Language of document : ECLI:EU:T:2017:748

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção)

23 de outubro de 2017 (*)

«Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Abuso de posição dominante — Sistema de reparação seletiva — Recusa dos produtores de relógios suíços de fornecer peças sobressalentes aos relojoeiros‑reparadores independentes — Mercado primário e mercado pós‑venda — Eliminação de toda a concorrência efetiva — Decisão de arquivamento de uma denúncia»

No processo T‑712/14,

Confédération européenne des associations d’horlogersréparateurs (CEAHR), com sede em Bruxelas (Bélgica), representada inicialmente por P. Mathijsen e P. Dyrberg, em seguida, por M. Sánchez Rydelski e, por último, por P. Benczek, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada inicialmente por F. Ronkes Agerbeek, M. Farley e C. Urraca Caviedes e, em seguida, por A. Dawes, Ronkes Agerbeek e J. Norris‑Usher, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

LVMH Moët HennessyLouis Vuitton SA, com sede em Paris (França), representada por C. Froitzheim, advogado, e R. Subiotto, QC, 

por

Rolex, SA, com sede em Genebra (Suíça), representada por M. Araujo Boyd, advogado,

e por

The Swatch Group SA, com sede em Neuchâtel (Suíça), representada inicialmente por A. Israel e M. Jakobs e, em seguida, por A. Israel e J. Lang, advogados,

intervenientes,

que tem por objeto, com base no artigo 263.o TFUE, um pedido de anulação da Decisão C(2014) 5462 final da Comissão, de 29 de julho de 2014, que arquivou a denúncia apresentada pela recorrente a respeito de alegadas infrações aos artigos 101.o e 102.o TFUE (Processo AT.39097 — Reparação de relógios),

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção),

composto por: M. Prek, presidente, E. Buttigieg e B. Berke (relator), juízes,

secretário: C. Heeren, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 10 de fevereiro de 2017,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio e decisão recorrida

 Procedimento administrativo

1        A recorrente, a Confédération européenne des associations d’horlogers‑réparateurs (CEAHR), é uma associação sem fins lucrativos constituída por nove associações nacionais de oito Estados‑Membros que representam os interesses dos relojoeiros‑reparadores independentes.

2        Em 20 de julho de 2004, a recorrente apresentou uma denúncia à Comissão das Comunidades Europeias contra a The Swatch Group SA, a Richemont International SA, a LVMHMoët Hennessy‑Louis Vuitton SA, a Rolex, SA, a Manufacture des montres Rolex SA, a Société anonyme da Manufacture d’horlogerie Audemars Piguet & Cie e a Patek Philippe SA Manufacture d’Horlogerie (a seguir «fabricantes de relógios suíços»), que identificava a existência de um acordo ou de uma prática concertada entre estas e assinalava um abuso de posição dominante resultante da recusa de esses fabricantes continuarem a abastecer peças sobressalentes aos reparadores de relógios independentes.

3        Em 10 de julho de 2008, a Comissão adotou a Decisão C(2008) 3600 (Processo COMP/E‑1/39.097 — Reparação de relógios), que arquivou a denúncia da CEAHR, invocando a inexistência de suficiente interesse da União Europeia em prosseguir o inquérito sobre as alegadas infrações.

4        Em 15 de dezembro de 2010, o Tribunal Geral anulou essa decisão da Comissão que arquivou a denúncia. Considerou que a Comissão tinha violado o seu dever de tomar em consideração todos os elementos de direito e de facto relevantes e de analisar atentamente todos esses elementos levados ao seu conhecimento pela recorrente, tinha fundamentado insuficientemente a sua afirmação de que a denúncia dizia respeito, quando muito, a um segmento de mercado de dimensão limitada, e portanto com uma importância económica igualmente limitada, e tinha cometido um erro manifesto de apreciação ao concluir que o mercado dos serviços de reparação e de manutenção de relógios não constituía um mercado relevante distinto, devendo sim ser analisado conjuntamente com o dos relógios de luxo ou de prestígio. Consequentemente, considerou que as ilegalidades cometidas pela Comissão podiam afetar a sua apreciação relativa à existência de suficiente interesse da União na prossecução da análise da denúncia (acórdão de 15 de dezembro de 2010, CEAHR/Comissão, T‑427/08, EU:T:2010:517, n.os 33 a 43, 76 a 119 e 157 a 178).

5        No seguimento desse acórdão, a Comissão abriu, em 1 de agosto de 2011, um procedimento contra os fabricantes de relógios suíços, com base no artigo 7.o do Regulamento (CE) n.o 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.o e 102.o TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18). Em 29 de julho de 2013, a Comissão comunicou à recorrente a sua posição provisória sobre a denúncia, numa reunião sobre o estado do processo. Após o seu exame, decidiu não prosseguir as investigações.

6        Por ofício de 3 de setembro de 2013, informou formalmente a recorrente da sua intenção de arquivar a denúncia.

7        Por carta de 27 de setembro de 2013, a recorrente enviou à Comissão as suas observações sobre o arquivamento da denúncia. Insistia em que a recusa dos fabricantes de relógios suíços de fornecer peças sobressalentes constituía uma violação dos artigos 101.o e 102.o TFUE.

8        Tendo recebido as observações da Richemont, da Rolex e da The Swatch Group, respetivamente, em 16 de setembro e 18 e 19 de novembro de 2013, e depois de transmitir à recorrente essas observações e os documentos não confidenciais em que baseou a sua apreciação, a Comissão informou a recorrente, em 16 de janeiro e 5 de março de 2014, em reuniões sobre o estado do processo, que essas observações não continham elementos novos significativos, suscetíveis de fazer evoluir a sua posição inicial.

9        Em 29 de julho de 2014, a Comissão adotou a Decisão C(2014) 5462 final, no Processo AT.39097 — Reparação de relógios (a seguir «decisão recorrida»), que arquivou a denúncia da recorrente devido ao caráter desproporcionado dos recursos que um inquérito mais pormenorizado exigiria face à pequena probabilidade de demonstrar a existência de uma infração aos artigos 101.o e 102.o TFUE.

 Decisão recorrida

10      A Comissão limitou o seu inquérito aos relógios cuja reparação ou manutenção valia a pena efetuar por razões económicas e técnicas, isto é, os relógios vendidos a um preço superior a 1 000 euros (a seguir «relógios de prestígio»).

11      A título preliminar, a Comissão lembrou o caráter competitivo do mercado do fabrico de relógios de prestígio.

12      O funcionamento dos serviços de reparação e de manutenção está descrito nos considerandos 65 a 73 da decisão recorrida. A esse respeito, a Comissão indica que a maior parte dos fabricantes de relógios suíços instituíram sistemas de reparação seletiva que permitiam a reparadores independentes passarem a ser reparadores reconhecidos, desde que respeitassem critérios relativos à formação, experiência e equipamento e ao caráter apropriado das suas instalações. Esses sistemas foram progressivamente instituídos por certos fabricantes, em períodos diferentes, ao passo que outros fabricantes continuavam a fornecer peças sobressalentes a reparadores independentes. Além disso, certos fabricantes de relógios suíços que tinham instituído esses sistemas continuavam a utilizar os serviços de reparadores independentes para os relógios antigos. Os reparadores reconhecidos tinham acesso às peças sobressalentes, aos instrumentos específicos da marca e às informações técnicas necessárias. Não podiam revender as peças sobressalentes a reparadores não reconhecidos e também eram frequentemente distribuidores desses relógios e encarregados do serviço pós‑venda. Os fabricantes de relógios suíços criaram igualmente redes de reparação internas. O investimento necessário para ser um reparador reconhecido dependia da marca e dos serviços de reparação prestados, que podem ser básicos ou completos, isto é, que implicam uma desmontagem do motor que faz girar os ponteiros e aciona as funções suplementares, a saber, o movimento. Para certos fabricantes de relógios suíços, a proporção das reparações efetuadas pelos reparadores reconhecidos é muito significativa. Por outro lado, é frequente os relógios de prestígio terem movimentos mecânicos mais complexos que exigem conhecimentos mais sofisticados do que os movimentos a quartzo.

 Definição do mercado

13      Nos considerandos 85 a 91 da decisão recorrida, a Comissão analisou o mercado da venda de relógios de prestígio (o mercado primário), o mercado da prestação de serviços de manutenção e de reparação desses relógios e o mercado do fornecimento de peças sobressalentes (os mercados secundários) cuja extensão geográfica abrange o Espaço Económico Europeu (EEE). Considerou que o mercado primário e os mercados secundários eram mercados distintos e separados.

