Language of document : ECLI:EU:C:2012:309

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 24 de maio de 2012 (1)

Processo C‑154/11

Ahmed Mahamdia

contra

República Democrática e Popular da Argélia

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landesarbeitsgericht Berlim‑Brandenburg (Alemanha)]

«Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária — Imunidade de jurisdição dos Estados — Competência em matéria de contratos individuais de trabalho — Litígio relativo à validade do despedimento do demandante, que foi contratado como motorista num Estado‑Membro pela embaixada de um Estado terceiro — Conceito de agência, filial ou outro estabelecimento na aceção do Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Pacto atributivo de jurisdição inserido num contrato individual de trabalho no momento da sua celebração — Compatibilidade desse pacto com o Regulamento n.° 44/2001»





1.        O presente reenvio prejudicial suscita a questão da interpretação dos conceitos de «agência», de «filial», ou de «outro estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2) num contexto inédito: o de um litígio relativo à validade do despedimento de um trabalhador que foi contratado por um Estado terceiro como motorista numa das embaixadas do referido Estado situada no território de um Estado‑Membro.

I —    Quadro jurídico

A —    Regulamento n.° 44/2001

2.        O artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 estabelece que «[s]em prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado».

3.        O artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 dispõe que «[s]e o requerido não tiver domicílio no território de um Estado‑Membro, a competência será regulada em cada Estado‑Membro pela lei desse Estado‑Membro, sem prejuízo da aplicação do disposto nos artigos 22.° e 23.°».

4.        A secção 5 do capítulo II do Regulamento n.° 44/2001, que inclui os artigos 18.° a 21.°, estabelece as regras especiais relativas à competência em matéria de contratos individuais de trabalho.

5.        O artigo 18.° do Regulamento n.° 44/2001 prevê:

«1.      Em matéria de contrato individual de trabalho, a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.° e no ponto 5 do artigo 5.°.

2.      Se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado‑Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados‑Membros, considera‑se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado‑Membro.»

6.        O artigo 19.° do Regulamento n.° 44/2001 dispõe:

«Uma entidade patronal que tenha domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada:

1.      Perante os tribunais do Estado‑Membro em cujo território tiver domicílio; ou

2.      Noutro Estado‑Membro:

a)      Perante o tribunal do lugar onde o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho ou perante o tribunal do lugar onde efetuou mais recentemente o seu trabalho; ou

b)      Se o trabalhador não efetua ou não efetuou habitualmente o seu trabalho no mesmo país, perante o tribunal do lugar onde se situa ou se situava o estabelecimento que contratou o trabalhador.»

7.        O artigo 21.° do Regulamento n.° 44/2001 estabelece:

«As partes só podem convencionar derrogações ao disposto na presente secção, desde que tais convenções:

1.      Sejam posteriores ao surgimento do litígio; ou

2.      Permitam ao trabalhador recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção.»

B —    Direito alemão

8.        O artigo 38.° do Código de Processo Civil (Zivilprozessordnung) é relativo aos pactos atributivos de jurisdição e, no n.° 2, prevê que «[a] competência de um tribunal de primeira instância pode também ser estipulada quando pelo menos uma das partes do contrato não tem foro geral no território nacional. Este pacto deve ser celebrado por escrito ou, se for celebrado verbalmente, tem de ser confirmado por escrito».

II — Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9.        O demandante no processo principal, A. Mahamdia, tem dupla nacionalidade argelina e alemã. Reside em Berlim. Desde setembro de 2002 que trabalha na embaixada em Berlim da demandada no processo principal, a República Democrática e Popular da Argélia. No âmbito das suas atividades profissionais, devia transportar os visitantes e os colaboradores da embaixada. Não era o motorista oficial do embaixador da Argélia na Alemanha, mas transportou‑o ocasionalmente. Nunca foi diretamente responsável pelo correio diplomático, mas transportava o empregado encarregado de o recolher e distribuir. Quanto ao mais, as partes no processo principal estão em desacordo quanto à questão de saber se A. Mahamdia prestava ou não serviços como intérprete. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio parte do pressuposto de que aquele não desempenhou funções conexas com o exercício da soberania do Estado argelino.

10.      O contrato de trabalho entre o demandante no processo principal e a República Democrática e Popular da Argélia, sua entidade patronal, estava redigido em língua francesa e continha, desde a sua celebração, uma cláusula que atribuía competência exclusiva aos tribunais argelinos para dirimir quaisquer litígios no âmbito do mesmo contrato.

11.      A República Democrática e Popular da Argélia procedeu ao despedimento de A. Mahamdia em agosto de 2007, com efeitos a partir de 30 de setembro de 2007. Este intentou uma ação no Arbeitsgericht Berlin, pedindo a declaração de que a relação laboral não cessou com o despedimento, a condenação do empregador no pagamento dos créditos salariais devidos e a manutenção provisória da relação de trabalho. A República Democrática e Popular da Argélia contestou a competência internacional dos tribunais alemães tanto em razão do caráter extraterritorial das suas atividades como do pacto atributivo de jurisdição constante do contrato de trabalho. Em 2 de julho de 2008, o Arbeitsgericht Berlin julgou improcedente o pedido de A. Mahamdia, com fundamento na imunidade de jurisdição de que gozava a demandada. Foi interposto recurso para o Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg, que, num acórdão proferido em 14 de janeiro de 2009, alterou parcialmente a decisão de primeira instância e considerou que o despedimento não pôs termo à relação laboral. O referido órgão jurisdicional declarou, em primeiro lugar, que a demandada não podia invocar, no quadro do referido litígio, a imunidade jurisdicional dos Estados. Em seguida, considerou que, em qualquer caso, o pacto atributivo de jurisdição existente no contrato de trabalho não cumpria as condições estabelecidas pelo artigo 21.° do Regulamento n.° 44/2001. Finalmente, concluiu que a embaixada da demandada podia ser considerada como abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 18.° do referido regulamento enquanto estabelecimento.

