Language of document : ECLI:EU:T:2009:418

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

9 de janeiro de 2015 (*) (i)

«Reenvio prejudicial ― Tramitação prejudicial urgente ― Cooperação judiciária em matéria civil ― Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental ― Rapto de criança ― Regulamento (CE) n.° 2201/2003 ― Artigo 11.°, n.os 7 e 8»

No processo C‑498/14 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pela cour d’appel de Bruxelles (Bélgica), por decisão de 7 de novembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de novembro de 2014, no processo

RG

contra

SF,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen (relator), presidente de secção, K. Jürimaë, J. Malenovský, M. Safjan e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: V. Tourrès, administrador,

visto o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de 7 de novembro de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de novembro de 2014, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o disposto no artigo 107.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vista a decisão de 18 de novembro de 2014 da Quarta Secção, de deferir esse pedido,

vistos os autos e após a audiência de 11 de dezembro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo belga, por C. Pochet, J.‑C. Halleux e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por M. Wilderspin, na qualidade de agente,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 11.°, n.os 7 e 8, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO L 338, p. 1, a seguir «regulamento»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe RG a SF, no que respeita à responsabilidade parental em relação ao filho de ambos, TE, retido na Polónia por SF.

 Quadro jurídico

 Convenção de Haia de 1980

3        O artigo 3.° da Convenção sobre os aspetos civis do rapto internacional de crianças, celebrada em 25 de outubro de 1980, em Haia (a seguir «Convenção de Haia de 1980»), estipula:

«A deslocação ou retenção da criança é considerada ilícita quando:

a)      tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e

b)      este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.»

4        O artigo 12.° da referida Convenção tem a seguinte redação:

«Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.° e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.

[...]»

5        O artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980 prevê:

«Sem prejuízo das disposições contidas no artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:

a)      que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou

b)      que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

[...]»

6        A Convenção de Haia de 1980 entrou em vigor em 1 de dezembro de 1983. Todos os Estados‑Membros da União Europeia são partes contratantes na Convenção.

 Direito da União

7        Os considerandos 12, 17, 18 e 33 do regulamento têm a seguinte redação:

«(12)      As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

[...]

(17)      Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a Convenção de Haia [de 1980], completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.° Os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efetuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança raptada.

(18)      Em caso de decisão de recusa de regresso, proferida ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980, o tribunal deve informar o tribunal competente ou a autoridade central do Estado‑Membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Este tribunal, se a questão ainda não lhe tiver sido submetida, ou a autoridade central deve notificar as partes. Este dever não deve impedir a autoridade central de notificar também as autoridades públicas competentes, de acordo com o direito interno.

[...]

(33)      O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir ‘Carta’]; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.° da Carta.»

8        O artigo 1.°, n.os 1 e 2, do regulamento dispõe:

«1.      O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:

[…]

b)      à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.

2.      As matérias referidas na alínea b) do n.° 1 dizem, nomeadamente, respeito:

a)      ao direito de guarda e ao direito de visita;

[…]»

9        Nos termos do artigo 2.° do regulamento:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)      ‘Tribunal’, todas as autoridades que nos Estados‑Membros têm competência nas matérias abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento por força do artigo 1.°

[…]

7)      ‘Responsabilidade parental’, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita.

8)      ‘Titular da responsabilidade parental’, qualquer pessoa que exerça a responsabilidade parental em relação a uma criança.

9)      ‘Direito de guarda’, os direitos e as obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência.

10)      ‘Direito de visita’, nomeadamente o direito de levar uma criança, por um período limitado, para um lugar diferente do da sua residência habitual.

11)      ‘Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança’, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a)      Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção;

e

b)      No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera‑se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre o local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade.»

10      O artigo 8.° do regulamento, sob a epígrafe «Competência geral», prevê:

«1.      Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.      O n.° 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.°, 10.° e 12.°»

11      O artigo 11.° do regulamento, sob a epígrafe «Regresso da criança», dispõe:

«1.      Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na [Convenção de Haia de 1980], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

[…]

3.      O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança, nos termos do disposto no n.° 1, deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional.

Sem prejuízo do disposto no primeiro parágrafo, o tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.

[…]

6.      Se um tribunal tiver proferido uma decisão de retenção, ao abrigo do artigo 13.° da Convenção d[e] Haia de 1980, deve imediatamente enviar, diretamente ou através da sua autoridade central, uma cópia dessa decisão e dos documentos conexos, em especial as atas das audiências, ao tribunal competente ou à autoridade central do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da sua retenção ou deslocação ilícitas, tal como previsto no direito interno. O tribunal deve receber todos os documentos referidos no prazo de um mês a contar da data da decisão de retenção.

