Language of document : ECLI:EU:C:2017:957

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 7 de dezembro de 2017(1)

Processo C557/16

Astellas Pharma GmbH

sendo intervenientes:

Helm AG,

Lääkealan turvallisuus‑ ja kehittämiskeskus (FIMEA)

[pedido de decisão prejudicial do Oorkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia)]

«Pedido de decisão prejudicial — Medicamentos para uso humano — Emissão de uma autorização de introdução no mercado para um genérico de um medicamento de referência — Procedimento descentralizado — Poderes da autoridade competente do Estado‑Membro envolvido — Fiscalização jurisdicional — Determinação do período de exclusividade dos dados»






I.      Introdução

1.        Em 2014, a Helm AG obteve uma autorização finlandesa de introdução no mercado para um genérico de medicamentos anteriormente desenvolvidos pela Astellas Pharma GmbH. Essa autorização foi concedida na sequência do procedimento descentralizado regulado pela Diretiva 2001/83/CE (2). Nesse procedimento, a Finlândia era um dos Estados‑Membros envolvidos. A Dinamarca atuou como Estado‑Membro de referência.

2.        A Astellas Pharma GmbH discordou do cálculo do período de exclusividade dos dados realizado no âmbito da apreciação do pedido da Helm AG e impugnou a autorização de introdução no mercado emitida pela autoridade finlandesa competente nos órgãos jurisdicionais finlandeses.

3.        A questão jurídica que seguidamente foi submetida ao Tribunal de Justiça prende‑se com a competência dos órgãos nacionais para fiscalizar essa apreciação: pode a autoridade reguladora de um Estado‑Membro envolvido, como a autoridade finlandesa competente, e/ou os órgãos jurisdicionais do mesmo Estado‑Membro envolvido fiscalizar uma decisão anterior de determinação do período de exclusividade dos dados tomada no âmbito do procedimento descentralizado?

II.    Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

4.        Em 19 de julho de 2005, nos termos da legislação nacional aplicável (3), a autoridade competente da República Federal da Alemanha concedeu à Astellas Pharma GmbH (a seguir «Astellas Pharma») uma autorização de introdução no mercado para o medicamento Ribomustin, cuja substância ativa era a bendamustina (a seguir «AIM do Ribomustin de 2005»).

5.        Em 15 de julho de 2010, a Astellas Pharma obteve uma autorização de introdução no mercado para outro medicamento, denominado Levact, cuja substância ativa também é a bendamustina, mas que tem outras indicações terapêuticas (a seguir «AIM do Levact de 2010»). A AIM do Levact de 2010 foi concedida pela autoridade francesa competente, no âmbito do procedimento descentralizado previsto no artigo 28.o, n.o 3, da Diretiva 2001/83.

6.        Em 7 de novembro de 2012, a Helm AG (a seguir «Helm») apresentou um pedido de autorização de introdução no mercado para o medicamento Alkybend, também no âmbito do procedimento descentralizado. A Helm escolheu a Dinamarca como Estado‑Membro de referência, e a Finlândia e a Noruega como Estados‑Membros envolvidos. O pedido indicava que o Alkybend é um medicamento genérico na aceção do artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 (4), e indicava como medicamento de referência o Levact.

7.        Em 17 de janeiro de 2014, a autoridade dinamarquesa competente emitiu um relatório de avaliação segundo o qual, todos os Estados que tinham participado no procedimento descentralizado, tinham utilizado o Levact como medicamento de referência. Porém, para calcular o período de exclusividade dos dados, o medicamento de referência era o Ribomustin, porque se considerava que a AIM do Levact de 2010 estava abrangida pela autorização global de introdução no mercado (5) desse medicamento. O relatório de avaliação referia ainda que o período de exclusividade dos dados tinha terminado nos Estados que, à data relevante, tinham optado por um período de proteção dos dados de seis anos (6).

8.        Em 28 de março de 2014, a autoridade competente Lääkealan turvallisuus‑ ja kehittämiskeskus (Agência central para a segurança e o desenvolvimento de medicamentos, a seguir «FIMEA») emitiu uma autorização nacional de introdução no mercado para o Alkybend (a seguir «AIM do Alkybend de 2014»).

9.        A Astellas Pharma interpôs um recurso dessa decisão para o Helsingin hallinto‑oikeus (Tribunal Administrativo de Helsínquia, Finlândia), que negou provimento ao recurso. Considerou, inter alia, que a Astellas Pharma tinha obtido a primeira autorização de introdução no mercado para o medicamento de referência (Ribomustin) em 19 de julho de 2005. O período de exclusividade dos dados, que começava a contar a partir dessa data e era aplicável também ao Levact, era de seis anos. Por conseguinte, a FIMEA podia emitir a AIM do Alkybend de 2014.

10.      A Astellas Pharma recorreu dessa decisão para o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia), o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a anulação da decisão proferida em primeira instância e da AIM do Alkybend de 2014.

11.      No entender da Astellas Pharma, o período de exclusividade dos dados aplicável deveria ter sido calculado a partir da AIM do Levact de 2010. A AIM do Ribomustin de 2005 não era relevante porque não tinha sido concedida em conformidade com a Diretiva 2001/83. Essa autorização de introdução no mercado não se tornou definitiva devido às divergências existentes entre a autoridade alemã competente e a Astellas Pharma em relação a algumas das indicações terapêuticas inicialmente incluídas no pedido. A emissão da autorização de introdução no mercado para o Levact exigia estudos adicionais exaustivos. O período de exclusividade dos dados aplicável deveria ter sido examinado independentemente do período de exclusividade dos dados que se aplicava ao Ribomustin.

12.      A FIMEA concluiu pedindo ao órgão jurisdicional de reenvio que negasse provimento ao recurso. O período de exclusividade dos dados foi calculado a partir da emissão da AIM do Ribomustin de 2005. O período de exclusividade dos dados de seis anos aplicável à Finlândia tinha terminado no momento da apresentação do pedido relativo ao Alkybend em 2012. A forma farmacêutica, a dosagem e o modo de administração do Alkybend respeitavam a uma autorização de introdução no mercado preexistente.

13.      A Helm concluiu igualmente pedindo ao órgão jurisdicional de reenvio que negasse provimento ao recurso, alegando que a AIM do Ribomustin de 2005 estava em conformidade com a Diretiva 2001/83 e que não podia ser objeto de impugnação na Finlândia. No seu entender, os Estados‑Membros envolvidos no procedimento descentralizado só podem recusar uma autorização nacional de introdução no mercado com base na existência de um potencial risco grave para a saúde pública. Por conseguinte, a FIMEA não tinha competência para fiscalizar a legalidade da AIM do Ribomustin de 2005.

14.      Nessas circunstâncias, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) suspendeu a instância e submeteu as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

«(1.)      Devem os artigos 28.o, n.o 5, e 29.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83/CE […] ser interpretados no sentido de que a autoridade competente do Estado‑Membro [envolvido] não tem competência própria, no âmbito da concessão de autorização nacional de introdução no mercado de um medicamento genérico através do procedimento descentralizado previsto no artigo 28.o, n.o 3, da diretiva, para determinar o momento em que começou a correr o [período de exclusividade] dos dados do medicamento de referência?

(2)      No caso de a resposta à primeira questão ser no sentido de que a autoridade competente do Estado‑Membro não tem competência própria no âmbito da concessão da autorização nacional de introdução no mercado para determinar o momento em que começou a correr o [período de exclusividade] dos dados do medicamento de referência:

—      O órgão jurisdicional desse Estado‑Membro, na sequência de oposição deduzida pelo titular da autorização de introdução no mercado do medicamento de referência, deve determinar o momento em que o [período de exclusividade] dos dados começou a correr, ou está sujeito à mesma restrição que se aplica à referida autoridade do Estado‑Membro?

—      Como se assegura, neste caso, no órgão jurisdicional do Estado‑Membro [envolvido], ao titular da autorização de introdução no mercado do medicamento de referência o direito à tutela jurisdicional efetiva no sentido do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 10.o da Diretiva 2001/83, no tocante à proteção dos dados?

—      O direito de ação para assegurar o direito à tutela jurisdicional efetiva implica o dever de o órgão jurisdicional do Estado‑Membro apreciar se a autorização de introdução no mercado original obtida noutros Estados‑Membros foi concedida de acordo com as disposições da Diretiva 2001/83?»

15.      Apresentaram observações escritas a Astellas Pharma, a Helm, os Governos belga, alemão, irlandês, finlandês, do Reino Unido e da Noruega, bem como a Comissão Europeia.

16.      A Astellas Pharma, a Helm, os Governos espanhol, irlandês, finlandês, do Reino Unido e da Noruega, e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência que teve lugar em 20 de setembro de 2017.