12.      A República Democrática e Popular da Argélia interpôs um recurso de «Revision» da decisão de 14 de janeiro de 2009. Em 1 de julho de 2010, o Bundesarbeitsgericht anulou a referida decisão e devolveu o processo ao órgão jurisdicional de reenvio, que, consequentemente, é chamado a pronunciar‑se de novo no âmbito do presente litígio. Na sua decisão, o Bundesarbeitsgericht convidou o órgão jurisdicional de reenvio a analisar novamente a problemática relativa ao direito aplicável para efeitos da determinação da jurisdição competente, tendo em conta que, até ao presente, o Tribunal de Justiça nunca tomou posição sobre a questão de saber se a embaixada de um Estado terceiro num Estado‑Membro da União pode ser considerada uma «agência», uma «filial» ou «outro estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001.

13.      Na sua decisão de reenvio, o referido órgão jurisdicional observa que não pode ser reconhecida à República Democrática e Popular da Argélia imunidade de jurisdição designadamente por força da decisão do Bundesarbeitsgericht de 1 de julho de 2010, proferida no âmbito do processo principal, nos termos da qual os litígios em matéria de direito do trabalho entre um empregado de uma embaixada localizada no território alemão e o Estado terceiro recaem na competência dos tribunais alemães desde que o trabalhador, no âmbito do seu contrato de trabalho, não tenha desempenhado funções conexas com o exercício da soberania do referido Estado terceiro.

14.      Neste contexto, o Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg decidiu suspender a instância e, por decisão de reenvio registada na Secretaria do Tribunal em 29 de março de 2011, submeter a este último, nos termos do artigo 267.° TFUE, as duas questões prejudiciais seguintes:

«1)      A embaixada, situada num Estado‑Membro, de um Estado não abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001, é uma filial, uma agência ou outro estabelecimento, no sentido do artigo 18.°, n.° 2, desse regulamento?

2)      Caso o Tribunal de Justiça responda afirmativamente à primeira questão:

Pode um pacto atributivo de jurisdição anterior ao surgimento do litígio fundamentar a competência de um tribunal fora do âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001, quando esse pacto atributivo de jurisdição afasta a competência baseada nos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001?»

III — Tramitação processual no Tribunal de Justiça

15.      A demandada no processo principal, os Governos espanhol e suíço, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça.

IV — Análise jurídica

A —    Observações preliminares sobre a imunidade de jurisdição do Estado empregador

16.      Antes de responder às duas questões prejudiciais apresentadas, pretendo debruçar‑me um pouco sobre a imunidade de jurisdição invocada pela República Democrática e Popular da Argélia.

17.      A regra segundo a qual um Estado não pode ser demandado nos tribunais de outra entidade soberana é uma regra bastante conhecida do direito internacional público. Ora, segundo jurisprudência constante, «as competências [da União] devem ser exercidas com respeito do direito internacional» (3) e «quando adota um ato, [a União] deve respeitar o direito internacional no seu conjunto, incluindo o direito internacional consuetudinário» (4). As normas de direito derivado devem ser interpretadas, se for o caso, à luz das regras internacionais consuetudinárias. Portanto, considero que se coloca a questão de saber se, no quadro de um dado litígio, como o do processo principal, a problemática relativa à imunidade de jurisdição do Estado parte no referido litígio – problemática que será analisada à luz da prática internacional que apresentarei em seguida – tem a capacidade de influenciar a resolução dos problemas suscitados no âmbito do presente reenvio prejudicial relativos à interpretação do Regulamento n.° 44/2001.

18.      Por um lado, o órgão jurisdicional de reenvio indicou muito claramente que a República Democrática e Popular da Argélia, desde o início do litígio, arguiu a sua imunidade de jurisdição e parte claramente do princípio de que esta imunidade não colhe no caso em apreço. Baseia‑se numa jurisprudência nacional nos termos da qual, para apreciar se um Estado, no âmbito de um litígio relativo a um contrato de trabalho que tenha celebrado, pode invocar a sua imunidade de jurisdição, há que determinar se as funções desempenhadas pelo trabalhador no âmbito do referido contrato correspondem ou não ao exercício de poderes públicos. Considerando que o demandante no processo principal desempenhou apenas funções subordinadas, essencialmente técnicas, no âmbito do seu contrato de trabalho, o órgão jurisdicional de reenvio entendeu que ele não participava no exercício de poderes públicos argelinos. Consequentemente, em seu entender, o Estado argelino não podia invocar a sua imunidade de jurisdição.

19.      Por outro lado, há uma certa incerteza quanto ao estatuto da imunidade de jurisdição dos Estados, em direito internacional público.

20.      Com efeito, a imunidade de jurisdição é um conceito pouco inteligível, dificilmente previsível e muito dependente das sensibilidades nacionais. A apreciação feita pelo órgão jurisdicional de reenvio é uma nova pedra pretoriana no edifício da doutrina da imunidade, sendo o regime associado à imunidade de jurisdição eminentemente jurisprudencial. Com efeito, poucos Estados se dotaram de instrumentos escritos na matéria.

21.      Cumpre, no entanto, assinalar uma evolução quase geral no sentido da consagração de uma imunidade relativa de jurisdição assente na distinção fundamental entre os atos realizados iure imperii e os atos realizados iure gestionis, sendo estes últimos equiparáveis a atos realizados por particulares. Dito de outro modo, o simples facto de um Estado ser demandado numa ação deixou de bastar para que a imunidade de jurisdição lhe seja imediatamente atribuída (5). O Estado moderno tornou‑se um ator polimórfico da vida jurídica e pode atuar, estabelecer relações jurídicas sem no entanto exercer, nessas ocasiões, a sua soberania ou os seus poderes públicos: penso, designadamente, no Estado comerciante, mas também, como é evidente, no Estado empregador. Estas distintas facetas da atividade jurídica do Estado, dado que não são sistematicamente acompanhadas pelo exercício de prerrogativas de poder público, tendem a deixar de justificar um reconhecimento automático da imunidade de jurisdição. Por exemplo, o Bundesarbeitsgericht já entendeu que as atividades de um instalador de elevadores empregado na embaixada dos Estados Unidos da América na Alemanha não recaía no âmbito da soberania do Estado e que, consequentemente, não devia ser reconhecida imunidade de jurisdição ao Estado empregador (6). Decidiu do mesmo modo no que respeita às funções de um trabalhador de serviço doméstico empregado na mesma embaixada e responsável pela manutenção de várias instalações elétricas incluindo o sistema de alarme (7) ou às funções de um porteiro (8).

