Language of document : ECLI:EU:C:2022:379

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

12 de maio de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Concorrência — Posição dominante — Exploração abusiva — Artigo 102.o TFUE — Incidência de uma prática sobre o bem‑estar dos consumidores e sobre a estrutura do mercado — Prática de exclusão abusiva — Capacidade da prática para produzir um efeito de exclusão — Recurso a meios diferentes daqueles que decorrem de uma concorrência pelo mérito — Impossibilidade para um hipotético concorrente igualmente eficaz de replicar a prática — Existência de uma intenção anticoncorrencial — Abertura à concorrência do mercado da venda de eletricidade — Transferência de informações comercialmente sensíveis no interior de um grupo de empresas com o objetivo de manter uma posição dominante no mercado herdada de um monopólio legal — Imputabilidade do comportamento da filial à sociedade‑mãe»

No processo C‑377/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália), por Decisão de 21 de maio de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de julho de 2020, no processo

Servizio Elettrico Nazionale SpA,

ENEL SpA,

Enel Energia SpA

contra

Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato e o.,

sendo intervenientes:

Green Network SpA,

Associazione Italiana di Grossisti di Energia e Trader AIGET,

Ass.ne Codici Centro per i Diritti del Cittadino,

Associazione Energia Libera,

Metaenergia SpA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan (relator), presidente da Quinta Secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Quinta Secção, C. Lycourgos, presidente da Quarta Secção, I. Jarukaitis e M. Ilešič, juízes,

advogado‑geral: A. Rantos,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 9 de setembro de 2021,

considerando as observações apresentadas:

—        em representação de Servizio Elettrico Nazionale SpA, por M. D’Ostuni, A. Police e M. Russo, avvocati,

—        em representação de ENEL SpA, por M. Clarich e V. Meli, avvocati,

—        em representação de Enel Energia SpA, por F. Anglani, C. Tesauro, S. Fienga e M. Contu, avvocati,

—        em representação de Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato, por G. Aiello, avvocato dello Stato,

—        em representação de Green Network SpA, por V. Cerulli Irelli, C. Mirabile e A. Fratini, avvocati,

—        em representação de Associazione Italiana di Grossisti di Energia e Trader ‑ AIGET, por G. d’Andria, avvocato,

—        em representação do Governo alemão, por J. Möller e D. Klebs, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Galluzzo e de S. Fiorentino, avvocati dello Stato,

—        em representação do Reino da Noruega, por L. Furuholmen, K. Hallsjø Aarvik, K. S. Borge, E. W. Sandaa e P. Wennerås, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por G. Conte, P. Rossi e por C. Sjödin, na qualidade de agentes,

—        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por C. Simpson e por M. Sánchez Rydelski, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de dezembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 102.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de litígios que opõem o Servizio Elettrico Nazionale SpA (a seguir «SEN»), a sua sociedade‑mãe, ENEL SpA, bem como uma sociedade‑irmã, a Enel Energia SpA (a seguir «EE»), à Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (Autoridade de Defesa da Concorrência e do Mercado, Itália) (a seguir «AGCM»), bem como a outras partes, relativa à decisão dessa autoridade de aplicar, com fundamento no artigo 102.o TFUE, uma coima por abuso de posição dominante às referidas sociedades (a seguir «decisão controvertida»).

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

3        O presente processo inscreve‑se no contexto da liberalização progressiva do mercado da venda de energia elétrica em Itália.

4        Desde 1 de julho de 2007, todos os utilizadores da rede elétrica italiana, incluindo as famílias e as pequenas e médias empresas, podem escolher o seu fornecedor. No entanto, a abertura deste mercado caracterizou‑se, num primeiro momento, por uma distinção entre, por um lado, os clientes elegíveis para escolherem um fornecedor no mercado livre diferente do seu distribuidor territorialmente competente e, por outro, os clientes do mercado protegido, compostos por particulares e por pequenas empresas que, por se considerar não estarem em condições de negociar os produtos energéticos com pleno conhecimento de causa ou numa posição de força, continuaram a ser abrangidos por um regime regulamentado, a saber, o servizio di maggior tutela (serviço de melhor proteção), que institui um mercado sujeito à fiscalização de uma autoridade nacional de regulação setorial no que respeita à definição das condições de venda.