III. Apreciação

17.      Resulta dos factos expostos no despacho de reenvio que o pedido de autorização de introdução no mercado do Alkybend foi apresentado no âmbito do procedimento abreviado. Esse procedimento é aplicável, nomeadamente, às autorizações de introdução no mercado de medicamentos genéricos. Em termos simples, o procedimento abreviado, regulado pelo artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83, significa que o requerente pode remeter para os resultados de ensaios toxicológicos e farmacológicos ou para os resultados de ensaios clínicos previamente realizados para o medicamento de referência. Se o requerente puder demonstrar que o medicamento a que se refere o pedido de autorização de introdução no mercado é um genérico de um medicamento de referência (7), não é obrigado a apresentar esses dados ex novo.

18.      Em substância, o procedimento abreviado pode ser utilizado depois de ter terminado o período de exclusividade dos dados aplicável ao medicamento de referência. Ao prever um período de exclusividade dos dados, o artigo 10.o da Diretiva 2001/83 protege os direitos do titular da autorização inicial de introdução no mercado concedida para o medicamento de referência em causa, cujos dados são invocados pelo requerente que pretende fabricar ou introduzir no mercado o medicamento genérico (8).

19.      O período de exclusividade dos dados é atualmente de oito anos (9). Porém, como decorre do despacho de reenvio, ao abrigo do regime jurídico anterior, a Finlândia optou por um período de exclusividade dos dados de seis anos (10).

20.      Este esclarecimento adicional facilita a compreensão dos factos na origem do litígio no processo principal. Importa salientar, porém, que o caso submetido ao Tribunal de Justiça diz respeito a questões sistémicas, gerais, relacionadas com procedimentos e com as competências dos intervenientes nesses procedimentos. O órgão jurisdicional de reenvio questiona a possibilidade e o potencial alcance da fiscalização administrativa e jurisdicional da determinação do período de exclusividade dos dados num dos Estados‑Membros envolvidos.

21.      Embora os elementos factuais, bastante complexos, do presente caso tenham sido discutidos, com uma certa profundidade, durante a audiência, não compete ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre essas questões. Por conseguinte, nas presentes conclusões não me pronunciarei sobre a questão de saber qual dos medicamentos em causa no processo principal deveria ter sido utilizado como medicamento de referência ou quando começou a correr o período de exclusividade dos dados aplicável e quando terminou.

22.      As presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma: primeiro, farei algumas observações introdutórias sobre a evolução e a natureza exata do procedimento de autorização que é relevante no presente caso (A). Seguidamente, abordarei o alcance e os limites da fiscalização administrativa possível no Estado‑Membro envolvido no âmbito do procedimento descentralizado (B). Depois, analisarei a admissibilidade e o alcance da fiscalização jurisdicional no Estado‑Membro envolvido (C).

A.      A evolução dos procedimentos de autorização ao abrigo da Diretiva 2001/83

23.      A Diretiva 2001/83 (11) regula (uma parte) do processo de concessão de autorização de introdução no mercado de medicamentos para uso humano na União Europeia. Nos termos do artigo 6.o, n.o 1, primeiro parágrafo, «[n]ão pode ser introduzido um medicamento no mercado de um Estado‑Membro sem que para tal tenha sido emitida pela autoridade competente desse Estado‑Membro uma autorização de introdução no mercado, em conformidade com a presente diretiva, ou sem que tenha sido concedida uma autorização em conformidade com o Regulamento (CE) n.o 726/2004» (12).

24.      Por conseguinte, existem dois tipos de procedimentos para obter uma autorização de introdução no mercado na União Europeia: «vertical» (procedimento centralizado ao nível da União, sendo as decisões tomadas pelas instituições da União); e «horizontal» (procedimento descentralizado e de reconhecimento mútuo, sendo as decisões tomadas pelas autoridades dos Estados‑Membros).

25.      Embora se baseiem numa série de decisões nacionais paralelas ou sucessivas, os procedimentos horizontais facilitam o processo de apresentação do pedido. O requerente não precisa de apresentar separadamente as informações relevantes sobre o medicamento em causa em cada Estado‑Membro.

26.      Apenas o tipo horizontal de procedimento de autorização de introdução no mercado, mais concretamente o procedimento descentralizado, é relevante para o caso em apreço. O tipo horizontal de procedimento previsto na Diretiva 2001/83 evoluiu consideravelmente ao longo do tempo. A alteração mais importante verificou‑se com a Diretiva 2004/27. Por esse motivo, referir‑me‑ei às versões «pré‑2004» e «pós‑2004» da Diretiva 2001/83 para distinguir os dois regimes diferentes.

27.      Primeiro, descreverei o regime de autorização pré‑2004 (1), debruçando‑me então depois sobre o procedimento descentralizado e, de um modo mais geral, sobre o atual regime de autorização pós‑2004 (na medida que é relevante para o caso em apreço) (2). Concluirei com algumas observações sobre a razão da codecisão que, no meu entender, caracteriza o atual regime (3).

1.      O regime de autorização de introdução no mercado pré‑2004 e o reconhecimento mútuo

28.      Antes de 2004, a Diretiva 2001/83 previa o denominado procedimento de reconhecimento mútuo para os casos em que o requerente de uma autorização de introdução no mercado pretendia comercializar um medicamento (genérico ou não) em mais do que um Estado‑Membro. Esse procedimento podia ser utilizado por um requerente a quem já tivesse sido concedida uma autorização de introdução no mercado num dos Estados‑Membros. O Estado‑Membro que tivesse emitido a primeira autorização de introdução no mercado era designado, para o efeito do procedimento de reconhecimento mútuo, como o «Estado‑Membro de referência». Esse procedimento de reconhecimento mútuo permitia que o titular de uma autorização de introdução no mercado preexistente obtivesse o seu reconhecimento noutro ou noutros Estados‑Membros. Esses Estados eram designados «Estados‑Membros envolvidos».

29.      Mais concretamente, nos termos do artigo 28.o da versão pré‑2004 da Diretiva 2001/83, antes de apresentar o pedido de reconhecimento mútuo, esse titular (e requerente) devia informar o Estado‑Membro de referência de que iria ser apresentado um pedido de reconhecimento mútuo.

30.      O titular tinha de dar ao Estado‑Membro de referência a possibilidade de verificar se o processo relativo à autorização inicial de introdução no mercado e o processo relativo ao procedimento de reconhecimento mútuo eram idênticos. Era ainda necessário solicitar ao Estado‑Membro de referência que elaborasse um relatório de avaliação (13) sobre o medicamento em causa ou, se necessário, que atualizasse o relatório de avaliação já existente. No prazo de 90 dias, o relatório tinha de ser enviado aos Estados‑Membros envolvidos, aos quais o titular apresentava simultaneamente os seus pedidos (14).

31.      Durante os 90 dias seguintes, os Estados‑Membros envolvidos deviam reconhecer a autorização de introdução no mercado (inicial) concedida pelo Estado‑Membro de referência, «salvo no caso excecional», previsto no artigo 29.o, em que os Estados‑Membros envolvidos considerassem que o medicamento em causa constituía «um risco para a saúde pública». Nesse caso, os Estados‑Membros «discordantes» tinham a obrigação de informar o requerente, o Estado‑Membro de referência e qualquer outro Estado‑Membro envolvido. Todos os Estados‑Membros envolvidos tinham de «envidar esforços no sentido de chegarem a acordo» sobre esta matéria. Na impossibilidade de chegar a tal acordo, a questão seria submetida à Agência (15).

32.      Relativamente a este procedimento de reconhecimento mútuo pré‑2004, o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Synthon que os Estados‑Membros tinham a obrigação de reconhecer a autorização de introdução no mercado preexistente. A existência de um risco para a saúde pública era o único fundamento que um Estado‑Membro podia invocar para se opor a tal reconhecimento. Na falta dessa oposição, a autorização inicial de introdução no mercado devia ser reconhecida. Os Estados‑Membros envolvidos não podiam pôr em causa a apreciação realizada pelo Estado‑Membro de referência (16).

33.      As circunstâncias factuais do processo Synthon demonstram como, uma vez obtida uma autorização de introdução no mercado pelo titular e desencadeado o procedimento de reconhecimento mútuo, a autorização de introdução no mercado preexistente deve ser reconhecida pelos Estados‑Membros envolvidos. Naquele caso específico, o requerente pretendia obter o reconhecimento mútuo no Reino Unido de uma autorização de introdução no mercado preexistente que tinha obtido na Dinamarca.

34.      Assim, o elemento‑chave do procedimento pré‑2004 era a existência de uma autorização de introdução no mercado, que já tinha sido concedida num Estado‑Membro e que, como afirmou o Tribunal de Justiça, devia ser reconhecida pelas autoridades competentes dos outros Estados‑Membros. Essa obrigação «clar[a] e precis[a]» (17) só podia ser posta em causa se a oposição fundada num risco para a saúde pública fosse deduzida no âmbito do procedimento previsto, o que não acontecera naquele caso.