22.      Esta nova relatividade é explicada pelo poder exorbitante da imunidade de jurisdição que aniquila qualquer ação judicial e constitui a encarnação institucionalizada da denegação de justiça.

23.      Assim sendo, é igualmente imperioso reconhecer que não se encontra verdadeiramente uma teoria da imunidade relativa de jurisdição dos Estados. Voltando ao Estado empregador, as soluções nacionais são muito distintas e os órgãos jurisdicionais nacionais tanto fazem prevalecer a natureza das funções exercidas, como o objetivo das referidas funções ou a natureza do contrato. Por vezes, estes critérios devem ser preenchidos cumulativamente para que seja levantada a imunidade. Além disso, a questão da imunidade pode ser considerada de maneira distinta consoante se trate de uma contestação relativa ao recrutamento, ao despedimento ou ao próprio exercício das funções.

24.      Estas divergências nacionais são tão pronunciadas que qualquer codificação ao nível internacional, por um lado, é muito difícil de efetuar (9) e, por outro, pode mesmo fazer duvidar da verdadeira existência, para além de uma incontestável tendência, de uma regra de direito internacional consuetudinário na matéria.

25.      A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não proporciona uma resposta muito mais segura. Em primeiro lugar, considerou que «a atribuição da imunidade soberana a um Estado num processo civil prossegue o objetivo legítimo de respeitar o direito internacional a fim de favorecer a cortesia e as boas relações entre Estados graças ao respeito da soberania de outro Estado» (10) e que «não se pode por isso considerar, de modo geral, uma restrição desproporcionada ao direito de acesso a um tribunal tal como o consagra o artigo 6.°, n.° 1, [da Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1980] das medidas adotadas por uma Alta Parte Contratante que refletem princípios de direito internacional geralmente reconhecidos em matéria de imunidade dos Estados» (11).

26.      No entanto, quando do acórdão Cudak/Lituânia (12), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve em conta as inflexões da comunidade internacional a favor da doutrina da imunidade relativa em matéria de despedimento. Neste processo, uma nacional lituana tinha exercido funções de secretária na embaixada da Polónia em Vilnius e intentou uma ação de indemnização nos tribunais lituanos na sequência do seu despedimento. A República da Polónia invocou a sua imunidade de jurisdição, o que deu origem a uma declaração de incompetência por parte das autoridades lituanas. Embora continuando a reconhecer que a imunidade de jurisdição prossegue um objetivo legítimo na perspetiva da Convenção Para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou, neste caso, que a reação dos tribunais lituanos era desproporcionada depois de terem verificado que a recorrente não tinha desempenhado funções conexas com o exercício da soberania do Estado polaco (13) e concluiu que houve violação do artigo 6.°, n.° 1, da referida convenção (14). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reiterou a sua jurisprudência Cudak/Lituânia no acórdão Sabeh El Leil/França (15). Em ambos os casos, analisou o estado do direito e da jurisprudência dos Estados abrangidos pelos processos para determinar se eles já admitiam casos de imunidade relativa, antes de afirmar que o artigo 11.° da Convenção – não ratificada – de Nova Iorque, que, no n.° 1, consagra o princípio segundo o qual «um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição perante um tribunal de outro Estado competente na matéria, num processo relativo a um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular quanto a um trabalho realizado, ou que deva ser realizado, no todo ou em parte, no território deste outro Estado» (16) tem força vinculativa na medida em que, ainda segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, reflete o direito internacional consuetudinário. O caráter não vinculativo da própria convenção foi, em todos os casos, ultrapassado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao considerar que os Estados demandados, no momento da elaboração do referido artigo 11.°, não tinham formulado objeções específicas e também não se tinham oposto à Convenção de Nova Iorque (17). Este conjunto de afirmações não deixa no entanto de suscitar algumas interrogações (18). As divergências nacionais que evoquei anteriormente poderiam aliás pleitear no sentido de uma posição mais matizada.

27.      Assim, ainda que se mantenha a obrigação de tomar em consideração as regras de direito internacional consuetudinário, quando são pertinentes para efeitos da interpretação das normas de direito derivado da União, à luz de todos estes elementos, devemos limitar‑nos à posição inicial do órgão jurisdicional de reenvio segundo a qual a República Democrática e Popular da Argélia não pode, no processo principal, invocar a sua imunidade de jurisdição, tanto mais que este postulado tende a preservar a proteção jurisdicional efetiva do demandante no processo principal. Como tal, responderei às duas questões prejudiciais que foram apresentadas pelo Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg, tendo em conta o facto de as mesmas serem relativas a um litígio em cujo âmbito o Estado demandado não pode invocar a sua imunidade de jurisdição.

28.      Termino estas observações preliminares refutando o argumento do Governo espanhol segundo o qual não se pode ocultar o facto de que, ainda que a competência dos órgãos jurisdicionais alemães devesse finalmente ser consagrada no âmbito do processo principal, eventualmente aplicando o Regulamento n.° 44/2001, a República Democrática e Popular da Argélia podia invocar em seguida a sua imunidade de execução, cujo objeto é subtrair o Estado em causa a qualquer imposição administrativa ou jurisdicional que possa resultar da aplicação de uma decisão judicial. Pretendo, no entanto, salientar que esta consideração, inteiramente hipotética (19), não é suscetível de influenciar a análise relativa à aplicabilidade do Regulamento n.° 44/2001 porque vai além da questão colocada relativa à competência jurisdicional.

29.      Feitas essas especificações, passarei à análise das duas questões prejudiciais apresentadas.

B —    Quanto à primeira questão

30.      As normas de competência judiciária enunciadas pelo Regulamento n.° 44/2001 só são aplicáveis quando o demandado tiver domicílio no território de um Estado‑Membro. Se assim não for, a questão da competência judiciária continua, em princípio, a ser regulada pela lei dos Estados‑Membros (20).