14      Quanto aos serviços de reparação e de manutenção, a Comissão considerou que havia fraca substituibilidade entre os serviços de reparação de uma marca por outra, a ponto de se poder considerar que existiam mercados distintos por marca.

15      Quanto ao fornecimento de peças sobressalentes, considerou que havia muito fraca substituibilidade, uma vez que, regra geral, as peças não podiam ser trocadas de uma marca para outra e que, quando isso acontecia, o consumidor preferia recorrer a peças originais, para não desvalorizar o relógio. Como na reparação e na manutenção, existiam, pois, vários mercados distintos, cada um associado a uma marca.

 Apreciação à luz do artigo 102.o TFUE

16      A Comissão considerou que não se podia excluir a possibilidade de os fabricantes de relógios suíços estarem em situação de posição dominante nos mercados da reparação e do fornecimento de peças sobressalentes, na medida em que a entrada nesses mercados exigia um grande investimento devido às suas características.

17      Contudo, uma vez que os fabricantes de relógios suíços instituíram um sistema de reparação seletiva que permitia a reparadores independentes passarem a ser reparadores reconhecidos, desde que cumprissem critérios objetivos, a Comissão decidiu que, contrariamente aos precedentes invocados pela recorrente, não era possível considerar que tinham reservado para si próprios os mercados secundários e que impediam a entrada dos independentes nesses mercados. Além disso, precisou que esse sistema não eliminava a concorrência efetiva, pois esta subsistia entre os reparadores reconhecidos, ainda mais porque estes podiam reparar relógios de diferentes marcas.

18      Assim, na falta de circunstâncias específicas e dada a instituição de um sistema de reparação seletiva baseado em critérios qualitativos, a recusa de continuar a fornecer peças sobressalentes não era suficiente, no entender da Comissão, para demonstrar a existência de um abuso. De resto, poderia explicar‑se com base em justificações objetivas e na procura de ganhos de produtividade, em particular na preservação da imagem de marca e da qualidade dos produtos, na prevenção da contrafação e no aumento da complexidade técnica dos relógios mecânicos que obriga a uma reparação de qualidade. À luz dessas considerações, a Comissão decidiu que a probabilidade de demonstrar a existência de um abuso de posição dominante nesse processo era limitada.

 Apreciação à luz do artigo 101.o TFUE

19      Quanto à existência de um acordo ou de práticas concertadas destinados a restringir a concorrência, a Comissão considerou, na sequência do seu inquérito, que os sistemas de reparação seletiva não tinham sido instituídos no mesmo período por todos os fabricantes de relógios suíços. Alguns deles continuavam, aliás, a fornecer peças sobressalentes a reparadores independentes. Entendeu que, portanto, não era possível concluir pela existência de um acordo ou de práticas concertadas. Além disso, considerou que, de resto, a existência de mercados distintos de peças sobressalentes para cada marca tornava desnecessária a instituição de uma prática concertada destinada a interromper o seu fornecimento a reparadores independentes.

20      Quanto à conformidade dos sistemas de reparação seletiva com o Regulamento (UE) n.o 330/2010 da Comissão, de 20 de abril de 2010, relativo à aplicação do artigo 101.o, n.o 3, [TFUE] a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas (JO 2010, L 102, p. 1), a Comissão indicou que o seu inquérito não tinha permitido apurar que os reparadores reconhecidos não tivessem a liberdade de determinar os preços das reparações, uma vez que os contratos apenas previam preços indicativos ou um preço máximo. Precisou ainda que a análise desses contratos também não tinha permitido identificar qualquer restrição caracterizada na aceção desse regulamento. De qualquer forma, visto os fabricantes terem em geral uma quota de mercado superior a 30% nos mercados secundários da sua marca, a Comissão entendeu que esse regulamento não era aplicável.

21      Seguidamente a Comissão verificou se os sistemas de reparação seletiva cumpriam os critérios da jurisprudência, para não lhes ser aplicável o artigo 101.o, n.o 1, TFUE. Em primeiro lugar, considerou que a natureza do produto exigia um sistema de reparação seletiva para preservar a qualidade dos relógios, garantir a sua utilização ótima, evitar a contrafação e preservar a imagem de marca e a aura de exclusividade e de prestígio associada a esses produtos de luxo do ponto de vista dos seus consumidores. Em segundo lugar, entendeu que o seu inquérito não tinha revelado que a seleção dos reparadores reconhecidos não era efetuada com base em critérios objetivos aplicados de modo uniforme e não discriminatório. Em terceiro lugar, considerou que os critérios relativos à formação e à experiência dos reparadores, aos instrumentos, aos equipamentos e às existências de peças sobressalentes à sua disposição, que servem para avaliar a sua capacidade para efetuar reparações num prazo razoável, apesar de variarem entre os fabricantes, eram efetivamente critérios qualitativos e não iam além do necessário para garantir o objetivo do sistema. Por outro lado, o seu inquérito revelou que os reparadores reconhecidos não estavam contratualmente obrigados a não reparar relógios das outras marcas e que os grandes investimentos a efetuar não podiam ser considerados barreiras artificiais à entrada no mercado nem eram desproporcionados, uma vez que se justificavam pelo objetivo de qualidade e que não era raro os reparadores trabalharem para várias marcas.

22      Consequentemente, decidiu no sentido de que era pouco provável que esses sistemas se integrassem no âmbito de aplicação do artigo 101.o TFUE.

23      Quanto à proibição de os reparadores reconhecidos fornecerem peças sobressalentes aos reparadores independentes, lembrou que era um elemento inerente aos sistemas seletivos, igualmente fora do âmbito de aplicação do artigo 101.o TFUE e que não era considerado pelo Regulamento n.o 330/2010 como uma restrição caracterizada, ao contrário do que estava previsto para o setor dos veículos a motor. É, pois, irrelevante a analogia que a recorrente faz com esse setor. Assim, para a Comissão, essa proibição de revenda também não era suscetível de constituir uma violação do artigo 101.o TFUE.

24      Consequentemente, a Comissão decidiu que, mesmo atribuindo recursos adicionais à instrução da denúncia, a possibilidade de apurar uma infração às normas da concorrência era pequena, pelo que essa atribuição seria desproporcionada.

 Tramitação do processo e pedidos das partes

25      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 7 de outubro de 2014, a recorrente interpôs o presente recurso.

26      Por requerimentos apresentados na Secretaria do Tribunal Geral, respetivamente, em 23 e 30 de janeiro de 2015 e em 23 de fevereiro de 2015, as intervenientes, The Swatch Group, LVMH Moët Hennessy‑Louis Vuitton e Rolex, pediram para intervir na presente lide em apoio da Comissão. Por despacho de 21 de abril de 2015, o presidente da Nona Secção do Tribunal Geral admitiu essas intervenções.

27      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 31 de março de 2015, a Cousins Material House Ltd pediu para intervir na presente lide em apoio do pedido da recorrente. Por despacho de 11 de novembro de 2015, o presidente da Nona Secção do Tribunal Geral indeferiu o pedido de intervenção da Cousins Material House.

28      As intervenientes apresentaram as suas alegações no prazo fixado.

29      Por decisão do presidente do Tribunal Geral, o presente processo foi distribuído a um novo juiz‑relator, pertencente à Segunda Secção.

30      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão recorrida;

–        condenar a Comissão nas despesas.

31      A Comissão, apoiada pelas intervenientes, conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

32      A recorrente invoca, em substância, seis fundamentos de recurso. O primeiro fundamento é relativo a erro na caracterização do poder de mercado dos fabricantes de relógios suíços. O segundo fundamento é relativo a erro na apreciação da existência de um abuso resultante da recusa dos fabricantes de relógios suíços de fornecer peças sobressalentes aos reparadores independentes. O terceiro fundamento é relativo a erro na apreciação do caráter objetivamente justificado do sistema de reparação seletiva e da recusa de fornecer peças sobressalentes. O quarto fundamento é relativo a erro na apreciação da existência de um acordo ou de práticas concertadas. O quinto fundamento é relativo a uma violação do dever de fundamentação. O sexto fundamento é relativo a uma violação do princípio da boa administração.

33      Segundo jurisprudência constante, o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento n.o 773/2004 não confere ao denunciante o direito de exigir da Comissão uma decisão definitiva quanto à existência ou à inexistência da alegada infração, nem obriga a Comissão a prosseguir de qualquer forma o procedimento até à fase de decisão final (v., neste sentido, acórdãos de 19 de setembro de 2013, EFIM/Comissão, C‑56/12 P, não publicado, EU:C:2013:575, n.o 57; de 18 de setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, EU:T:1992:97, n.o 75; e de 30 de maio de 2013, Omnis Group/Comissão, T‑74/11, não publicado, EU:T:2013:283, n.o 42).