2.      O regime de autorização pós‑2004: um novo procedimento descentralizado

35.      Nesse contexto, a Diretiva 2004/27, em primeiro lugar, modificou o procedimento de reconhecimento mútuo pré‑2004 e, em segundo lugar, e o que é mais importante, instituiu o procedimento descentralizado. Assim, na versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83, existem dois procedimentos horizontais que permitem ao requerente obter autorizações de introdução no mercado em mais do que um Estado‑Membro.

36.      O caso em apreço diz respeito ao procedimento descentralizado (introduzido depois de 2004), que deve ser utilizado para obter simultaneamente mais do que uma autorização nacional de introdução no mercado para um medicamento que nunca tenha recebido uma autorização. Esta é a diferença fundamental entre o novo procedimento descentralizado e o procedimento de reconhecimento mútuo. Este último procedimento mantém‑se no regime pós‑2004, mas a sua utilização continua a estar sujeita à condição de ter sido concedida previamente uma autorização de introdução no mercado (18).

37.      O procedimento descentralizado está previsto no artigo 28.o, n.o 3, e seguintes. da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83. Articula‑se do seguinte modo: o requerente escolhe um dos Estados‑Membros em que pretende obter uma autorização de introdução no mercado para agir na qualidade de Estado‑Membro de referência (19). No prazo de 120 dias, o Estado‑Membro de referência prepara um projeto de relatório de avaliação, um projeto de resumo das características do medicamento e um projeto de rotulagem e de folheto informativo (estes documento são coletivamente designados nas presentes conclusões por «documentos relativos ao medicamento»). O Estado‑Membro de referência transmite esses documentos ao requerente e aos Estados‑Membros envolvidos (20).

38.      Nos termos do artigo 28.o, n.o 4, no prazo de 90 dias após a receção dos documentos relativos ao medicamento, os Estados‑Membros envolvidos aprovam esses documentos e dão conhecimento deste facto ao Estado‑Membro de referência. O Estado‑Membro de referência constata o acordo, encerra o procedimento e dá conhecimento deste facto ao requerente.

39.      De acordo com o artigo 28.o, n.o 5, da Diretiva 2001/83, cada Estado‑Membro em que tenha sido apresentado um pedido ao abrigo do procedimento descentralizado toma, no prazo de 30 dias, uma decisão em conformidade com os documentos relativos ao medicamento aprovados. Na realidade, é através dessas decisões nacionais paralelas que a autorização de introdução do medicamento no mercado do território de cada Estado‑Membro é efetivamente concedida.

40.      Se, no entanto, um dos Estados‑Membros envolvidos não puder aprovar os documentos relativos ao medicamento devido a um «potencial risco grave para a saúde pública», é desencadeado o procedimento específico previsto no artigo 29.o da Diretiva 2001/83. Numa primeira fase, se os Estados‑Membros envolvidos não chegarem a um acordo, a questão é submetida a um grupo de coordenação. Numa segunda fase, se ainda assim não for possível chegar a um acordo, a questão é submetida à Agência (21).

41.      Enquanto se aguarda o resultado desse procedimento, os Estados‑Membros que tiverem aprovado os documentos relativos ao medicamento podem, a pedido do requerente, autorizar a introdução do medicamento no mercado (22), mas, mais uma vez, apenas no respetivo território.

42.      Assim, para que um procedimento descentralizado determinado chegue ao fim, terá de existir primeiro um acordo entre as autoridades competentes envolvidas sobre os documentos relativos ao medicamento. Só então, na segunda fase, as autoridades que tiverem dado o seu acordo deverão emitir a sua própria autorização nacional de introdução no mercado. Essas decisões são adotadas em paralelo, sem qualquer ordem específica, no prazo de 30 dias estabelecido no artigo 28.o, n.o 5, da Diretiva 2001/83.

43.      Em resumo, o funcionamento genuíno do procedimento descentralizado, não obstante faça parte de um regime qualificado de «fase importante na realização do objetivo da livre circulação de medicamentos» (23), permanece possivelmente algo distante de um quadro processual unificado para o mercado interno de medicamentos. Por oposição à potencial obrigação de satisfazer todas as condições e requisitos de prova nos Estados‑Membros envolvidos, o procedimento descentralizado contém certamente elementos de uma bem‑vinda simplificação. Ainda assim, o procedimento, na sua atual configuração, dificilmente poderá ser descrito como uma forma de reconhecimento mútuo automático e incondicional: a adoção da decisão nacional final depende da conclusão de uma fase intermédia, a saber, a aprovação dos documentos relativos ao produto.

44.      Saliento, além disso, que a Diretiva 2004/27 alargou este mecanismo com duas fases ao procedimento de reconhecimento mútuo, a fim de reforçar «a possibilidade de cooperação entre Estados‑Membros» (24). O procedimento de reconhecimento mútuo é descrito detalhadamente no artigo 28.o, n.o 2, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83. Por outras palavras, os procedimentos descentralizado e de reconhecimento mútuo pós‑2004 assentam nas mesmas regras básicas que se aplicam a partir do momento em que o Estado‑Membro de referência transmite os respetivos documentos relativos ao medicamento aos Estados‑Membros envolvidos (25).

3.      Reconhecimento mútuo ou codecisão?

45.      O ponto fulcral do presente caso consiste em determinar o alcance da fiscalização administrativa e jurisdicional de uma apreciação efetuada no âmbito de um procedimento descentralizado.

46.      Tal como explicado na secção anterior, desde a sua criação em 2004, esse procedimento tem uma natureza claramente híbrida. Algumas das partes no presente processo defenderam que as conclusões a que o Tribunal de Justiça chegou no acórdão Synthon em relação ao procedimento de reconhecimento mútuopré2004 também se deveriam aplicar ao procedimento descentralizado.

47.      Não se pode subestimar a importância geral do reconhecimento mútuo na União Europeia. Assim, uma decisão regularmente adotada por um Estado‑Membro deve ser obviamente reconhecida pelos restantes, salvo circunstâncias excecionais.

48.      Contudo, esse raciocínio e essa lógica tecnicamente só podem ser aplicados quando existir uma decisão tomada por um Estado‑Membro, que os outros devem reconhecer.

49.      Esta introdução algo longa e detalhada visa demonstrar que, comparado com o procedimento de reconhecimento pré‑2004, o procedimento descentralizado é simplesmente de espécie e natureza diferente. Num procedimento descentralizado, todos os Estados‑Membros participam na elaboração da sua decisão ao mesmo tempo. Recorrendo a uma metáfora, cozinhar com amigos não é o mesmo que partilhar uma refeição previamente confecionada.

50.      Assim, a abordagem ao presente caso precisa simplesmente de ser adaptada às alterações sofridas pela natureza do procedimento em questão. Os atuais artigos 28.o e 29.o da Diretiva 2001/83 são diferentes dos que eram aplicáveis à data dos factos relevantes para o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça no processo Synthon. Esse caso foi apreciado à luz da versão pré‑2004 da Diretiva 2001/83.

51.      A evolução da versão pré‑2004 para a versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83 foi marcada pela introdução de uma fase intermédia, na qual todos os Estados‑Membros envolvidos participam no procedimento de aprovação anterior à autorização. Caberá à doutrina avaliar se, à luz do objetivo declarado das alterações de 2004 (26), essa evolução constituiu efetivamente um passo em frente em termos da harmonização das regras e dos procedimentos de autorização alcançada anteriormente. Não obstante, o que é evidente para efeitos do presente caso é que as regras do jogo mudaram.

52.      Importa acrescentar que, em conformidade com a versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83, este sistema de duas fases, que consiste numa aprovação coletiva, seguida de autorizações nacionais de introdução no mercado emitidas em paralelo, se aplica não só ao procedimento descentralizado, mas também ao de reconhecimento mútuo. Embora este último procedimento não esteja em causa no presente processo, chamo a atenção para o facto de a lógica do reconhecimento mútuo pré‑2004 parecer ter mudado para algo semelhante a um mecanismo de «codecisão», que antecede cronologicamente e é claramente distinto da emissão de autorizações individuais de introdução no mercado.

53.      À luz do exposto, entendo que, para efeitos do presente caso que diz respeito a um procedimento descentralizado, a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Synthon só é aplicável, por analogia, quando as autoridades dos Estados‑Membros envolvidos (e do Estado‑Membro de referência) chegarem a um acordo sobre os documentos relativos ao produto. Contudo, até esse acordo ser obtido, a obrigação de adotar uma decisão simplesmente não é desencadeada. Muito menos existe uma decisão que deva ser reconhecida e que determine a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo (27). A obrigação de adotar uma decisão, ou mais precisamente, decisões nacionais paralelas, só é desencadeada posteriormente, uma vez alcançado o acordo supramencionado.

54.      No entanto, importa ainda salientar que, uma vez alcançado o acordo sobre os documentos relativos ao produto, as autoridades competentes dos Estados‑Membros envolvidos não podem unilateralmente começar a reexaminar e a reapreciar esses mesmos documentos. Uma vez que tenham chegado a um acordo, estão vinculados. Têm a obrigação expressa e precisa de adotar as suas próprias autorizações nacionais de introdução no mercado no prazo de 30 dias.

