Language of document : ECLI:EU:T:1999:125

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção Alargada)

15 de Junho de 1999 (1)

«Recurso de anulação - Decisão da Comissão - Auxílios de Estado - Recurso interposto por uma entidade infra-estatal - Admissibilidade»

No processo T-288/97,

Regione autonoma Friuli Venezia Giulia, representada por Renato Fusco, advogado no foro de Trieste, e Maurizio Maresca, advogado no foro de Génova, com domicílio escolhido no Luxemburgo, 36, Rue Wiltz,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por Paul Nemitz e Paolo Stancanelli, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes, assistidos por Massimo Moretto, advogado no foro de Veneza, com domicílio escolhido no gabinete de Carlos Gómez de la Cruz, membro do Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

recorrida,

que tem por objecto um pedido de anulação da Decisão 98/182/CE da Comissão de 30 de Julho de 1997, relativa aos auxílios concedidos pela região de Friuli-Venezia Giulia (Itália) às empresas de transporte rodoviário de mercadorias da região (JO L 66, p. 18),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Primeira Secção Alargada),

composto por: B. Vesterdorf, presidente, C. W. Bellamy, R. M. Moura Ramos, J. Pirrung e P. Mengozzi, juízes,

secretário: J. Palacio González, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 6 de Outubro de 1998,

profere o presente

Acórdão

Factos e tramitação processual

1.
    A Lei n.° 4/1985 da Região de Friuli Venezia Giulia, de 7 de Janeiro de 1985, prevê várias medidas de auxílio ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, que tomam a forma, nomeadamente, de um financiamento dos juros sobre operações de empréstimo e de uma tomada a cargo dos custos de investimento. Estas medidas não foram notificadas à Comissão.

2.
    Por cartas de 29 de Setembro de 1995 e 30 de Maio de 1996, a Comissão pediu à República Italiana informações sobre esta lei. Na sequência das respostas dadas pelas autoridades italianas, estas foram informadas, por carta de 14 de Fevereiro de 1997, da comunicação da Comissão em aplicação do artigo 88.°, n.° 2, do Tratado, dirigida aos outros Estados-Membros e terceiros interessados relativa aos auxílios concedidos às empresas de transportes da Região de Friuli Venezia Giulia (JO 1997, C 98, p. 16), pela qual a Comissão decidira dar início ao processo previsto neste artigo do Tratado CE em relação ao regime previsto na referida Lei n.° 4/1985.

3.
    Por carta de 27 de Março de 1987, as autoridades italianas apresentaram as suas observações.

4.
    Por carta de 18 de Agosto de 1997, dirigida à representação permanente da Itália na União Europeia, a Comissão informou as autoridades italianas da sua Decisão 98/182/CE, de 30 de Julho de 1997, relativa aos auxílios concedidos pela região de Friuli-Venezia Giulia (Itália) às empresas de transporte rodoviário de mercadorias da região (JO L 66, p. 18, a seguir «decisão impugnada»). Nessa decisão a Comissão declara que as subvenções concedidas ao abrigo da legislação em causa constituem auxílios de Estado para efeitos do n.° 1 do artigo 92.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 87.°, n.° 1, CE). Nos artigos 4.° e 5.° a Comissão declara estes auxílios incompatíveis com o mercado comum e ordena o seu reembolso. No artigo 7.° designa a República italiana destinatária da decisão impugnada.

5.
    Por carta de 20 de Agosto de 1997, recebida em 11 de Setembro seguinte, a representação permanente da Itália na União Europeia enviou a decisão impugnada à presidência da Região Friuli Venezia Giulia.

6.
    A República Italiana, por petição apresentada em 28 de Outubro de 1997, interpôs no Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 173.°, segundo parágrafo, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230.°, segundo parágrafo, CE), um recurso de anulação desta decisão.

7.
    Por petição apresentada na secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 10 de Novembro de 1997, a recorrente interpôs o presente recurso, nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo do Tratado.

8.
    Por requerimentos apresentados na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância entre 12 de Dezembro de 1997 e 26 de Janeiro de 1998, diversas empresas que tinham beneficiado dos auxílios da Região de Friuli Venezia Giulia interpuseram igualmente recursos de anulação da decisão impugnada. Estes recursos foram registados na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância sob os n.os T-298/97, T-312/97, T-313/97, T-315/97, T-600/97 a T-607/97, T-1/98, T-3/98 a T-6/98 e T-23/98.