7.      Exceto se uma das partes já tiver instaurado um processo nos tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da retenção ou deslocação ilícitas, o tribunal ou a autoridade central que receba a informação referida no n.° 6 deve notificá‑la às partes e convidá‑las a apresentar as suas observações ao tribunal, nos termos do direito interno, no prazo de três meses a contar da data da notificação, para que o tribunal possa analisar a questão da guarda da criança.

Sem prejuízo das regras de competência previstas no presente regulamento, o tribunal arquivará o processo se não tiver recebido observações dentro do prazo previsto.

8.      Não obstante uma decisão de retenção, proferida ao abrigo do artigo 13.° da Convenção d[e] Haia de 1980, uma decisão posterior que exija o regresso da criança, proferida por um tribunal competente ao abrigo do presente regulamento, tem força executória nos termos da secção 4 do capítulo III, a fim de garantir o regresso da criança.»

12      O artigo 15.° do regulamento, sob a epígrafe «Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação», dispõe, no seu n.° 1:

«Excecionalmente, os tribunais de um Estado‑Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado‑Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspetos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança:

a)      suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado‑Membro, nos termos do n.° 4; ou

b)      pedir ao tribunal de outro Estado‑Membro que se declare competente nos termos do n.° 5.»

 Direito belga

13      O artigo 1322 decies do code judiciaire (Código Judiciário belga), conforme alterado pela Lei de 30 de julho de 2013 relativa à criação dos tribunais de família (a seguir «Código Judiciário»), tem a seguinte redação:

«§ 1.             A decisão de retenção da criança proferida no estrangeiro e os documentos que a acompanham, transmitidos à autoridade central belga em aplicação do artigo 11.°, [n.°] 6, do Regulamento do Conselho referido no artigo 1322 bis, 3º, são enviados por carta registada ao secretário do tribunal de première instance da sede da cour d’appel em cuja jurisdição a criança tinha residência habitual imediatamente antes da sua deslocação ou retenção ilícitas.

§ 2.       Após a receção dos documentos e no prazo máximo de três dias úteis, o secretário notifica às partes e ao Ministério Público, por ofício judicial, a informação contida no artigo 11.°, [n.°] 7, do Regulamento do Conselho referido no § 1. O ofício judicial contém:

1º      o texto do artigo 11.° do Regulamento do Conselho a que se refere o artigo 1322 bis, 3º;

2º      um convite às partes para apresentarem observações, a entregar na Secretaria do tribunal no prazo de três meses a contar da notificação. A apresentação destas observações desencadeia a instauração da ação no tribunal de la famille de première instance.

§ 3.      Se pelo menos uma das partes apresentar observações, o secretário convoca imediatamente as partes para a primeira audiência útil.

§ 4.      A instauração da ação no tribunal de la famille suspende a instância nos processos intentados noutros tribunais chamados a decidir um litígio em matéria de responsabilidade parental ou um litígio conexo.

§ 5.      No caso de as partes não apresentarem observações ao tribunal no prazo previsto no § 2, 2º, o tribunal de la famille profere um despacho em que refere esse facto, despacho que o secretário notifica às partes, à autoridade central e ao Ministério Público.

§ 6.       A decisão proferida sobre a questão da guarda da criança, em aplicação do artigo 11.°, [n.°] 8, do Regulamento do Conselho referido no § 1, pode também, a pedido de uma das partes, abranger o direito de visita, no caso de essa decisão ordenar o regresso da criança à Bélgica.

§ 7.      O secretário notifica a decisão prevista no § 6 às partes, ao Ministério Público e à autoridade central belga.

§ 8.      A autoridade central belga tem competência exclusiva para transmitir a decisão e os documentos que a acompanham às autoridades competentes do Estado onde a decisão de retenção foi proferida.

§ 9.      Para a aplicação do artigo 11.°, n.os 7 e 8, do Regulamento do Conselho a que se refere o § 1, procede‑se à audição da criança em conformidade com o artigo 42.°, n.° 2, alínea a), do referido regulamento e com o Regulamento (CE) n.° 1206/2001 do Conselho, de 28 de maio de 2001, relativo à cooperação entre os tribunais dos Estados‑Membros no domínio da obtenção das provas em matéria civil ou comercial.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

14      TE nasceu na Polónia, em 21 de dezembro de 2011, de uma relação entre SF, de nacionalidade polaca, e RG, de nacionalidade britânica, residente na Bélgica.