34      Com efeito, a Comissão, a quem o artigo 105.o, n.o 1, TFUE atribui a missão de velar pela aplicação dos princípios fixados pelos artigos 101.o e 102.o TFUE, deve definir e pôr em prática a orientação da política de concorrência da União. Para desempenhar eficazmente essa missão, pode conferir diferentes graus de prioridade às denúncias que lhe são apresentadas e, para o efeito, dispõe de um amplo poder de apreciação (v., neste sentido, acórdãos de 4 de março de 1999, Ufex e o./Comissão, C‑119/97 P, EU:C:1999:116, n.os 88 e 89; de 17 de maio de 2001, IECC/Comissão, C‑449/98 P, EU:C:2001:275, n.o 36; e de 30 de maio de 2013, Omnis Group/Comissão, T‑74/11, não publicado, EU:T:2013:283, n.o 43).

35      Quando, no exercício desse amplo poder de apreciação, decide atribuir graus de prioridade diferentes às denúncias que lhe são apresentadas, a Comissão pode não só decidir a ordem por que serão analisadas as denúncias mas também arquivar uma denúncia por inexistência de suficiente interesse da União na prossecução da análise do processo (v., neste sentido, acórdão de 15 de dezembro de 2010, CEAHR/Comissão, T‑427/08, EU:T:2010:51, n.o 27 e jurisprudência aí referida).

36      Para apreciar o interesse da União em prosseguir o exame de um processo, a Comissão deve ter em conta as circunstâncias do caso, nomeadamente os elementos de facto e de direito que lhe são apresentados na denúncia que lhe foi submetida. Cabe‑lhe, nomeadamente, depois de avaliar com toda a atenção necessária os elementos de facto e de direito apresentados pelo denunciante, ponderar a importância da alegada infração para o funcionamento do mercado interno, a probabilidade de poder demonstrar a sua existência e a extensão das medidas de investigação necessárias, para desempenhar, nas melhores condições, a sua missão de vigilância do respeito dos artigos 101.o e 102.o TFUE (acórdãos de 18 de setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, EU:T:1992:97, n.o 86, e de 15 de dezembro de 2010, CEAHR/Comissão, T‑427/08, EU:T:2010:51, n.o 158).

37      A este respeito, a fiscalização, pelo juiz da União, do exercício, pela Comissão, do amplo poder de apreciação que lhe é reconhecido no tratamento das denúncias não o deve levar a substituir a apreciação do interesse da União da Comissão pela sua (v., neste sentido, acórdãos de 15 de dezembro de 2010, CEAHR/Comissão, T‑427/08, EU:T:2010:51, n.o 65, e de 11 de julho de 2013, BVGD/Comissão, T‑104/07 e T‑339/08, não publicado, EU:T:2013:366, n.o 219).

38      Por outro lado, dado que a apreciação do interesse que uma denúncia tem para a União é função das circunstâncias de cada caso, não há que limitar o número de critérios de apreciação em que a Comissão se pode basear nem, pelo contrário, impor‑lhe a utilização exclusiva de determinados critérios. Assim, a Comissão pode dar prioridade a um único critério para avaliar o interesse da União (acórdãos de 17 de maio de 2001, IECC/Comissão, C‑450/98 P, EU:C:2001:276, n.o 58, e de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 25).

39      Além disso, é inerente ao processo das denúncias que cabe ao denunciante o ónus da prova da alegada infração. Do mesmo modo, em sede de recurso de anulação de uma decisão da Comissão que arquiva uma denúncia, cabe ao recorrente apresentar aos tribunais da União argumentos e provas para demonstrar a ilegalidade dessa decisão (acórdão de 19 de setembro de 2013, EFIM/Comissão, C‑56/12 P, não publicado, EU:C:2013:575, n.os 72 e 73).

40      Resulta dessa jurisprudência que não cabe ao Tribunal Geral criticar os elementos da decisão que não sejam utilmente impugnados pela recorrente nem acolher argumentos que esta invoque sem fazer a respetiva prova.

41      O amplo poder de apreciação de que dispõe a Comissão não é, porém, ilimitado. Com efeito, é obrigada a analisar atentamente todos os elementos de facto e de direito levados ao seu conhecimento pelos denunciantes (acórdãos de 4 de março de 1999, Ufex e o./Comissão, C‑119/97 P, EU:C:1999:116, n.o 86, e de 30 de maio de 2013, Omnis Group/Comissão, T‑74/11, não publicado, EU:T:2013:283, n.o 46). Além disso, a limitação da fiscalização do juiz da União não implica que este deva evitar conhecer da exatidão material das provas invocadas, da sua fiabilidade e da sua coerência, e fiscalizar se esses elementos constituem todos os dados relevantes a ter em consideração e se são suscetíveis de sustentar as conclusões a que aí se chega (acórdãos de 17 de setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, EU:T:2007:289, n.o 89, e de 11 de julho de 2013, BVGD/Comissão, T‑104/07 e T‑339/08, não publicado, EU:T:2013:366, n.o 220).

42      É à luz destas considerações que devem ser apreciados os fundamentos invocados.

43      Há que analisar, em primeiro lugar, o terceiro fundamento, relativo a erro manifesto na apreciação do caráter objetivamente justificado dos sistemas de reparação seletiva e da recusa de fornecer peças sobressalentes; em segundo lugar, o segundo fundamento, relativo a erro manifesto na apreciação da existência de um abuso resultante da recusa dos fabricantes de relógios suíços de fornecer peças sobressalentes aos reparadores independentes; em terceiro lugar, o primeiro fundamento, relativo a erro manifesto na caracterização do poder de mercado dos fabricantes de relógios suíços; em quarto lugar, o quarto fundamento, relativo a erro manifesto na apreciação da existência de um acordo ou de práticas concertadas; em quinto lugar, o quinto fundamento, relativo a uma violação do dever de fundamentação; e, em sexto lugar, o sexto fundamento, relativo a uma violação do princípio da boa administração.

 Quanto ao terceiro fundamento, relativo a erro manifesto de apreciação do caráter objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado dos sistemas de reparação seletiva e da recusa de fornecer peças sobressalentes

44      O terceiro fundamento apresentado pela recorrente subdivide‑se em duas partes. Na primeira parte, a recorrente acusa a Comissão de ter cometido um erro de interpretação da jurisprudência ao considerar que um sistema de distribuição seletiva, e, por analogia, um sistema de reparação seletiva, estava excluído da aplicação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, desde que fosse objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado, quando é ainda necessário que esse sistema não tenha por efeito eliminar toda a concorrência. Com a segunda parte, afirma que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao entender que os sistemas de reparação seletiva em causa eram objetivamente justificados, não discriminatórios e proporcionados.

45      A Comissão conclui pela improcedência deste fundamento.

 Quanto à primeira parte do terceiro fundamento, relativa às condições de conformidade de um sistema seletivo com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE

46      A recorrente contesta a interpretação da Comissão no sentido de que os sistemas de reparação em causa respeitam a jurisprudência relativa ao artigo 101.o TFUE, por serem objetivamente justificados, não discriminatórios e proporcionados. Pelo contrário, esses sistemas só respeitariam esse artigo se, para além dessas condições, não tivessem por efeito eliminar toda a concorrência, isto é, se as restrições que introduzissem fossem contrabalançadas por outros fatores de concorrência entre produtos de uma mesma marca ou pela existência de uma concorrência efetiva entre marcas diferentes, o que não é o caso. Acrescenta que a questão da conformidade dos sistemas de distribuição seletiva não é relevante para apreciar a questão dos sistemas de reparação seletiva, na medida em que o mercado dos produtos primários é distinto do mercado dos serviços de reparação e de manutenção.

47      A Comissão contesta esta argumentação.

48      No considerando 154 da decisão recorrida, a Comissão precisou que um sistema de distribuição seletiva qualitativa, geralmente, não é considerado abrangido pelo artigo 101.o, n.o 1, TFUE, pois não produz efeitos nocivos para a concorrência, desde que seja objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado. Por conseguinte, aplicou essas condições aos sistemas de reparação seletiva em causa.

49      A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que a existência de canais de distribuição diferenciados, adaptados às características específicas dos diferentes produtores e às necessidades das diferentes categorias de consumidores, era nomeadamente justificada no setor dos bens de consumo duradouros, de alta qualidade e tecnicidade, no qual um número relativamente restrito de produtores, grandes e médios, oferece uma gama variada de aparelhos facilmente substituíveis entre si, e que esses produtos podiam, na realidade, necessitar de um serviço de venda e de pós‑venda especialmente adaptado às suas características e ligado à sua distribuição (acórdão de 22 de outubro de 1986, Metro/Comissão, 75/84, EU:C:1986:399, n.o 54).

