Language of document : ECLI:EU:C:2019:1127

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

19 de dezembro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Transporte aéreo — Convenção de Montreal — Artigo 17.o, n.o 1 — Responsabilidade das transportadoras aéreas em caso de acidente — Conceito de “acidente” — Aeronave em voo — Derramamento de um copo com café pousado na mesa rebatível de um assento — Lesões corporais causadas ao passageiro»

No processo C‑532/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria), por Decisão de 26 de junho de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de agosto de 2018, no processo

GN, legalmente representada por HM,

contra

ZU, na qualidade de administrador judicial da Niki Luftfahrt GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, S. Rodin, D. Šváby, K. Jürimäe e N. Piçarra (relator), juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 19 de junho de 2019,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de GN, legalmente representada por HM, por G. Rößler, Rechtsanwalt,

–        em representação de ZU, na qualidade de administrador judicial da Niki Luftfahrt GmbH, por U. Reisch, Rechtsanwältin,

–        em representação do Governo francês, por A.‑L. Desjonquères e I. Cohen, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun e N. Yerrell, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de setembro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, assinada pela Comunidade Europeia em 9 de dezembro de 1999, e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001 (JO 2001, L 194, p. 38) (a seguir «Convenção de Montreal») que entrou em vigor, no que respeita à União Europeia, em 28 de junho de 2004.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe GN, legalmente representada por HM, seu pai, a ZU, na qualidade de administrador judicial da Niki Luftfahrt GmbH, empresa de transporte aéreo, a respeito de um pedido de indemnização apresentado pela primeira devido a queimaduras sofridas durante um voo operado pela segunda.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        No terceiro parágrafo do preâmbulo da Convenção de Montreal, os Estados partes «reconhece[m] a importância de assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional, bem como a necessidade de uma indemnização equitativa com base no princípio da restituição».

4        O quinto parágrafo deste preâmbulo enuncia:

«[…] [U]ma ação coletiva dos Estados atinente a uma maior harmonização e codificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional através da celebração de uma nova Convenção constitui o meio mais adequado de alcançar um justo equilíbrio de interesses».

5        O artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal estipula:

«A transportadora só é responsável pelo dano causado em caso de morte ou lesão corporal de um passageiro se o acidente que causou a morte ou a lesão tiver ocorrido a bordo da aeronave ou durante uma operação de embarque ou desembarque.»

6        Nos termos do artigo 20.o da Convenção de Montreal:

«Se provar que foi negligência ou outro ato doloso ou omissão da pessoa que reclama a indemnização, ou da pessoa de quem emanam os direitos da primeira, que causou ou contribuiu para o dano, a transportadora será total ou parcialmente exonerada da sua responsabilidade perante o requerente na medida em que tal negligência, ato doloso ou omissão causou ou contribuiu para o dano. Quando a indemnização por motivo de morte ou lesão corporal de um passageiro é reclamada por terceiro, a transportadora será igualmente total ou parcialmente exonerada da sua responsabilidade na medida em que provar que foi negligência ou outro ato doloso ou omissão do passageiro que causou ou contribuiu para o dano. O presente artigo aplica‑se a todas as disposições em matéria de responsabilidade da presente convenção, incluindo o n.o 1 do artigo 21.o»

7        O artigo 21.o da Convenção de Montreal prevê:

«1.      A transportadora não poderá excluir ou limitar a sua responsabilidade pelos danos a que se refere o n.o 1 do artigo 17.o que não excedam 100 000 direitos de saque especiais por passageiro.

2.      A transportadora não será responsável pelos danos a que se refere o n.o 1 do artigo 17.o que excedam 100 000 direitos de saque especiais por passageiro, se provar que:

a)      Tais danos não foram causados por negligência ou outro ato doloso ou omissão sua ou dos seus trabalhadores ou agentes;

b)      Tais danos foram causados exclusivamente por negligência ou outro ato doloso ou omissão de terceiro.»

