Language of document : ECLI:EU:T:2019:353

Processo T107/17

Frank Steinhoff e outros

contra

Banco Central Europeu:

 Acórdão do Tribunal Geral (Terceira Secção) de 23 de maio de 2019

«Responsabilidade extracontratual — Política económica e monetária — BCE — Bancos centrais nacionais — Restruturação da dívida pública grega — Implicação do setor privado — Cláusulas de ação coletiva — Troca obrigatória dos títulos de crédito gregos — Credores privados — Parecer do BCE — Violação suficientemente caracterizada de uma norma jurídica que confere direitos aos particulares — Princípio pacta sunt servanda — Artigo 17.°, n.os 1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais — Artigo 63.°, n.° 1, TFUE — Artigo 124.° TFUE»

1.      Ação de indemnização — Prazos de recurso — Prescrição de cinco anos — Interposição do recurso na véspera do termo do prazo — Admissibilidade — Regularização posterior da petição — Falta de incidência

(Artigo 263.°, quarto parágrafo, e 340.°, segundo parágrafo, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 46.°; Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 76.°)

(cf. n.os 30‑33)

2.      Processo judicial — Apresentação das provas — Apresentação de documentos redigidos numa língua diferente da língua do processo — Obrigação de fornecer uma tradução na língua do processo — Violação — Consequências

(Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 46.°, n.° 2)

(cf. n.os 35‑37)

3.      Ação de indemnização — Objeto — Pedido de indemnização por um dano causado causados pelo Banco Central Europeu — Competência do juiz da União — Imputação, pelo Banco, do dano à atuação de um EstadoMembro — Falta de incidência

(Artigos 268.° e 340.° TUE)

(cf. n.os 42‑46)

4.      Ação de indemnização — Caráter autónomo — Diferença em relação ao recurso de anulação

(Artigos 263.° e 268.° TUE)

(cf. n.° 51)

5.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caracterizada do direito da União — Critérios de apreciação

(Artigo 263.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 52‑54)

6.      Ação de indemnização — Objeto — Pedido de indemnização de um dano causado por um ato não vinculativo e de natureza política — Admissibilidade

(Artigo 263.°, e 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 55‑57)

7.      Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Pareceres dirigidos às autoridades nacionais pelo Banco Central Europeu (BCE) sobre os projetos de regulamentos nacionais abrangidos pelo seu domínio e competência — Natureza vinculativa — Inexistência — Poder de apreciação do BCE quanto à adoção dos pareceres

(Artigo 127.°, n.° 4, TFUE; Decisão 98/415 do Conselho, considerando 3 e artigos 2.° e 4.°)

(cf. n.os 71, 72)

8.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caracterizada de uma Regra de direito que confere direitos aos particulares — Regra de direito que confere direitos aos particulares — Conceito — Princípio pacta sunt servanda — Exclusão

(Artigo 263.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 77, 78)

9.      Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caraterizada do direito da União — Falta de denúncia pelo Banco Central Europeu, num parecer dirigido a um EstadoMembro, de uma violação do princípio pacta sunt servanda devido à adoção de uma lei que altera condições aplicáveis a títulos de crédito para fins de restruturação da dívida pública nacional — Exclusão

(Artigo 263.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 79‑85)

10.    Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caracterizada de uma regra de direito que confere direitos aos particulares — Regra de direito que confere direitos aos particulares — Conceito — Direito à propriedade — Inclusão

(Artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 17.°, n.° 1)

(cf. n.os 96, 97)

11.    Direito da União Europeia — Princípios — Direitos fundamentais — Direito de propriedade — Restrições — Admissibilidade — Requisitos

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 17.°,n.º 1 e 52.°, n.° 1)

(cf. n.os 99, 100)

12.    Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Pareceres dirigidos às autoridades nacionais pelo Banco Central Europeu (BCE) sobre os projetos de regulamentos nacionais abrangidos pelo seu domínio e competência — Adoção, por um EstadoMembro, de uma lei que limite o valor de certos títulos de crédito a fim de proteger a economia nacional e a área do euro contra um risco de incumprimento por parte do EstadoMembro em causa — Restrição desproporcionada do direito de propriedade — Inexistência

(Artigo 127.°, n.° 4, TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 17.°, n.° 1; Decisão 98/415 do Conselho)

(cf. n.os 105, 108‑116)

13.    Livre circulação de capitais — Restrições aos movimentos de capitais — Regulamentação nacional que limita o valor dos títulos de crédito emitidos ou garantidos pelo EstadoMembro em causa — Justificação baseada na necessidade de proteger a economia nacional e a zona euro contra um risco de incumprimento pelo EstadoMembro em causa — Admissibilidade

(Artigo 63.° TFUE)

(cf. n.os 119, 120, 122‑124)

14.    Processo judicial — Tratamento dos processos no Tribunal Geral — Proteção concedida às partes contra a utilização indevida das peças processuais — Conciliação com o princípio da liberdade da prova — Utilização de uma peça processual proveniente de outro processo — Admissibilidade — Submissão de uma peça processual com páginas que faltam — Regularização na fase da réplica — Violação dos direitos de defesa da parte contrária — Inexistência