50      Ora, resulta da referência a um serviço de pós‑venda especialmente adaptado que as condições que permitem determinar a conformidade de um sistema de distribuição seletiva com o artigo 101.o TFUE podem ser igualmente utilizadas para avaliar se um sistema de reparação seletiva, que faz parte do serviço pós‑venda, produz efeitos nocivos para a concorrência. Os critérios relativos aos sistemas de distribuição seletiva podem, portanto, ser aplicados, por analogia, para avaliar os sistemas de reparação seletiva em causa.

51      Quanto ao argumento da recorrente de que o reconhecimento de que um sistema seletivo é objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado depende igualmente da existência de uma concorrência entre produtos e serviços de marcas diferentes suscetível de compensar as restrições da concorrência entre produtos da mesma marca resultante do sistema seletivo, procede de uma interpretação errada da jurisprudência.

52      Com efeito, a propósito dos acordos que constituem um sistema de distribuição seletiva, o Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que esses acordos influenciavam necessariamente a concorrência no mercado interno (acórdãos de 25 de outubro de 1983, AEG‑Telefunken/Comissão, 107/82, EU:C:1983:293, n.o 33, e de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.o 39). Contudo, reconheceu que havia exigências legítimas, tais como a manutenção do comércio especializado capaz de fornecer prestações específicas para produtos de alta qualidade e tecnicidade, que justificavam uma redução da concorrência nos preços em favor de uma concorrência assente noutros elementos que não os preços. Por terem em vista um resultado legítimo, suscetível de melhorar a concorrência onde esta não é feita só com base nos preços, os sistemas de distribuição seletiva constituem, desse modo, um elemento de concorrência conforme com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE (acórdãos de 25 de outubro de 1983, AEG‑Telefunken/Comissão, 107/82, EU:C:1983:293, n.o 33, e de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.o 40).

53      Além disso, a organização dessa rede de distribuição não está abrangida pela proibição do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, na medida em que a opção dos revendedores seja feita em função de critérios objetivos de caráter qualitativo, fixados de modo uniforme para todos os potenciais revendedores e aplicados de forma não discriminatória, as propriedades do produto em causa necessitem dessa rede para preservar a respetiva qualidade e garantir o seu bom uso e, por último, os critérios definidos não vão além do necessário (acórdãos de 25 de outubro de 1977, Metro SB‑Großmärkte/Comissão, 26/76, EU:C:1977:167, n.o 20; de 11 de dezembro de 1980, L’Oréal, 31/80, EU:C:1980:289, n.os 15 e 16; e de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.o 41).

54      Em contrapartida, não resulta da jurisprudência que seja necessário verificar se essas redes de distribuição não têm por efeito eliminar toda a concorrência. Com efeito, uma vez que as condições acima lembradas estejam preenchidas, isso basta para considerar que um sistema seletivo é um elemento de concorrência conforme com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE.

55      A Comissão não cometeu, pois, nenhum erro ao considerar que um sistema de distribuição seletiva, e, por analogia, um sistema de reparação seletiva, estava em conformidade com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE, desde que fosse objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado.

 Quanto à segunda parte do terceiro fundamento, relativa a erro manifesto na apreciação do caráter objetivamente justificado, não discriminatório e proporcionado dos sistemas de reparação seletiva

56      A recorrente considera que os sistemas de reparação seletiva em causa são objetivamente injustificados, discriminatórios e desproporcionados.

57      A Comissão contesta esta argumentação.

–       Quanto à primeira alegação, relativa ao caráter objetivamente justificado dos sistemas de reparação seletiva

58      A recorrente critica as razões por que a Comissão considerou que os sistemas de reparação seletiva em causa eram objetivamente justificados. Em particular, afirma que os relógios não têm uma complexidade particular que possa justificar a instituição desses sistemas, que a preservação da imagem de prestígio não pode constituir um objetivo legítimo para restringir a concorrência e que esses sistemas não podem permitir melhorar a proteção contra a contrafação. Entende que o facto de a decisão recorrida não ter tratado a denúncia de maneira adequada resulta igualmente da resposta dada aos seus argumentos sobre a analogia com o setor dos veículos a motor, no qual os fabricantes não podem entravar o acesso dos reparadores independentes às peças sobressalentes.

59      A Comissão conclui pela improcedência desta alegação.

60      A esse respeito, a Comissão entendeu, no considerando 133 da decisão recorrida, que era provável que esses sistemas fossem justificados pelos objetivos alegados pelos fabricantes de relógios suíços, a saber, a necessidade de ter em conta o desenvolvimento da complexidade dos modelos de relógios de prestígio, a preservação da imagem de marca, a manutenção de serviços de reparação de qualidade elevada e uniforme e a prevenção da contrafação.

61      Em primeiro lugar, embora a recorrente alegue que os mecanismos dos relógios não são complexos, não apresenta elementos concretos em suporte dessa alegação, capazes de pôr em causa a consideração efetuada pela Comissão a esse respeito. Quanto à crítica à Comissão por não ter recorrido a um perito para verificar essa complexidade, basta lembrar que se a Comissão não tem a obrigação de se pronunciar sobre a existência ou não de uma infração, não pode ser obrigada a levar a cabo uma instrução, uma vez que esta não pode ter outro objetivo que não seja tentar encontrar as provas da existência ou inexistência de uma infração que ela não é obrigada a declarar (acórdãos de 18 de setembro de 1992, Automec/Comissão, T‑24/90, EU:T:1992:97, n.o 76, e de 16 de outubro de 2013, Vivendi/Comissão, T‑432/10, não publicado, EU:T:2013:538, n.o 68). Assim, não merece reparo por não ter recorrido a um perito.

62      Em segundo lugar, no que respeita à contestação da existência de um risco credível de contrafação e da necessidade de um sistema de reparação seletiva para melhorar a prevenção desse risco, as afirmações não sustentadas da recorrente também não são suscetíveis de pôr em causa essa consideração da Comissão. O mesmo se diga das afirmações da recorrente sobre a dedicação dos reparadores independentes e a sua oposição às práticas de contrafação.

63      Com efeito, resulta dos autos que os fabricantes de relógios suíços confirmam a existência de um risco de contrafação dos relógios de prestígio e das respetivas peças sobressalentes e que a prevenção da contrafação é um dos objetivos prosseguidos pela instituição dos sistemas de reparação seletiva. Ora, a recorrente não apresenta nenhum elemento suscetível de demonstrar que não existe risco de contrafação e que o controlo do fornecimento das peças sobressalentes não é um meio suscetível de limitar a contrafação dessas peças.

64      Consequentemente, as alegações não sustentadas da recorrente não demonstram que a Comissão tivesse desrespeitado os limites do seu poder de apreciação ao considerar que a instituição de sistemas de reparação seletiva e a recusa de fornecimento de peças sobressalentes podiam ser justificadas pelo objetivo de luta contra a contrafação.

65      Em terceiro lugar, quanto à justificação dos sistemas de reparação seletiva pelo objetivo de preservação da imagem de marca dos relógios de prestígio, há que salientar, como faz a recorrente, que o Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que o objetivo de preservar a imagem de prestígio não pode constituir um objetivo legítimo para restringir a concorrência nem pode, portanto, justificar que uma cláusula contratual que prossegue esse objetivo não esteja abrangida pelo artigo 101.o, n.o 1, TFUE (acórdão de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.o 46).

66      Resulta, porém, desse acórdão que, embora a preservação da imagem de marca não possa justificar uma restrição de concorrência através da instituição de um sistema de reparação seletiva, o objetivo de preservar a qualidade dos produtos e o seu bom uso pode, só por si, justificar essa restrição. Com efeito, o Tribunal de Justiça já reconheceu que a manutenção de um comércio especializado capaz de fornecer prestações específicas para produtos de alta qualidade e tecnicidade era uma exigência legítima e que, quando prosseguia esse objetivo, a organização de uma rede de distribuição seletiva não estava abrangida pela proibição do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, na medida em que a opção dos revendedores seja feita em função de critérios objetivos de caráter qualitativo, fixados de modo uniforme para todos os potenciais revendedores e aplicados de forma não, as propriedades do produto em causa necessitem dessa rede de distribuição para preservar a respetiva qualidade e garantir o seu bom uso e, por último, os critérios definidos não vão além do necessário (v., neste sentido, acórdão de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.os 40 e 41).