8        O artigo 29.o da Convenção de Montreal estipula:

«No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento, quer este resida na presente Convenção, em contrato, em ato ilícito ou em qualquer outra causa, só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção, sem prejuízo da determinação de quais as pessoas com legitimidade para a ação e de quais os direitos que lhes assistem. Em tais ações, as transportadoras não podem ser condenadas no pagamento de indemnizações punitivas, exemplares ou outras indemnizações não compensatórias.»

 Direito da União

9        Após a assinatura da Convenção de Montreal, o Regulamento (CE) n.o 2027/97 do Conselho, de 9 de outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas no transporte de passageiros e respetiva bagagem (JO 1997, L 285, p. 1), foi alterado pelo Regulamento (CE) n.o 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de maio de 2002 (JO 2002, L 140, p. 2) (a seguir «Regulamento n.o 2027/97»).

10      Os considerandos 7 e 10 do Regulamento n.o 889/2002 enunciam:

«(7) O presente regulamento e a Convenção de Montreal reforçam a proteção dos passageiros e dos seus dependentes e não podem ser interpretados de modo a reduzir a sua proteção em relação à presente legislação à data de aprovação do presente regulamento.

[…]

(10) No contexto de um sistema de transportes aéreos seguro e moderno, convém dispor de um regime de responsabilidade ilimitada em caso de morte ou de lesões corporais dos passageiros.»

11      O artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2027/97 prevê:

«Os conceitos constantes do presente regulamento que não se encontrem definidos no n.o 1 terão o significado que lhes é atribuído pela Convenção de Montreal.»

12      Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento:

«A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula‑se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.»

 Matéria de facto do processo principal e questão prejudicial

13      Em 2015, GN, a recorrente, então com 6 anos de idade, viajou a bordo de um avião com o pai, HM, ao lado do qual estava sentada. Esta viagem, que ligou Maiorca (Espanha) a Viena (Áustria), foi operada pela Niki Luftfahrt.

14      Durante o voo, foi servido a HM um copo com café quente, o qual, enquanto estava pousado na mesa rebatível situada em frente a HM, se derramou sobre a coxa direita e sobre o peito de GN, causando‑lhe queimaduras de segundo grau.

15      Não foi possível determinar se o copo com café se derramou devido a um defeito na mesa rebatível em que estava pousado ou devido às vibrações do avião.

16      A recorrente, legalmente representada pelo pai, intentou, com base no artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, uma ação destinada à condenação da transportadora, atualmente insolvente, no pagamento de uma indemnização pelo prejuízo sofrido, num montante estimado em 8 500 euros.

17      A recorrida alega que, não se estando perante um acidente, não pode ser considerada responsável nos termos da referida disposição. Com efeito, não houve nenhum incidente repentino e inesperado que levasse a que o copo com café escorregasse e o seu conteúdo se derramasse. Em seu entendimento, o conceito de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, impõe que se verifique um risco inerente ao transporte aéreo, requisito que, no presente caso, não se encontra preenchido.

18      Por Acórdão de 15 de dezembro de 2015, o Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria) julgou procedente o pedido de indemnização da recorrente. Esse órgão jurisdicional considerou que os danos causados a GN tiveram origem num acidente causado por um acontecimento invulgar assente numa ação externa.

19      O referido órgão jurisdicional declarou que se concretizou um risco inerente ao transporte aéreo, uma vez que, no quadro da sua operação, uma aeronave está sujeita a graus de inclinação variáveis que podem conduzir a que objetos pousados sobre uma superfície horizontal no avião comecem a deslizar sem ser necessária uma manobra particular da aeronave. O mesmo órgão constatou igualmente que não tinha havido culpa da recorrida, uma vez que servir bebidas quentes em recipientes sem tampa é uma prática habitual e socialmente adequada.