15      A mãe [SF] e a criança instalaram‑se em Bruxelas (Bélgica) durante os meses de julho e agosto de 2012, quando a criança tinha sete meses. A partir da sua instalação, a criança vivia com a mãe e estava regularmente com o pai.

16      Em agosto e setembro de 2013, o pai e a mãe participaram numa mediação local para tentarem chegar a acordo sobre a partilha do alojamento da criança, mas sem resultado.

17      Em 16 de outubro de 2013, a mãe anunciou ao pai que ia de férias com o filho para a Polónia.

18      Por petição entrada em 18 de outubro de 2013, o pai intentou uma ação no tribunal de la jeunesse de Bruxelles, destinada a obter uma decisão sobre as modalidades do exercício do poder paternal e sobre o alojamento do filho.

19      Por citação de 23 de outubro de 2013, o pai apresentou também ao juiz das medidas provisórias um pedido urgente para a fixação de um alojamento secundário do filho no seu domicílio.

20      Quando o pai se apercebeu de que a mãe não tinha a intenção de regressar à Bélgica com o filho de ambos, alterou os seus pedidos perante o juiz das medidas provisórias e no tribunal de la jeunesse de Bruxelles e solicitou, nomeadamente, o exercício exclusivo do poder paternal, o alojamento principal do filho e que a mãe fosse proibida de sair do território belga com o filho. Por seu turno, a mãe contestou a competência internacional dos tribunais belgas, pedindo a aplicação do artigo 15.° do regulamento e a remessa do processo aos tribunais polacos, que têm uma ligação especial com a situação do filho, uma vez que este reside na Polónia e foi, entretanto, inscrito num infantário.

21      Por despacho de 19 de dezembro de 2013, o juiz das medidas provisórias declarou‑se competente e, a título provisório e por razões de urgência, julgou procedentes os pedidos do pai.

22      Por sentença de 26 de março de 2014, o tribunal de la jeunesse de Bruxelles, depois de ter confirmado a sua competência, decidiu que o poder paternal seria exercido conjuntamente pelos progenitores, atribuiu à mãe o alojamento principal da criança e concedeu ao pai, a título provisório, o alojamento secundário em fins de semana alternados, pelo que teria de se deslocar à Polónia.

23      Considerando que esta sentença validava a deslocação ilícita do filho comum para a Polónia e reconhecia uma consequência jurídica positiva a esta atuação unilateral, o pai interpôs recurso da referida sentença para a cour d’appel de Bruxelles, pedindo, a título principal, que lhe fosse atribuído o exercício exclusivo do poder paternal e o alojamento principal do filho.

24      Paralelamente ao processo em curso perante os tribunais belgas, o pai apresentou à autoridade central belga, em 20 de novembro de 2013, um pedido de regresso imediato do filho à Bélgica, segundo o processo de regresso regulado pela Convenção de Haia de 1980.

25      Em 13 de fevereiro de 2014, o tribunal distrital de Płońsk (Polónia) declarou a ilicitude da deslocação da criança pela mãe e que a residência habitual da criança antes da sua deslocação era na Bélgica. Não obstante, o tribunal decidiu proferir uma decisão de retenção da criança, com fundamento no artigo 13.°, alínea b), da Convenção de Haia de 1980.

26      A autoridade central belga, que recebeu da autoridade central polaca uma cópia da referida decisão de retenção e dos documentos pertinentes, apresentou esse dossiê, em 10 de abril de 2014, na Secretaria do tribunal de première instance francophone de Bruxelles, que convidou as partes a apresentarem os seus pedidos. A apresentação dos pedidos pelo pai, nesse tribunal, em 9 de julho de 2014, desencadeou a instauração da ação junto do presidente do tribunal de première instance francophone de Bruxelles, que era competente, em conformidade com o artigo 1322 decies do Código Judiciário, na versão aplicável antes da entrada em vigor da Lei de 30 de julho de 2013 relativa à criação dos tribunais de família, para examinar a questão da guarda da criança, nos termos do artigo 11.°, n.os 6 e 7, do regulamento. Em virtude do artigo 1322 decies do Código Judiciário, a instauração da ação nesse tribunal determina a suspensão da instância nos processos instaurados nos órgãos jurisdicionais chamados a conhecer de um litígio em matéria de responsabilidade parental ou de um litígio conexo. Na sequência da entrada em vigor da referida lei, o processo foi remetido ao tribunal de la famille de Bruxelles.