9.
    Por requerimento apresentado em 19 de Fevereiro de 1998, a Comissão suscitou, no presente processo, uma questão prévia de inadmissibilidade em conformidade com o artigo 114.°, n.° 1, do Regulamento de Processo.

10.
    Em 11 de Maio de 1998 a recorrente apresentou as suas observações sobre a questão prévia de inadmissibilidade.

11.
    Com base no relatório do juiz relator, o Tribunal de Primeira Instância decidiu, em conformidade com o artigo 114, n.° 3, do seu Regulamento de Processo, iniciar a fase oral do processo limitada à apreciação desta questão prévia, sem ordenar quaisquer medidas de instrução. Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às perguntas feitas oralmente pelo Tribunal na audiência de 6 de Outubro de 1998.

Pedidos das partes

12.
    A recorrida conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    rejeitar o recurso por inadmissível;

-    condenar a recorrente nas despesas.

13.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    julgar improcedente a questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e apreciar o mérito da causa.

Questão de direito

Argumentos das partes

14.
    A Comissão invoca cinco fundamentos em apoio da questão prévia de inadmissibilidade. O primeiro fundamento consiste na falta de legitimidade processual da recorrente, nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado, para impugnar uma decisão em matéria de auxílios de Estado. A Comissão, invocando os acórdãos do Tribunal de Justiça de 22 de Março de 1977, Steinike & Weinlig (78/76, Colect., p. 595) e de 14 de Outubro de 1987, Alemanha/Comissão (248/84, Colect., p. 4013), sublinha que resulta dos artigos 92.° e 93.° do Tratado CE (actual artigo 88.° CE) que o Estado é o único sujeito de direito a quem pode ser imputada a concessão de um auxílio. Estes artigos visam, com efeito, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam. Neste contexto, as entidades territoriais de um Estado-Membro não são consideradas como tendo uma situação jurídica própria.

15.
    Com efeito, é ao Estado-Membro que compete defender o interesse geral e ter em conta os interesses divergentes quando da concessão dos auxílios. Os actos adoptados em matéria de auxílios de Estado pelas entidades regionais ou locais não podem assim conferir a estas direitos ou impor-lhes obrigações, a título das disposições do Tratado, para além das que decorrem do efeito directo das normas comunitárias. Daqui resulta que o destinatário da obrigação de suprimir e de recuperar um auxílio é sempre e exclusivamente o Estado, seja qual for o organismo público que no quadro da organização interna do Estado concedeu o auxílio ou assegurou a sua gestão.

16.
    Dado que a recorrente não dispõe de uma situação jurídica própria no sistema de auxílios estabelecido pelo Tratado, a defesa dos seus interesses é assegurada pelo Estado-Membro do qual faz parte, que dispõe, por força do artigo 173.°, segundo parágrafo, do Tratado, dum direito de recurso privilegiado contra a decisão impugnada.

17.
    Para a Comissão, o reconhecimento da legitimidade das autarquias territoriais para interporem recurso nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado teria consequências inaceitáveis. Em primeiro lugar, o sistema do Tratado em matéria de auxílios de Estado seria posto em causa se o reconhecimento das situações particulares das entidades regionais ou locais conferisse a estas últimas o direito agir judicialmente nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado. Isto permitiria a estas autarquias conceder auxílios sem notificação e interpor recurso de anulação das decisões de proibição da Comissão, mesmo contra a vontade do Estado-Membro. O papel de coordenação e de controlo que o Tratado reconhece aos Estados em matéria de auxílios concedidos no seu território seria assim posto em causa e os órgãos jurisdicionais comunitários deveriam arbitrar conflitos de interesses e de atribuições puramente internos, quando é certo que o Tratado não lhes atribui esta função (despacho do Tribunal de Justiça de 21 de Março de 1997, Région wallonne/Comissão, C-95/97, Colect., p. I-1787, n.° 7, e de 1 de Outubro de 1997, Regione Toscana/Comissão, C-180/97, Colect., p. I-5245, n.° 7).