20      Por Acórdão de 30 de agosto de 2016, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) anulou a sentença proferida em primeira instância. Segundo esse órgão jurisdicional, o artigo 17.o da Convenção de Montreal abrange apenas os acidentes causados por um risco inerente ao transporte aéreo e, no caso em apreço, a recorrente não apresentou prova desse facto. Nessas circunstâncias, está excluída a responsabilidade da recorrida.

21      A recorrente interpôs então um recurso de «Revision» no Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) para que fosse declarada a responsabilidade da transportadora e fosse julgado procedente o pedido de indemnização pelos danos sofridos.

22      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a interpretação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal é controversa quanto à questão de saber se o conceito de «acidente», na aceção dessa disposição, se limita aos casos em que se concretizou um risco inerente ao transporte aéreo. O mesmo órgão jurisdicional refere, a este respeito, duas abordagens interpretativas distintas.

23      Segundo uma primeira abordagem, o conceito de «acidente», na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, abrange unicamente as situações em que se concretizou um risco inerente ao transporte aéreo. Segundo esta abordagem, é necessário que se materialize um risco decorrente da natureza, do estado ou da utilização da aeronave, ou de uma instalação aeronáutica utilizada no momento do embarque ou do desembarque. Por conseguinte, a consequência é a de que acidentes como o do processo principal, que não têm qualquer relação com a atividade de transporte aéreo e poderiam ocorrer noutras circunstâncias, não implicam a responsabilidade da transportadora, o que teria sido a intenção dos Estados partes na Convenção de Montreal. Por outro lado, o ónus da prova recairia, neste caso, sobre a pessoa que invoca o prejuízo. No caso em apreço, tal abordagem conduziria à negação de provimento ao recurso interposto pela recorrente, na medida em que não foi possível determinar a causa do acidente.

24      Em contrapartida, de acordo com uma segunda abordagem, não é necessário que se tenha concretizado um risco inerente ao transporte aéreo para desencadear a responsabilidade da transportadora. Esta abordagem assenta na redação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, que não formula tal requisito. Além disso, aceitar este requisito esvaziaria, na sua substância, o regime de responsabilidade previsto na referida disposição. Com efeito, quase todos os prejuízos ficariam excluídos, uma vez que poderiam apresentar‑se de forma semelhante noutras circunstâncias da vida. Em qualquer caso, não haveria motivo para recear a responsabilidade ilimitada da transportadora aérea em resultado de tal abordagem, na medida em que a transportadora pode ser exonerada de responsabilidade em caso de culpa concorrente da parte lesada, nos termos do artigo 20.o da Convenção de Montreal.

25      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que parte da doutrina qualifica de «acidente», na aceção do artigo 17.o n.o 1, da Convenção de Montreal, o derrame de bebidas ou de pratos quentes sobre o corpo de um passageiro. No presente caso, esta abordagem conduziria ao reconhecimento da responsabilidade da recorrida.

26      O órgão jurisdicional de reenvio equaciona igualmente, como «solução intermédia», uma interpretação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal segundo a qual a responsabilidade se baseia unicamente no facto de ter ocorrido um acidente a bordo da aeronave ou durante a utilização das instalações de embarque e desembarque, sem que seja necessária a materialização de um risco inerente ao transporte aéreo, mas impondo à transportadora aérea o ónus de provar a inexistência de ligação com a operação ou a natureza da aeronave para se exonerar dessa responsabilidade. No presente caso, esta abordagem conduziria igualmente ao reconhecimento da responsabilidade da recorrida, na medida em que a causa do acidente não pôde ser identificada.

27      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Constitui um “acidente” que dá origem a responsabilidade da transportadora, na aceção do artigo 17.o, n.o 1, da [Convenção de Montreal], o deslizamento e queda, por motivos não apurados, de um copo com café quente colocado [na mesa rebatível do assento] da frente de uma aeronave em pleno voo, causando queimaduras a um passageiro?»

