e admissibilidade da questão prejudicial

82.      O Governo cipriota considera que a segunda questão prejudicial é inadmissível, uma vez que não identifica as disposições do direito da União que deveriam ser consideradas.

83.      É verdade que a segunda questão prejudicial apenas refere o «direito da União Europeia».

84.      Cumpre recordar que não compete ao Tribunal de Justiça identificar oficiosamente as disposições do direito da União que podem ser pertinentes na ação principal. Pelo contrário, em conformidade com o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, essa obrigação impende sobre o órgão jurisdicional de reenvio (45).

85.      No meu entender, a segunda questão prejudicial suscita problemas ainda maiores no que respeita à competência do Tribunal de Justiça.

86.      Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio essencialmente pede ao Tribunal de Justiça que aplique o direito da União aos factos da ação principal. Esse não é um dos poderes que o artigo 267.o do TFUE atribui ao Tribunal de Justiça (46).

87.      Em segundo lugar, não compete ao Tribunal de Justiça, no quadro do processo prejudicial, pronunciar‑se sobre a compatibilidade de normas de direito interno com o direito da União (47).

88.      Porém, ainda que o despacho de reenvio não refira expressamente de que modo a segunda questão se distingue da primeira, a sua lógica afigura‑se‑me suficientemente clara. Enquanto a primeira questão está formulada de forma genérica, perguntando se a Segunda Diretiva se opõe, per se, à atribuição de efeitos a qualquer medida adotada sem a aprovação da assembleia‑geral, por violar os direitos que essa diretiva atribui aos acionistas (uma questão para a qual proponho resposta negativa), a segunda questão refere‑se especificamente às circunstâncias da ação principal. Por outras palavras, o órgão jurisdicional de reenvio parece querer saber se o direito da União se opõe à recapitalização tal como foi efetuada na ação principal. O caráter vago do termo «direito da União» não obsta a que se considere que este inclui, pelo menos, a Segunda Diretiva.

89.      A esse propósito, o Tribunal de Justiça tem sustentado sistematicamente que os poderes que lhe são atribuídos pelo artigo 267.o do TFUE abrangem a prestação das orientações sobre a interpretação do direito da União que sejam necessárias para que o órgão jurisdicional nacional profira a sua decisão (48).

90.      Portanto, conforme sugerido pela Comissão e referido no n.o 38 supra, responderei em conjunto a ambas as questões.

2.      Quanto ao mérito

91.      Neste ponto, recordo que, com a Direction Order, a Irlanda preencheu a condição de recapitalização dos bancos nacionais de que dependia a concessão de assistência financeira, conforme estabelecido no artigo 3.o, n.o 5, alínea a), e no artigo 7.o, alínea g), da decisão de execução. A esse respeito, tal como refere o considerando 11 da decisão de execução, «[a]s operações que a assistência financeira da União ajuda a financiar devem ser compatíveis com as políticas da União e ser conformes com o seu direito». Isto não inclui apenas os direitos positivos que o direito da União atribui diretamente às pessoas, mas também os princípios gerais desse direito, nomeadamente os direitos fundamentais que os Estados‑Membros têm de respeitar quando aplicam o direito da União (49). Esses princípios gerais compreendem não só o direito de propriedade consagrado no artigo 17.o da Carta (50), mas também o princípio da proporcionalidade (51). Este princípio exige aos Estados‑Membros que recorram a meios que, sendo adequados para lhes permitirem alcançar eficazmente o fim prosseguido pelo direito interno, causem o menor prejuízo aos objetivos e aos princípios decorrentes da legislação da União em causa (52).

92.      Compete à High Court, ao analisar a Direction Order nos termos da section 11 do Act, determinar se os princípios mencionados no n.o anterior foram respeitados e, em especial, se a Direction Order é a medida que causa menos prejuízo aos objetivos e aos princípios estabelecidos na Segunda Diretiva.

93.      A esse propósito, a principal crítica à Direction Order tecida pelos demandantes (v. n.o 37 supra) merece atenção. Se bem entendo, os demandantes não contestam a necessidade de recapitalizar a ILP, nem a aquisição do controlo da ILP pelo Governo irlandês, mas o facto de o Ministro ter assumido o controlo da ILPGH e, desse modo, ter apreendido o capital que esta alegadamente possuía à data da produção de efeitos da Direction Order.