31.      No entanto, no âmbito do Regulamento n.° 44/2001, o legislador pretendeu dedicar uma secção especial às regras de competência em matéria de contrato de trabalho. O artigo 18.°, n.° 2, do referido regulamento prevê expressamente a hipótese de um empregador que não tenha domicílio num Estado‑Membro e dispõe que «[s]e um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio no território de um Estado‑Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num dos Estados‑Membros, considera‑se para efeitos de litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado‑Membro». O litígio no processo principal coloca a questão de saber se a embaixada na qual trabalhou A. Mahamdia pode ser qualificada de «filial», «agência» ou «outro estabelecimento», para efeitos da aplicação das regras de competência especiais estabelecidas na secção 5 do Regulamento n.° 44/2001.

32.      O facto de, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, não poder ser reconhecida imunidade de jurisdição ao Estado argelino esclarece‑me quanto à apreciação feita pelo referido órgão jurisdicional. Com efeito, segundo o mesmo, no âmbito do contrato de trabalho celebrado com A. Mahamdia, o Estado argelino não exerceu prerrogativas de poder público e, por sua vez, A. Mahamdia, no âmbito das suas funções, não contribuiu para o exercício da soberania estadual do seu empregador. Esta premissa leva‑me a considerar que, apesar do facto de o trabalho ter sido desempenhado numa embaixada, a qual constitui inegavelmente uma emanação do Estado argelino, este mesmo Estado‑Membro, na medida em que não exerce funções de soberania, pode ser equiparado a qualquer empregador privado. Dito de outro modo, em minha opinião, o facto de o trabalhador ter estado afeto a uma embaixada de um Estado terceiro não basta, por si só, para obstar à aplicação dos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001. Falta pois determinar se, apesar disso, esta embaixada corresponde à definição dos conceitos de «filial», «agência» ou «outro estabelecimento», na aceção do referido regulamento.

33.      Embora refira diversas vezes estes três conceitos (21), é forçoso observar que o regulamento não apresenta qualquer definição expressa dos mesmos.

34.      Além disso, decorre de forma evidente da estrutura do Regulamento n.° 44/2001 que as regras de competência previstas nos artigos 18.° e seguintes do referido regulamento atuam como lex specialis e constituem exceções ao princípio segundo o qual as regras de competência previstas pelo regulamento só são aplicáveis quando o demandado tiver o domicílio no território de um Estado‑Membro. Têm manifestamente por efeito alargar o âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001. A especialidade das referidas regras milita, por isso, a favor da sua interpretação restritiva (22).

35.      No entanto, esta interpretação literal e sistémica deve necessariamente ser conjugada com a interpretação teleológica do artigo 18.° do Regulamento n.° 44/2001. Ora, em matéria de contratos individuais de trabalho, o objetivo prosseguido é «proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral» (23), aumentando o número de possibilidades em que o trabalhador poderá demandar o seu empregador em jurisdições que lhe são mais próximas, mais familiares. O Tribunal de Justiça recordou reiteradamente que, na matéria, a interpretação da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir «Convenção de Bruxelas») (24) deve «ter em conta a preocupação de assegurar uma proteção adequada ao trabalhador enquanto parte contratante mais fraca do ponto de vista social» (25). É igualmente à luz deste objetivo específico que os conceitos de «filial», «agência» ou «outro estabelecimento», tais como utilizados no artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, devem ser interpretados.

36.      Além disso, quando foi chamado a interpretar o artigo 5.°, n.° 5, da Convenção de Bruxelas, que, embora num contexto diferente, estabelecia igualmente uma norma derrogatória em matéria de competência ao fazer referência a um «litígio relativo à exploração de uma sucursal, de uma agência ou de qualquer outro estabelecimento», o Tribunal de Justiça considerou que «a preocupação de garantir a segurança jurídica bem como a igualdade dos direitos e obrigações das partes, no que respeita à faculdade de introduzir exceções à regra de competência geral […] impõe uma interpretação autónoma, e, portanto, comum ao conjunto dos Estados contratantes, dos conceitos referidos no artigo 5.°, n.° 5, da Convenção» (26). Mutatis mutandis, esta solução impõe‑se no que respeita à interpretação, que deve ser autónoma dos conceitos de «filial», «agência» ou «outro estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001.

37.      Estes conceitos são muito raramente definidos nos textos. Que eu tenha conhecimento, só a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados poderia, por pouco que fosse, esclarecer o seu sentido, tendo em conta que, no artigo 7.°, indica que «[u]m Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante quando tem no território do Estado do foro um escritório, uma agência ou outro estabelecimento pelos quais exerce, da mesma maneira que um particular, uma atividade industrial, comercial ou financeira, e o processo é relativo a esta atividade do escritório, da agência ou do estabelecimento» (27).

38.      Devemos, por isso, voltar‑nos para a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Antes de mais, há que especificar que o Tribunal de Justiça só interpretou os conceitos de «agência», de «filial» ou de «outro estabelecimento» no contexto da Convenção de Bruxelas, e nunca em relação a um litígio relativo a um contrato de trabalho.

39.      Foi com o acórdão De Bloos (28) que o Tribunal de Justiça procurou, pela primeira vez, definir os referidos conceitos. Nesta ocasião, afirmou que «[u]m dos aspetos essenciais característicos dos conceitos de sucursal e de agência é a sujeição à direção e ao controlo da empresa‑mãe» (29) e que o conceito de estabelecimento «no espírito da convenção, assenta nos mesmos aspetos essenciais que os da sucursal ou da agência» (30).