 Quanto à questão prejudicial

28      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente», na aceção desta disposição, abrange uma situação em que um objeto utilizado para o serviço prestado aos passageiros causou uma lesão corporal a um passageiro, sem que seja necessário determinar se esse acidente resulta de um risco inerente ao transporte aéreo.

29      A título liminar, cumpre esclarecer que, em matéria de responsabilidade das transportadoras aéreas pelo transporte aéreo de passageiros e respetivas bagagens no território da União, o Regulamento n.o 2027/97, aplicável no processo principal, transpõe as disposições relevantes da Convenção de Montreal. Resulta, em especial, do artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento que a responsabilidade das transportadoras aéreas da União perante os passageiros e respetivas bagagens se rege por todas as disposições da Convenção de Montreal relativas a tal responsabilidade (v., neste sentido, Acórdão de 6 de maio de 2010, Walz, C‑63/09, EU:C:2010:251, n.o 18).

30      Cabe precisar que a Convenção de Montreal, em vigor, no que respeita à União, desde 28 de junho de 2004, faz parte integrante da ordem jurídica da União desde essa data e, por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a sua interpretação (Acórdão de 12 de abril de 2018, Finnair, C‑258/16, EU:C:2018:252, n.os 19, 20 e jurisprudência referida).

31      A este respeito, o artigo 31.o da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331), que codifica as regras do direito internacional geral, que vinculam a União, precisa que um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim (Acórdão de 12 de abril de 2018, Finnair, C‑258/16, EU:C:2018:252, n.o 21 e jurisprudência referida).

32      Por outro lado, o Tribunal de Justiça já salientou que os conceitos constantes da Convenção de Montreal devem ser objeto de uma interpretação uniforme e autónoma, pelo que, na interpretação desses conceitos a título prejudicial, deve ter em conta, não os diferentes sentidos que lhes possam ser atribuídos no direito interno dos Estados‑Membros da União, mas as regras de interpretação do direito internacional geral que a vinculam (Acórdão de 7 de novembro de 2019, Guaitoli e o., C‑213/18, EU:C:2019:927, n.o 47).

33      No caso em apreço, resulta da redação do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal que, para que a responsabilidade da transportadora seja desencadeada, o acontecimento que causou a morte ou a lesão corporal do passageiro deve ser qualificado de «acidente» e deve ter ocorrido a bordo da aeronave ou durante uma operação de embarque ou desembarque.

34      Uma vez que o conceito de «acidente» não está definido na Convenção de Montreal, importa remeter para o sentido corrente deste conceito no contexto em que se insere, à luz do objeto desta convenção e do objetivo que prossegue.

35      O sentido corrente do conceito de «acidente» é o de um acontecimento danoso involuntário e imprevisto.

36      Por outro lado, nos termos do terceiro parágrafo do preâmbulo da Convenção de Montreal, os Estados partes na mesma, cientes da «importância de assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional, bem como [d]a necessidade de uma indemnização equitativa com base no princípio da restituição», decidiram instituir um regime de responsabilidade objetiva das transportadoras aéreas. Esse regime implica, todavia, como decorre do quinto parágrafo do preâmbulo da Convenção de Montreal, que seja preservado um «justo equilíbrio de interesses», designadamente os interesses das transportadoras aéreas e dos passageiros (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de maio de 2010, Walz, C‑63/09, EU:C:2010:251, n.os 31 e 33; e de 22 de novembro de 2012, Espada Sánchez e o., C‑410/11, EU:C:2012:747, n.os 29 e 30).

37      A este respeito, resulta dos trabalhos preparatórios que conduziram à adoção da Convenção de Montreal que as partes contratantes optaram pelo conceito de «acidente» em vez do conceito de «acontecimento», proposto no projeto inicial (v., designadamente, parecer apresentado pela International Union of Aviation Insurers, DCW Doc No.28, 13 de maio de 1999, bem como o relatório do Rapporteur on the Modernization and Consolidation of the Warsaw System, C‑WP/10576). A razão subjacente foi a de o termo «acontecimento» ser considerado demasiado amplo por abranger todas as circunstâncias e poder gerar demasiado contencioso.