94.      Nem o despacho de reenvio nem as observações escritas da ILP, da ILPGH ou da Irlanda abordam expressamente o motivo pelo qual a Direction Order não tinha por destinatário apenas o Banco, mas também a Sociedade. Os demandantes sustentam que, na qualidade de sociedade gestora de participações sociais, a ILPGH tinha capital próprio que pertencia aos seus acionistas e que, antes da adoção da Direction Order, alegadamente ascendia a 453 milhões de euros. O único trecho do despacho de reenvio que aborda este tema é a afirmação de que «o capital social realizado da Sociedade não foi contabilizado como parte da recapitalização e não foi retirado da Sociedade pelo Ministro».

95.      Porém, a audiência ajudou a esclarecer algumas dúvidas sobre esta matéria. A Irlanda, apoiada pela ILP e pela ILPGH, afirmou que a intervenção a nível da ILPGH não tinha «afetado os acionistas da ILPGH. Caso o Ministro tivesse intervindo a nível da ILP, os acionistas seriam proprietários a 100% da ILPGH, que detinha 0,8% da ILP, ao invés de serem acionistas de 0,8% da ILPGH» (53). As mesmas partes afirmaram ainda que a Direction Order tinha por destinatária a ILPGH, e não o Banco, para garantir à Irlanda a rentabilidade do seu investimento, na medida em que se considerava que a ILPGH (que, segundo o Governo irlandês, entretanto voltou a estar cotada) seria mais atrativa para os potenciais adquirentes.

96.      Estas afirmações, que revestem a maior importância, são sustentadas pelos antecedentes do regime de compromisso mencionado no n.o 22 supra e constante dos autos, dos quais decorre que o capital inicial da ILPGH foi reunido através de uma contribuição em espécie constituída pela totalidade do capital social da ILP (ou algo semelhante). Além disso, conforme sustentou a High Court, a ILPGH não possuía quaisquer outros ativos além da ILP. Por conseguinte, estas observações explicam a conclusão da High Court de que «a falência da ILP teria, provavelmente, resultado no prejuízo total dos acionistas [da ILPGH]».

97.      Partindo do pressuposto de que estas observações são verdadeiras, o argumento dos demandantes de que a Direction Order não é justificada deve ser rejeitado. Com efeito, nesse cenário, o Banco era e é o único ativo da Sociedade, o que significa que, tal como referido no despacho de reenvio, com a falência do Banco, as ações da Sociedade perderiam todo o valor. Sendo assim, não vislumbro de que modo teria existido qualquer ingerência no direito de propriedade dos demandantes. Ao invés, afigura‑se que, com a sua ação, os demandantes procuram obter um «presente de valor muito substancial» (como lhe chamaram a ILP e a ILPGH nas suas observações escritas), que não lhes foi oferecido pelo Ministro na assembleia‑geral extraordinária ou posteriormente.

98.      Este aspeto reforça o meu entendimento de que não é necessário analisar as consequências legais emergentes da eventual violação dos artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva. Em todo o caso, como refere a Irlanda, neste momento não se pede ao Tribunal de Justiça que decida sobre as medidas de correção aplicáveis no caso de resposta afirmativa a qualquer das questões prejudiciais, pelo que não desenvolverei essa linha de pensamento.

99.      De qualquer modo, é à High Court que compete determinar se as afirmações mencionadas no n.o 95 são verdadeiras.

100. À luz do exposto, a resposta a ambas as questões prejudiciais deve ser a que propugnei no n.o 78 das presentes conclusões, na condição de o Estado‑Membro em causa recorrer a meios que, sendo adequados para lhe permitirem alcançar eficazmente os fins prosseguidos pelo direito interno, causem o menor prejuízo aos objetivos e aos princípios estabelecidos na Segunda Diretiva. Caberá aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar se assim é.