67      Visto a preservação da imagem de marca não ser o único objetivo que a Comissão considera suscetível de justificar a instituição de sistemas de reparação seletiva e o objetivo de preservação da qualidade e do bom uso dos relógios poder bastar para justificar essa instituição, a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao decidir que era provável que as recusas de fornecimento em causa fossem justificadas na medida em que a opção dos reparadores fosse feita em função de critérios objetivos de caráter qualitativo aplicados de forma não discriminatória e não fossem além do necessário.

68      Em quarto lugar, quanto à crítica da recorrente relativa ao facto de a Comissão não ter considerado que a comparação com as regras aplicáveis ao setor dos veículos a motor implicava que se considerasse que os sistemas de reparação seletiva instituídos pelos fabricantes de relógios suíços não eram objetivamente justificados, não se pode criticar a Comissão por não ter aplicado essas regras ao setor dos relógios de prestígio. Com efeito, as regras aplicáveis ao setor dos veículos a motor não se aplicam aos relógios. Além disso, conforme resulta do considerando 175 da decisão recorrida, a Comissão apresentou vários elementos que permitem distinguir o setor dos relógios de prestígio do setor dos veículos a motor.

69      Em particular, indicou que o setor dos veículos estava sujeito a legislação setorial específica, que as peças sobressalentes nesse setor podiam ser vendidas diretamente aos consumidores finais, que os serviços pós‑venda dos relógios de prestígio constituíam um mercado menos rentável, não sendo representativos de uma grande proporção das despesas totais dos consumidores e que era menos importante criar, no setor da relojoaria, centros de reparação próximos dos consumidores do que no setor automóvel, pois os relógios de prestígio podiam ser mais facilmente enviados para reparação. Consequentemente, não se pode acusar a Comissão de ter cometido um erro manifesto de apreciação ao considerar que o setor dos relógios de prestígio podia ser sujeito a um tratamento diferente do previsto na legislação aplicável ao setor dos veículos a motor.

70      A Comissão não cometeu, pois, nenhum erro manifesto ao considerar que era provável que os sistemas de reparação seletiva em causa fossem justificados pela necessidade de ter em conta o desenvolvimento da complexidade dos modelos de relógios de prestígio, a manutenção de serviços de reparação de qualidade elevada e uniforme e a prevenção da contrafação.

–       Quanto à segunda alegação, relativa à inexistência de caráter discriminatório dos sistemas de reparação seletiva

71      No que respeita ao caráter discriminatório dos sistemas de reparação seletiva, a recorrente alega que o acesso a esses sistemas necessitaria de um grande investimento, que as exigências de qualificação e de equipamento seriam enormes à luz do facto de as reparações mais complexas só serem efetuadas de forma excecional e que os reparadores seriam obrigados a respeitar as condições de investimento específicas de cada marca.

72      A Comissão conclui pela improcedência desta alegação.

73      A esse respeito, basta observar que, como todos estes elementos são critérios objetivos que têm uma relação com o objetivo prosseguido pelos sistemas de reparação seletiva, a Comissão não excedeu o seu poder de apreciação ao decidir que não eram suscetíveis de pôr em causa o seu caráter não discriminatório. De resto, a recorrente não contesta o caráter objetivo dos critérios de seleção dos sistemas de reparação.

74      Consequentemente, os elementos apresentados pela recorrente não são suscetíveis de demonstrar que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao considerar que os sistemas de reparação seletiva não eram discriminatórios.

–       Quanto à terceira alegação, relativa ao caráter proporcionado dos sistemas de reparação seletiva

75      Quanto ao caráter proporcionado dos sistemas de reparação seletiva, a recorrente baseia‑se na inexistência de complexidade dos relógios antigos ou simples, para demonstrar o caráter desproporcionado dos sistemas de reparação em causa.

76      A Comissão conclui pela improcedência desta alegação.

77      A recorrente não explica de que modo sujeitar a reparação dos relógios antigos ou mais simples às mesmas exigências dos relógios mais recentes iria além do necessário para atingir os objetivos prosseguidos. Além disso, resulta dos autos que os sistemas de reparação seletiva comportam graus de exigência e de investimento, que variam em função dos modelos de relógios e dos tipos de reparação, pelo que as diferenças entre os modelos e os níveis de serviços propostos são tidas em conta.

78      De qualquer forma, no procedimento administrativo, a recorrente reconheceu que as associações nacionais de reparadores independentes exigiam que os seus membros efetuassem investimentos na formação, nos instrumentos e nas existências de peças de substituição semelhantes aos que eram exigidos pelos fabricantes de relógios suíços, o que confirma o caráter proporcionado dos investimentos a realizar para fazer parte dos sistemas de reparação seletiva.

79      Além disso, a Comissão teve razão ao considerar que os investimentos em causa eram comuns a várias marcas, o que aumentava a sua rentabilidade. Acresce que a afirmação da recorrente, no procedimento administrativo, de que o número de reparadores reconhecidos seria necessariamente elevado e cada vez maior confirma que esses sistemas não exigem um investimento excessivo, porque são acessíveis.

80      Por último, o argumento da recorrente de que os sistemas de reparação seletiva em causa eram característicos das práticas de abuso enumeradas no artigo 102.o TFUE não é suscetível de pôr em causa o seu caráter objetivamente justificado, uma vez que os critérios acima analisados são respeitados. Não pode, pois, caracterizar um erro manifesto da Comissão.

81      A Comissão não cometeu, portanto, nenhum erro manifesto de apreciação ao entender que não estava excluída a possibilidade de os sistemas de reparação seletiva instituídos pelos fabricantes de relógios suíços serem justificados pelo objetivo de preservação da qualidade dos produtos, uma vez que assentavam em critérios de seleção qualitativos aplicados de forma não discriminatória e eram proporcionados.

82      Por conseguinte, o terceiro fundamento é improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, relativo a erro manifesto de apreciação da existência de um abuso resultante da recusa de continuar a fornecer peças sobressalentes

83      O segundo fundamento apresentado pelas recorrentes divide‑se em três partes. Primeiro, entendem que a Comissão cometeu um erro ao considerar que uma recusa de fornecimento por parte de uma empresa em situação de posição dominante só em certas circunstâncias podia constituir um abuso. Seguidamente, entendem que a Comissão cometeu um erro ao inferir a licitude dos sistemas de reparação seletiva em causa à luz artigo 102.o TFUE da sua licitude à luz do artigo 101.o TFUE. Por último, entendem que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao considerar que as recusas de continuar a fornecer peças sobressalentes não decorriam da vontade dos fabricantes de relógios suíços de reservar o mercado para si próprios e que essas recusas não eram suscetíveis de eliminar toda a concorrência.

84      A Comissão conclui pela improcedência do presente fundamento.

 Quanto à primeira parte do segundo fundamento, relativa a erro da Comissão na identificação dos critérios necessários à demonstração de um abuso

85      A recorrente critica a Comissão por ter considerado que uma recusa de fornecimento só podia ser constitutiva de um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE se fosse suscetível de eliminar toda a concorrência e que só a falta de uma justificação objetiva não constituía um motivo suficiente para demonstrar um comportamento abusivo nos termos do artigo 102.o TFUE.

86      A Comissão contesta esta argumentação.

87      A esse respeito, o Tribunal de Justiça e o Tribunal Geral já tiveram a ocasião de apreciar a conformidade da recusa de fornecimento de uma empresa em posição dominante com o artigo 102.o TFUE, numa situação caracterizada pela presença de um mercado primário de produtos, de um mercado de serviços de reparação e de manutenção desses produtos e de um mercado de peças sobressalentes.

88      Além disso, de acordo com a jurisprudência, a recusa de uma empresa em posição dominante no mercado de um determinado produto de satisfazer as encomendas de um cliente anterior constitui uma exploração abusiva dessa posição dominante, na aceção do artigo 102.o TFUE, quando, sem nenhuma justificação objetiva, esse comportamento seja suscetível de eliminar a concorrência de um parceiro comercial (v., neste sentido, acórdãos de 6 de março de 1974, Istituto Chemioterapico Italiano e Commercial Solvents/Comissão, 6/73 e 7/73, EU:C:1974:18, n.o 25, e de 14 de fevereiro de 1978, United Brands e United Brands Continentaal/Comissão, 27/76, EU:C:1978:22, n.o 183).