38      Em contrapartida, após o termo a utilizar ter sido alterado, foi decidido suprimir o último período do artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal que previa a inexistência de responsabilidade por parte da transportadora no caso de a morte ou as lesões resultarem do estado de saúde do passageiro. Com efeito, considerou‑se, em substância, que manter essa exoneração de responsabilidade desequilibraria os interesses em presença, em detrimento do passageiro, e que, de qualquer modo, essa convenção já previa uma cláusula geral de exoneração no seu artigo 20.o

39      É por esta razão que, para a preservação desse equilíbrio, a Convenção de Montreal prevê, em certos casos, a exoneração de responsabilidade da transportadora ou a limitação da sua obrigação de indemnização. Com efeito, o artigo 20.o daquela convenção prevê que, se a transportadora provar que foi negligência ou outro ato doloso ou omissão do passageiro que causou ou contribuiu para o dano, será total ou parcialmente exonerada da sua responsabilidade para com esse passageiro. Além disso, resulta do artigo 21.o, n.o 1, da referida convenção que a transportadora aérea não pode excluir ou limitar a sua responsabilidade pelos danos a que se refere o n.o 1 do artigo 17.o da mesma convenção se esses danos não excederem um determinado limiar de indemnização. Só acima desse limiar é que a transportadora aérea pode excluir a sua responsabilidade nos termos do n.o 2 deste artigo 21.o, demonstrando que o dano não foi causado por sua culpa ou foi exclusivamente causado por culpa de terceiro.

40      Esses limites permitem aos passageiros serem indemnizados, fácil e rapidamente, sem que seja imposto às transportadoras aéreas um ónus de reparação demasiado pesado, dificilmente identificável e calculável, que seria suscetível de comprometer ou mesmo paralisar a sua atividade económica (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de maio de 2010, Walz, C‑63/09, EU:C:2010:251, n.os 34 a 36, e de 22 de novembro de 2012, Espada Sánchez e o., C‑410/11, EU:C:2012:747, n.o 30).

41      Daqui resulta, como salienta o advogado‑geral no n.o 60 das conclusões, que a sujeição da responsabilidade da transportadora ao requisito de o dano se dever à materialização de um risco inerente ao transporte aéreo ou à existência de uma ligação entre o «acidente» e a operação ou a deslocação da aeronave não é conforme ao sentido comum do conceito de «acidente», referido no artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal, nem aos objetivos por ela prosseguidos.

42      Além disso, não é necessário limitar a obrigação de indemnização das transportadoras aéreas aos acidentes relacionados com um risco inerente ao transporte aéreo para evitar impor um ónus de reparação excessivo às mesmas transportadoras aéreas. Com efeito, conforme salientado no n.o 39 do presente acórdão, estas transportadoras podem excluir ou limitar a sua responsabilidade.

43      Nestas circunstâncias, importa responder à questão submetida que o artigo 17.o, n.o 1, da Convenção de Montreal deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente», na aceção desta disposição, abrange todas as situações ocorridas a bordo de uma aeronave em que um objeto utilizado para o serviço prestado aos passageiros causou uma lesão corporal a um passageiro, sem que seja necessário determinar se essas situações resultam de um risco inerente ao transporte aéreo.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 17.o, n.o 1, da Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, assinada pela Comunidade Europeia em 9 de dezembro de 1999, e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «acidente», na aceção desta disposição, abrange todas as situações ocorridas a bordo de uma aeronave em que um objeto utilizado para o serviço prestado aos passageiros causou uma lesão corporal a um passageiro, sem que seja necessário determinar se essas situações resultam de um risco inerente ao transporte aéreo.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.