5        Num segundo momento, os clientes do mercado protegido foram autorizados a participar no mercado livre. O legislador italiano operou a transição do mercado protegido para o mercado livre fixando uma data a partir da qual as proteções especiais em matéria de preços já não seriam aplicáveis.

6        Quando a AGCM adotou, em 20 de dezembro de 2018, a decisão controvertida, a data de supressão das proteções especiais em matéria de preços foi fixada em 1 de julho de 2020. Após vários adiamentos, a data de transição foi finalmente fixada em 1 de janeiro de 2021 para as pequenas e médias empresas e em 1 de janeiro de 2022 para os agregados familiares.

7        Com vista à liberalização do mercado, a ENEL, uma empresa até então verticalmente integrada e titular do monopólio na produção de energia elétrica em Itália e que opera na distribuição desta, foi sujeita a um processo de dissociação das atividades de distribuição e de venda, bem como das marcas. No termo desse procedimento, as atividades relativas às diferentes fases do processo de distribuição foram atribuídas a sociedades distintas. Assim, foi confiado à E‑Distribuzione o serviço de distribuição, a EE foi encarregada do fornecimento de eletricidade no mercado livre e à SEN foi atribuída a gestão do serviço de melhor proteção.

8        Os presentes litígios têm origem numa denúncia apresentada à AGCM pela Associazione Italiana di Grossisti di Energia e Trader (AIGET), [Associação Italiana dos Grossistas e Negociantes de Energia] e nos alertas provenientes de consumidores individuais, destinados a denunciar a exploração ilícita de informações comercialmente sensíveis da parte de operadores que dispõem desses dados por pertencerem ao grupo ENEL. Foi assim que a AGCM instaurou, em 4 de maio de 2017, um inquérito a respeito da ENEL, da SEN, e da EE para averiguar se os comportamentos conjuntos dessas sociedades constituíam uma violação do artigo 102.o TFUE.

9        Esse inquérito terminou com a adoção da decisão controvertida através da qual a AGCM declarou que era imputável à SEN e à EE, sob a coordenação da sua sociedade‑mãe ENEL, a partir do mês de janeiro de 2012 e até ao mês de maio de 2017, um abuso de posição dominante, em violação do artigo 102.o TFUE, nos mercados de fornecimento de energia elétrica aos clientes domésticos e não‑domésticos ligados à rede de baixa tensão, nas zonas em que o grupo ENEL geria a atividade de distribuição. Em consequência, a AGCM aplicou solidariamente às sociedades acima mencionadas uma coima no montante de 93 084 790,50 euros.

10      O comportamento censurado consistiu em pôr em prática, a partir de janeiro de 2012 e até maio de 2017, uma estratégia de exclusão, com o objetivo de transferir a clientela da SEN, o gestor histórico do mercado protegido, que representava ainda em 2017, entre 80 e 85 % dos agregados familiares e entre 70 e 85 % dos outros clientes, para a EE, que opera no mercado livre. O objetivo do grupo ENEL foi, assim, antecipar um risco de partida massiva dos clientes da SEN para terceiros fornecedores, e isto na previsão da supressão total do mercado protegido, cuja data foi, no entanto, inicialmente fixada apenas para o ano de 2017.