89      De resto, no n.o 38 do acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569), o Tribunal de Justiça referiu que, embora, nos acórdãos de 6 de março de 1974, Istituto Chemioterapico Italiano e Commercial Solvents/Comissão (6/73 e 7/73, EU:C:1974:18), e de 3 de outubro de 1985, CBEM (311/84, EU:C:1985:394), tivesse considerado abusivo o facto de uma empresa em posição dominante num dado mercado recusar fornecer a uma empresa sua concorrente num mercado vizinho, respetivamente, as matérias‑primas e os serviços indispensáveis ao exercício das suas atividades, fê‑lo na medida em que o comportamento em causa podia eliminar toda a concorrência por parte dessa empresa (acórdão de 17 de setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, EU:T:2007:289, n.o 326).

90      Assim, para concluir pela existência de um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE, é necessário que a recusa dos produtos ou serviços em causa seja suscetível de eliminar toda a concorrência no mercado por parte do adquirente desses produtos ou serviços, que essa recusa não possa ser objetivamente justificada e que esses produtos e serviços, em si mesmos, sejam indispensáveis ao exercício da atividade do adquirente (v., neste sentido, acórdãos de 26 de novembro de 1998, Bronner, C‑7/97, EU:C:1998:569, n.o 41, e de 9 de setembro de 2009, Clearstream/Comissão, T‑301/04, EU:T:2009:317, n.o 147).

91      A Comissão não cometeu, pois, nenhum erro ao lembrar, nos considerandos 105 e 106 da decisão recorrida, que só em certas circunstâncias é que uma recusa de fornecimento por parte de uma empresa em situação de posição dominante podia constituir um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE. Com efeito, para um abuso ser caracterizado, tem de haver um risco de eliminação de toda a concorrência efetiva. Assim, a Comissão também não cometeu nenhum erro ao precisar que só a inexistência de uma justificação objetiva não constituía fundamento suficiente para dar por provado um comportamento abusivo nos termos do artigo 102.o TFUE.

 Quanto à segunda parte do segundo fundamento, relativa a erro da Comissão na apreciação da existência de um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE à luz da jurisprudência relativa ao artigo 101.o TFUE

92      A recorrente critica a Comissão por ter baseado a conformidade dos sistemas de reparação e da inerente proibição de fornecer peças fora do sistema com o artigo 102.o TFUE na sua conformidade com a jurisprudência relativa ao artigo 101.o TFUE.

93      A Comissão contesta esta argumentação.

94      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a aplicabilidade do artigo 101.o TFUE a um acordo não prejudica a aplicabilidade do artigo 102.o TFUE aos comportamentos das partes nesse mesmo acordo, quando estejam preenchidos os pressupostos de aplicação de cada disposição, e, consequentemente, que o facto de haver operadores sujeitos a concorrência efetiva que têm uma prática autorizada pelo artigo 101.o TFUE não implica que a adoção dessa mesma prática por uma empresa em posição dominante nunca possa constituir um abuso dessa posição (acórdão de 16 de março de 2000, Compagnie maritime belge transports e o./Comissão, C‑395/96 P e C‑396/96 P, EU:C:2000:132, n.os 130 e 131). Assim, a licitude de um comportamento nos termos do artigo 101.o TFUE não implica, em princípio, que se considere que esse comportamento é lícito à luz do artigo 102.o TFUE, sendo, porém, necessário, para o efeito, verificar se não estão preenchidos os pressupostos de aplicação desta segunda disposição.

95      No caso, é certo que, nos considerandos 119, 122 e 128 da decisão recorrida, a Comissão fez referência à conformidade dos sistemas de reparação seletiva em causa com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE, quando entendeu que esses sistemas não produziam efeitos anticoncorrenciais por se basearem em critérios qualitativos e respeitarem as condições exigidas pela jurisprudência relativa ao artigo 101.o, n.o 1, TFUE. Utilizou, portanto, a jurisprudência sobre a aplicação dessa disposição para demonstrar que a instituição dos sistemas de reparação seletiva em causa não era suscetível de eliminar toda a concorrência, isto é, para verificar se estava preenchido esse pressuposto de aplicação do artigo 102.o TFUE.

96      Contudo, uma vez que, por serem considerados elementos de concorrência em razão do respeito de certas condições, os sistemas de reparação ou de distribuição seletiva não estão abrangidos pelo artigo 101.o, n.o 1, TFUE (v., neste sentido, acórdãos de 25 de outubro de 1983, AEG‑Telefunken/Comissão, 107/82, EU:C:1983:293, n.os 33 a 35; de 13 de outubro de 2011, Pierre Fabre Dermo‑Cosmétique, C‑439/09, EU:C:2011:649, n.os 40 e 41; e de 27 de fevereiro de 1992, Vichy/Comissão, T‑19/91, EU:T:1992:28, n.o 65), a Comissão, no exercício do amplo poder de apreciação de que dispõe de acordo com a jurisprudência referida no n.o 34, supra, podia considerar que a conformidade desses sistemas com essa disposição constituía um indício que, conjugado com outros elementos, poderia demonstrar que era pouco provável que tivessem por efeito eliminar toda a concorrência na aceção da jurisprudência relativa ao artigo 102.o TFUE.

97      A esse respeito, refira‑se que, além da referência à compatibilidade dos sistemas de reparação ou de distribuição com o artigo 101.o, n.o 1, TFUE, a Comissão se baseou igualmente noutros elementos, tais como a existência de concorrência entre os reparadores reconhecidos no mercado em causa (considerando 118) e o caráter aberto das redes de reparação seletiva aos reparadores que pretendessem aderir a elas (considerando 123).

98      Nestas condições, a Comissão não cometeu nenhum erro ao avaliar a probabilidade de as recusas de fornecimento em causa produzirem efeitos anticoncorrenciais constitutivos de um abuso na aceção do artigo 102.o TFUE, baseando‑se, nomeadamente, nas condições exigidas pela jurisprudência relativa ao artigo 101.o, n.o 1, TFUE, que servem para verificar que os sistemas de distribuição ou de reparação seletiva não geram uma restrição de concorrência incompatível com essa disposição, em particular na medida em que baseou essa avaliação noutros elementos de facto capazes de demonstrar a inexistência de qualquer risco de eliminação de toda a concorrência efetiva.

 Quanto à terceira parte do segundo fundamento, relativa a erro manifesto da Comissão na apreciação da vontade dos fabricantes de relógios suíços de reservar para si próprios o mercado e na apreciação do risco de eliminação de toda a concorrência efetiva

99      Segundo a recorrente, a Comissão cometeu um erro manifesto na apreciação da existência de um abuso, na medida em que levou em conta a intenção dos fabricantes de relógios suíços de não reservar para si próprios o mercado e considerou que as recusas de fornecimento em causa não eram suscetíveis de eliminar toda a concorrência.

100    A Comissão contesta esta argumentação.

–       Quanto à primeira alegação, relativa à tomada em consideração da intenção dos fabricantes de relógios suíços

101    Na sua análise do comportamento de uma empresa em posição dominante e para identificar um eventual abuso dessa posição, a Comissão deve considerar todas as circunstâncias de facto relevantes que enquadram o referido comportamento (v. acórdão de 19 de abril de 2012, Tomra Systems e o./Comissão, C‑549/10 P, EU:C:2012:221, n.o 18 e jurisprudência aí referida).

102    Assim, a existência de uma eventual intenção anticoncorrencial constitui apenas uma das muitas circunstâncias de facto que podem ser tidas em conta na determinação de um abuso de posição dominante (acórdão de 19 de abril de 2012, Tomra Systems e o./Comissão, C‑549/10 P, EU:C:2012:221, n.o 20).

103    A Comissão não cometeu, pois, nenhum erro manifesto ao ter em conta o facto de os fabricantes de relógios suíços terem explicado que tinham instituído os seus sistemas de reparação seletiva por outras razões que não a intenção de reservar para si os mercados da reparação e da manutenção, na medida em que não se baseou exclusivamente nesse elemento intencional para justificar a sua conclusão relativa à pequena probabilidade de demonstrar uma violação do artigo 102.o TFUE.

–       Quanto à segunda alegação, relativa à apreciação do risco de as recusas de fornecimento de peças sobressalentes eliminarem toda a concorrência efetiva

104    Segundo a recorrente, as recusas de fornecimento de peças sobressalentes aos reparadores independentes são suscetíveis de eliminar toda a concorrência nos mercados em causa, quando o número de reparadores reconhecidos é muito limitado e as suas quotas de mercado são extremamente limitadas.

105    A Comissão conclui pela improcedência desta alegação.

106    Quanto ao critério da eliminação de toda a concorrência, para demonstrar a violação do artigo 102.o TFUE, não é necessário fazer prova da eliminação de toda a concorrência no mercado, mas sim de que as recusas geram o risco ou são suscetíveis de eliminar toda a concorrência efetiva nesse mercado (acórdãos de 17 de setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, EU:T:2007:289, n.o 563, e de 9 de setembro de 2009, Clearstream/Comissão, T‑301/04, EU:T:2009:317, n.o 148).