18.
    Em segundo lugar, declarar o presente recurso admissível redundaria em aumentar o número de recursos e perturbar a boa execução das decisões da Comissão em matéria de auxílios. Não só as autarquias territoriais poderiam interpor recurso de decisões com as quais o Estado-Membro se conformou, mas a própria decisão poderia ser objecto de recursos paralelos interpostos pelos Estados para o Tribunal de Justiça e pelas entidades infra-estatais para o Tribunal de Primeira Instância. O Governo central poderia, portanto, preparando um recurso conjuntamente com uma entidade infra-estatal, contornar a obrigação de impugnar os actos comunitários dentro dos prazos. Além disso, o reconhecimento da legitimidade da recorrente obrigaria admitir que as entidades locais dos outros Estados-Membros podem assegurar a defesa dos interesses de empresas concorrentes dos beneficiários. Na prática, isto conduziria a consagrar uma actio popularis. Um direito de recurso autónomo das entidades infra-estatais desoneraria, portanto, os Estados-Membros da sua responsabilidade para com a Comunidade, prevista nos artigos 92.° e 93.° do Tratado.

19.
    A inadmissibilidade do recurso é igualmente a consequência necessária de uma aplicação coerente da jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de acções por incumprimento propostas nos termos do artigo 169.° do Tratado CE (actual artigo 226.° CE). Neste domínio, e afim de não comprometer a aplicação do direito comunitário, o Estado em causa não pode invocar o comportamento das suas autarquias territoriais para contestar a infracção que lhe é imputada.

20.
    Através do segundo fundamento, a Comissão sustenta que o direito italiano não reconhece legitimidade processual à recorrente. As obrigações que se impõem ao Estado italiano em matéria de auxílios, como as que decorrem da decisão adoptada pela Comissão, pertencem à domínio dos assuntos externos deste Estado e, por consequência, são abrangidos pela competência exclusiva do Governo central.

21.
    O terceiro fundamento consiste na falta de interesse em agir da recorrente na qualidade de pessoa colectiva na acepção do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado. Resulta do acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 1986, DEFI/Comissão (282/85, Colect., p. 2469, n.° 18), que, para ter legitimidade para impugnar uma decisão neste âmbito, a entidade infra-estatal deve demonstrar que os interesses que considera como seus se distinguem do interesse geral cuja defesa o Estado assegura. Ora, os objectivos de desenvolvimento, de modernização e de reforço do sector dos transportes rodoviários de mercadorias, prosseguidos pela recorrente através dos auxílios em causa, correspondem aos interesses defendidos pelo Estado italiano. Daqui resulta, além disso, que o acto controvertido não é uma decisão dirigida a outra pessoa, na acepção do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado.

22.
    Baseando-se nas conclusões do advogado-geral Van Gerven no processo em que foi proferido o acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 1990, Parlamento/Conselho (C-70/88, Colect., p. I-2041, I-2052), a recorrida sustenta que as entidades infra-estatais, mesmo quando defendem os seus interesses próprios, fazem-no em nome de um certo interesse comum, de forma que não devem ser incluídas na categoria das pessoas singulares ou colectivas na acepção do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado.

23.
    Através do quarto fundamento a recorrida alega que a recorrente não é directamente afectada pela decisão impugnada. A este propósito alega essencialmente que o facto de a recorrente ter fornecido, durante o processo de infracção, informações à representação permanente da Itália na União Europeia, que as transmitiu à Comissão, não basta para que a decisão impugnada a afecte directamente.

24.
    Da mesma forma, o facto de esta decisão impor a supressão dos auxílios de Estado declarados incompatíveis e o seu reembolso também não implica que a recorrente seja directamente afectada pela decisão, na medida em que o seu destinatário é o Estado italiano e em que a Região de Friuli Venezia Giulia apenas intervém no quadro das disposições de direito interno aplicáveis.

25.
    No quadro do quinto fundamento, a Comissão alega que a decisão impugnada não afecta individualmente a recorrente. Contrariamente às exigências de jurisprudência constante, a Região de Friuli Venezia Giulia não pode demonstrar que está numa situação de facto que a caracteriza em relação a qualquer outra pessoa. A participação da recorrente no processo de infracção não é susceptível de a individualizar. Da mesma forma, a recorrente não tem mais interesse na decisão impugnada do que qualquer outro organismo público que, no quadro da ordem interna, possa ser associado à sua execução.