11      Para este efeito, segundo a decisão controvertida, a SEN obteve, a partir de 2012, o consentimento dos seus clientes do mercado protegido para receberem propostas comerciais relativas ao mercado livre segundo modalidades discriminatórias que consistem em pedir esse consentimento «de forma separada» para as sociedades do grupo ENEL, por um lado, e para terceiros, por outro. Deste modo, os clientes contactados teriam tido tendência, por um lado, a dar o seu acordo a favor das sociedades do grupo ENEL, sendo efetivamente levados a crer que a prestação desse acordo era necessária à continuação do seu fornecimento de eletricidade e, por outro, a recusar dar o seu acordo a favor de outros operadores. Ao fazê‑lo, a SEN limitou o número de consentimentos dados pelos clientes do mercado protegido para receber propostas comerciais feitas pelos operadores concorrentes. Com efeito, em todos os clientes do mercado protegido que aceitaram receber propostas comerciais do grupo ENEL, que representam, no período compreendido entre o ano de 2012 e o ano de 2015 em média cerca de 500 000 clientes por ano, ou seja, mais do dobro da clientela média dos três primeiros concorrentes principais, 70 % aceitaram receber unicamente uma proposta do grupo ENEL, contra 30 % que teriam igualmente aceitado receber propostas de concorrentes.

12      As informações relativas aos clientes do mercado protegido que tinham aceitado receber propostas comerciais do grupo ENEL foram seguidamente inscritas em listas (a seguir «listas SEN») que foram transferidas para a EE mediante contratos de locação a título oneroso. Na medida em que continham informações, inverificáveis noutro local, a saber, o facto de os utilizadores pertencerem ao serviço de melhor proteção, a AGCM considerou que essas listas SEN tinham um valor estratégico e insubstituível porque estas permitiam ações comerciais direcionadas.

13      Estas listas SEN foram utilizadas pela EE que lançou propostas comerciais exclusivamente destinadas a este tipo de clientes, como a proposta comercial «Sempre Con Te» («Sempre Contigo»), apresentada durante o período compreendido entre 20 de março e 1 de junho de 2017, materializando assim a estratégia de exclusão. Segundo a AGCM, a utilização das listas SEN teria permitido à EE subtrair aos seus concorrentes uma parte significativa — a saber, superior a 40 % — da «procura disputada» dos clientes que passassem do mercado protegido para o mercado livre.

14      Segundo a decisão controvertida, apenas um concorrente da EE entrou em contacto com o SEN para a aquisição das listas SEN que continham as coordenadas dos clientes que aceitaram receber propostas de outras empresas. Esta sociedade, que indicou ter tido conhecimento da colocação à venda dessas listas consultando simplesmente o sítio internet da SEN, acabou finalmente por as não adquirir. Outras sociedades, operadoras há muitos anos no mercado relevante, afirmaram nunca ter sido informadas dessa oportunidade comercial.

15      A ENEL, a SEN e a EE interpuseram recursos autónomos da decisão controvertida no Tribunale amministrativo regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional para o Lácio, Itália), o órgão jurisdicional de primeira instância.

16      Por Decisões de 17 de outubro de 2019, este órgão jurisdicional, muito embora declarando a existência de um abuso de posição dominante, julgou parcialmente procedentes os recursos interpostos pela EE e pela SEN quanto à duração do alegado abuso e aos critérios utilizados para o cálculo da coima. Em execução destas decisões, a AGCM reduziu o montante da coima a 27 529 786,46 euros. Em contrapartida, o referido órgão jurisdicional negou integralmente provimento ao recurso interposto pela ENEL.

17      Estas três sociedades recorreram separadamente dessas decisões para o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a anulação dessa coima ou, a título subsidiário, a redução do seu montante.

18      Em apoio do seu recurso, a ENEL, a SEN e EE alegam, em primeiro lugar, a inexistência de prova do caráter abusivo do seu comportamento, nomeadamente da sua aptidão para produzir, ainda que potencialmente, um efeito de exclusão anticoncorrencial.

19      Alegam, antes de mais, que a simples inscrição do nome de um cliente numa lista de telemarketing para efeitos de promoção de serviços de filiais não constitui um comportamento abusivo, uma vez que não implica nenhum compromisso quanto ao fornecimento e não impede o cliente de figurar noutras listas, de receber mensagens comerciais e de escolher ou de mudar, a qualquer momento e mais do que uma vez, de fornecedor.