40.      Posteriormente, o Tribunal de Justiça contribuiu com mais precisões. No acórdão Somafer (31), afirmou que, «[t]endo em conta que os conceitos referidos abrem a possibilidade de introduzir uma exceção ao princípio geral da competência […], a sua interpretação deve permitir identificar sem dificuldade o elemento de conexão especial que justifica essa exceção» (32). Prosseguiu, indicando que «[e]sse elemento de conexão especial respeita, em primeiro lugar, aos indícios materiais que permitem facilmente reconhecer a existência da sucursal, da agência ou do estabelecimento e, em segundo lugar, à relação que há entre a entidade assim determinada e o objeto do litígio iniciado contra a administração principal» (33). Quanto ao primeiro ponto, o Tribunal de Justiça especificou que «[n]o que diz respeito ao primeiro aspeto, o conceito de sucursal, de agência ou de qualquer outro estabelecimento implica um centro de operações que se manifesta de forma duradoura para o exterior, como o prolongamento de uma administração principal, dotado de uma direção e materialmente equipado de maneira a poder celebrar negócios com terceiros, de tal modo que estes, sabendo que se estabelecerá um eventual vínculo jurídico com a administração principal cuja sede é no estrangeiro, ficam dispensados de se dirigir diretamente a esta e podem celebrar negócios com o centro de operações que constitui o seu prolongamento» (34). Quanto ao segundo ponto, declarou que «é, além disso, necessário que o objeto do litígio diga respeito à exploração da sucursal, da agência ou de qualquer outro estabelecimento» (35) e que «[e]ste conceito de exploração compreende, por um lado, os litígios respeitantes aos direitos e obrigações contratuais ou não contratuais relativos à gestão propriamente dita da agência, da sucursal ou do estabelecimento em si mesmos, tais como os relativos à locação do imóvel em que essas entidades se encontram instaladas ou à contratação local do pessoal que aí trabalha» (36).

41.      Finalmente, nos acórdãos Blanckaert & Willems (37) e SAR Schotte (38), o Tribunal de Justiça especificou que a sucursal, a agência ou o estabelecimento «deve aparecer perante terceiros como o prolongamento da sociedade‑mãe» (39) e que «a conexão estreita entre o litígio e o tribunal que é chamado a julgá‑lo aprecia‑se […] também em função da forma como essas duas empresas se comportam na vida social e se apresentam face a terceiros nas suas relações comerciais» (40).

42.      Resta ver se, e de que modo, a embaixada de um Estado terceiro é suscetível de corresponder a esta definição jurisprudencial dos conceitos de «agência», «filial» e «estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001.

43.      Em primeiro lugar, é facto assente que os referidos conceitos, em princípio, se reportam a entidades sem personalidade jurídica (41). A embaixada, enquanto órgão do Estado que representa, é efetivamente desprovida de personalidade jurídica. Refira‑se, designadamente, como prova que, no âmbito do processo principal, o trabalhador dirigiu a petição contra o Estado argelino, e não contra a própria embaixada.

44.      Em seguida, coloca‑se a questão de saber se estes conceitos estão exclusivamente associados a entidades que exercem uma atividade de tipo comercial, mostrando claramente a jurisprudência disponível uma tomada de posição nesse sentido. Assim sendo, não se pode ignorar que as decisões do Tribunal de Justiça invocadas anteriormente eram relativas à interpretação do artigo 5.°, n.° 5, da Convenção de Bruxelas, cujo objetivo era sensivelmente diferente do do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, dado que a primeira disposição não foi redigida especificamente para os litígios relativos a um contrato de trabalho. Esta diferença fundamental, em minha opinião, é favorável a uma interpretação atualizada e adaptada dos referidos conceitos.

45.      As funções de uma embaixada, enquanto missão diplomática, são fixadas pelo artigo 3.° da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961. Nos termos deste artigo, consistem em representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador, proteger os interesses do Estado acreditante no Estado acreditador, negociar com o Governo deste último, inteirar‑se das condições existentes e da evolução dos acontecimentos no Estado acreditador ou promover relações amistosas e desenvolver as relações económicas, culturais e científicas entre o Estado acreditante e o Estado acreditador. Em boa verdade, as funções de uma embaixada não podem ser qualificadas de «comerciais», mas também não se podem ignorar totalmente as suas eventuais implicações na matéria.

46.      Em quaisquer circunstâncias, deve exigir‑se dos conceitos de «agência», «filial» ou «estabelecimento» não que impliquem necessariamente uma conexão com uma atividade comercial mas, mais verosimilmente, que visem entidades que se comportem como um ator privado. O objetivo específico prosseguido pelo artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 pugna nesse sentido, tanto mais que a redação do referido artigo não contém explicitamente essa limitação. Para retomar o exemplo invocado pela Comissão nas suas observações escritas, se devêssemos restringir a interpretação destes conceitos apenas às atividades comerciais ou financeiras, os trabalhadores de uma organização não governamental cuja sede está situada num Estado terceiro, mas que estão afetos a uma secção da referida organização localizada num outro Estado‑Membro, não poderiam beneficiar da proteção acrescida que, em princípio, lhes é oferecida pelo Regulamento n.° 44/2001 nem invocar o artigo 18.°, n.° 2, do referido regulamento e, portanto, não poderiam beneficiar da aplicação da legislação da União em matéria de competência, dado o domicílio do seu empregador não ser no território de um Estado‑Membro.

47.      Transposto este primeiro obstáculo à aplicação dos conceitos de «agência», de «filial» ou de «estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, falta verificar se uma embaixada apresenta sinais materiais bastantes quanto ao reconhecimento da sua existência (primeiro critério estabelecido pelo acórdão Somafer, já referido) e analisar o nexo de conexão que pode ser estabelecido entre a embaixada e o objeto do processo principal na medida em que é dirigido contra o Estado argelino (segundo critério estabelecido pelo acórdão Somafer, já referido).

48.      Quanto ao primeiro critério, a embaixada pode ser equiparada a um centro de operações que se manifesta de forma duradoura para o exterior como o prolongamento de uma casa‑mãe. A embaixada contribui para a identificação e para a representação do Estado acreditante no Estado em cujo território está localizada. Constitui, de forma evidente, um seu prolongamento. Está, como é evidente, materialmente equipada. Além disso, é dirigida pelo embaixador, cuja função não pode ser reduzida à de um intermediário ordinário, desprovido de poderes de ação ou de decisão. Embora as atividades da embaixada sejam desenvolvidas em estreita cooperação com o Governo central, também é verdade que ela dispõe de uma margem de manobra muito mais ampla num certo número de domínios, por exemplo, quanto à gestão do seu pessoal técnico ou de serviço, designadamente contratual.

