Language of document : ECLI:EU:C:2020:795

Processos apensos C245/19 e C246/19

État luxembourgeois

contra

B e o.

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Cour administrative (Supremo Tribunal Administrativo, Luxemburgo)]

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 6 de outubro de 2020

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2011/16/UE — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Artigos 1.° e 5.° — Obrigação de prestar informações à autoridade competente de um Estado‑Membro que atua na sequência de um pedido de troca de informações da autoridade competente de outro Estado‑Membro — Pessoa detentora das informações cuja prestação é ordenada pela autoridade competente do primeiro Estado‑Membro — Contribuinte visado pelo inquérito na origem do pedido da autoridade competente do segundo Estado‑Membro — Terceiros com quem esse contribuinte mantém relações jurídicas, bancárias, financeiras ou, de um modo mais geral, económicas — Tutela jurisdicional — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 47.° — Direito à ação — Artigo 52.°, n.° 1 — Restrição — Base jurídica — Respeito pelo conteúdo essencial do direito à ação — Existência de um meio processual que permite aos interessados em causa obter a fiscalização efetiva de todas as questões de facto e de direito relevantes, bem como uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos que o direito da União lhes garante — Objetivo de interesse geral reconhecido pela União — Combate à fraude e à evasão fiscais internacionais — Proporcionalidade — Natureza “previsivelmente relevante” das informações visadas pela imposição de prestação de informações — Fiscalização jurisdicional — Alcance — Elementos pessoais, temporais e materiais a tomar em consideração»

1.        Direitos fundamentais — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Âmbito de aplicação — Aplicação do direito da União — Legislação nacional que precisa as modalidades do procedimento de troca de informações a pedido instituída pela Diretiva 2011/16 — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 51.°, n.° 1; Diretiva 2011/16 do Conselho)

(cf. n.os 45, 46)

2.        Direitos fundamentais — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Direito à ação — Direito ao respeito pela via privada — Direito à proteção dos dados pessoais — Ponderação dos direitos fundamentais — Restrições ao exercício dos direitos e das liberdades garantidos pela Carta Admissibilidade — Requisitos

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.° e 47.°)

(cf. n.os 47‑51)

3.        Direitos fundamentais — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Direito à ação — Invocabilidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°)

(cf. n. os 54, 55)

4.        Direito da União Europeia — Princípios — Direitos fundamentais — Proteção contra intervenções arbitrárias ou desproporcionadas do poder público — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Alcance — Pessoas coletivas — Decisão que ordena a prestação de informações visando dar seguimento a um pedido de informações com base na Diretiva 2011/16 e medida que pune o incumprimento dessa decisão — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 47.° e 52.°, n.° 1)

(cf. n.os 57‑59)

5.        Direitos fundamentais — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Direito à ação — Restrição ao exercício do direito à ação pelo direito nacional — Requisitos — Respeito pelo conteúdo essencial do direito — Conceito de conteúdo essencial do direito — Acesso a um tribunal que assegura o respeito pelos direitos garantidos pelo direito da União — Desnecessidade de o titular do direito infringir o direito nacional e se expor à sanção associada a essa infração — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°)

(cf. n.os 60, 66)

6.        Direitos fundamentais — Respeito pela vida privada — Proteção dos dados pessoais — Artigos 7.° e 8.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Âmbito de aplicação — Informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável — Informação relativa às suas contas bancárias e ativos financeiros e sobre as suas relações jurídicas ou económicas com terceiros — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.° e 8.°)

(cf. n.os 73, 74)

7.        Direitos fundamentais — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Direito à ação — Âmbito de aplicação — Pessoas coletivas enquanto terceiros — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 47.°)

(cf. n.os 96, 97)

8.        Aproximação das legislações — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Diretiva 2011/16 — Troca de informações a pedido — Pedido de um EstadoMembro dirigido a outro EstadoMembro para dar execução ao procedimento de troca de informações — Decisão da autoridade competente deste último EstadoMembro que dá seguimento ao pedido de informações — Decisão que obriga a pessoa coletiva que detém as informações a prestálas à autoridade competente sob pena de sanção — Direito a uma tutela jurisdicional efetiva — Legislação nacional que não permite um recurso judicial contra a decisão que ordena a prestação de informações — Pessoa coletiva que detém as informações — Inadmissibilidade — Pessoa singular visada, enquanto contribuinte, pelo inquérito na origem do pedido e pessoas coletivas terceiras interessadas relativamente às informações em causa — Admissibilidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.° e 47.°; Diretiva 2011/16 do Conselho)

(cf. n.os 69, 76, 78‑85, 87‑93, 98, 42101,104, 105, disp. 1)

9.        Aproximação das legislações — Cooperação administrativa no domínio da fiscalidade — Diretiva 2011/16 — Troca de informações a pedido — Pedido de informações dirigido à pessoa que detém essas informações — Legalidade de uma decisão que ordena a prestação de informações dirigida por esse EstadoMembro a um administrado — Requisito — Relevância previsível das informações solicitadas — Apreciação a cargo da autoridade requerida — Fiscalização jurisdicional — Limites — Critérios a considerar