20      Em seguida, as recorrentes alegam que a utilização das listas SEN não era suscetível de permitir uma passagem rápida e massiva de clientes da SEN para a EE. Com efeito, entre o mês de março e o mês de maio de 2017, os dois únicos meses decorridos entre o lançamento da proposta «Sempre Con Te» e o encerramento das vendas por telefone (teleselling outbound), a EE obteve, pela utilização das listas SEN, apenas 478 clientes, ou seja, 0,002 % dos clientes do serviço de melhor proteção e 0,001 % do total dos utilizadores de eletricidade.

21      Por outro lado, a AGCM não examinou os elementos de prova económicos fornecidos pela ENEL, a SEN e EE que demonstram que os comportamentos verificados não podiam produzir, e não produziram, efeitos restritivos da concorrência. A este respeito, os resultados positivos registados pela EE na obtenção de clientes abrangidos pelo serviço de melhor proteção ficavam a dever‑se a dois fatores perfeitamente lícitos, que podem constituir uma explicação alternativa e mais convincente do que a preconizada pela AGCM, a saber, por um lado, que os resultados no mercado livre eram melhores para as sociedades do grupo ENEL, do qual faz parte o seu distribuidor territorialmente competente e, por outro, a capacidade de atração da marca ENEL.

22      Por último, as listas SEN não eram estratégicas nem insubstituíveis, dado que existem no mercado de listas análogas de clientes do serviço de melhor proteção, mais completas e menos onerosas do que as listas SEN.

23      Em segundo lugar, a ENEL contesta o facto de a AGCM ter aplicado uma presunção simples na qual assenta a sua responsabilidade de sociedade‑mãe. A este respeito, alega que, a partir de 2014, o grupo ENEL foi reestruturado e os seus processos decisórios foram descentralizados. Nesse novo contexto organizacional, a sociedade‑mãe à cabeça do grupo tinha a mera função de promover as sinergias e as boas práticas entre as diversas sociedades operacionais, abandonando o seu papel decisório.

24      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que apensou os três recursos nos processos principais, não restam dúvidas de que o grupo ENEL detém uma posição dominante no mercado relevante. Em contrapartida, o conceito de «exploração abusiva», designadamente no que respeita aos abusos «atípicos», como o que visa impedir o crescimento ou a diversificação da oferta dos concorrentes, suscita problemas de interpretação, na medida em que, por um lado, o artigo 102.o TFUE não oferece parâmetros de definição exaustivos e, por outro, que a distinção tradicionalmente operada entre os abusos de exploração e os abusos de exclusão não é pertinente. Especialmente, põe-se a questão de saber se há que ter em conta a estratégia da empresa em posição dominante quando, como no caso em apreço, esta visava impedir a saída dos clientes em direção aos concorrentes, bem como o facto de que os comportamentos dessa empresa eram em si mesmo lícitos, uma vez que, no caso em apreço, as listas SEN foram, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, obtidas licitamente.

25      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se igualmente sobre se é suficiente que o comportamento em causa seja suscetível de excluir concorrentes do mercado relevante, uma vez que o referido grupo, durante o inquérito, apresentou estudos económicos destinados a demonstrar que o seu comportamento não tinha tido, concretamente, efeitos de exclusão.

26      Por fim, o abuso de posição dominante por um grupo de empresas suscita a questão de saber se há que fazer prova de uma coordenação ativa entre as diversas sociedades que operam dentro do grupo ou se a pertença a esse grupo é suficiente para declarar uma contribuição para a prática abusiva, ainda que por uma sociedade do grupo que não pôs em prática os comportamentos abusivos.

27      Foi neste contexto que o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Podem os comportamentos constitutivos de exploração abusiva de posição dominante ser em si mesmos lícitos e ser qualificados de “abusivos” apenas devido ao efeito (potencialmente) restritivo gerado no mercado de referência? Ou deve considerar‑se que tais comportamentos também têm uma componente específica de ilicitude, constituída pelo recurso a “métodos ou meios concorrenciais diferentes” dos “normais”? Neste último caso, com base em que critérios pode ser estabelecida a fronteira entre a concorrência “normal” e a concorrência “falseada”?