26.
    A recorrente contesta os fundamentos invocados pela Comissão. Afirma essencialmente que a Comissão confunde o domínio de aplicação do processo de fiscalização em matéria de auxílios de Estado, previsto no artigo 92.° do Tratado, e o da protecção jurisdicional regulada pelo artigo 173.° do Tratado. O raciocínio da Comissão conduziria à conclusão de que só o Estado-Membro pode interpor recurso de anulação em matéria de auxílios, perante o facto de, como as regiões, nem os beneficiários dos auxílios nem os seus concorrentes terem, no âmbito de tal recurso, uma posição distinta da do Estado.

27.
    Além disso, a recorrente considera que a decisão impugnada lhe diz directa e individualmente respeito.

Apreciação do Tribunal

28.
    Importa recordar a título liminar que, gozando de personalidade jurídica nos termos do direito interno italiano, a recorrente pode interpor um recurso de anulação por força do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado, nos termos do qual qualquer pessoa singular ou colectiva pode interpor recurso de decisões de que seja destinatária e das decisões que, embora tomadas sob a forma de regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam directa e individualmente respeito (v. acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 30 de Abril de 1998, Vlaams Gewest/Comissão, T-314/95, Colect., p. II-717, n.° 28 e a jurisprudência citada, e despacho do Tribunal de Primeira Instância de 16 de Junho de 1998, (Communidad Autónoma de Cantabria/Conselho, T-338/97, Colect., p. II-2271, n.° 43).

29.
    Tendo a decisão impugnada sido dirigida à República italiana, o direito de agir da recorrente depende da questão de saber se esta decisão lhe diz directa e individualmente respeito.

30.
    As pessoas que não sejam destinatárias de uma decisão só podem pretender que esta lhes diz directa e individualmente respeito na acepção do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado, se a decisão as afectar devido a certas qualidades que lhes são próprias ou a uma situação de facto que as caracteriza em relação a qualquer outra pessoa e assim as individualiza de maneira análoga à do destinatário (acórdãos do Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, Colect., p. 279, 284, e de 28 de Janeiro de 1986, Cofaz e o./Comissão, 169/84, Colect., p. I-391, n.° 21). Com efeito, o objectivo desta disposição é assegurar uma protecção jurídica igualmente a quem, sem ser o destinatário do acto controvertido, é de facto afectado por este de uma maneira análoga à do destinatário (acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 1984, Commune de Differdange/Comissão, 222/83, Recueil, p. 2889, n.° 9).

31.
    Neste contexto, importa salientar que a decisão impugnada visa auxílios concedidos pela recorrente. A decisão afecta não apenas actos de que a recorrente é autora mas, mais do que isso, impede-a de exercer como entende as suas competências próprias (v., neste sentido, o acórdão Vlaams Gewest/Comissão, já referido, n.° 29). Contrariamente ao que sustenta a Comissão, a situação da recorrente não pode ser equiparada à da Communidad Autónoma de Cantabria, no processo que deu lugar ao despacho Communidad Autónoma de Cantabria/Conselho, já referido, na medida em que a individualização que esta comunidade autónoma invocava se limitava à alegação das repercussões socioeconómicas do acto impugnado sobre o seu território.

32.
    Além disso, a decisão impugnada impede a recorrente de continuar a aplicar a legislação em causa, anula os efeitos desta e obriga-a a desencadear o procedimento administrativo de reembolso dos auxílios pelos beneficiários. Apesar de esta decisão ter sido dirigida à República Italiana, as autoridades nacionais não exerceram qualquer poder de apreciação quando da sua comunicação à recorrente. Assim, o acto impugnado diz-lhe directa e individualmente respeito (v., neste sentido, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 1971, International Fruit Company e o./Comissão, 41/71, 42/70, 43/70, 44/70, Colect., p. 131, n.os 26 a 28, de 29 de Março de 1979, NTN Toyo Bearing Company e o./Conselho, 113/77, Recueil, p. 1185, n.° 11 e de 26 de Abril de 1988, Apesco/Comissão, 207/86, Colect., p. 2151, n.° 12).