B.      Primeira questão: Poderes das autoridades administrativas competentes no âmbito do procedimento descentralizado

55.      Com a primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a autoridade competente de um dos Estados‑Membros envolvidos pode apreciar unilateralmente a decisão respeitante ao termo do período de exclusividade dos dados, previamente acordado no âmbito do procedimento descentralizado.

56.      Como referido supra, uma vez alcançado um acordo entre todos os Estados‑Membros, estes não podem reexaminá‑lo unilateralmente em momento posterior. Todos as partes no acordo estão vinculados aos termos desse acordo. Como o Tribunal de Justiça salientou no acórdão Comissão/França (28), é a partir desse momento(aprovação dos documentos relativos ao produto) que as autoridades dos Estados‑Membros envolvidos não se podem recusar acatar nem desviar‑se dos resultados desse processo.

57.      Essa lógica subjacente ao acórdão Synthon continua válida, mas só responde a metade da questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional. A segunda parte da questão prende‑se basicamente com os deveres e o papel das autoridades nacionais dos Estados‑Membros envolvidos antes de o acordo ser alcançado.

58.      A fim de propor uma resposta à segunda parte dessa questão, que também é relevante para a questão da admissibilidade e do alcance de uma potencial fiscalização jurisdicional, começarei por examinar a natureza exata da competência de que gozam os Estados‑Membros envolvidos no âmbito do procedimento descentralizado (1). Seguidamente, analisarei o conceito de «potencial risco grave para a saúde pública» que, nos termos do artigo 29.o da Diretiva 2001/83, é o único fundamento de oposição que uma autoridade competente pode invocar neste contexto (2).

1.      Competência dos EstadosMembros envolvidos no âmbito do procedimento descentralizado

59.      Nas observações apresentadas no presente processo, as partes propuseram várias abordagens para a determinação do alcance da competência das autoridades competentes envolvidas no procedimento descentralizado. Simplificando um pouco, podem ser identificadas duas abordagens gerais.

60.      De acordo com a primeira abordagem, a lógica do «reconhecimento mútuo» parece aplicar‑se também à fase anterior à aprovação. As autoridades dos Estados‑Membros envolvidos são vistas como autoridades que se limitam a «assinar de cruz», e que não deveriam intervir genuinamente na apreciação realizada durante essa fase. Essas autoridades têm a obrigação de aprovar os documentos que lhes foram enviados pelo Estado‑Membro de referência. É esta, no essencial, a posição da Helm e dos Governos alemão, espanhol, irlandês, finlandês e norueguês.

61.      De acordo com a segunda abordagem, as autoridades dos Estados‑Membros envolvidos participam ativamente no processo de aprovação. Não se limitam a pôr um visto. Devem também cooperar. Uma vez que podem propor alterações substantivas ao conteúdo do relatório de avaliação, são conjuntamente responsáveis pelo resultado. Deste modo, o processo de aprovação é visto como um diálogo de cooperação, e não como um exercício mecânico que consiste em copiar o que foi elaborado pelo Estado‑Membro de referência. É esta essencialmente a posição adotada pela Comissão. Neste sentido, a Comissão salienta que a determinação do período de exclusividade dos dados faz parte do acordo geral que as autoridades competentes envolvidas no procedimento descentralizado aprovam. Uma vez alcançado tal acordo, essas autoridades não se podem desviar do seu conteúdo. Por seu turno, a Astellas Pharma considera que as autoridades competentes dos Estados‑Membros envolvidos estão obrigadas a apreciar o período de proteção dos dados aquando da decisão sobre a autorização nacional de introdução no mercado. Do mesmo modo, os Governos belga e do Reino Unido consideram que estas autoridades têm competência para realizar essa apreciação.

62.      No meu entender, a letra, o contexto e a lógica das disposições relevantes da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83 indicam que o legislador tinha em mente esta segunda abordagem no que respeita ao processo de aprovação que antecede a tomada de uma decisão conjunta.

63.      Em primeiro lugar, se os poderes das autoridades competentes dos Estados‑Membros envolvidos se restringissem a uma aprovação mecânica sem qualquer intervenção ao nível substantivo, não faria muito sentido conferir‑lhes também o poder de bloquear todo o acordo por duas vezes (submetendo primeiro a questão ao grupo de coordenação e, na falta de um acordo nessa instância, à Agência). Porquê estabelecer procedimentos algo complexos no artigo 29.o, n.o 4, e no artigo 32.o da Diretiva 2001/83, cujo objetivo consiste em ultrapassar as divergências entre as autoridades competentes, se estas não tivessem a oportunidade de manifestar as suas preocupações, caso o considerassem oportuno?

64.      Em segundo lugar, cada um dos Estados‑Membros deverá adotar uma autorização individual de introdução no mercado no final de todo o processo. Se o papel das autoridades dos Estados‑Membros envolvidos consistisse exclusivamente e copiar de forma mecânica, seria mais lógico estabelecer simplesmente a obrigação de reconhecer a autorização inicial de introdução no mercado (no que respeita ao procedimento de reconhecimento mútuo) ou os documentos relativos ao produto preparados pelo Estado‑Membro de referência (29).

65.      Em terceiro lugar, a adoção das respetivas autorizações nacionais de introdução no mercado, cada uma com a sua própria validade territorial, tem de ocorrer dentro do prazo estipulado no artigo 28.o, n.o 5, da Diretiva 2001/83. Cabe salientar que todas as autoridades competentes envolvidas estão em pé de igualdade, incluindo o Estado‑Membro de referência, como demonstrado pelo facto de a Diretiva 2001/83 não prever a concessão dessas autorizações nacionais de introdução no mercado por uma determinada ordem cronológica. Poderá inclusive dar‑se o caso de a autorização de introdução no mercado no(s) Estado(s)‑Membro(s) envolvido(s) ser emitida antes da autorização de introdução no mercado no Estado‑Membro de referência.

66.      é certamente verdade, como alegaram algumas das partes no presente processo, que o Estado‑Membro de referência desempenha um papel particular em todo o processo: prepara o projeto dos documentos relativos ao produto. As orientações do «Coordination Group for Mutual Recognition and Decentralised Procedures — Human» (Grupo de coordenação para o reconhecimento mútuo e os procedimentos descentralizados — domínio humano) sugerem também que os Estados‑Membros envolvidos devem basear‑se na apreciação do Estado‑Membro de referência que canaliza o diálogo entre eles e o requerente (30).

67.      Porém, mais uma vez, isso não significa que os Estados‑Membros envolvidos não desempenham qualquer papel. Estes últimos continuam a estar sujeitos à obrigação de comunicar eventuais riscos graves para a saúde pública e «pontos para análise» (31). Consequentemente, as autoridades dos Estados‑Membros envolvidos são consideradas instâncias de apreciação secundária da avaliação realizada pelo Estado‑Membro de referência (32).

68.      Em quinto lugar, há que ter em conta que uma autoridade de um Estado‑Membro envolvido contribui para o processo de aprovação e pode adotar uma posição autónoma no âmbito desse processo. Isso resulta também da possibilidade de emitir uma autorização nacional de introdução no mercado, que o artigo 29.o, n.o 6, da Diretiva 2001/83 confere a certos Estados‑Membros envolvidos, a saber, os que aprovaram os documentos relativos ao produto, quando outro Estado‑Membro envolvido tenha deduzido oposição invocando um fundamento de saúde pública, e essa oposição esteja ainda sujeita ao procedimento aplicável.

69.      Assim, através das alterações de 2004, o legislador da União instituiu um diálogo horizontal entre as respetivas autoridades. Foi dada às autoridades nacionais a possibilidade de intervirem no processo de aprovação enquanto este decorrer, ou seja, até serem aprovados os documentos relativos ao produto (33).

70.      Em resumo, o sistema previsto no artigo 28.o da Diretiva 2001/83 é um sistema baseado numa lógica de «codecisão». Nesse sistema, todas as autoridades participantes devem chegar a um acordo sobre os três tipos de documentos referidos nessa disposição. Só depois de alcançado esse acordo (que constitui um ato intermédio, preparatório e interno) é que as autoridades competentes poderão emitir as autorizações nacionais individuais de introdução no mercado. Embora cada uma das autoridades competentes esteja obrigada a agir em conformidade com os documentos relativos ao produto aprovados, as fases sucessivas previstas nos respetivos sistemas nacionais são, em grande parte, independentes umas das outras.

2.      Conceito de «potencial risco grave para a saúde pública»

71.      Tendo clarificado a natureza do procedimento previsto no artigo 28.o da Diretiva 2001/83, examinarei agora a questão dos fundamentos de oposição que podem ser invocados na fase anterior ao acordo. Podem as autoridades competentes dos Estados‑Membros envolvidos manifestar efetivamente o seu desacordo em relação ao cálculo potencialmente incorreto do período de exclusividade dos dados efetuado pela autoridade do Estado‑Membro de referência?