49.      Quanto ao segundo critério, é manifesto que o objeto do litígio no processo principal, que envolve o Estado argelino, tem uma conexão suficiente com a embaixada. A embaixada da República Democrática e Popular da Argélia em Berlim é o local onde foi recrutado A. Mahamdia (42) e o local onde ele exerceu as suas funções e foi objeto de avaliação e, eventualmente, do poder disciplinar do seu empregador. Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que os litígios relativos à exploração de uma agência, de uma filial ou de um estabelecimento incluem os litígios relativos à contratação local do pessoal que aí trabalha (43).

50.      Por último, contrariamente ao que pode ter sido defendido noutro local, não considero que o litígio no processo principal perca o seu caráter internacional devido ao facto de, neste contexto específico, o Estado argelino, uma vez que a sua embaixada está situada na Alemanha, ser considerado com domicílio no território do mesmo Estado que A. Mahamdia (44). Por um lado, é pela fixação fictícia do domicílio do demandado no território de um Estado‑Membro que o Regulamento n.° 44/2001 se torna aplicável. No entanto, esta ficção jurídica não poderia ter por efeito ocultar totalmente o caráter originariamente internacional do litígio. Por outro lado, e consequentemente, considerar que, após aplicação da ficção jurídica, o litígio deve continuar a opor duas partes no processo principal, com domicílio em dois Estados‑Membros distintos, equivaleria a exigir uma condição suplementar para a aplicação das regras de competência especiais e a reduzir, em minha opinião de forma significativa, o seu âmbito (45), ou mesmo a revelar‑se contrário ao objetivo de proteção prosseguido pelo legislador da União no momento da redação dos artigos 18.° e segs. do Regulamento n.° 44/2001. Além disso, não parece que o Tribunal de Justiça se tenha já pronunciado neste sentido (46).

51.      Por todas estas razões, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à primeira questão prejudicial apresentada que o artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a embaixada de um Estado terceiro deve ser equiparada a uma «agência», a uma «filial» ou a «outro estabelecimento» no âmbito de um litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado pela referida embaixada na sua qualidade de representante do Estado acreditante quando o trabalhador foi recrutado e exerceu as suas funções no território do Estado‑Membro, desde que as referidas funções não tenham conexão com o exercício dos poderes públicos do Estado acreditante.

C —    Quanto à segunda questão

52.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 21.° do Regulamento n.° 44/2001 se opõe a uma cláusula, incluída num contrato de trabalho no momento da sua celebração, que atribui competência aos órgãos jurisdicionais de um Estado terceiro para se pronunciar sobre quaisquer litígios relativos ao referido contrato quando tanto o trabalhador como o empregador têm domicílio, ou se presume que têm domicílio, num mesmo Estado‑Membro e o local de trabalho é igualmente neste Estado‑Membro. É evidente que esta questão só se coloca na hipótese de o Tribunal de Justiça considerar que o litígio no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 44/2001 e que, como sugeri, a embaixada pode ser equiparada a uma «agência», a uma «filial» ou a «outro estabelecimento», na aceção do artigo 18.°, n.° 2, do referido regulamento.

53.      De forma liminar, importa recordar a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos termos da qual «a designação de um órgão jurisdicional de um Estado contratante como competente, em virtude de o demandado ter domicílio no território desse Estado, mesmo a propósito de um litígio que se relaciona, pelo menos em parte, devido ao seu objeto ou ao domicílio do demandante, com um Estado terceiro não é suscetível de obrigar este último Estado» (47). No âmbito do processo principal, a eventual designação dos tribunais alemães como jurisdições competentes para se pronunciarem sobre o referido litígio não teria por resultado, por si só, obrigar o Estado não Membro. Com efeito, recorde‑se que, no âmbito do presente reenvio prejudicial, estamos não perante o Estado enquanto pessoa coletiva de direito público dotada de soberania mas perante o Estado empregador que atua no âmbito do exercício de uma função não soberana. A designação das jurisdições competentes para dirimirem o litígio no processo principal em aplicação das regras do Regulamento n.° 44/2001 obrigava eventualmente este último enquanto empregador mas não enquanto entidade exercendo uma função de soberania.

54.      Retomando a segunda questão, as condições nas quais se podem derrogar validamente as normas fixadas pelos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001 são especificadas pelo artigo 21.° do referido regulamento. Este artigo, que faz igualmente parte da secção especial que o legislador decidiu consagrar aos contratos individuais de trabalho, indica que as únicas derrogações permitidas devem assumir a forma convencional. Além disso, a referida convenção deve ter sido celebrada posteriormente ao surgimento do litígio (artigo 21.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001) ou deve permitir ao trabalhador recorrer a tribunais que não sejam os indicados nos termos dos artigos 18.° e 19.° (artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001).

55.      É facto assente que a cláusula que atribui competência aos tribunais argelinos foi inserida, ab initio, no contrato que vincula o demandante no processo principal ao seu empregador. Portanto, não cumpre o requisito imposto pelo artigo 21.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001.

56.      A letra deste artigo e, designadamente, a utilização da conjunção «ou», impõe que se reconheça que um pacto atributivo de jurisdição, mesmo celebrado posteriormente ao surgimento do litígio, pode ainda mostrar‑se conforme com o referido artigo se permitir ao trabalhador recorrer a tribunais que não sejam os competentes nos termos dos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001.

57.      Supondo que duas contraentes com domicílio ou consideradas com domicílio num mesmo Estado‑Membro possam convencionar a competência dos tribunais de um Estado terceiro para dirimir litígios relativos ao contrato de trabalho que celebraram (48), apesar de o local de trabalho estar igualmente situado no referido Estado‑Membro, a especificidade deste tipo de contratos, bem como o nível de proteção específico que deve ser assegurado ao trabalhador, não devem ser esquecidos. Também a apreciação da compatibilidade dessa cláusula deve ser efetuada à luz do objetivo específico prosseguido pelos artigos 18.° e segs. do Regulamento n.° 44/2001. Portanto, parece‑me evidente que a referida cláusula deve, para este efeito, colocar o trabalhador perante uma escolha: a do tribunal ao qual deve submeter o seu processo.