33.
    Resulta do que antecede que a decisão impugnada diz directa e individualmente respeito à recorrente.

34.
    Todavia, compete ao Tribunal verificar igualmente se o interesse da recorrente em contestar a decisão impugnada não está abrangido pelo interesse do Estado italiano. A este propósito, importa declarar desde já que a recorrente é uma entidade territorial autónoma deste Estado, titular de direitos e interesses específicos. Os auxílios visados pela decisão impugnada constituem medidas tomadas a título da autonomia legislativa e financeira de que a recorrente goza directamente nos termos da Constituição italiana (artigos 115.° e 116.°). Nestas condições, a posição da recorrente, no caso em apreço, não pode ser comparada à do recorrente no processo que deu lugar ao acórdão DEFI/Comissão, já referido. Neste processo, o Governo francês dispunha do poder de determinar a gestão e a política do Comité DEFI e, portanto, de definir igualmente os interesses que este devia defender.

35.
    Daqui decorre que a recorrente pode agir contra a decisão impugnada nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado.

36.
    Esta conclusão não pode ser infirmada pelos outros fundamentos de inadmissibilidade alegados pela Comissão.

37.
    Como sustenta a recorrente com razão, o argumento extraído do sistema do Tratado em matéria de auxílios confunde o domínio de aplicação do processo de fiscalização dos artigos 92.° e 93.° do Tratado, com o da protecção jurisdicional regulada pelo artigo 173.° do Tratado.

38.
    A proibição prevista pelo artigo 92.°, n.° 1, do Tratado, visa o conjunto dos auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais sem fazer distinção entre os auxílios concedidos directamente pelo Estado ou por organismos públicos ou privados (v., a este propósito, acórdãos Steinike & Weinlig, já referido, n.° 21 e Alemanha/Comissão, já referido, n.° 17). Dado que a finalidade desta disposição é impedir os Estados-Membros de contornarem uma proibição fundamental, concedendo financiamentos públicos por intermédio de outros organismos, todos os actos praticados a este título são imputados ao Estado independentemente do seu autor real. É por esta razão que as decisões tomadas no quadro do artigo 93.° do Tratado, que visam fazer respeitar esta proibição, apenas são dirigidas ao Estado-Membro. Mostra-se, portanto, que a equiparação das entidades regionais ou locais ao Estado, neste contexto, é justificada por razões que estão ligadas à eficácia do sistema de controlo estabelecido pelos artigos 92.° e 93.° do Tratado.

39.
    A solução preconizada pela recorrida teria como consequência que, em matéria de auxílios de Estado, só os Estados-Membros, os beneficiários do auxílio (acórdão do Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 1984, Intermills/Comissão, 323/82, Recueil, p. 3809, n.° 5), os concorrentes (acórdão Cofaz e o./Comissão, já referido, n.os 21 a 31) e, em certas circunstâncias, as organizações profissionais que representam os interesses da indústria afectada pela concessão do auxílio (acórdão de 2 de Fevereiro de 1988, Van der Kooy e o./Comissão, 67/85, 68/85 e 70/85, Colect., p. 219, n.os 21 a 24, e acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 6 de Julho de 1995, AITEC e o./Comissão, T-447/93, T-448/93 e T-449/93, Colect., p. II-1971, n.os 53 e 62), poderiam beneficiar da protecção jurisdicional prevista no artigo 173.° do Tratado. As entidades públicas infra-estatais, como a recorrente, estariam portanto excluídas.

40.
    Ora, a este título importa recordar liminarmente que as disposições do Tratado relativas ao direito de acção dos particulares não podem ser interpretadas restritivamente (v., nomeadamente, acórdão Plaumann/Comissão, já referido, p. 283).

41.
    O objectivo do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado, é conceder uma protecção jurisdicional adequada a todas as pessoas singulares ou colectivas a quem os actos das instituições comunitárias digam directa e individualmente respeito. Assim, a legitimidade processual deve ser reconhecida em função deste único objectivo e o recurso de anulação deve, portanto, ser acessível a todos os que preencham as condições objectivas previstas, ou seja, ter a personalidade jurídica exigida e o acto impugnado lhes dizer directa e individualmente respeito. Esta solução impõe-se igualmente quando o recorrente é uma entidade pública que satisfaz esses critérios.

42.
    Esta conclusão é reforçada pela comparação do texto do artigo 33.°, segundo parágrafo, do Tratado CECA, com o do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado CE, que tem um alcance mais amplo. Enquanto que o Tratado CECA apenas atribui o direito de recurso de anulação às empresas e associações de empresas (v. a este propósito, despacho do Tribunal de Primeira Instância de 29 de Setembro de 1997, Région wallonne/Comissão, T-70/97, Colect., p. II-1513), o Tratado CE atribui esses direitos expressamente às «pessoas singulares ou colectivas» sem excluir as pessoas colectivas de direito público. Assim, decorre da diferença de redacção entre estas duas disposições que o princípio da protecção jurisdicional no Tratado CE tem um alcance mais amplo e não se limita às empresas.