72.      O artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 prevê apenas a possibilidade de os Estados‑Membros envolvidos invocarem um único fundamento de oposição nesse processo: o «potencial risco grave para a saúde pública».

73.      Reconheço que um potencial fundamento de oposição formulado deste modo não parece, à primeira vista, muito amplo. De certa forma, a formulação dessa exceção parece estar firmemente enraizada na terminologia do procedimento de reconhecimento mútuo pré‑2004 (34). Porém, como acontece com alguns dos outros elementos da Diretiva 2001/83 na sua versão pré‑2004 e pós‑2004, a aparência nem sempre corresponde inteiramente à realidade.

74.      Embora a terminologia dessa exceção permaneça no domínio do «reconhecimento mútuo» pré‑2004, as orientações da Comissão de 2006 adotadas ao abrigo do artigo 29.o, n.o 2, da Diretiva 2001/83 que concretizam esse conceito são consideravelmente mais generosas quanto ao seu alcance (35). Por analogia com o que afirmei noutro processo, as orientações da Comissão não são, de modo algum, vinculativas (36). No entanto, as orientações da Comissão em causa fornecem esclarecimentos úteis sobre o possível alcance do conceito em questão.

75.      Tendo em conta tudo aquilo que poderia estar abrangido pelo conceito de «potencial risco grave para a saúde pública», as Orientações de 2006 estão longe de ser restritivas. Cabe salientar que essas orientações contêm uma lista exaustiva de todos os possíveis aspetos que poderão ser tomados em consideração para determinar se um medicamento em concreto representa um «potencial risco grave para a saúde pública». Além de questões como a eficácia, segurança, qualidade e relação risco‑benefício geral (conceitos já bastante amplos e indeterminados), referidas apenas a título meramente exemplificativo, chamo a atenção para o facto de, entre as questões examinadas, figurar também a «informação sobre o produto» que seja «enganadora ou incorreta [para] os prescritores [e] os pacientes».

76.      Pode a questão do período de exclusividade dos dados estar abrangida por um conceito de saúde pública formulado em termos tão amplos?

77.      A primeira resposta intuitiva a essa questão deve provavelmente ser negativa. O termo do período de proteção dos dados de um terceiro poderá ser uma questão relacionada com a correta aplicação da lei, com incentivos adequados para estimular a inovação ou com o direito de propriedade. Mas não é verdadeiramente uma questão de saúde pública para efeitos de registo de um novo medicamento genérico.

78.      No entanto, a apreciação do conceito de «potencial risco grave para a saúde pública» apresenta uma outra dimensão, mais profunda. Uma vez que o pedido tem por objeto a autorização de um medicamento genérico, esse processo baseia‑se nos dados existentes do medicamento de referência. Ora, se o período de proteção dos dados ainda não tiver terminado, não existem dados em que se possa basear. Se os dados pertinentes ainda não puderem ser consultados, logicamente é impossível realizar uma avaliação científica do medicamento genérico em causa.

79.      Por conseguinte, subscrevo, no essencial, os argumentos aduzidos pelos Governos belga e do Reino Unido nas suas observações. A impossibilidade fazer referência aos dados de um medicamento de referência impede, no meu entender, a avaliação do risco do medicamento genérico para a saúde pública. Assim, o acordo quanto ao termo do período de exclusividade dos dados é, de certo modo, uma parte preliminar, mas indispensável, do processo de aprovação.

80.      À luz do exposto, considero, que há que responder à primeira questão prejudicial, que o artigo 28.o, n.o 5, e o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 devem ser interpretados no sentido de que a autoridade competente do Estado‑Membro envolvido não tem competência, no âmbito da concessão da autorização nacional de introdução no mercado de um medicamento genérico através do procedimento descentralizado previsto no artigo 28.o, n.o 5, da Diretiva 2001/83, para determinar unilateralmente o momento em que começou a correr o período de exclusividade dos dados do medicamento de referência. Contudo, essa autoridade participa nessa apreciação numa fase anterior do procedimento descentralizado, em conformidade com os artigos 28.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2001/83. A participação da autoridade competente do Estado‑Membro envolvido no processo de aprovação torna essa autoridade corresponsável pelos documentos aprovados nesse procedimento.

C.      Segunda questão: Admissibilidade e alcance da fiscalização jurisdicional no EstadoMembro envolvido

81.      As autoridades competentes do Estado‑Membro envolvido não podem adotar unilateralmente decisões sobre matérias compreendidas nos documentos aprovados, como o período de exclusividade dos dados. Essas questões são tratadas coletivamente, no âmbito do «mecanismo de codecisão» previsto no artigo 28.o da Diretiva 2001/83. Nesse «mecanismo de codecisão», as autoridades dos Estados‑Membros envolvidos aprovam conjuntamente e tornam‑se corresponsáveis pelos documentos relativos ao produto, que deverão ser posteriormente integrados nas autorizações nacionais de introdução no mercado paralelas.

82.      Uma vez que a resposta que proponho dar à primeira questão prejudicial se desvia parcialmente do teor exato da questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional (ou melhor, vai além desse teor), há que responder à segunda questão prejudicial. A segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional prende‑se com a admissibilidade e o alcance da fiscalização jurisdicional do conteúdo dos documentos relativos ao produto, como a determinação do período de exclusividade dos dados.

83.      No que respeita à resposta à segunda questão, as observações apresentadas no presente processo também diferem consideravelmente. Segundo um primeiro raciocínio, a fiscalização jurisdicional deveria estar centralizada nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de referência. Esta é essencialmente a posição defendida pela Helm e pelos Governos alemão, espanhol, pela Irlanda e os Governos finlandês e norueguês. Esta linha de raciocínio apresenta ainda uma variante adicional consoante a fiscalização a efetuar tenha por objeto: (i) o relatório de avaliação aprovado por todas as autoridades nacionais participantes; ou (ii) a decisão nacional de autorização de introdução no mercado adotada pelo Estado‑Membro de referência. Em ambos os cenários, mas talvez sobretudo no último, a questão que se coloca em seguida é a de que modo essa fiscalização pode desencadear efeitos jurídicos transfronteiriços. Se, no seguimento da fiscalização jurisdicional no Estado‑Membro de referência, a decisão nacional de introdução no mercado adotada nesse Estado‑Membro fosse alterada, por que motivo e de que modo seria possível ter em conta o seu resultado nos outros Estados‑Membros envolvidos? No caso em apreço, qual o potencial efeito que a fiscalização de uma autorização dinamarquesa de introdução no mercado relativa ao Alkybend poderia ter na autorização de introdução no mercado adotada em 2014 pela FIMEA?

84.      Este raciocínio parece basear‑se na premissa (37) de que, no âmbito do procedimento descentralizado, o Estado‑Membro de referência desempenha um papel crucial e decisivo na apreciação científica do pedido. Por conseguinte, os eventuais erros existentes nos documentos aprovados deveriam ser unicamente imputáveis a esse Estado‑Membro e nele impugnáveis. Se essa impugnação fosse bem sucedida, o seu resultado seria (ou até mesmo deveria) ser então reproduzido em todos os outros Estados‑Membros envolvidos nas respetivas autorizações nacionais de introdução no mercado. No presente caso, isso significaria que a fiscalização jurisdicional só seria admissível na Dinamarca, e o seu eventual resultado deveria ser tido em conta em todos os outros Estados‑Membros envolvidos.

85.      O outro raciocínio admite que a fiscalização jurisdicional possa ser realizada nos Estados‑Membros envolvidos. O seu entendimento quanto ao alcance dessa fiscalização poderá ser diferente, mas é aceite que, dado que cada um dos Estados‑Membros adota as suas próprias decisões administrativas nacionais, deveria também, por uma questão de princípio, existir a possibilidade de fiscalizar essas decisões em cada um dos Estados‑Membros que as adotaram. Esta posição foi defendida, em substância, pela Astellas Pharma, pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão.

86.      Devo admitir que, por várias razões de princípio e também de natureza prática, concordo com o segundo raciocínio: não vejo outra solução que não seja propor que, num procedimento descentralizado, em que cada autoridade nacional adota uma decisão administrativa formalmente independente, válida exclusivamente no seu território nacional, deve ser possível realizar uma fiscalização jurisdicional descentralizada em relação a cada uma das decisões administrativas nacionais. Logicamente, a natureza da fiscalização deve corresponder à natureza da decisão administrativa.

1.      Um procedimento administrativo descentralizado com fiscalização jurisdicional centralizada?

87.      Os argumentos invocados no âmbito da primeira abordagem descrita no n.o 83 das presentes conclusões suscitam dois problemas substanciais. O primeiro é a inexistência de qualquer base jurídica escrita para qualquer desses argumentos. Em segundo lugar, ainda que estivéssemos dispostos a ignorar esse problema, quod non, esse tipo de fiscalização jurisdicional (certamente inédito) poderia suscitar vários problemas práticos.