27      Por acórdão interlocutório de 30 de julho de 2014, proferido à revelia da mãe, a cour d’appel de Bruxelles confirmou a sentença do tribunal de la jeunesse de Bruxelles na medida em que reconhecia a competência internacional do tribunal belga para se pronunciar sobre as questões relativas à responsabilidade parental. Em contrapartida, constatando que as partes tinham entretanto apresentado ao presidente do tribunal de première instance francophone de Bruxelles um pedido ao abrigo do artigo 11.°, n.os 6 e 7, do regulamento, a cour d’appel de Bruxelles suspendeu a instância relativamente à decisão sobre o mérito do litígio e pediu à autoridade central da Bélgica para juntar aos autos o dossiê  completo que esta autoridade tinha apresentado, em aplicação do artigo 1322 decies do Código Judiciário, na Secretaria do tribunal de première instance francophone de Bruxelles. Por último, na expectativa do desfecho, nesse tribunal, do processo previsto no artigo 11.°, n.os 6 a 8, do regulamento, a cour d’appel de Bruxelles decidiu a título provisório e ordenou à mãe que comunicasse ao pai o endereço do seu novo lugar de residência com o filho e fixou as modalidades do exercício do direito de visita do pai.

28      Uma vez que a mãe recusou comunicar o endereço onde reside com o filho, o pai não pôde exercer o direito de visita que a cour d’appel lhe tinha conferido.

29      Paralelamente aos processos instaurados na Bélgica pelo pai, a mãe intentou na Polónia várias ações relativas à responsabilidade parental. Os tribunais polacos, depois de terem verificado que o tribunal belga tinha sido demandado em primeiro lugar e tinha reconhecido a sua competência internacional, declararam‑se incompetentes na matéria.

30      Por sentença definitiva proferida em 8 de outubro de 2014, o tribunal de la famille de Bruxelles remeteu o processo à cour d’appel de Bruxelles, com o fundamento de que, antes da deslocação ilícita do filho, já o pai tinha instaurado um processo nos tribunais belgas como previsto no artigo 11.°, n.° 7, do regulamento, e que o debate quanto ao mérito estava pendente na referida cour d’appel.

31      A cour d’appel de Bruxelles entende que, segundo o direito belga, não pode considerar que a sentença de remessa proferida pelo tribunal de la famille de Bruxelles em 8 de outubro de 2014 lhe tenha atribuído o conhecimento do processo previsto no artigo 11.°, n.os 6 a 8, do regulamento. A referida cour d’appel entende, com efeito, que apenas podia ser chamada a conhecer do processo mediante um recurso dessa sentença interposto por uma das partes.

32      Esse órgão jurisdicional, tendo em conta as exigências de celeridade e de eficácia a que deve obedecer o processo previsto no artigo 11.° n.os 6 a 8, do regulamento, interroga‑se sobre se o n.° 7 deste artigo se opõe a que o direito de um Estado‑Membro atribua a um tribunal especializado a competência exclusiva para conhecer desse processo e disponha ao mesmo tempo que todos os processos relativos ao poder paternal instaurados num órgão jurisdicional serão suspensos a partir do momento em que esse tribunal especializado seja demandado.

33      Assim, a cour d’appel de Bruxelles considera que deve ser submetida ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 11.°, n.os 7 e 8, do regulamento, para poder determinar o tribunal belga competente ao abrigo do direito da União e, em especial, para decidir se compete a essa cour d’appel, chamada a pronunciar‑se em matéria de responsabilidade parental, julgar em conformidade com o processo previsto no artigo 11.°, n.os 6 a 8, do regulamento.

34      Nestas condições, a cour d’appel de Bruxelles decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Pode o artigo 11.°, n.os 7 a 8, do [regulamento] ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro:

–        [dê preferência], nas situações de rapto parental e [relativamente ao processo] previsto nessas [disposições], [à] especialização dos tribunais, mesmo quando já tenha sido intentado [num tribunal] um processo […] relativo à responsabilidade parental em relação à criança?

–        retire ao juiz [chamado a pronunciar‑se] sobre a responsabilidade parental em relação à criança a competência para decidir sobre a guarda da criança, quando o mesmo é competente, tanto no plano internacional como no plano interno, para decidir sobre as questões de responsabilidade parental em relação à criança?»