(Regulamento de Processo do Tribunal Geral, artigo 85.°)

(cf. n.os 129‑131)

15.    Política económica e monetária — Política económica — Proibição de adotar medidas que concedem um acesso privilegiado às instituições financeiras sem justificação de ordem prudencial — Regulamentação nacional que limita o valor dos títulos de crédito emitidos ou garantidos pelo EstadoMembro — Justificação baseada na necessidade de proteger a economia nacional e a área do euro contra um risco de incumprimento pelo EstadoMembro em causa — Admissibilidade

(Artigo 124.° CE; Regulamento n.° 3604/93 do Conselho, artigo 2.°)

(cf. n.os 136‑138)

16.    Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Violação suficientemente caracterizada de uma norma jurídica que confere direitos aos particulares — Regra de direito que confere direitos aos particulares — Conceito — Proibição de adotar medidas que concedem um acesso privilegiado às instituições financeiras sem justificação de ordem prudencial — Exclusão

(Artigo 124.°, e 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 139, 140)

17.    Responsabilidade extracontratual — Requisitos — Ilegalidade — Prejuízo — Nexo de causalidade — Falta de um dos requisitos — Improcedência da ação de indemnização na íntegra

(Art. 340.°, segundo parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 143, 144)

Resumo

No Acórdão Steinhoff e o./BCE (T‑107/17), de 23 de maio de 2019, o Tribunal de Primeira Instância negou provimento a uma ação de indemnização destinada a obter a reparação do prejuízo pretensamente sofrido pelos credores privados, na sequência da adoção de um parecer do Banco Central Europeu (BCE) sobre os títulos emitidos e garantidos pela República Helénica (1).

Em 2 de fevereiro de 2012, foi submetido ao BCE um pedido de parecer, ao abrigo do artigo 127.°, n.° 4, TFUE, conjugado com o artigo 282.°, n.° 5, TFUE, pela República Helénica sobre um Projeto de Lei n.° 4050/2012, que introduz regras de alteração das condições aplicáveis aos títulos de crédito negociáveis emitidos ou garantidos pelo Estado grego no âmbito de acordos com os respetivos detentores, para efeitos da restruturação da dívida pública grega, baseado, designadamente, na aplicação das «cláusulas de ação coletiva» (a seguir «CAC»). Na sequência de um parecer favorável sobre o projeto de lei, este foi adotado pelo Parlamento grego em 23 de fevereiro de 2012.

Por força do mecanismo das CAC, as alterações propostas aos títulos de crédito em causa destinavam‑se a tornar‑se juridicamente vinculativas para quaisquer detentores de títulos de crédito regulados pelo direito helénico e emitidos antes de 31 de dezembro de 2011, conforme identificados no ato do Conselho de Ministros que aprovou os convites à participação dos investidores privados (Private Sector Involvement, a seguir «PSI») se as referidas alterações fossem aprovadas por um quórum de detentores de títulos que representasse, pelo menos, dois terços do valor nominal dos referidos títulos. Uma vez que o quórum e a maioria exigida para proceder à troca de títulos previsto foram alcançados, todos os detentores de instrumentos de dívida gregos, incluindo aqueles que se opunham a essa troca, viram os seus títulos permutados em aplicação da Lei n.° 4050/2012 e, por conseguinte, o seu valor diminuído. Os demandantes, enquanto detentores dos títulos de crédito gregos, participaram na restruturação da dívida pública grega, por força do PSI e das CAC instituídos ao abrigo da Lei n.° 4050/2012 após terem recusado a proposta de troca dos seus títulos.

Na sua ação, os demandantes puseram em causa a responsabilidade do BCE pelo prejuízo que pretensamente sofreram pelo facto de o BCE não ter, em seu entender, chamado a atenção da República Helénica para o caráter ilegal da reestruturação da dívida pública grega prevista pela troca obrigatória de títulos de dívida.

No que respeita à responsabilidade extracontratual do BCE, o Tribunal salientou, em primeiro lugar, que os pareceres do BCE não são vinculativos para as autoridades nacionais. Com efeito, por força do considerando 3 e do artigo 4.° da Decisão 98/415, as autoridades nacionais devem ter unicamente em conta estes pareceres e não são prejudiciais às responsabilidades destas autoridades nas matérias que são objeto dos projetos em questão. Daqui decorre que, embora o cumprimento da obrigação de consulta do BCE exija que este possa dar a conhecer utilmente as suas opiniões às autoridades nacionais, não lhes pode exigir que a ele adiram. Em segundo lugar, o Tribunal constatou que o BCE goza de um amplo poder de apreciação na adoção dos seus pareceres. O amplo poder de apreciação de que dispõe o BCE implica que só uma violação manifesta e grave dos limites desse poder pode implicar a sua responsabilidade extracontratual. Por conseguinte, só uma violação suficientemente caracterizada de uma regra de direito que confere direitos aos particulares é suscetível de implicar a responsabilidade extracontratual do BCE.