88.      Analisarei primeiro a possibilidade de impugnar o relatório de avaliação (ou outros documentos relativos ao produto), supostamente no Estado‑Membro de referência, defendida pelos Governos espanhol e finlandês.

89.      Saliento a esse respeito, que o processo de aprovação consiste na comunicação (mais ou menos formal) entre as autoridades administrativas dos Estados‑Membros envolvidos e do Estado‑Membro de referência. O titular da autorização inicial de introdução no mercado poderá nem sequer ter conhecimento de que foi dado início ao procedimento descentralizado e de que o «mecanismo de codecisão» foi desencadeado. Ainda que tenha conhecimento desse facto, é pouco provável que seja parte no procedimento ao abrigo do direito nacional (38).

90.      Ainda que o referido titular venha a ter conhecimento do facto (porque, do ponto de vista prático, é provável que preveja o momento em que terminam os diferentes períodos de exclusividade dos dados dos seus medicamentos), surgirão provavelmente dificuldades nos sistemas jurídicos de alguns Estados‑Membros no que respeita à sua legitimidade. A possibilidade de o titular impugnar o relatório de avaliação é uma questão que depende obviamente do direito processual do Estado‑Membro de referência em causa. É muito provável que, em alguns Estados‑Membros, esse relatório seja considerado um ato preparatório e que, como tal, não esteja sujeito a fiscalização jurisdicional. É a autorização de introdução no mercado definitiva e formal concedida pelo Estado‑Membro de referência que será provavelmente considerada um ato impugnável ao abrigo do direito nacional (39).

91.      Por último, é provável que, as regras sobre a legitimidade variem de um Estado‑Membro para outro. Por conseguinte, considerar que o sistema de fiscalização jurisdicional no âmbito de um procedimento descentralizado se baseia na competência exclusiva do Estado‑Membro de referência, que este poderia hipoteticamente exercer em relação a um documento como o relatório de avaliação, geraria certamente lacunas.

92.      Em contrapartida, essas questões não seriam, em princípio, suscitadas no contexto da fiscalização jurisdicional da decisão (final) de autorização nacional de introdução no mercado adotada pelo Estado‑Membro de referência. Contudo, nesse caso, colocar‑se‑iam outras questões graves relacionadas com a natureza territorial de cada autorização de introdução no mercado e com a correspondente natureza territorial da fiscalização jurisdicional realizada nesses Estados‑Membros.

93.      Para começar, tenho dúvidas quanto ao objeto da impugnação pelo titular da autorização inicial de introdução no mercado num cenário como o do processo principal. A Astellas Pharma pretende impugnar a decisão da FIMEA. Cabe perguntar por que motivo essa ação deveria ser intentada na Dinamarca. Ainda que se acolhesse a tese de que os órgãos jurisdicionais dinamarqueses poderiam (indiretamente ou até mesmo diretamente?) apreciar a legalidade de uma decisão adotada por uma autoridade reguladora finlandesa, é difícil compreender de que modo os efeitos (claramente extraterritoriais) dessa decisão seriam depois «transpostos» para a Finlândia. Quais seriam exatamente os efeitos de um acórdão proferido por um órgão jurisdicional dinamarquês na Finlândia? Segundo uma interpretação muito ampla do dever de cooperação leal entre os Estados‑Membros, esse acórdão determinaria automaticamente a anulação da autorização de introdução no mercado finlandesa? Por parte de quem? Ou estaria a FIMEA obrigada a iniciar oficiosamente um processo para a anulação e/ou fiscalização da legalidade da sua própria decisão?

94.      Não obstante serem problemáticas, essas considerações seriam válidas apenas nos casos em que ambas ou todas as decisões paralelas adotadas pelas respetivas autoridades nacionais estivessem feridas de uma potencial ilegalidade. Mas qual seria o procedimento correto para impugnar as partes da decisão da FIMEA que são puramente nacionais? Há exemplos referentes a vícios processuais ou respeitantes a uma determinação substantiva não abrangida pelos documentos relativos ao produto aprovados, como a duração do período de exclusividade dos dados, que, no regime pré‑2004 ou no regime transitório pós‑2004 podia variar de um Estado‑Membro para outro. Nesse caso, estaria o requerente obrigado a recorrer aos órgãos jurisdicionais dinamarqueses para impugnar eventuais irregularidades relativas exclusivamente à autorização de introdução no mercado finlandesa? Seriam assim os órgãos jurisdicionais dinamarqueses competentes para decidir sobre questões de direito finlandês?

95.      Uma vez que dificilmente se pode defender essa posição, foi discutida uma opção «intermédia» nas observações de algumas das partes e na audiência. Essa opção consistiria essencialmente em dividir a fiscalização jurisdicional em duas partes: (i) a parte da decisão que está materialmente abrangida pelo âmbito dos documentos relativos ao produto aprovados no âmbito do procedimento descentralizado; e (ii) a parte puramente nacional. A fiscalização da primeira parte deveria estar «centralizada», ou seja, ser realizada pelos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de referência. A fiscalização da segunda parte deveria estar «descentralizada», ou seja, incumbir a cada um dos Estados‑Membros envolvidos.

96.      É certo que essa tese minimizaria alguns dos problemas anteriormente identificados, pelo menos ao nível dos princípios. Contudo, além de se manter o problema da inexistência de base jurídica para qualquer dessas teses, tenho sérias reservas quanto à possibilidade, na prática, de distinguir de forma clara e previsível entre os elementos puramente nacionais e os outros elementos. E os elementos que se baseiem, em parte, no acordo original, mas que tenham sido desenvolvidos? E os elementos discricionários? E, acima de tudo, como poderá o titular da autorização inicial de introdução no mercado desvendar todos esses elementos, para decidir onde deve iniciar o processo judicial?

97.      Não é por acaso que as regras sobre competência, quer na atribuição de competência vertical (entre a União Europeia e os Estados‑Membros) quer de competência horizontal (entre os Estados‑Membros), tendem a basear‑se principalmente no elemento formal da autoria do ato (quem praticou o ato objeto de impugnação), ao invés de tentar desvendar os seus elementos substantivos.

98.      Por último, todos estes problemas partem do pressuposto de que todos os intervenientes chegarão a um acordo, reconhecerão a autoridade uns dos outros, cooperarão e cumprirão o acordo de boa‑fé. Mas, e se não o fizerem? Imagine‑se que, no Estado‑Membro de referência, a autorização de introdução no mercado emitida nesse Estado é passível de fiscalização e o órgão jurisdicional chega à conclusão de que a autoridade administrativa em causa aplicou incorretamente a lei. No entanto, depois de lerem essa decisão, as autoridades administrativas dos Estados‑Membros envolvidos não concordam com essa conclusão.

99.      Em qualquer ordem jurídica funcional, é neste momento que a autoridade formal prevalece sobre motivos substantivos. Uma decisão judicial final tem de ser respeitada pela autoridade administrativa que atua na mesma ordem jurídica, independentemente do desacordo substantivo desta última. Em resumo, o obstáculo básico e insuperável que importa responder à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional nos termos propostos em conformidade com a primeira linha de raciocínio é, simplesmente, a inexistência dessa autoridade formal final (40) ao nível horizontal (41).

2.      Um procedimento descentralizado implica uma fiscalização descentralizada

100. Tudo isto leva‑me a uma conclusão muito simples: um procedimento descentralizado deve ser seguido por uma fiscalização jurisdicional descentralizada. Não há dúvida de que a autorização nacional final de introdução no mercado assenta numa base comum, enunciada nos documentos relativos ao produto aprovados que as autoridades de todos os Estados‑Membros envolvidos estão obrigadas a incorporar nas decisões nacionais. Porém, também não há dúvida de que, em última análise, os atos que produzem efeitos jurídicos no território de cada Estado‑Membro envolvido são, e continuam a ser, as respetivas autorizações nacionais de introdução no mercado.

101. Por todos os motivos expostos na secção anterior, não só no que respeita à observância do artigo 47.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais, mas sobretudo por uma questão de lógica básica do sistema, não vejo outra alternativa senão concluir pela possibilidade de fiscalização jurisdicional plena e paralela das autorizações de introdução no mercado emitidas em qualquer dos Estados‑Membros na sequência do procedimento descentralizado, ou seja, nos Estados‑Membros de referência e em cada um dos Estados‑Membros envolvidos.

102. Contudo, do ponto de vista da estrutura global do procedimento, essa conclusão nada tem de revolucionário à luz da participação anterior de todos os Estados‑Membros envolvidos no procedimento descentralizado. Cada uma das autoridades competentes dos Estados‑Membros participa no procedimento. Cada uma delas deve aprovar os documentos relativos ao produto. Em caso de desacordo, cada uma delas pode bloquear o processo e desencadear primeiro o procedimento de conciliação ou, depois, até mesmo submeter a questão à Agência. Cada uma delas tem a obrigação de adotar uma decisão nacional distinta de modo a transformar o que foi previamente acordado num ato administrativo válido ao nível nacional.