IV – Conclusão

101. À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais no sentido de que, corretamente interpretados, os artigos 8.o, 25.o e 29.o da Segunda Diretiva do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado [CEE], no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade, conforme alterada, não se opõem à legislação de um Estado‑Membro que determina que, para fazer frente à perturbação da economia e do sistema financeiro e responder à ameaça à estabilidade de determinadas instituições de crédito desse Estado‑Membro e do sistema financeiro em geral, bem como para atenuar o risco de contágio de outros Estados‑Membros, um órgão jurisdicional pode ordenar ao Governo que assuma, sem a aprovação da assembleia‑geral, o controlo de uma sociedade anónima a que se aplica aquela diretiva, que reveste importância sistémica na economia desse Estado‑Membro e que não pode, por si própria, satisfazer os requisitos regulamentares impostos por esse Estado‑Membro em matéria de supervisão prudencial das instituições financeiras. No entanto, é necessário que esse Estado‑Membro recorra a meios que, sendo adequados para lhe permitirem alcançar eficazmente os fins prosseguidos pela referida legislação, causem o menor prejuízo aos objetivos e aos princípios estabelecidos na Segunda Diretiva. Esta é uma matéria cuja apreciação incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais.


1 —      Língua original: inglês.


2 —      Conclusões no processo Kotnik e o., C‑526/14, EU:C:2016:102.


3 —      Segunda Diretiva do Conselho, de 13 de dezembro de 1976, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 58.o do Tratado, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO 1977, L 26, p. 1), conforme alterada.


4 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das instituições de crédito (JO L 125, p. 15).


5 —      Decisão de Execução do Conselho, de 7 de dezembro de 2010, relativa à concessão de assistência financeira da União à Irlanda (JO 2011, L 30, p. 34), conforme alterada pela Decisão de Execução 2011/326/UE do Conselho, de 30 de maio de 2011, que altera a Decisão de Execução 2011/77/UE relativa à concessão de assistência financeira da União à Irlanda (JO L 147, p. 17).


6 —      Regulamento de 11 de maio de 2010, que cria um mecanismo europeu de estabilização financeira (JO L 118, p. 1), adotado, por sua vez, com base no artigo 122.o, n.o 2, do TFUE.


7 —      Decorre de uma circular relacionada com o regime de compromisso e constante do processo que deu entrada no Tribunal de Justiça que, antes disso, a ILP tinha atuado tanto como sociedade gestora de participações sociais do grupo como na qualidade de instituição de crédito autorizada, responsável pela atividade bancária do grupo. Em 20 de novembro de 2009, procurando uma estrutura de grupo mais conveniente, o conselho de administração da ILP propôs aos acionistas que uma nova sociedade gestora de participações sociais, cotada nas bolsas relevantes, atuasse como única sociedade gestora de participações sociais do grupo. Consequentemente, foi proposto que a sociedade que viria a ser a ILPGH detivesse a 100% o capital social da ILP e que os então acionistas da ILP passassem, ao invés, a ser acionistas da futura ILPGH, num rácio de 1:1.


8 —      Decisão C(2011) 5258 final da Comissão, de 20 de julho de 2011, relativa ao auxílio de Estado SA.33311 (2011/N) — Irlanda — Recapitalização de emergência da ILPGH (publicação sumária no JO C 268, pp. 4 e 5), e Decisão C(2015) 2353 final da Comissão, de 9 de abril de 2015, relativa ao auxílio de Estado SA.33442 (2011/N) — Irlanda — Reestruturação da ILPGH (publicação sumária no JO C 219, pp. 1e 2).


9 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição (JO L 142, p. 12). A aprovação estava sujeita, nomeadamente, à condição de não ser concedido provimento a qualquer pedido de anulação de uma Direction Order emitida pela High Court.


10 —      V. acórdão de 27 de novembro de 2012, Pringle, C‑370/12, EU:C:2012:756; e acórdão de 16 de junho de 2015, Gauweiler e o., C‑62/14, EU:C:2015:400.