(Diretiva 2011/16 do Conselho, artigos 1.°, n.° 1, e 5.°)

(cf. n.os 110‑116, 124, disp. 2)

Resumo

O direito à ação garantido pela Carta dos Direitos Fundamentais impõe que as pessoas que detenham informações solicitadas pela administração nacional, no contexto de um procedimento de cooperação entre EstadosMembros, possam interpor um recurso judicial contra essa solicitação. Em contrapartida, os EstadosMembros podem privar da via de recurso judicial o contribuinte visado pelo inquérito fiscal e os terceiros interessados relativamente às informações em causa, desde que existam outros meios processuais que lhes permitam obter uma fiscalização do referido pedido a título subordinado

Por outro lado, um pedido de informação pode validamente estar relacionado com categorias de informação e não com informações específicas, se essas categorias forem delimitadas por critérios que estabeleçam a sua «relevância previsível»

Em resposta a dois pedidos de troca de informações da administração tributária espanhola no âmbito de um inquérito relativo a F. C., uma pessoa singular residente em Espanha, o diretor da Administração dos Impostos Diretos do Luxemburgo dirigiu decisões à sociedade B e ao banco A em que lhes ordenou a prestação de informações sobre contas bancárias e ativos financeiros de que F. C. fosse titular ou beneficiário e sobre diversas operações jurídicas, bancárias, financeiras ou económicas que possam ter sido realizadas por F. C. ou por terceiros agindo em seu nome ou no seu interesse.

Nos termos da legislação luxemburguesa relativa ao procedimento aplicável à troca de informações a pedido em matéria fiscal, essas decisões não podiam, à data dos factos, ser objeto de recurso. No entanto, as sociedades B, C e D, bem como F. C., interpuseram recursos para o tribunal administratif du Luxembourg (Tribunal Administrativo do Luxemburgo) pedindo, a título principal, a alteração dessas decisões e, a título subsidiário, a sua anulação. O tribunal administratif (Tribunal Administrativo) declarou‑se competente para conhecer destes recursos, tendo considerado que a legislação luxemburguesa não era conforme com o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), que consagra o direito à ação a favor de qualquer pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados, e que, por conseguinte, essa legislação não devia ser aplicada. Quanto ao mérito, o referido tribunal anulou parcialmente as decisões que ordenaram a prestação de informações, tendo considerado que algumas das informações solicitadas não se afiguravam previsivelmente relevantes.

O Estado luxemburguês recorreu destas sentenças para a Cour Administrative (Supremo Tribunal Administrativo, Luxemburgo), que decidiu questionar o Tribunal de Justiça, nomeadamente, sobre a interpretação do artigo 47.° da Carta. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, assim, se esse artigo se opõe a uma legislação nacional que priva uma pessoa que detenha informações (como a sociedade B), um contribuinte visado por um inquérito fiscal (como F. C.) e terceiros interessados relativamente a essas informações (como as sociedades C e D) da possibilidade de interpor recurso judicial contra a decisão que ordena a prestação dessas informações. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o alcance da possibilidade oferecida pela Diretiva 2011/16 (1) aos Estados‑Membros de trocarem informações, desde que essas informações sejam «previsivelmente relevantes» para a administração e aplicação da legislação fiscal nacional.

No seu Acórdão de 6 de outubro de 2020, nos processos C‑245/19 e C‑246/19, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declarou, em primeiro lugar, que o artigo 47.° da Carta, conjugado com os seus artigos 7.° e 8.° (que consagram, respetivamente, o direito ao respeito pela vida privada e o direito à proteção dos dados pessoais), e com o seu artigo 52.°, n.° 1 (que permite, em determinadas condições, uma restrição ao exercício de certos direitos fundamentais):

—      se opõe a que a legislação de um Estado‑Membro que concretiza o procedimento de troca de informações a pedido, instituído pela Diretiva 2011/16, impeça que a pessoa que detém informações possa interpor recurso contra a decisão através da qual a autoridade competente desse Estado‑Membro a obriga a prestar‑lhe as informações para poder dar cumprimento a um pedido de troca de informações emanado da autoridade competente de outro Estado‑Membro, mas

—      não se opõe a que tal legislação impeça que o contribuinte visado pelo inquérito na origem desse pedido de informações, bem como os terceiros interessados nas informações em causa, possam interpor recurso contra essa decisão.

Após ter declarado que a Carta era aplicável quando a legislação nacional em causa no processo principal constituía uma aplicação do direito da União, o Tribunal de Justiça salientou, em primeiro lugar, no que respeita ao direito à ação, que a proteção das pessoas singulares e coletivas contra intervenções arbitrárias ou desproporcionadas do poder público na sua esfera privada de atividade constitui um princípio geral do direito da União e pode ser invocada por uma pessoa coletiva destinatária de uma decisão que ordena a prestação de informações à Administração Fiscal, com vista a contestar essa decisão em juízo.