43.
    Nestas circunstâncias, o direito das entidades públicas infra-estatais de interporem recurso de anulação nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado, em matéria de auxílios de Estado não pode depender do reconhecimento expresso da sua posição jurídica específica pelos artigos 92.° e 93.° do Tratado.

44.
    Além disso, este direito não pode pôr em causa as obrigações que incumbem aos Estados-Membros por força dos artigos 92.° e 93.° do Tratado. Estes continuam a ser as entidades responsáveis perante a Comunidade pela violação das obrigações impostas no quadro destes artigos.

45.
    Da mesma forma, o argumento extraído do artigo 169.° do Tratado, relativo à imputação ao Estado-Membro, em matéria de acções por incumprimento, das infracções cometidas pelas suas autarquias territoriais, também improcede.

46.
    Os artigos 169.° e 173.° do Tratado constituem as vias de direito autónomas que obedecem a objectivos diferentes. O artigo 169.° do Tratado tem em vista reprimir a violação pelos Estados-Membros das obrigações que lhes incumbem por força do Tratado e de cujo respeito estes continuam a ser os únicos responsáveis perante a Comunidade. Assim, o incumprimento das entidades infra-estatais não pode ser invocado pelos Estados como justificação no quadro deste processo (acórdãos do Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 1988, Comissão/Bélgica, 227/85, 228/85, 229/85 e 230/85, Colect., p. 1, n.os 9 e 10, e de 13 de Setembro de 1991, Comissão/Itália, C-33/90, Colect., p. I-5987, n.° 24).

47.
    Em contrapartida, a admissibilidade do recurso de anulação nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado só poderá ser determinada em função dos objectivos próprios deste diploma e do princípio da protecção jurisdicional segundo o qual qualquer pessoa singular ou colectiva deve ter a possibilidade de se dirigir ao poder judicial por sua própria iniciativa, ou seja, segundo a sua própria decisão, a fim de que seja censurado um acto que lhe causa prejuízo.

48.
    No que se refere ao perigo de intromissão do tribunal comunitário na repartição das competências no interior dos Estados-Membros, basta referir que o problema não se coloca porque não pertence ao órgão jurisdicional comunitário pronunciar-se sobre a repartição das competências pelas normas institucionais de direito interno entre as diferentes entidades nacionais e sobre as obrigações que lhes podem incumbir respectivamente. Aliás, as eventuais divergências de pontos de vista entre um recorrente e o Estado-Membro sobre a oportunidade de interposição de recurso de uma decisão da Comissão não tem relevância para a análise da admissibilidade deste recurso nos termos do artigo 173.°, quarto parágrafo, do Tratado.

49.
    Além disso, o reconhecimento dum interesse próprio da recorrente em contestar a decisão impugnada também não poderá transformar o recurso de anulação interposto por pessoas singulares e colectivas numa espécie de actio popularis, como pretende a Comissão. As condições objectivas de admissibilidade recordadas no n.° 41 constituem sempre exigências a que qualquer recorrente deve responder para poder impugnar um acto de que não é destinatário.

50.
    Finalmente, no que se refere à ilegitimidade da recorrente no domínio das relações externas, nos termos do direito italiano, basta referir que tal facto não tem relevância para determinar as possibilidades de interpor recurso de anulação para o tribunal comunitário. Com efeito, como foi decidido acima (v., nomeadamente, n.° 41), as únicas condições de admissibilidade pertinentes são as previstas no artigo 173.° do Tratado.

51.
    Por todas as razões acima expostas deve ser julgada improcedente a questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e ordenado o prosseguimento do processo.

Quanto às despesas

52.
    As despesas são reservadas para final.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção Alargada)

decide:

1.
    A questão prévia de inadmissibilidade suscitada pela Comissão é julgada improcedente.

2.
    O processo prosseguirá quanto ao mérito.

3.
    Reservam-se as despesas para final.

Vesterdorf
Bellamy
Moura Ramos

Pirrung

Mengozzi

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 7 de Junho de 1999.

O secretário

O presidente

H. Jung

B. Vesterdorf


1: Língua do processo: italiano.