2)      Deve a regra que proíbe o abuso ter por objetivo maximizar o bem‑estar dos consumidores, cuja diminuição (ou perigo de diminuição) incumbe ao órgão jurisdicional avaliar? Ou a norma que prevê o ilícito concorrencial tem em si a função de preservar a estrutura concorrencial do mercado, a fim de impedir as concentrações de poder económico que são, de qualquer forma, consideradas prejudiciais para a sociedade?

3)      Em caso de abuso de posição dominante que consista na tentativa de impedir a manutenção do nível de concorrência existente ou a sua evolução, pode a empresa dominante provar que — apesar da sua aptidão abstrata para provocar um efeito restritivo o comportamento não foi lesivo? Em caso de resposta afirmativa, para efeitos da avaliação da existência de um abuso atípico que visa a eliminação da concorrência no mercado, deve o artigo 102.o TFUE ser interpretado no sentido de que cabe à Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato (Autoridade de Defesa da Concorrência e do Mercado) examinar com precisão as análises económicas apresentadas por uma parte a respeito da suscetibilidade concreta de o comportamento investigado eliminar os concorrentes do mercado?

4)      Deve o abuso de posição dominante ser analisado unicamente pelos seus efeitos no mercado (ainda que apenas potenciais), independentemente da motivação subjetiva do agente? Ou a demonstração da intenção de restringir constitui um critério que pode ser utilizado (mesmo de forma exclusiva) para avaliar a natureza abusiva do comportamento da empresa dominante? Ou, ainda, essa demonstração do elemento subjetivo serve apenas para inverter o ónus da prova para a empresa dominante (a qual, nesse caso, teria o ónus de provar a inexistência do efeito de eliminação)?

5)      Em caso de posição dominante que implique uma pluralidade de empresas pertencentes ao mesmo grupo societário, a pertença ao referido grupo é suficiente para se presumir que mesmo as empresas que não tiveram um comportamento abusivo participaram no comportamento ilícito — pelo que bastaria à autoridade de supervisão demonstrar a existência de um funcionamento paralelo consciente, embora sem caráter colusório, das empresas que operam dentro do grupo que ocupa, como coletivo, uma posição dominante — ou (à semelhança do previsto para a proibição dos cartéis) deve fazer‑se a prova, ainda que indireta, de uma situação concreta de coordenação e instrumentalização entre as várias empresas do grupo em posição dominante, nomeadamente para provar o envolvimento da empresa‑mãe?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

28      Várias partes puseram em causa, nas observações escritas de que dispõe o Tribunal de Justiça, a admissibilidade de certas questões.

29      A AIGET considera que a segunda questão deveria ser declarada inadmissível com fundamento no facto de que é formulada em termos gerais e não é pertinente. Com efeito, não é contestado que, se o abuso imputado ao grupo ENEL fosse provado, este seria suscetível tanto de excluir concorrentes do mercado como de causar prejuízo aos consumidores.

30      A Green Network SpA interroga‑se sobre a admissibilidade das quatro primeiras questões, uma vez que estas não lhe parecem necessárias para a solução dos litígios nos processos principais e, de qualquer modo, porque o Tribunal de Justiça já lhes respondeu.

31      Por último, a AGCM e a AIGET sustentam que a quinta questão é inadmissível, porque hipotética, uma vez que o inquérito conduzido pela AGCM concluiu pela existência de uma estratégia de grupo que visava transferir os clientes da SEM para a EE e, deste modo, a evitar a partida destes para grupos concorrentes.

32      Quanto a estes diferentes aspetos, recorde‑se que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, cabe unicamente ao juiz nacional que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a proferir, apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 54 e jurisprudência referida).

33      Daqui resulta que as questões que tenham por objeto o direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema é de natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 55 e jurisprudência referida).

34      No caso em apreço, há que observar, no que respeita, antes de mais, à segunda questão, que a circunstância de esta ser formulada em termos gerais não exclui que possa ser pertinente para a solução dos litígios nos processos principais.

