Language of document : ECLI:EU:T:2023:613

Processo C720/20

RO

contra

Bundesrepublik Deustschland,

(pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Verwaltungsgericht Cottbus)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 1 de agosto de 2022

«Reenvio prejudicial – Política comum em matéria de asilo – Critérios e mecanismos de determinação do Estado Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento (UE) n.° 604/2013 (Dublim III) – Pedido de proteção internacional apresentado por um menor no Estado Membro do seu nascimento – Pais desse menor que obtiveram anteriormente o estatuto de refugiados noutro Estado Membro – Artigo 3.°, n.° 2 – Artigo 9.° – Artigo 20.°, n.° 3 – Diretiva 2013/32/UE – Artigo 33.°, n.° 2, alínea a) – Admissibilidade do pedido de proteção internacional e responsabilidade pela sua análise»

1.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento n.° 604/2013 – Procedimentos de tomada a cargo e de retomada a cargo – Filho menor do requerente – Caráter indissociável da situação do menor da do membro da sua família – Aplicação por analogia ao pedido de proteção internacional apresentado, no seu EstadoMembro de nascimento, por um menor cujos pais beneficiam já de proteção internacional noutro EstadoMembro – Inadmissibilidade

(Regulamento n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.°, n.° 2, e 20.°, n.° 3)

(cf. n.os 32, 34, 39‑42, 44, 45, disp. 1)

2.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Procedimentos de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional – Diretiva 2013/32 – Procedimento de análise de um pedido de proteção internacional – Pedido que pode ser considerado inadmissível pelos EstadosMembros – Fundamento – Concessão prévia de proteção internacional por um outro EstadoMembro – Aplicação por analogia ao pedido apresentado por um menor que não é, ele próprio, beneficiário de proteção internacional noutro EstadoMembro mas sendoo os seus pais – Inadmissibilidade

[Diretiva 2013/32 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 33.°, n.° 2, alínea a)]

(cf. n.os 51‑55, disp. 2)


Resumo

A recorrente, uma nacional russa da Federação Russa, nasceu na Alemanha em 2015. Em março de 2012, os seus pais e os seus cinco irmãos e irmãs, igualmente de nacionalidade russa, obtiveram o estatuto de refugiado na Polónia. Em dezembro de 2012, deixaram a Polónia e foram para a Alemanha, onde apresentaram pedidos de proteção internacional. A República da Polónia recusou dar seguimento ao pedido das autoridades alemãs de retomar a cargo essas pessoas, com o fundamento de que já beneficiavam de proteção internacional no seu território. Em seguida, as autoridades alemãs indeferiram os pedidos de proteção internacional por serem inadmissíveis, em razão do estatuto de refugiado que essas pessoas já tinham obtido na Polónia. A família da recorrente continuou, porém, a residir no território alemão.

Em março de 2018, a recorrente apresentou um pedido de proteção internacional às autoridades alemãs. Esse pedido foi indeferido por ser inadmissível, com fundamento no Regulamento Dublim III (1).

O órgão jurisdicional de reenvio, chamado a conhecer de um recurso interposto desta última decisão de indeferimento, tem dúvidas quanto à questão se saber se a República Federal da Alemanha é o Estado‑Membro responsável pelo exame do pedido da recorrente e se, em caso afirmativo, esse Estado‑Membro pode indeferir esse pedido por ser inadmissível por força da Diretiva «Procedimentos» (2).

Mais especialmente, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a aplicação por analogia de certas disposições do Regulamento Dublim III e da Diretiva «Procedimentos» à situação da recorrente. A este respeito, procura saber, por um lado, se – a fim de prevenir os movimentos secundários – o artigo 20.o, n.º 3, do Regulamento Dublim III, relativo, designadamente, à situação de crianças nascidas depois da chegada de um requerente de proteção internacional (3), se aplica ao pedido de proteção internacional apresentado por um menor no seu Estado‑Membro de nascimento quando os seus pais beneficiam já de proteção internacional noutro Estado‑Membro. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se o artigo 33.o, n.º 2, alínea a), da Diretiva «Procedimentos» (4) se aplica a um menor cujos pais são beneficiários de proteção internacional noutro Estado‑Membro mas de que não beneficia ele próprio.