 Quanto à tramitação prejudicial urgente

35      A cour d’appel de Bruxelles solicitou que o reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 107.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, devido à extrema urgência do litígio no processo principal. Com efeito, este diz respeito ao exercício do poder paternal e à guarda da criança num contexto em que existe um risco de deterioração irreparável dos laços entre o pai e o filho, que continua atualmente privado de contacto com o pai.

36      A este respeito, há que observar, em primeiro lugar, que o reenvio prejudicial tem por objeto a interpretação do regulamento que foi adotado em especial com fundamento no artigo 61.°, alínea c), CE, atual artigo 67.° TFUE, que figura no título V da parte III do Tratado FUE, relativa ao espaço de liberdade, segurança e justiça, de modo que o referido reenvio está abrangido pelo âmbito de aplicação da tramitação urgente definido no artigo 107.° do Regulamento de Processo.

37      Em segundo lugar, decorre da decisão de reenvio que SF se recusa a dar cumprimento ao acórdão proferido pela cour d’appel de Bruxelles em 30 de julho de 2014, que, por um lado, lhe ordenou que comunicasse a RG, nos oito dias seguintes à notificação do acórdão, o endereço do seu novo lugar de residência com a criança e, por outro, declarou que RG exercerá um direito de visita a TE, um fim de semana em cada três, sob reserva de um acordo entre as partes.

38      A este respeito, há que observar que o presente processo diz respeito a uma criança de três anos, que está separada do pai há mais de um ano. Assim, o prolongamento da situação atual, caracterizada, além do mais, pela grande distância entre a residência do pai e a residência do filho, poderia comprometer seriamente a futura relação deste com o pai.

39      Nestas condições, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, a Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidiu, com fundamento no artigo 108.º do Regulamento de Processo, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de o pedido de decisão prejudicial ser sujeito a tramitação urgente.

 Quanto à questão prejudicial

40      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 11.°, n.os 7 e 8, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro atribua a um tribunal especializado a competência para examinar as questões do regresso ou da guarda da criança no âmbito do processo previsto nessas disposições, mesmo quando um órgão jurisdicional já tiver sido chamado a pronunciar‑se sobre a responsabilidade parental em relação à criança.

41      Deve recordar‑se que o regulamento não tem por objetivo unificar as normas de direito substantivo e processual dos diferentes Estados‑Membros. Contudo, a aplicação dessas regras nacionais não deve prejudicar o efeito útil do regulamento (v., neste sentido, acórdão Rinau, C‑195/08 PPU, EU:C:2008:406, n.° 82).

42      No presente contexto, importa igualmente salientar que decorre do considerando 33 do regulamento que este reconhece os direitos fundamentais e observa os princípios consagrados na Carta, com vista, designadamente, a garantir o respeito dos direitos fundamentais da criança, enunciados no artigo 24.° desta, entre os quais, nomeadamente, o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores (v., neste sentido, acórdão McB, C‑400/10 PPU, EU:C:2010:582, n.° 60).

43      Nos termos do artigo 11.°, n.° 6, do regulamento, se, na sequência de um rapto de criança, um tribunal proferir uma decisão de retenção ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980, deve imediatamente enviar uma cópia dessa decisão e dos documentos conexos ao tribunal competente ou à autoridade central do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da sua retenção ou deslocação ilícitas, tal como previsto no direito interno. Há que observar que a remissão expressa para o direito interno indica, nomeadamente, que cabe ao Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação determinar, respeitando os objetivos do regulamento, o tribunal competente para se pronunciar sobre a questão do regresso da criança, depois de ter sido proferida uma decisão de retenção no Estado‑Membro para onde a criança foi raptada.

44      Por seu turno, o artigo 11.°, n.° 7, do regulamento prevê que, quando seja adotada uma decisão judicial de retenção, exceto se já tiver sido instaurado um processo nos tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da retenção ou deslocação ilícitas, o tribunal ou a autoridade central que receba a informação relativa a essa decisão judicial deve notificá‑la às partes e convidá‑las a apresentar observações ao tribunal, para que este possa analisar a questão da guarda da criança. Ora, nem a referida disposição do regulamento nem o seu artigo 11.°, n.° 6, identificam o tribunal nacional competente para examinar a questão da guarda da criança na sequência de uma decisão de retenção. O mesmo se diga do n.° 8 deste artigo.