35      De resto, não compete ao Tribunal de Justiça, mas ao órgão jurisdicional nacional estabelecer os factos que deram origem ao litígio no processo principal e retirar deles as consequências para a decisão que é chamado a proferir (Acórdão de 10 de março de 2016, Safe Interenvíos, C‑235/14, EU:C:2016:154, n.o 119). Por conseguinte, na medida em que um órgão jurisdicional nacional expõe no seu pedido os elementos de facto e de direito necessários ao Tribunal de Justiça para responder utilmente às questões que lhe são submetidas, estas últimas não podem ser declaradas inadmissíveis pelo simples facto de serem formuladas em termos gerais.

36      Quanto à pretensa falta de contestação da capacidade do abuso alegado para excluir do mercado os concorrentes do grupo ENEL e de causar um prejuízo aos consumidores, mesmo que se considerasse demonstrada, não é menos verdade que a interpretação dos objetivos prosseguidos pelo artigo 102.o TFUE pode revelar‑se útil ao órgão jurisdicional de reenvio para determinar quais as condições que devem estar preenchidas para que se possa ser declarado um abuso de posição dominante.

37      Em seguida, no que respeita à pertinência da primeira, terceira e quarta questões, basta salientar que não é manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto dos litígios nos processos principais. Pelo contrário, tendo em conta as circunstâncias destes últimos, cada uma dessas questões é suscetível de esclarecer o órgão jurisdicional de reenvio a fim de lhe permitir resolver os litígios. Quanto à circunstância de o Tribunal de Justiça já se ter pronunciado sobre estas questões, importa recordar que não é de modo nenhum proibido a um órgão jurisdicional nacional submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais cuja resposta, segundo a opinião de certas partes no processo principal, não deixa margem para nenhuma dúvida razoável (Acórdão de 14 de outubro de 2021, Viesgo Infraestructuras Energéticas, C‑683/19, EU:C:2021:847, n.o 26).

38      Por último, no que respeita à quinta questão, não se pode excluir que o órgão jurisdicional de reenvio se pronuncie num sentido diferente da decisão controvertida. Por conseguinte, não se pode considerar que, como sustentam a AGCM e a AIGET, esta questão não tem manifestamente relação com a realidade ou com o objeto dos litígios nos processos principais ou é de natureza hipotética.

39      Por conseguinte, as questões submetidas pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) devem ser consideradas admissíveis.

 Quanto ao mérito

 Quanto à segunda questão

40      Com a sua segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para determinar se uma prática constitui exploração abusiva de uma posição dominante, basta, para uma autoridade da concorrência, provar que essa prática é suscetível de prejudicar uma estrutura de concorrência efetiva no mercado relevante ou se é ainda necessário, ou em alternativa, provar que a referida prática é suscetível de ter incidência no bem‑estar dos consumidores.

41      A este respeito, há que recordar que o artigo 102.o TFUE faz parte de um conjunto de regras que, tendo por objetivo evitar que a concorrência seja falseada em detrimento do interesse geral, das empresas individuais e dos consumidores, contribuem para o bem‑estar na União Europeia (v., neste sentido, Acórdão de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.os 21 e 22).

42      A este título, o artigo 102.o TFUE é uma expressão do objetivo geral fixado pelo artigo 3.o, n.o 1, alínea b), TFUE à ação da União, a saber, o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 2009, France Télécom/Comissão, C‑202/07 P, EU:C:2009:214, n.o 103, e de 14 de outubro de 2010, Deutsche Telekom/Comissão, C‑280/08 P, EU:C:2010:603, n.o 170).

43      O caráter fundamental das disposições do Tratado FUE em matéria de concorrência resulta igualmente do Protocolo (n.o 27) relativo ao mercado interno e à concorrência, o qual, ao abrigo do artigo 51.o TUE, faz parte integrante dos Tratados, e nos termos do qual o mercado interno inclui um sistema que assegura que a concorrência não é falseada (Acórdão de 17 de novembro de 2011, Comissão/Itália, C‑496/09, EU:C:2011:740, n.o 60).