Dito isto, o Tribunal recordou que o exercício do direito à ação pode ser restringido pela legislação nacional, na falta de regulamentação da União na matéria, se estiverem preenchidos os requisitos previstos no artigo 52.°, n.° 1, da Carta. Esta disposição impõe, nomeadamente, o respeito pelo conteúdo essencial dos direitos e liberdades garantidos pela Carta.

A este propósito o Tribunal declarou que o conteúdo essencial do direito à ação consagrado no artigo 47.° da Carta inclui, entre outros elementos, o de o titular desse direito poder aceder a um tribunal competente que assegure o respeito pelos direito que o direito da União lhe garante e, para o efeito, examine todas as questões de facto e de direito pertinentes para o litígio que é chamado a decidir. Além disso, para aceder a tal tribunal, essa pessoa não pode ser forçada a violar uma norma ou uma obrigação legal e a expor‑se à sanção associada a essa infração. Ora, o Tribunal declarou que, nos termos da legislação nacional aplicável ao caso concreto, só se o destinatário da decisão que ordena sejam prestadas informações a não cumprir e lhe for posteriormente sido aplicada uma sanção com esse fundamento é que tem a possibilidade de contestar, a título subordinado, essa decisão, no âmbito do recurso que pode interpor contra essa sanção. Por conseguinte, tal legislação nacional não respeita o artigo 47.° nem o artigo 52.°, n.° 1, da Carta, em conjugação.

No que respeita, em segundo lugar, ao direito à ação do contribuinte visado pelo inquérito na origem da decisão que ordena a prestação de informações, o Tribunal declarou que esse contribuinte é, enquanto pessoa singular, titular do direito ao respeito pela vida privada, garantido pelo artigo 7.° da Carta, e do direito à proteção dos dados pessoais, garantido pelo artigo 8.° da mesma, e que a prestação de informações que lhe dizem respeito a uma autoridade pública é suscetível de violar esses direitos, situação que justifica que seja reconhecido ao interessado o direito à ação.

O Tribunal acrescentou, porém, que o requisito de que o conteúdo essencial desse direito deve ser respeitado não implica que o contribuinte disponha de um recurso judicial que tenha por objeto, a título principal, pôr em causa uma determinada medida, desde que existam, nos diversos órgãos jurisdicionais nacionais competentes, uma ou várias vias de recurso que lhe permitam obter, a título subordinado, a fiscalização judicial dessa medida sem que tenha de se expor ao risco de lhe ser aplicada uma sanção. Não havendo recurso judicial contra a decisão que ordena a prestação de informações, esse contribuinte deve, assim, ter o direito de recorrer da decisão de retificação ou de liquidação adicional adotada no final do inquérito e, nesse contexto, ter a possibilidade de contestar, a título subordinado, a primeira destas decisões, bem como os requisitos de obtenção e utilização das provas recolhidas graças à mesma. Em conformidade, o Tribunal considerou que uma legislação que impeça esse contribuinte de interpor um recurso judicial contra a decisão que ordena a prestação de informações não viola o conteúdo essencial do direito à ação.

Além disso, o Tribunal salientou que essa legislação corresponde a um objetivo de interesse geral reconhecido pela União, que consiste no combate à fraude e à evasão fiscais internacionais, reforçando a cooperação entre as autoridades nacionais competentes neste domínio, e que está em conformidade com o princípio da proporcionalidade.

No que respeita, em terceiro lugar, à situação dos terceiros interessados relativamente às informações em causa, o Tribunal considerou, do mesmo modo, que o exercício do direito à ação de que esses terceiros devem dispor, perante uma decisão que ordena a prestação de informações que possa violar o seu direito à proteção contra intervenções arbitrárias ou desproporcionadas do poder público na sua esfera privada de atividade, pode ser restringido pela legislação nacional que impede a interposição de recurso judicial contra tal decisão, desde que esses terceiros disponham, além disso, de um meio processual que lhes permita obter o respeito efetivo dos seus direitos fundamentais, como, por exemplo, uma ação de indemnização.

Em segundo lugar, o Tribunal decidiu que a decisão através da qual a autoridade competente de um Estado‑Membro obriga a pessoa que detém informações a prestar‑lhe essas informações para poder dar seguimento a um pedido de troca de informações, deve ser considerada relativa a informações «previsivelmente relevantes», na aceção da Diretiva 2011/16, se indicar a identidade da pessoa que detém as informações em causa, a do contribuinte visado pelo inquérito na origem do pedido de troca de informações e o período abrangido por este, e se se referir a contratos, faturação e pagamentos que, embora não estando identificados com precisão, são delimitados através de critérios pessoais, temporais e materiais que demonstram a sua ligação com o inquérito e com o contribuinte nele visado. Com efeito, esta combinação de critérios é suficiente para considerar que as informações solicitadas não se afiguram, de forma manifesta, desprovidas de relevância previsível, não sendo necessária uma delimitação mais precisa das mesmas.


1      Diretiva 2011/16/UE do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade e que revoga a Diretiva 77/799/CEE (JO 2011, L 64, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2014/107/UE do Conselho, de 9 de dezembro de 2014 (JO 2014, L 359, p. 1).