107    A esse respeito, em primeiro lugar, a Comissão deu por provado, nos considerandos 73, 110, 118 e 162 da decisão recorrida, que existia concorrência entre os reparadores reconhecidos e entre esses reparadores e os fabricantes de relógios suíços no mercado da reparação, na medida em que eram selecionados com base em critérios qualitativos e os sistemas seletivos eram abertos a todos os reparadores independentes que cumprissem esses critérios e pretendessem aderir a esses sistemas.

108    Uma vez que resulta da análise das suas características, efetuada nos n.os 60 a 81, supra, que os sistemas de reparação seletiva em causa podem ser considerados elementos de concorrência excluídos da aplicação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, a Comissão não cometeu nenhum erro ao inferir daí e dos outros elementos referidos no n.o 107, supra, que era pouco provável que a sua instituição gerasse o risco de eliminar toda a concorrência efetiva.

109    Com efeito, em segundo lugar, a Comissão precisou, no considerando 122 da decisão recorrida, que a existência de concorrência decorria igualmente da possibilidade de os reparadores reconhecidos efetuarem reparações para várias marcas. Ora, devido à possibilidade de realizar economias de escala, o facto de os reparadores reconhecidos poderem efetuar reparações para várias marcas é igualmente um elemento de concorrência no mercado da reparação que contribui para demonstrar que é pouco provável demonstrar um risco de eliminação de toda a concorrência efetiva.

110    Em terceiro lugar, a Comissão referiu igualmente, no considerando 123 da decisão recorrida, que, durante o inquérito, alguns reparadores independentes tinham aderido aos sistemas de reparação seletiva de certas marcas. Ora, a recorrente não alega nem prova que qualquer reparador independente que preenchesse os critérios seria impedido de fazer parte de um ou mais sistemas de reparação seletiva. De resto, não juntou provas de que alguns reparadores que preenchiam os critérios não tivessem sido admitidos como reparadores reconhecidos.

111    Tendo em conta todos os elementos apresentados pela Comissão, verifica‑se, pois, que esta não cometeu nenhum erro manifesto ao considerar que o risco de eliminação de toda a concorrência efetiva era pequeno. Com efeito, face às modalidades de funcionamento dos sistemas de reparação seletiva em causa, existe concorrência entre os reparadores reconhecidos e também entre esses reparadores e os centros de reparações internas dos fabricantes. Além disso, os outros elementos analisados pela Comissão demonstram que as características dos sistemas de reparação seletiva em causa permitem a novos agentes penetrar no mercado da reparação, pelo que existe uma pressão concorrencial potencial suscetível de confirmar a inexistência de um risco de eliminação de toda a concorrência efetiva no funcionamento dos sistemas de reparação aqui analisados.

112    Em quarto lugar, a diminuição do número de reparadores independentes inscritos numa associação nacional de reparadores independentes não é, só por si, capaz de demonstrar a eliminação de toda a concorrência efetiva. De resto, o artigo 101.o TFUE visa, à semelhança das outras normas da concorrência enunciadas no Tratado, proteger não só os interesses diretos dos concorrentes ou dos consumidores mas também a estrutura do mercado e, desse modo, a concorrência enquanto tal (acórdão de 19 de março de 2015, Dole Food e Dole Fresh Fruit Europe/Comissão, C‑286/13 P, EU:C:2015:184, n.o 125). A necessidade de preservar uma concorrência não falseada não implica, pois, a necessidade de proteger a existência dos reparadores independentes enquanto tais.

113    Em quinto lugar, a invocação, pela recorrente, da citação de um ofício de 2005 que contém uma conclusão provisória da Comissão no sentido de que os fabricantes de relógios suíços teriam tentado reservar para si próprios os mercados da reparação e da manutenção não pode demonstrar um erro manifesto. Com efeito, essa conclusão não pode ser deduzida da citação reproduzida pela recorrente, na qual a Comissão se limita a constatar que a manutenção do valor do produto implica que os serviços pós‑venda sejam prestados pelos próprios fabricantes de relógios ou em centros de serviços reconhecidos, isto é, empresas terceiras. Além disso, como a Comissão indica, esse ofício apenas continha uma posição provisória, expressa antes da anulação do primeiro arquivamento da denúncia pelo Tribunal Geral, à qual se seguiu um exame suplementar dos mercados em causa. Nestas condições, o facto de a posição final da Comissão não corresponder à sua posição provisória, admitindo‑a demonstrada, não é suscetível de tornar a apreciação da Comissão errada.

114    Em sexto lugar, as afirmações da recorrente de que, por um lado, os mercados das peças sobressalentes e dos serviços de manutenção e de reparação estão em crescimento e, por outro, os preços das reparações e da manutenção efetuadas pelos fabricantes não são despiciendos não podem pôr em causa a avaliação da Comissão quanto à probabilidade de existência de um abuso. Com efeito, o conceito de exploração abusiva é um conceito objetivo que visa os comportamentos de uma empresa em posição dominante suscetíveis de influenciar a estrutura de um mercado e não depende do volume do mercado em causa (v., neste sentido, acórdão de 17 de dezembro de 2003, British Airways/Comissão, T‑219/99, EU:T:2003:343, n.o 241). O volume de um mercado não tem, portanto, influência na caracterização de um abuso.

115    Em sétimo lugar, o argumento da recorrente relativo ao desrespeito, pela Comissão, dos critérios definidos na comunicação da Comissão com o título «Orientação sobre as prioridades da Comissão na aplicação do artigo [102.o TFUE] a comportamentos de exclusão abusivos por parte de empresas em posição dominante» (JO 2009, C 45, p. 7) também não é suscetível de demonstrar que a Comissão cometeu um erro manifesto. Com efeito, por força dessa comunicação, a Comissão considera prioritárias as recusas de fornecimento, primeiro, quando têm por objeto um produto ou um serviço objetivamente necessário para se poder exercer uma concorrência eficaz num mercado a jusante, segundo, quando são suscetíveis de levar à eliminação de concorrência a jusante e, terceiro, quando são suscetíveis de lesar o consumidor. Como a Comissão considerou, sem cometer qualquer erro manifesto, que a probabilidade de demonstrar um risco de eliminação de toda a concorrência era pequena, esse processo não preenchia um dos critérios cumulativos para ser tratado com prioridade. Visto faltar um dos critérios, não era necessário avaliar o mérito dos argumentos da recorrente quanto aos outros dois critérios, relativos ao caráter objetivamente necessário das peças sobressalentes para poder exercer uma concorrência eficaz e ao prejuízo para os consumidores.

116    A Comissão não cometeu, pois, nenhum erro manifesto de apreciação ao entender que era pequena a probabilidade de demonstrar um risco de eliminação de toda a concorrência efetiva.

117    Assim, a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao considerar que era pouco provável caracterizar um abuso resultante da recusa de continuar a fornecer peças sobressalentes.

118    Consequentemente, improcede o segundo fundamento.

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo a erro na caracterização do poder de mercado dos fabricantes de relógios suíços

119    No âmbito deste fundamento, a recorrente critica, em substância, a Comissão por ter considerado que não se excluía a possibilidade de os fabricantes de relógios suíços ocuparem uma posição dominante no mercado do fornecimento de peças sobressalentes, não obstante estarem em posição de monopólio, sem que isso a levasse a ter em conta esse elemento para apreciar a probabilidade da existência de um abuso.

120    A Comissão conclui pela improcedência deste fundamento.

121    Nos considerandos 102 e 103 da decisão recorrida, a Comissão considerou que não se podia excluir a possibilidade de os fabricantes de relógios suíços estarem em situação de posição dominante nos mercados da reparação e do fornecimento de peças sobressalentes, na medida em que a entrada nesses mercados necessitava de um grande investimento em razão das suas características.

122    A este respeito, resulta da jurisprudência que a posição dominante prevista no artigo 102.o TFUE diz respeito a uma situação de poder económico detido por uma empresa, que lhe permite impedir a manutenção de uma concorrência efetiva no mercado em causa, dando‑lhe a possibilidade de se comportar sobremaneira de forma independente em relação aos seus concorrentes e clientes. Esta disposição não inclui no conceito de posição dominante nenhuma distinção nem nenhum grau. Quando uma empresa dispõe de um poder económico como o exigido pelo artigo 102.o TFUE para verificar se ela ocupa uma posição dominante num mercado determinado, há que apreciar o seu comportamento à luz dessa disposição. Contudo, o grau de poder de mercado tem, em princípio, consequências no alcance dos efeitos do comportamento da empresa em causa e não tanto na existência do abuso enquanto tal (acórdãos de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.os 79 a 81, e de 19 de abril de 2012, Tomra Systems e o./Comissão, C‑549/10 P, EU:C:2012:221, n.os 38 e 39).