11 —      V., entre outros, despacho de 24 de março de 2011 no processo Abt e o., C‑194/10, EU:C:2011:182; acórdão de 3 de abril de 2014, Comissão/Reino dos Países Baixos e ING Groep, C‑224/12 P, EU:C:2014:213; acórdão do Tribunal da EFTA, Órgão de Fiscalização da EFTA/Islândia, E‑16/11, [2013] EFTA Ct. Rep. 4; acórdão de 5 de março de 2015, Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português, C‑667/13, EU:C:2015:151; despacho de 15 de outubro de 2015 no processo Banco Privado Português e Massa Insolvente do Banco Privado Português/Comissão, C‑93/15 P, EU:C:2015:703; acórdão de 12 de novembro de 2015, HSH Investment Holdings Coinvest‑C e HSH Investment Holdings FSO/Comissão, T‑499/12, EU:T:2015:840; e acórdão de 28 de janeiro de 2016, Áustria/Comissão, T‑427/12, ainda não publicado, EU:T:2016:41. V, também os processos pendentes Fih Holding e Fih Erhvervsbank/Comissão, T‑386/14; Ledra Advertising e o./Comissão e BCE, C‑8/15 P, C‑9/15 P a C‑10/15 P; e Mallis e Malli/Comissão e BCE, C‑105/15 P a C‑109/15 P.


12 —      C‑526/14, EU:C:2016:102.


13 —      V. também o primeiro considerando da Segunda Diretiva, segundo o qual «a atividade [das sociedades anónimas] é predominante na economia dos Estados‑Membros e estende‑se, frequentemente, para além dos limites do seu território nacional».


14 —      V., nesse sentido, acórdão de 12 de maio de 1998, Kefalas e o., C‑367/96, EU:C:1998:222, n.o 25.


15 —      O artigo 17.o, n.o 1, da Segunda Diretiva dispõe que «[n]o caso de perda grave do capital subscrito, deve ser convocada uma assembleia‑geral no prazo fixado pelas legislações dos Estados‑Membros, para examinar se a sociedade deve ser dissolvida ou se deve ser adotada qualquer outra medida»; v. também acórdão de 12 de maio de 1998, C‑367/96, Kefalas e o., EU:C:1998:222, n.o 25.


16 —      V. acórdão de 10 de maio de 1995, Alpine Investments, C‑384/93, EU:C:1995:126, n.os 42 a 44.


17 —      V., entre outros, acórdão de 9 de março de 2006, Matratzen Concord, C‑421/04, EU:C:2006:164, n.o 20 e jurisprudência aí referida. V., em especial, por analogia, acórdão de 16 de junho de 2015, Rina Services e Rina, C‑593/13, EU:C:2015:399, n.os 37 a 40.


18 —      Acórdão de 12 de março de 1996, Pafitis e o., C‑441/93, EU:C:1996:92, n.os 49 e 50.


19 —      C‑526/14, EU:C:2016:102.


20 —      V. acórdão Dowling & Ors/Minister for Finance [2014] IEHC 595, n.o 74 (relativo a um pedido de medidas provisórias).


21 —      V. acórdãos de 24 de março de 1992, Syndesmos Melon Tis Eleftheras Evangelikis Ekklisias e o., C‑381/89, EU:C:1992:142; de 30 de maio de 1991, Karella e Karellas, C‑19/90 e C‑20/90, EU:C:1991:229; de 12 de novembro de 1992, Kerafina‑Keramische und Finanz‑Holding e Vioktimatiki, C‑134/91 e C‑135/91, EU:C:1992:434; de 12 de março de 1996, Pafitis e o., C‑441/93, EU:C:1996:92; de 12 de maio de 1998 Kefalas e o., C‑367/96, EU:C:1998:222; e de 23 de março de 2000, Diamantis, C‑373/97, EU:C:2000:150.


22 —      Acórdão de 12 de março de 1996, C‑441/93, EU:C:1996:92, n.o 57.


23 —      V., nesse sentido, acórdão de 12 de maio de 1998, Kefalas e o., C‑367/96, EU:C:1998:222, n.o 28.


24 —      V., a título de exemplo, o artigo 19.o, n.o 2, da Segunda Diretiva, que dispõe que «[a] legislação de um Estado‑Membro pode derrogar o [requisito de que a autorização para que uma sociedade adquira as suas próprias ações deve ser concedida pela assembleia‑geral] quando a aquisição de ações próprias for necessária para evitar à sociedade um prejuízo grave e iminente».


25 —      V. o título VIII da parte III do TFUE, relativo à política económica e monetária, bem como o artigo 3.o‑3 do Protocolo (n.o 4) relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu.