44      Entre estas regras, o objetivo mais especificamente atribuído ao artigo 102.o TFUE é, segundo jurisprudência constante, evitar que os comportamentos de uma empresa que detém uma posição dominante tenham por efeito, em prejuízo dos consumidores, obstar, recorrendo a meios ou a recursos diferentes daqueles que regem uma concorrência normal entre produtos ou serviços com base nas prestações dos operadores económicos, à manutenção do grau de concorrência existente no mercado ou ao desenvolvimento dessa concorrência [v., neste sentido, Acórdãos de 13 de fevereiro de 1979, Hoffmann‑La Roche/Comissão, 85/76, EU:C:1979:36, n.o 91; de 27 de março de 2012, Post Danmark, C‑209/10, EU:C:2012:172, n.o 24, bem como de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 148 e jurisprudência referida]. Neste sentido, como declarou o Tribunal de Justiça, esta disposição visa punir não apenas as práticas suscetíveis de causar um prejuízo direto aos consumidores, mas também aquelas que lhes causam indiretamente prejuízo por porem em causa uma estrutura de concorrência efetiva (v., neste sentido, designadamente, Acórdãos de 15 de março de 2007, British Airways/Comissão, C‑95/04 P, EU:C:2007:166, n.os 106 e 107, bem como de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.o 24).

45      Em contrapartida, como o Tribunal de Justiça já sublinhou, a referida disposição não se opõe a que, em razão de uma concorrência pelo mérito, desapareçam ou sejam marginalizados no mercado em causa, concorrentes menos eficazes e, portanto, menos interessantes para os consumidores do ponto de vista, nomeadamente, dos preços, da escolha, da qualidade ou da inovação (Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 134 e jurisprudência referida).

46      Daí resulta, como o advogado‑geral realçou, em substância no n.o 100 das suas conclusões, que o bem‑estar dos consumidores, tanto os intermédios quanto os finais, deve ser visto como constituindo o objetivo último que justifica a intervenção do direito da concorrência para reprimir a exploração abusiva de uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Por esta razão, como o Tribunal de Justiça já declarou, uma empresa que detenha uma posição dominante pode estabelecer que um comportamento de exclusão não cai sob a proibição enunciada artigo do 102.o TFUE, nomeadamente provando que os efeitos que o seu comportamento é suscetível de produzir podem ser compensados ou mesmo superados por vantagens em termos de eficiência que aproveitem igualmente aos consumidores, particularmente em termos de preços, de escolha, de qualidade e de inovação [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.os 134 e 140, bem como de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 165 e jurisprudência referida].

47      Por conseguinte, uma autoridade da concorrência respeita o ónus da prova que lhe incumbe, se demonstrar que uma prática de uma empresa em posição dominante é suscetível de pôr em causa, recorrendo a recursos ou a meios diferentes dos que regem uma competição normal, uma estrutura de concorrência efetiva, sem que seja necessário que esta demonstre que a referida prática tem, além disso, capacidade para causar um prejuízo direto aos consumidores. A empresa dominante em causa pode, no entanto, escapar à proibição enunciada no artigo 102.o TFUE, demonstrando que o efeito de exclusão que pode resultar da prática em causa é contrabalançado, ou mesmo superado, por efeitos positivos para os consumidores.

48      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para demonstrar que uma prática constitui uma exploração abusiva de uma posição dominante, basta, para uma autoridade da concorrência, provar que essa prática é suscetível de pôr em causa a estrutura de concorrência efetiva no mercado relevante, a menos que a empresa dominante em questão demonstre que os efeitos anticoncorrenciais que possam resultar da referida prática são contrabalançados, ou mesmo superados, por efeitos positivos para os consumidores, designadamente em termos de preços, de escolha, de qualidade e de inovação.

 Quanto à terceira questão

49      Com a sua terceira questão, que importa examinar em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para demonstrar o caráter abusivo de um comportamento de uma empresa em posição dominante, devem ser considerados pertinentes os elementos apresentados por essa empresa destinados a demonstrar que, não obstante a capacidade abstrata desse comportamento para produzir efeitos restritivos, este não produziu concretamente esses efeitos e, em caso afirmativo, se a autoridade da concorrência é obrigada a examinar esses elementos de forma aprofundada.