O Tribunal de Justiça, reunido em Grande Secção, responde negativamente a estas questões. Com o seu Acórdão, clarifica o âmbito do Regulamento Dublim III e da Diretiva «Procedimentos» no âmbito de movimentos secundários de famílias que beneficiam já de proteção internacional num Estado‑Membro para um outro Estado‑Membro, onde o novo filho nasceu.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça considera que o artigo 20.°, n.° 3, do Regulamento Dublim III não é aplicável por analogia à situação na qual um menor e os seus pais apresentam pedidos de proteção internacional no Estado‑Membro no qual essa criança nasceu, quando os pais beneficiam já de proteção internacional noutro Estado‑Membro. Com efeito, por um lado, esta disposição pressupõe que os membros da família do menor tenham ainda a qualidade de «requerente», pelo que esta disposição não rege a situação de um menor que tenha nascido depois de esses membros da sua família terem obtido a proteção internacional num Estado‑Membro diferente daquele onde o menor nasceu e reside com a sua família. Por outro lado, a situação de um menor cujos membros da família são requerentes de proteção internacional e a de um menor cujos membros da família já são beneficiários dessa proteção não são comparáveis no contexto do regime instituído pelo Regulamento Dublim III. Os conceitos de «requerente» (5) e de ««beneficiário de proteção internacional» (6) abrangem, com efeito, estatutos jurídicos distintos regulados por disposições diferentes deste regulamento. Por conseguinte, uma aplicação por analogia do artigo 20.°, n.° 3, à situação do menor cujos membros da família são já beneficiários de proteção internacional privaria tanto esse menor como o Estado‑Membro que tenha concedido proteção internacional aos membros da sua família da aplicação dos mecanismos previstos por este regulamento. Isso teria, designadamente, como consequência que esse menor poderia ser alvo de uma decisão de transferência sem que um procedimento de tomada a cargo fosse iniciado em relação a ele.

Por outro lado, o Regulamento Dublim III prevê regras específicas n caso de o procedimento iniciado em relação aos membros da família do requerente ter terminado e de estes terem sido autorizados a residir enquanto beneficiários de proteção internacional noutro Estado‑Membro. Mais especialmente, o seu o artigo 9.° dispõe que, nessa situação, este último Estado‑Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, desde que os interessados manifestem o seu desejo nesse sentido por escrito. É certo que esta condição exclui a aplicação do artigo 9.° na falta de manifestação desse desejo. Esta situação é designadamente suscetível de se verificar quando o pedido de proteção internacional do menor em questão é apresentado na sequência de um movimento secundário irregular da sua família de um primeiro Estado‑Membro para o Estado Membro onde esse pedido é apresentado. Todavia, esta circunstância em nada altera o facto de o legislador da União ter previsto, com este artigo, uma disposição que abrange precisamente a situação visada. Além disso, atendendo à redação clara do artigo 9.°, não se pode derrogar esta exigência de manifestação do desejo por escrito.

Nestas condições, numa situação em que os interessados não emitiram, por escrito, o desejo de que o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional de uma criança seja aquele em que os membros da sua família tenham sido autorizados a residir enquanto beneficiários de proteção internacional, a determinação do Estado‑Membro responsável será efetuada ao abrigo do artigo 3.°, n.° 2, do Regulamento Dublim III (7).

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça declara que o artigo 33.o, n.º 2, alínea a), da Diretiva «Procedimentos» não é aplicável por analogia ao pedido de proteção internacional apresentado por um menor num Estado‑Membro quando não é a própria criança, mas os seus pais, que beneficiam de proteção internacional noutro Estado‑Membro. A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que esta diretiva enumera de maneira exaustiva as situações em que os Estados‑Membros podem considerar não admissível um pedido de proteção internacional. Além disso, a disposição que prevê esses fundamentos de inadmissibilidade reveste caráter derrogatório da obrigação dos Estados‑Membros de apreciarem quanto ao mérito todos os pedidos de proteção internacional. Decorre do caráter exaustivo e derrogatório desta disposição que esta deve ser objeto de interpretação estrita e não pode, por conseguinte, ser aplicada a uma situação que não corresponda à sua redação. O seu âmbito de aplicação ratione personae não pode, por conseguinte, ser alargado a um requerente de proteção internacional que não beneficie ele próprio dessa proteção.


1      Regulamento (UE) n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»).


2      Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60) (a seguir «Diretiva “Procedimentos”»).


3      Por força desta disposição, no que respeita ao procedimento de tomada a cargo, a situação do menor que acompanhe o requerente de proteção internacional e corresponda à definição de membro da família é indissociável da situação do membro da sua família e é abrangida pela responsabilidade do Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional do referido membro da família, mesmo que o menor não seja, a título individual, um requerente, desde que seja no interesse superior do menor. O mesmo tratamento é aplicável aos filhos nascidos após a chegada dos requerentes ao território dos Estados-Membros, sem que seja necessário iniciar em relação a estes um novo procedimento de tomada a cargo.


4      Por força desta disposição, os Estados-Membros podem considerar não admissível um pedido de proteção internacional quando um outro Estado-Membro tiver concedido proteção internacional.


5      Na aceção do artigo 2.º, alínea a), do Regulamento FEG.


6      Na aceção do artigo 2.º, alínea a), do Regulamento FEG.


7      Em conformidade com esta disposição, quando nenhum Estado-Membro possa ser designado com base nos critérios enumerados no Regulamento Dublim III, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que esse pedido tenha sido apresentado.