26 —      Em face do acórdão de 12 de março de 1996, Pafitis e o., C‑441/93, EU:C:1996:92, n.os 43 e 51, remeto, em primeiro lugar e acima de tudo, para a Diretiva 2001/24 e para a Diretiva 94/19/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 1994, relativa aos sistemas de garantia de depósitos (JO L 135, p. 5), conforme alterada pela Diretiva 2009/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2009, que altera a Diretiva 94/19/CE relativa aos sistemas de garantia de depósitos, no que respeita ao nível de cobertura e ao prazo de reembolso (JO L 68, p. 3). Apesar de não se aplicarem à data dos factos, outras diretivas confirmam essa evolução, como é o caso da Diretiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa aos sistemas de garantia de depósitos (reformulação) (JO L 173, p. 149); e da Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Diretiva 82/891/CEE do Conselho, e as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/CE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.o 1093/2010 e (UE) n.o 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO L 173, p. 190; v., em especial, o seu artigo 123.o).


27 —      Ao contrário de outros exemplos, eventualmente mais comuns, em que a recapitalização acarreta a expropriação (expulsão) dos acionistas ou a transferência de ativos do banco antigo ou «mau» para um «novo» banco (muitas vezes seguida da abertura de um processo de insolvência do banco «mau»), a recapitalização em apreço implicou uma forma de «coabitação» entre o Ministro e os restantes acionistas da ILPGH. Resulta dos autos que a opção pelo aumento de capital foi motivada por razões relacionadas com o direito constitucional irlandês.


28 —      Comunicação da Comissão sobre a aplicação, a partir de 1 de agosto de 2013, das regras em matéria de auxílios estatais às medidas de apoio aos bancos no contexto da crise financeira («comunicação sobre o setor bancário») (JO C 216, p. 1).


29 —      Diretiva 2012/30/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, tendente a coordenar as garantias que, para proteção dos interesses dos sócios e de terceiros, são exigidas nos Estados‑Membros às sociedades, na aceção do segundo parágrafo do artigo 54.odo Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no que respeita à constituição da sociedade anónima, bem como à conservação e às modificações do seu capital social, a fim de tornar equivalentes essas garantias em toda a Comunidade (JO 2012 L 315, p. 74).


30 —      V., nesse sentido, acórdão de 23 de março de 2000, Diamantis, C‑373/97, EU:C:2000:150, n.o 32 e jurisprudência aí referida.


31 —      V., nesse sentido, acórdão de 27 de novembro de 2012, Pringle, C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 65.


32 —      V. artigos 5.o, n.o 2; 20.o, n.o 1, alíneas d) e g); e 32.o, n.o 2, da Segunda Diretiva.


33 —      V., no que respeita ao Banco Central Europeu e aos bancos centrais nacionais, artigo 7.o do Protocolo (n.o 4) relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu.


34 —      Acórdão da High Court, de 2 de março de 2012, Irish Life and Permanent Group Holdings plc c. Credit Institutions Stabilisation Act 2010 [2012] IEHC 89, n.o 31; acórdão da Supreme Court (Irlanda), de 19 de dezembro de 2013, Dowling & Ors c. Minister for Finance [2013] IESC 58, n.o 41; e acórdão da High Court, de 15 de agosto de 2014, Dowling & Ors c. The Minister for Finance [2014] IEHC 418, n.os 38.34 e 38.36.


35 —      C‑526/14, EU:C:2016:102, n.os 131 a 144.


36 —      Relativamente ao primeiro requisito, a Direction Order é uma medida adotada pela autoridade judicial irlandesa competente; v. a section 2(1) do Act, que dispõe que se entende por «órgão jurisdicional», na aceção do Act, a High Court. O segundo requisito está igualmente preenchido. Efetivamente, no ponto E da Direction Order, a High Court proferiu uma declaração nesse sentido, em conformidade com o disposto na section 9(3) do Act (v. também a section 52). Por último, decorre do ponto E da Direction Order que esta produz efeitos em todas as jurisdições em causa, nos termos da Diretiva 2001/24 e do Act. Logo, é suscetível de afetar os direitos de terceiros, nos termos das sections 53 e 61 do Act.


37 —      V., nesse sentido, acórdão de 29 de junho de 2010, Comissão/Bavarian Lager, C‑28/08 P, EU:C:2010:378, n.o 56.