58.      Como sugeriram, em minha opinião justamente, o Governo suíço e a Comissão, o artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que um pacto atributivo de jurisdição anterior ao surgimento do litígio é compatível com o referido artigo se permitir que o trabalhador recorra a outros tribunais, para além dos normalmente competentes nos termos das regras especiais dos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001. Ora, a cláusula em questão no âmbito do litígio no processo principal, apenas permite o recurso aos tribunais argelinos e, portanto, não coloca A. Mahamdia, que é a parte mais fraca à qual deve ser garantida uma proteção especial, numa posição em que possa escolher o foro ao qual deve submeter o seu litígio.

59.      Esta interpretação é coerente com a análise feita no âmbito do relatório Jenard (49) de normas da Convenção de Bruxelas com conteúdo similar ao do artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001, apesar de não terem diretamente por objeto os trabalhadores. O referido relatório especificava, a propósito do artigo 12.°, n.° 2 (50), da referida convenção, que o enquadramento dos pactos atributivos de jurisdição tinha por objetivo «proibir as partes de restringir a escolha feita» (51) por esta convenção. Acrescentava que, para que essas convenções celebradas antes do surgimento do litígio sejam lícitas, deviam ser «favoráveis» (52) à parte considerada mais fraca. Além disso, o Tribunal de Justiça sempre considerou, designadamente a propósito dos trabalhadores, que «a regulamentação das competências judiciárias […] deve ter em conta a preocupação de assegurar uma proteção adequada à parte contratante mais fraca do ponto de vista social» (53).

60.      Nestas condições, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à segunda questão prejudicial apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio que, com o objetivo de assegurar a compatibilidade com o artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 de um pacto atributivo de jurisdição, no âmbito de um contrato de trabalho, anterior ao surgimento do litígio, o órgão jurisdicional de reenvio deve garantir que o referido pacto permite que o trabalhador recorra a outros tribunais, para além dos tribunais normalmente competentes nos termos das regras especiais dos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001, e portanto, possa optar.

V —    Conclusão

61.      Face ao exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às duas questões prejudiciais submetidas pelo Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg:

«1)      O artigo 18.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial deve ser interpretado no sentido de que a embaixada de um Estado terceiro deve ser equiparada a uma ‘agência’, a uma ‘filial’ ou a ‘outro estabelecimento’ no âmbito de um litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado pela referida embaixada na sua qualidade de representante do Estado acreditante quando o trabalhador foi recrutado e exerceu as suas funções no território do Estado‑Membro, desde que as referidas funções não tenham conexão com o exercício dos poderes públicos do Estado acreditante.

2)      Com o objetivo de assegurar a compatibilidade com o artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento n.° 44/2001 de um pacto atributivo de jurisdição, no âmbito de um contrato de trabalho, anterior ao surgimento do litígio, o órgão jurisdicional de reenvio deve garantir que o referido pacto permite que o trabalhador recorra a outros tribunais, para além dos tribunais normalmente competentes nos termos das regras especiais dos artigos 18.° e 19.° do Regulamento n.° 44/2001, e portanto, possa optar.»


1–      Língua original: francês.


2 – JO 2001, L 12, p. 1.


3 – Acórdão de 24 de novembro de 1992, Poulsen e Diva Navigation (C‑286/90, Colet., p. I‑6019).


4 – Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o. (C‑366/10, Colet., p. I‑13755, n.° 101 e jurisprudência aí referida).


5 – Doutrina da imunidade absoluta.


6 – Bundesarbeitsgericht, acórdão de 20 de outubro de 1997, 2 AZR 631/96, BAGE 87, 144‑153.


7 – Bundesarbeitsgericht, acórdão de 15 de fevereiro de 2005, 9 AZR 116/04, BAGE 113, 327‑342.


8 – Bundesarbeitsgericht, acórdão de 30 de outubro de 2007, 3 AZB 17/07.


9 – A Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados foi elaborada no Conselho da Europa e aberta à assinatura dos Estados, em Basileia (Suíça), em 16 de maio de 1972. O artigo 5.° da referida convenção regula as hipóteses em que um Estado pode invocar a sua imunidade de jurisdição no âmbito de um processo relativo a um contrato de trabalho. Atualmente, apenas foi ratificada por oito Estados. Além disso, em dezembro de 2004, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (a seguir «Convenção de Nova Iorque»), que foi aberta à assinatura dos Estados desde 17 de janeiro de 2005. O seu artigo 11.° é consagrado aos contratos de trabalho. A Convenção sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens tem atualmente 28 Estados signatários, dos quais 13 são Estados partes, mas não está em vigor.


10 – Acórdão do TEDH Fogarty/Reino Unido, de 21 de novembro de 2001, Coletânea dos acórdãos e decisões 2001‑XI (§ 34). V. igualmente acórdãos do TEDH Al‑Adsani/Reino Unido, de 21 de novembro de 2001, Coletânea dos acórdãos e decisões 2001‑XI (§ 54); Cudak/Lituânia de 23 de março de 2010, Coletânea dos acórdãos e decisões 2010 (§ 60); Sabeh El Leil/França de 29 de junho de 2011, petição n.° 34869/05 (§ 52).


11 – Acórdãos do TEDH já referidos Fogarty/Reino Unido (§ 36); Cudak/Lituânia (§ 57), e Sabeh El Leil/França (§ 49).


12 – Já referido na nota 10.


13 – Acórdão do TEDH Cudak/Lituânia, já referido (§70).


14 – Acórdão do TEDH Cudak/Lituânia, já referido (§75).


15 – Já referido na nota 10.