103. Nesse contexto, considero justo e razoável que cada uma dessas autoridades possa ser chamada a defender o resultado da sua deliberação conjunta perante os respetivos órgãos jurisdicionais nacionais. Retomando a metáfora gastronómica, não se pode afirmar que as autoridades dos Estados‑Membros são obrigadas a servir uma refeição que lhes foi imposta. Estavam na cozinha durante a sua confeção e poderiam ter manifestado a sua opinião nessa altura. Por conseguinte, são corresponsáveis pela sua qualidade.

104. Reconheço que a solução que proponho poderá dar lugar a particularismos. Os órgãos jurisdicionais de cada um dos Estados‑Membros envolvidos poderão adotar a sua própria posição sobre questões como a correta determinação do período de exclusividade dos dados. Poderão ser proferidas decisões contraditórias.

105. No entanto, podem ser contrapostos dois argumentos a esta objeção, já para não falar do facto básico de não existirem alternativas melhores. Em primeiro lugar, essa é simplesmente a consequência necessária da existência de um sistema descentralizado ao abrigo do artigo 28.o da Diretiva 2001/83. É a consequência de um sistema composto por autorizações nacionais de introdução no mercado distintas. O facto de todas elas se basearem nos documentos relativos ao produto preparados e aprovados coletivamente não altera a natureza policêntrica da última fase de todo o processo de autorização.

106. Se, como sugeriram vários intervenientes no presente processo, existe a necessidade imperativa de estabelecer um mercado interno unificado e plenamente operacional para os medicamentos, ao qual uma fiscalização jurisdicional descentralizada entendida nestes termos constituiria um obstáculo, talvez o ideal fosse comunicar essa necessidade ao legislador europeu e iniciar o processo de adoção de um regime legislativo adequado que a refletisse. Todavia, considero inadmissível que, num primeiro momento, se aceite um quadro legislativo que é bastante descentralizado (42) e se utilize depois o argumento da necessidade de um regime uniforme para privar, na prática, os requerentes de proteção jurídica no âmbito desse regime legislativamente particularizado. Em termos muito simples, a integração do mercado não justifica a criação de «brechas» na proteção jurisdicional.

107. Em segundo lugar, chamo a atenção para o facto de que os Estados‑Membros têm a obrigação de se manterem mutuamente informados com base nas regras específicas da Diretiva 2001/83 (43) e do dever de cooperação leal definido no artigo 4.o, n.o 3, TFUE. Assim, se alguma autoridade competente de um Estado‑Membro envolvido detetar uma questão suscetível de afetar a regularidade da autorização de introdução no mercado concedida por outros Estados‑Membros envolvidos, incluindo o Estado‑Membro de referência, essa autoridade competente deve informar as suas homólogas acerca da mesma. Essa situação poderá conduzir a reconsiderar as autorizações nacionais de introdução no mercado existentes através, por exemplo, de um mecanismo de reapreciação oficiosa nos termos da legislação nacional aplicável.

108. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio suscitou uma subquestão relacionada com a competência do órgão jurisdicional nacional do Estado‑Membro envolvido para fiscalizar a legalidade da autorização inicial de introdução no mercado concedida noutro Estado‑Membro, incluindo a sua compatibilidade com a Diretiva 2001/83.

109. Em conformidade com os limites territoriais a que o procedimento descentralizado está sujeito, e tendo em conta a lógica global da resposta dada à segunda questão do órgão jurisdicional de reenvio, entendo que essa legalidade deve ser apreciada no Estado‑Membro que emite a autorização inicial de introdução no mercado.

110. À luz do exposto, proponho que se responda à segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro envolvido são competentes para, na sequência de oposição deduzida pelo titular da autorização de introdução no mercado do medicamento de referência, fiscalizar uma decisão adotada pela autoridade competente do mesmo Estado‑Membro envolvido quanto ao momento em que o período de exclusividade dos dados começou a correr. Contudo, esse órgão jurisdicional nacional não pode fiscalizar a legalidade da autorização inicial de introdução no mercado concedida noutro Estado‑Membro, uma vez que essa legalidade, nomeadamente à luz da Diretiva 2001/83, deve ser apreciada no Estado‑Membro que emitiu essa autorização inicial de introdução no mercado.

IV.    Conclusão

111. À luz do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia) nos seguintes termos:

1.      O artigo 28.o, n.o 5, e o artigo 29.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano devem ser interpretados no sentido de que a autoridade competente do Estado‑Membro envolvido não tem competência, no âmbito da concessão da autorização nacional de introdução no mercado de um medicamento genérico através do procedimento descentralizado previsto no artigo 28.o, n.o 5, da Diretiva 2001/83, para determinar unilateralmente o momento em que começou a correr o período de exclusividade dos dados do medicamento de referência. Contudo, essa autoridade participa nessa apreciação numa fase anterior do procedimento descentralizado, em conformidade com os artigos 28.o, n.os 3 e 4, da Diretiva 2001/83. A participação da autoridade competente do Estado‑Membro envolvido no processo de aprovação torna essa autoridade corresponsável pelos documentos aprovados nesse procedimento.

2.      Os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro envolvido são competentes para, na sequência de oposição deduzida pelo titular da autorização de introdução no mercado do medicamento de referência, fiscalizar uma decisão adotada pela autoridade competente do mesmo Estado‑Membro envolvido quanto ao momento em que o período de exclusividade dos dados começou a correr. Contudo, esse órgão jurisdicional nacional não pode fiscalizar a legalidade da autorização inicial de introdução no mercado concedida noutro Estado‑Membro, uma vez que essa legalidade, nomeadamente à luz da Diretiva 2001/83, deve ser apreciada no Estado‑Membro que emitiu essa autorização inicial de introdução no mercado.


1      Língua original: inglês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2001, L 311, p. 67).


3      Gesetz über den Verkehr mit Arzneimitteln (Lei alemã relativa aos medicamentos), de 24 de agosto de 1976 (BGBl. I, p. 2445).


4      O artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2001/83 dispõe que «[e]m derrogação […] [o] requerente [de uma autorização de introdução no mercado] não é obrigado a fornecer os resultados dos ensaios pré‑clínicos e clínicos se puder demonstrar que o medicamento é um genérico de um medicamento de referência que seja ou tenha sido autorizado nos termos do artigo 6.o há, pelo menos, oito anos num Estado‑Membro ou na Comunidade».


5      Na aceção do artigo 6.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Diretiva 2001/83.


6      Durante o período relevante para o presente caso, os Estados‑Membros podiam aplicar um período de exclusividade dos dados de seis anos ou mais.


7      Que seja ou tenha sido autorizado há, pelo menos, oito anos num Estado‑Membro ou na União Europeia. V. nota 4, supra.


8      V. acórdão de 23 de outubro de 2014, Olainfarm (C‑104/13, EU:C:2014:2316, n.o 37).


9      Em princípio e sem prejuízo de um regime transitório: é frequentemente feita referência à «fórmula 8+2», que compreende oito anos de proteção dos dados (durante os quais o requerente de uma AIM para um medicamento genérico não pode remeter para os respetivos dados) e dois anos de proteção contra a introdução no mercado, durante os quais os genéricos não podem ser colocados no mercado.


10      Período que, segundo o despacho de reenvio, já tinha terminado em relação ao Ribomustin quando a Helm requereu a autorização de introdução no mercado para o Alkybend. Relativamente ao período de exclusividade dos dados aplicável, v. disposição transitória prevista no artigo 2.o da Diretiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, que altera a Diretiva 2001/83/CE que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO 2004, L 136, p 4), em conjugação com o artigo 3.o dessa diretiva. Consequentemente, o período de exclusividade dos dados estabelecido pela Diretiva 2004/27 não se aplicava aos medicamentos para os quais tivesse sido apresentado um pedido de autorização antes de 30 de outubro de 2005.


11      Essa diretiva codifica o regime de autorização preexistente, que tinha sido instituído pela Diretiva 65/65/CEE do Conselho, de 26 de janeiro de 1965, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, respeitantes às especialidades farmacêuticas (JO 1965, L 22, p. 369; EE 13 F1 p. 18), e as alterações posteriores.


12      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário e que institui uma Agência Europeia de Medicamentos (JO 2004, L 136, p. 1). Este procedimento centralizado é obrigatório para os medicamentos enumerados no anexo do regulamento.


13      Em termos simples, o relatório de avaliação é o documento chave do procedimento de reconhecimento mútuo, bem como do procedimento descentralizado (cujas características são descritas mais adiante nas presentes conclusões). Esse relatório explica por que motivo a autorização de introdução no mercado e cada uma das indicações propostas foram ou podem ser aprovadas ou rejeitadas pelo Estado‑Membro de referência. Explica igualmente os termos do resumo das características do produto, do folheto informativo e da rotulagem. Descreve detalhadamente a avaliação risco/benefício do medicamento. Em especial, avalia cientificamente a qualidade, segurança e eficácia de um medicamento. Já foi sublinhado que os relatórios de avaliação «devem ser suficientemente detalhados para permitir uma apreciação secundária por peritos de outros Estados‑Membros. Como tal, esses relatórios são cruciais para o funcionamento eficiente do procedimento de reconhecimento mútuo e do procedimento descentralizado.» V. Best Practice Guide on the Assessment Report for mutual recognition and decentralised procedures, Coordination Group for Mutual Recognition and Decentralised Procedures — Human, janeiro de 2017, p. 3. V., também, documento da Comissão intitulado «Notice to Applicants. Procedures for marketing authorisation. Chapter 2: Mutual Recognition», fevereiro de 2007, pp. 24 a 25.