45      A este respeito, embora, em conformidade com o artigo 11.°, n.° 7, do regulamento, esse tribunal ou a autoridade central devam notificar às partes uma cópia da decisão de retenção proferida ao abrigo do artigo 13.° da Convenção de Haia de 1980, a fim de permitir, se necessário, a análise da questão da guarda da criança, exceto se já tiver sido instaurado um processo nos tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da retenção ou deslocação ilícitas, a questão de saber se, quando tal processo tiver sido instaurado, o tribunal ao qual o Estado‑Membro atribui competência para o referido exame perde a sua competência a favor de outros tribunais desse mesmo Estado‑Membro é decidida no âmbito do direito nacional.

46      Com efeito, como refere o advogado‑geral no n.° 60 da sua tomada de posição, o artigo 11.°, n.° 7, do regulamento não é uma norma destinada a determinar o tribunal competente, mas antes uma norma de caráter técnico cujo objeto principal é determinar as modalidades de notificação das informações relativas à decisão de retenção.

47      Por outro lado, é útil recordar que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, não se pode deduzir do artigo 11.°, n.° 7, do regulamento que uma decisão sobre a guarda da criança constitui necessariamente um requisito prévio da adoção, se for caso disso, de uma decisão que ordena o regresso da criança. Com efeito, esta última decisão intermédia também contribui para a realização do objetivo dos procedimentos administrativos e judiciais, a saber, a regularização da situação da criança (v., neste sentido, acórdão Povse, C‑211/10 PPU, EU:C:2010:400, n.° 53).

48      A alegação do Governo belga de que, segundo o direito processual nacional, o tribunal especializado chamado a pronunciar‑se sobre a questão do regresso da criança em aplicação do artigo 11.°, n.os 6 a 8, do regulamento podia, a pedido de uma das partes, remeter o processo à cour d’appel chamada a conhecer do litígio relativo à responsabilidade parental, para que esta se pronunciasse sobre a questão do regresso e da guarda da criança, tem por objeto a interpretação do direito nacional e não é da competência do Tribunal de Justiça. Cabe, assim, aos tribunais belgas pronunciarem‑se sobre a referida questão.

49      Decorre do que antecede que a determinação do tribunal nacional competente para examinar as questões do regresso ou da guarda da criança no âmbito do processo previsto no artigo 11.°, n.os 6 a 8, do regulamento cabe aos Estados‑Membros, e isso mesmo no caso de, na data da notificação da decisão de retenção de uma criança, um órgão jurisdicional já ter sido chamado a pronunciar‑se sobre a responsabilidade parental em relação a essa criança.

50      No entanto, como decorre do n.° 41 do presente acórdão, essa determinação não deve prejudicar o efeito útil do regulamento.

51      Ora, o facto de um Estado‑Membro atribuir a um tribunal especializado a competência para examinar as questões do regresso ou da guarda da criança no âmbito do processo previsto no artigo 11.°, n.os 7 e 8, do regulamento, mesmo quando um órgão jurisdicional já tiver sido chamado a pronunciar‑se sobre a responsabilidade parental em relação à criança, não pode, enquanto tal, prejudicar o efeito útil do regulamento.

52      Contudo, há que garantir que, numa situação como a que está em causa no processo principal, essa atribuição de competência respeite os direitos fundamentais da criança tal como enunciados no artigo 24.° da Carta e, em especial, o objetivo de celeridade desses processos.

53      No que respeita ao objetivo de celeridade, cabe recordar que, ao aplicar as disposições de direito interno pertinentes, o tribunal nacional chamado a interpretá‑las é obrigado a fazê‑lo à luz do direito da União, nomeadamente do regulamento.

54      Tendo em conta o que antecede, há que responder à questão submetida que o artigo 11.°, n.os 7 e 8, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que não se opõe, em princípio, a que um Estado‑Membro atribua a um tribunal especializado competência para examinar as questões do regresso ou da guarda da criança no âmbito do processo previsto nessas disposições, mesmo quando um órgão jurisdicional já tiver sido chamado a pronunciar‑se sobre a responsabilidade parental em relação à criança.

 Quanto às despesas

55      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 11.°, n.os 7 e 8, do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe, em princípio, a que um EstadoMembro atribua a um tribunal especializado competência para examinar as questões do regresso ou da guarda da criança no âmbito do processo previsto nessas disposições, mesmo quando um órgão jurisdicional já tiver sido chamado a pronunciarse sobre a responsabilidade parental em relação à criança.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.


i Na sequência de um pedido de anonimização, os nomes que figuram nos n.os 2, 14, 15 e 37 foram substituídos por letras.