38 —      A Diretiva 2001/24 foi adotada ao abrigo do artigo 47.o, n.o 2, do Tratado CE (atual artigo 53.o, n.o 1, do TFUE), enquanto a Segunda Diretiva foi adotada nos termos do artigo 53.o, n.o 3, alínea g), do Tratado CEE [atual artigo 50.o, n.o 2, alínea g), do TFUE].


39 —      V. o segundo considerando da Segunda Diretiva. V. também acórdão de 12 de março de 1996, Pafitis e o., C‑441/93, EU:C:1996:92, n.o 38.


40 —      Acórdão de 24 de outubro de 2013, LBI, C‑85/12, EU:C:2013:697, n.o 39.


41 —      Acórdão de 12 de março de 1996, Pafitis e o., C‑441/93, EU:C:1996:92.


42 —      V., como exemplos clássicos, acórdãos de 17 de outubro de 1990, HAG GF, C‑10/89, EU:C:1990:359, n.o 10; de 24 de novembro de 1993, Keck e Mithouard, C‑267/91 e C‑268/91, EU:C:1993:905, n.o 16; e de 25 de julho de 2008, Metock e o., C‑127/08, EU:C:2008:449, n.o 58.


43 —      V., nesse sentido, acórdão de 19 de abril de 2016, DI, C‑441/14, EU:C:2016:278, n.os 39 e 40 e jurisprudência aí referida.


44 —      V., como um exemplo dos rigorosos critérios a preencher, acórdão de 23 de novembro de 2014, Schulz e Egbringhoff, C‑359/11 e C‑400/11, EU:C:2014:2317 (n.os 54 a 64), à luz das minhas conclusões nesse processo (EU:C:2014:319, n.os 69 a 77).


45 —      Conforme esclarece o n.o 23 das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO C 338, p. 1), «[a]s disposições pertinentes do direito da União devem ser identificadas com tanta precisão quanto possível no pedido de decisão prejudicial».


46 —      V., nesse sentido, acórdão de 6 de setembro de 2011, Patriciello, C‑163/10, EU:C:2011:543, n.o 21 e jurisprudência aí referida.


47 —      V., nesse sentido, acórdão de 1 de março de 2012, Ascafor e Asidac, C‑484/10, EU:C:2012:113, n.o 33 e jurisprudência aí referida.


48 —      V., nesse sentido, acórdão de 6 de setembro de 2011, Patriciello, C‑163/10, EU:C:2011:543, n.o 21 e jurisprudência aí referida.


49 —      Acórdão de 13 de julho de 1989, Wachauf, 5/88, EU:C:1989:321, n.o 19, e artigo 51.o, n.o 1, da Carta.


50 —      Verifiquei que, em sede de consulta, o BCE considerou que «os poderes de emergência [ao abrigo do Act] afetam significativamente os direitos de propriedade dos acionistas das instituições» [v. o Parecer do BCE de 17 de dezembro de 2010, sobre a estabilização de emergência de instituições de crédito (CON/2010/92), ponto 2.4]. No que respeita aos direitos dos acionistas ao respeito dos seus bens, ao abrigo do artigo 1.o do Primeiro Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no âmbito da aquisição de uma instituição de crédito pelo Estado, remeto, entre outros, para o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 21 de julho de 2015, Cıngıllı Holding A.Ş. e Cıngıllıoğlu c. Turquia, n.os 31833/06 e 37538/06, TEDH ECLI:CE:ECHR:2015:0721JUD003183306, §§ 49 a 51 e jurisprudência aí referida. V. também as minhas conclusões no processo Kotnik e o., C‑526/14, EU:C:2016:102, notas 55 e 57.


51 —      V., entre outros, acórdão de 11 de janeiro de 2000, Kreil, C‑285/98, EU:C:2000:2, n.o 23.


52 —      V. acórdão de 18 de dezembro de 1997, Molenheide e o., C‑286/94, C‑340/95, C‑401/95 e C‑47/96, EU:C:1997:623, n.o 46.


53 —      Acrescento que, na audiência, o mandatário da ILP e da ILPGH afirmou que os 453 milhões de euros constavam de uma conta de prémios de emissão e excediam o valor nominal das ações de uma emissão anterior. No entanto, esse capital perdeu‑se ou esgotou‑se.