14      Nos termos do artigo 28.o, n.o 2, da versão pré‑2004 da Diretiva 2001/83, o titular deve indicar quaisquer aditamentos ou alterações. Neste último caso, deve certificar que o resumo das características do produto que propôs em conformidade com o artigo 11.o é idêntico ao aceite pelo Estado‑Membro de referência nos termos do artigo 21.o Além disso, deve certificar que todos os processos registados no âmbito do procedimento são idênticos.


15      A Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos (a seguir «Agência»), criada anteriormente pelo Regulamento (CEE) n.o 2309/93 do Conselho, de 22 de julho de 1993, que estabelece procedimentos comunitários de autorização e fiscalização de medicamentos de uso humano e veterinário e institui uma Agência Europeia de Avaliação dos Medicamentos (JO 1993, L 214, p. 1), atualmente a «Agência Europeia de Medicamentos». A Agência avalia os pedidos de autorização de introdução no mercado apresentados através do procedimento centralizado previsto pelo Regulamento n.o 726/2004. Resolve igualmente conflitos sobre, por exemplo, a segurança dos medicamentos que surjam durante o procedimento de reconhecimento mútuo ou os procedimentos descentralizados.


16      Acórdão de 16 de outubro de 2008, Synthon (C‑452/06, EU:C:2008:565, n.os 25, 28 e 29).


17      Acórdão de 16 de outubro de 2008, Synthon (C‑452/06, EU:C:2008:565, n.o 45).


18      Artigo 28.o, n.o 2, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83 («Se o medicamento tiver já recebido uma autorização de introdução no mercado no momento do pedido […]»).


19      V. artigo 28.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83.


20      Artigo 28.o, n.o 3, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83.


21      Artigo 29.o, n.os 4 e 5, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83.


22      Artigo 29.o, n.o 6, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83. Nesse caso, a autorização é concedida sem prejuízo da conclusão do procedimento pendente relativo à oposição deduzida por outro Estado‑Membro envolvido.


23      Considerando 14 das versões anterior e posterior da Diretiva 2001/83. V., também, considerando 4 e 5 da mesma diretiva e acórdão de 16 de outubro de 2008, Synthon (C‑452/06, EU:C:2008:565, n.os 25 e 32).


24      Segundo o considerando 11 da Diretiva 2004/27.


25      Mais precisamente, as fases processuais previstas nos n.os 4 e 5 do artigo 28.o da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83 são idênticas. A exceção respeitante à saúde pública também se aplica aos dois procedimentos.


26      Nota 24, supra.


27      Salvo, mais uma vez, no cenário descrito no artigo 29.o, n.o 6, da versão pós‑2004 da Diretiva 2001/83.


28      Acórdão de 19 de julho de 2012, Comissão/França (C‑145/11, não publicado, EU:C:2012:490). Esse processo dizia respeito a uma disposição análoga da Diretiva 2001/82/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos veterinários (JO 2001, L 311, p. 1).


29      Na prática, parece que o requerente desencadeia um processo informal de «validação» do pedido junto de todos os Estados‑Membros envolvidos (incluindo o Estado‑Membro de referência), para confirmar que o pedido que será apresentado não contém vícios que o excluiriam do procedimento. «A validação é dividida entre [o Estado‑Membro de referência] (lista de verificação completa) e [os Estados‑Membros envolvidos] (lista limitada). Os Estados‑Membros envolvidos e [o Estado‑Membro de referência] iniciarão o processo de validação em paralelo, utilizando as respetivas listas de verificação. […]. Os Estados‑Membros envolvidos deverão informar o requerente e [o Estado‑Membro de referência], por correio eletrónico, de eventuais questões de validação, recorrendo à sua lista de verificação.» V. documento intitulado «Procedural advice: Automatic validation of MR/Repeat‑use/DC Procedures», Coordination Group for Mutual Recognition and Decentralised Procedures — Human, outubro de 2016, Doc. Ref.: CMDh/040/2001/Rev.5,p. 1.


30      Best Practice Guide for the decentralized and mutual recognition procedures — Coordination Group for Mutual Recognition and Decentralised Procedures — Human, abril de 2013, Doc. Ref.: CMDh/068/1996/Rev.1; v. p. 2, especialmente pontos 10 e 11.


31      Ibidem, p. 2, ponto 10.


32      «Os relatórios devem ser suficientemente detalhados para permitir uma apreciação secundária por “peritos” de outros Estados‑Membros». V. Best Practice Guide on the Assessment Report for mutual recognition and decentralised Procedures, Coordination Group for Mutual Recognition and Decentralised Procedures — Human, janeiro de 2017, Doc. Ref.: CMDh/073/2003,Rev5, p. 3.


33      Acrescente‑se que a pretendida natureza colaborativa do processo também resulta dos trabalhos preparatórios da alteração de 2004, nomeadamente da descrição feita a este propósito pela Comissão na COM(2001) 404 final (proposta que acabou por conduzir à Diretiva 2004/27), onde se afirma que «[o] procedimento de reconhecimento mútuo foi criticado devido a dificuldades existentes no plano prático. Na verdade, no atual sistema, os Estados‑Membros devem reconhecer uma primeira autorização concedida pelo Estado‑Membro de referência. É sempre mais difícil voltar atrás numa decisão científica que tomar uma primeira decisão em comum no âmbito de um procedimento de cooperação científica […]. A cooperação entre Estados‑Membros ocorreria antes da tomada de decisão com base na avaliação efetuada por um de entre eles» (o sublinhado é meu).


34      À semelhança da situação pré‑2004. V. artigo 29.o da versão pré‑2004 da Diretiva 2001/83 e acórdão de 16 de outubro de 2008, Synthon (C‑452/06, EU:C:2008:565, n.o 29).


35      Orientações para a definição de um potencial risco grave para a saúde pública no contexto do n.o 1 e do n.o 2 do artigo 29.o da Diretiva 2001/83/CE — março de 2006 (JO 2006, C 133, p. 5).


36      V. as minhas conclusões nos processos apensos Novartis Europharm/Comissão (C‑629/15 P e C‑630/15 P, EU:C:2016:1003, n.o 41), onde remeto para a mesma posição defendida pelo advogado‑geral N. Wahl no processo Olainfarm (C‑104/13, EU:C:2014:342, n.o 39 e jurisprudência aí referida).


37      Discutida no n.o 66 das presentes conclusões.


38      Nos termos do artigo 28.o, n.o 4, da Diretiva 2001/83, apenas o requerente da autorização de introdução no mercado é informado, pela autoridade do Estado‑Membro de referência, do acordo alcançado no âmbito do procedimento.


39      Para questões semelhantes no domínio dos contratos públicos, v. as minhas conclusões no processo Marina del Mediterráneo e o. (C‑391/15, EU:C:2016:651).


40      Estou disposto a aceitar o rótulo (em alguns círculos, certamente desdenhoso) de jurista «tradicional» ou mesmo «positivista», que acredita na importância da hierarquia e da autoridade formal para o correto funcionamento de um sistema jurídico. Por muito interessantes que sejam ao nível de teses abstratas na teoria jurídica, não estou certo de que uma resposta que visa implementar os princípios (de uma qualquer corrente) do pluralismo jurídico europeu seja de grande utilidade para o órgão jurisdicional de reenvio no presente caso (já para não falar na capacidade de fornecer orientações concretas e úteis para as autoridades administrativas nacionais no âmbito da sua apreciação dos pedidos de autorização).


41      Por uma questão de exaustividade, cabe acrescentar que a resposta proposta por algumas das partes no presente caso é a de que, em caso de divergência entre dois ou mais Estados‑Membros em relação ao cálculo do período de exclusividade dos dados e à validade da autorização de introdução no mercado emitida para o medicamento de referência no caso concreto, essa questão deveria ser obrigatoriamente submetida ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE. Essa não é uma resposta estrutural. A função do mecanismo de decisão prejudicial instituído pelo Tratado é assegurar a interpretação uniforme do direito da União e a apreciação da validade dos atos das instituições da União, e não resolver casos concretos submetidos aos órgãos jurisdicionais nacionais e muito menos decidir litígios de natureza essencialmente factual entre Estados‑Membros em casos concretos.


42      V. evolução subjacente à alteração de 2004 nos n.os 51 a 69, supra.


43      V. artigo 122.o da Diretiva 2001/83.