123    Em aplicação desta jurisprudência, a questão de saber se os fabricantes de relógios suíços dispõem de um poder de mercado superior ao previsto pela Comissão é, em princípio, irrelevante para o exame do caráter abusivo do comportamento que lhes é imputado.

124    Além disso, uma vez que resulta da análise do segundo fundamento que a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao rejeitar a possibilidade de o comportamento imputado aos fabricantes de relógios suíços ser constitutivo de um abuso, daí resulta necessariamente que o primeiro fundamento relativo a erro na caracterização do poder de mercado dos fabricantes de relógios suíços é inoperante.

125    Consequentemente, o primeiro fundamento é inoperante.

 Quanto ao quarto fundamento, relativo a erro manifesto na apreciação da probabilidade de as recusas de fornecer peças sobressalentes serem resultado de um acordo ou de uma prática concertada

126    A recorrente afirma que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação ao decidir que era pouco provável que as recusas dos fabricantes de relógios suíços de continuar a fornecer peças sobressalentes fossem o resultado de um acordo ou de uma prática concertada. Apresenta, em substância, três argumentos em apoio dessa afirmação. Antes de mais, afirma que os fabricantes de relógios suíços tinham interesse em organizar essa prática concertada. Seguidamente, a única forma de atingirem o objetivo de reservar para si próprios os mercados da reparação e da manutenção era agir coletivamente. Por último, a Comissão deveria ter investigado mais sobre esse ponto, obtendo as atas das reuniões de duas associações comerciais suíças em que os fabricantes de relógios suíços discutiram o fornecimento de peças sobressalentes aos reparadores independentes.

127    De acordo com a jurisprudência, a adoção progressiva de decisões de recusa de fornecimento, quando se estende por um longo período como no caso, permite considerar que essas decisões não são o resultado de um acordo, mas sim de uma sequência de decisões comerciais independentes (v., neste sentido, acórdão de 15 de dezembro de 2010, CEAHR/Comissão, T‑427/08, EU:T:2010:51, n.os 131 e 132).

128    Na decisão recorrida, a Comissão considerou que a progressão das recusas não era o resultado de um acordo, mas sim de uma sequência de decisões comerciais independentes adotadas pelos fabricantes de relógios suíços, na medida em que essas decisões não foram adotadas no mesmo momento nem no mesmo período, mas sim, progressivamente, ao longo de um período relativamente extenso.Ora, a recorrente não contesta o contexto temporal da instituição dos sistemas de reparação seletiva e das recusas de fornecimento. De resto, juntou as cartas de recusa que datam de 1996, 2000 e 2002.

129    Consequentemente, na falta de provas de um acordo ou de uma colusão, a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao decidir que era pouco provável que as recusas de fornecimento de peças sobressalentes fossem o resultado de um acordo ou de uma prática concertada.

130    Quanto ao argumento de que os fabricantes de relógios suíços tinham um motivo económico para se concertarem, que a Comissão teria reconhecido, e ao argumento de que a única forma de esses fabricantes atingirem o objetivo de reservar para si próprios os mercados da reparação e da manutenção era agir coletivamente, não se pode deixar de observar que assentam em afirmações não sustentadas e na alegada prossecução de um objetivo que a recorrente não demonstra. De resto, na falta de provas de um acordo ou de uma colusão, esses argumentos não são suscetíveis de demonstrar que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação.

131    Quanto ao facto de a Comissão dever ter investigado mais, como resulta da jurisprudência lembrada no n.o 61, supra, se a Comissão não tem a obrigação de se pronunciar sobre a existência ou não de uma infração, não pode ser obrigada a levar a cabo uma instrução, uma vez que esta não pode ter outro objetivo que não seja tentar encontrar provas da existência ou inexistência de uma infração que ela não é obrigada a declarar. Não pode, pois, ser criticada por não ter tentado obter as atas das reuniões das duas associações comerciais suíças.

132    Consequentemente, a Comissão não cometeu nenhum erro manifesto de apreciação ao decidir que era pouco provável que as recusas dos fabricantes de relógios suíços de continuar a fornecer peças sobressalentes fossem o resultado de um acordo ou de uma prática concertada.

133    O quarto fundamento é, portanto, improcedente.

 Quanto ao quinto fundamento, relativo a uma violação do dever de fundamentação

134    A recorrente afirma que a Comissão não baseia em fundamentação apropriada a sua conclusão sobre a recusa de dar seguimento à sua denúncia.

135    A este respeito, a Comissão está sujeita a um dever de fundamentação quando recusa prosseguir o exame de uma denúncia. Uma vez que a fundamentação deve ser suficientemente precisa e pormenorizada para dar ao Tribunal Geral a possibilidade de exercer uma fiscalização efetiva sobre o exercício, pela Comissão, do seu poder discricionário de definir prioridades, essa instituição deve expor os elementos de facto de que depende a justificação da decisão e as considerações jurídicas que a levaram a tomá‑la (despacho de 31 de março de 2011, EMC Development/Comissão, C‑367/10 P, não publicado, EU:C:2011:203, n.o 75, e acórdão de 21 de janeiro de 2015, easyJet Airline/Comissão, T‑355/13, EU:T:2015:36, n.o 70).

136    No caso, basta observar que resulta da decisão recorrida que a Comissão entendeu que a probabilidade de demonstrar uma infração ao artigo 102.o TFUE era limitada, tendo em conta a inexistência de qualquer risco de as recusas de fornecimento de peças sobressalentes e a instituição de sistemas de reparação seletiva eliminarem toda a concorrência efetiva. Além disso, considerou que a probabilidade de demonstrar uma infração ao artigo 101.o TFUE era limitada, uma vez que as recusas de fornecimento de peças sobressalentes e a instituição de sistemas de reparação seletiva resultavam de decisões comerciais independentes tomadas em momentos diferentes. Por outro lado, respondeu a todas as alegações feitas na denúncia, o que não é impugnado pela recorrente.

137    Nestas circunstâncias, a Comissão cumpriu o seu dever de fundamentação ao expor, de forma clara e inequívoca, os elementos de facto e as considerações jurídicas que a levaram a concluir que a probabilidade de provar a existência de uma violação aos artigos 101.o e 102.o TFUE era limitada. Dado que essas precisões dão ao Tribunal Geral a possibilidade de exercer uma fiscalização efetiva do exercício, pela Comissão, do seu amplo poder de apreciação na decisão recorrida, a decisão recorrida está suficientemente fundamentada.

138    Consequentemente, improcede o quinto fundamento.

 Quanto ao sexto fundamento, relativo a uma violação do princípio da boa administração

139    Segundo o artigo 44.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal Geral de 2 de maio de 1991, a petição inicial deve conter uma exposição sumária dos fundamentos invocados. Essa exposição deve ser suficientemente clara e precisa para permitir que o demandado prepare a sua defesa e que o Tribunal decida, eventualmente sem outra informação.

140    A petição deve, por isso, explicitar em que consiste o fundamento do recurso, pelo que a sua simples enunciação abstrata não cumpre os requisitos do Regulamento de Processo de 2 de maio de 1991 (acórdão de 12 de janeiro de 1995, Viho/Comissão, T‑102/92, EU:T:1995:3, n.o 68).

141    Na petição, a recorrente limita‑se a enunciar que a conclusão da Comissão é resultado de um procedimento em que não analisou atentamente os elementos de facto e de direito invocados pela recorrente, em violação do seu direito a uma boa administração, mas não acrescenta o menor desenvolvimento suscetível de sustentar essa afirmação.

142    Ora, só a referência ao princípio da boa administração não pode ser considerada suficiente para cumprir as condições de clareza e de precisão impostas pelo Regulamento de Processo de 2 de maio de 1991.

143    Consequentemente, o sexto fundamento é inadmissível.

144    Na medida em que nenhum dos fundamentos apresentados pela recorrente demonstra que a Comissão tivesse desrespeitado os limites do seu poder de apreciação, o recurso é improcedente.

 Quanto às despesas

145    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la a suportar as despesas da Comissão e das intervenientes, de acordo com o pedido destas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção)

decide:

1)      Negase provimento ao recurso.

2)      A Confédération européenne des associations d’horlogers‑réparateurs (CEAHR) é condenada nas despesas.

Prek

Buttigieg

Berke

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de outubro de 2017.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.