16 – O artigo 11.°, n.° 2, da Convenção de Nova Iorque (referida na nota 6 das presentes conclusões) completa o princípio referido no n.° 1 com um certo número de exceções, designadamente na hipótese de o trabalhador ter sido contratado para desempenhar funções específicas que decorrem do exercício de poderes soberanos [artigo 11.°, n.° 2, alínea a), da referida convenção] ou ser um agente diplomático, um funcionário consular ou gozar ele próprio de imunidade diplomática [artigo 11.°, n.° 2, alínea b), i), ii) e iv) da referida convenção].


17 – Acórdãos do TEDH já referidos Cudak/Lituânia (§ 66), e Sabeh El Leil/França (§ 57).


18 – Sobre a afirmação segundo a qual uma disposição de um tratado não ratificado tem força vinculativa, remeto para a opinião concordante do juiz Cabral Barreto neste processo.


19 – Com efeito, a questão da imunidade de execução só se colocaria na dupla hipótese de os tribunais alemães julgarem procedente, quanto ao mérito, a petição do demandante e de o Estado argelino recusar executar a decisão judicial adotada em consequência disso.


20 – V. artigo 4.° do Regulamento n.° 44/2001.


21 – V. artigos 5.°, n.° 5, 9.°, n.° 2, 15.°, n.° 2, e, evidentemente, 18.°, do Regulamento n.° 44/2001.


22 – O Tribunal de Justiça já decidiu que «as normas sobre competências especiais [previstas pelo Regulamento n.° 44/2001] são de interpretação estrita, não permitindo uma interpretação que vá além das hipóteses expressamente previstas no regulamento» (acórdão de 22 de maio de 2008, Glaxosmithkline e Laboratoires Glaxosmithkline, C‑462/06, Colet., p. I‑3965, n.° 28 e jurisprudência aí referida).


23 – V. décimo terceiro considerando do Regulamento n.° 44/2001.


24 – JO 1998, C 27, p. 1 (versão consolidada).


25 – V. acórdãos de 26 de maio de 1982, Ivenel (133/81, Recueil, p. 1891, n.° 14); de 13 de julho de 1993, Mulox IBC (C‑125/92, Colet., p. I‑4075, n.° 18); de 9 de janeiro de 1997, Rutten (C‑383/95, Colet., p. I‑57, n.° 17), e de 10 de abril de 2003, Pugliese (C‑437/00, Colet., p. I‑3573, n.° 18).


26 – Acórdão de 22 de novembro de 1978, Somafer (33/78, Colet., p. 733, n.° 8).


27 – Convenção de Basileia, referida na nota 9.


28 – Acórdão de 6 de outubro de 1976 (14/76, Colet., p. 605).


29Ibidem, n.° 20.


30Ibidem, n.° 21.


31 – Já referido na nota 26.


32 – Acórdão Somafer, já referido (n.° 11).


33Ibidem.


34Ibidem (n.° 12).


35Ibidem (n.° 13).


36Idem.


37–      Acórdão de 18 de março de 1981 (139/80, Recueil, p. 819).


38 – Acórdão de 9 de dezembro de 1987 (218/86, Colet., p. 4905).


39 – Acórdão Blanckaert & Willems, já referido (n.° 12).


40 – Acórdão SAR Schotte, já referido (n.° 16).


41 – V. Parecer 1/03, de 7 de fevereiro de 2006 (Colet., p. I‑1145, n.° 150).


42 – Recorde‑se que este trabalhador não faz parte do pessoal da embaixada proveniente da Argélia, tem dupla nacionalidade argelino‑alemã e foi recrutado em Berlim, onde reside.


43 – Acórdão Somafer, já referido (n.° 13).


44 – V., a propósito do artigo 13.° da Convenção de Bruxelas, que estabelecia as condições em que um profissional, em matéria de contrato celebrado por um consumidor, podia ser considerado como tendo domicílio num Estado‑Membro quando tinha domicílio num Estado terceiro, os n.os 58 e segs. das conclusões do advogado‑geral Darmon no processo que deu lugar ao acórdão de 19 de janeiro de 1993, Shearson Lehman Hutton (C‑89/91, Colet., p. I‑139) e os n.os 24 e segs. das conclusões do advogado‑geral Darmon no processo que deu lugar ao acórdão de 15 de setembro de 1994, Brenner e Noller (C‑318/93, Colet., p. I‑4275).


45 – Com efeito, isso abrangeria a situação específica de um contrato de trabalho celebrado entre um trabalhador que tem domicílio num Estado‑Membro e um empregador que tem domicílio num Estado terceiro, desde que a atividade do trabalhador tenha uma conexão com uma agência, filial ou outro estabelecimento do seu empregador, exceto se esta agência, esta filial ou outro estabelecimento tiver a sua sede num Estado‑Membro distinto do do domicílio do trabalhador.


46 – Apesar de o advogado‑geral Darmon ter tomado posição sobre este aspeto, o Tribunal de Justiça, no dispositivo, não especificou que, para efeitos da aplicação da ficção jurídica prevista no artigo 13.° da Convenção de Bruxelas, o demandado devia ter o seu domicílio num Estado‑Membro distinto do do demandante (v. n.° 18 e dispositivo do acórdão Brenner e Noller, já referido).


47 – Acórdão de 1 de março de 2005, Owusu (C‑281/02, Colet., p. I‑1383, n.° 31).


48 – Contrariamente à Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta à assinatura em Roma em 19 de junho de 1980 (JO L 266, p. 1) e ao Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO L 177, p. 6), o Regulamento n.° 44/2001 não contém qualquer disposição a respeito do seu caráter universal, que admita expressamente que a aplicação das regras que ele inclui possa conduzir à designação de jurisdições de Estados terceiros como competentes.


49 – Relatório de Jenard, P., sobre a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1979, C 59, p. 1).


50 – Nos termos do qual «[a]s partes só podem convencionar derrogações ao disposto na presente secção, desde que tais convenções […] [p]ermitam ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário recorrer a tribunais que não sejam os indicados na presente secção».


51 – Relatório Jenard, já referido (p. 33).


52 – Relatório Jenard, já referido (p. 33).


53 – Acórdãos, já referidos, Ivenel (n.° 16); Rutten (n.° 22); Mulox IBC (n.° 18), e Pugliese (n.° 18).