Neste contexto, o Tribunal declarou que os demandantes alegavam erradamente que o BCE cometeu uma ilegalidade suscetível de implicar a sua responsabilidade extracontratual ao não denunciar, no parecer controvertido, a violação do princípio pacta sunt servanda que constitui a adoção da Lei n.° 4050/2012 a respeito dos demandantes. Com efeito, a subscrição pelos demandantes dos títulos de crédito controvertidos emitidos e garantidos pela República Helénica criou uma relação contratual entre eles e a República Helénica. Esta relação contratual não é regida pelo princípio pacta sunt servanda do artigo 26.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (2). Em aplicação do seu artigo 1.°, esta Convenção só se aplica aos tratados entre Estados. Por conseguinte, o artigo 26.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados não constitui uma regra de direito que confira direitos aos demandantes.

Além disso, o Tribunal observou que os pareceres do BCE não têm por destinatário particulares nem por objeto principal as relações contratuais entre um particular e um Estado‑Membro na sequência de uma emissão por esse Estado‑Membro de títulos de crédito. Com efeito, por força do artigo 2.° da Decisão 98/415, os destinatários dos pareceres do BCE são as autoridades dos Estados‑Membros obrigadas a consultar o BCE e não particulares. Por conseguinte, quando o BCE é, como no caso em apreço, consultado pela República Helénica sobre um projeto de regulamentação sobre os bancos nacionais e as regras aplicáveis às instituições financeiras na medida em que estas tenham uma incidência sensível sobre a estabilidade das instituições e dos mercados financeiros, não é obrigado a pronunciar‑se sobre o respeito, por esse Estado‑Membro, do princípio geral do direito dos contratos, pacta sunt servanda, em relação aos detentores de títulos de crédito estatais. Assim, a competência de parecer do BCE não confere aos recorrentes um direito a que referida entidade denuncie uma violação de um direito contratual por eles detido face à República Helénica na sequência de uma subscrição da sua parte dos títulos de crédito gregos emitidos e garantidos por esta última.

Posteriormente, a limitação do valor dos títulos de crédito controvertidos dos demandantes não constituía uma medida desproporcionada em relação ao objetivo que consiste em proteger a economia da República Helénica e a zona euro contra um risco de cessação de pagamentos da República Helénica e o colapso da sua economia. Foi, por conseguinte, erradamente que os demandantes alegaram que as medidas em causa constituíam uma violação do direito de propriedade garantido pelo artigo 17.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Em seguida, o Tribunal concluiu pela inexistência de violação da livre circulação de capitais consagrada no artigo 63.°, n.° 1, TFUE, ao declarar que, no caso vertente, as medidas aplicadas pela Lei n.° 4050/2012 eram justificadas por razões imperiosas de interesse geral, na medida em que as circunstâncias subjacentes a essa lei eram realmente excecionais porque, na falta de reestruturação, o não pagamento, no mínimo seletivo, a curto prazo por parte da República Helénica constituía uma perspetiva credível. Do mesmo modo, as medidas em causa visavam assegurar a estabilidade do sistema bancário em toda a zona euro. Além disso, as demandantes não demonstraram que as referidas medidas eram desproporcionadas. Estas medidas permitiram restabelecer a estabilidade do sistema bancário em toda a zona euro e não está demonstrado que iam além do que era necessário para restabelecer a referida estabilidade. Em especial, a participação dos credores privados na troca de títulos de crédito gregos numa base exclusivamente voluntária, como preconizam os demandantes, não teria permitido assegurar o sucesso dessa troca de títulos. Com efeito, ao não garantir um tratamento igualitário entre os credores, poucos desses credores teriam aceitado a troca tendo em conta o risco moral que essa troca implicava, ou seja, que suportariam as consequências dos riscos assumidos pelos credores que não participassem na troca dos títulos de crédito gregos.

Por último, o Tribunal considerou que os demandantes invocavam, sem razão, a existência de uma ilegalidade que implica a responsabilidade do BCE perante os demandantes em razão da inexistência de denúncia pelo BCE de uma violação do artigo 124.° TFUE. Com efeito, o artigo 124.° TFUE proíbe qualquer medida não baseada em considerações de ordem prudencial que conceda, designadamente aos Estados‑Membros um acesso privilegiado às instituições financeiras a fim de incentivar os Estados‑Membros a respeitar uma política orçamental sã, evitando que um financiamento monetário dos défices públicos ou um acesso privilegiado das autoridades públicas aos mercados financeiros conduza a um endividamento excessivo ou a défices excessivos dos Estados‑Membros. Ora, a Lei n.° 4050/2012 não tem por objetivo aumentar o endividamento da República Helénica, mas, pelo contrário, reduzi‑lo, atendendo ao seu caráter excessivo, desvalorizando os títulos detidos pelos demandantes. Ora, o projeto de lei contribuía para preservar tanto as finanças públicas gregas como a estabilidade do sistema financeiro da zona euro. De qualquer modo, o artigo 124.° TFUE não visa proteger os demandantes e não lhes confere direitos.


1      Parecer do BCE, de 17 de fevereiro de 2012, sobre as condições aplicáveis aos títulos emitidos ou garantidos pelo Estado grego (CON/2012/12).


2      Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Coletânea dos Tratados das Nações Unidas, vol. 1155 I, p. 331).