50      Antes de mais, importa salientar que, quanto às práticas de exclusão, categoria em que se enquadram os comportamentos alegados nos litígios nos processos principais, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o caráter abusivo dessas práticas pressupõe, nomeadamente, que estas tenham a capacidade para restringir a concorrência e, em especial, de produzir os efeitos de exclusão que lhe são imputados [Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 154 e jurisprudência referida].

51      Em consequência, no caso de a empresa dominante sustentar, ao longo do procedimento administrativo, que o seu comportamento não teve capacidade para restringir a concorrência, com base em elementos de prova, a autoridade da concorrência em questão deve examinar se, segundo as circunstâncias do caso concreto, o comportamento em causa tinha efetivamente tal capacidade (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.os 138 e 140).

52      Neste contexto, em conformidade com o direito a ser ouvido, o qual, segundo jurisprudência constante, constitui um princípio geral do direito da União aplicável sempre que a Administração se proponha adotar, a respeito de uma pessoa, um ato que lhe é lesivo, as autoridades da concorrência têm, designadamente, a obrigação de ouvir a empresa em questão, o que implique prestem toda a atenção exigida às observações por esta submetidas e examinem, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto, designadamente, as provas apresentadas por essa empresa (v., por analogia, Acórdão de 16 de outubro de 2019, Glencore Agriculture Hungary, C‑189/18, EU:C:2019:861, n.os 39 a 42).

53      Porém, importa recordar que a qualificação de uma prática de uma empresa em posição dominante de abusiva não exige que se demonstre, no caso de uma prática dessa empresa que vise excluir os seus concorrentes do mercado em questão, que o seu resultado foi alcançado e, por conseguinte, a demonstração de um efeito de exclusão concreto no mercado. Com efeito, o artigo 102.o TFUE visa sancionar o facto de uma ou várias empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste, independentemente de saber se tal exploração se revelou ou não frutífera (v., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, České dráhy/Comissão, C‑538/18 P e C‑539/18 P, não publicado, EU:C:2020:53, n.o 70 e jurisprudência referida).

54      Ora, se, como sublinha o n.o 20 da Comunicação da Comissão Europeia intitulada «Orientação sobre as prioridades da Comissão na aplicação do artigo [102.o TFUE] a comportamentos de exclusão abusivos por parte de empresas em posição dominante» (JO 2009, C 45, p. 7), quando o comportamento é suficientemente antigo, o desempenho no mercado da empresa dominante e dos seus concorrentes pode constituir uma prova de um efeito de exclusão da prática em causa, a circunstância inversa de que um certo comportamento não produziu efeitos anticoncorrenciais concretos, não pode excluir, mesmo quando um longo período de tempo decorreu desde que o comportamento abusivo se verificou, que este tinha efetivamente tal capacidade quando foi posto em prática. Com efeito, essa inexistência de efeitos poderia resultar de outras causas e ser devida, nomeadamente, a alterações que se verificaram no mercado relevante desde que o referido comportamento teve iniciou à incapacidade da empresa em posição dominante para levar a bom termo a estratégia na origem desse comportamento.

55      Por conseguinte, a prova da inexistência de efeitos de exclusão concretos apresentada por uma empresa em posição dominante não pode ser considerada suficiente, por si só, para afastar a aplicação do artigo 102.o TFUE.

56      Em contrapartida, esta circunstância pode constituir um indício de que o comportamento em causa não era suscetível de produzir os efeitos de exclusão alegados. Este começo de prova deve, porém, ser completado, pela empresa em questão, por elementos destinados a demonstrar que essa inexistência de efeitos concretos era efetivamente a consequência da incapacidade do referido comportamento para produzir tais efeitos.

57      Daqui resulta que, no presente processo, a circunstância, em que as sociedades visadas se apoiam para contestar a existência de um abuso de posição dominante, de que a EE obteve, através da utilização das listas SEN, apenas 478 clientes, ou seja, 0,002 % dos clientes do mercado protegido, não pode ser considerada, em si mesma suficiente, para demonstrar que a prática em causa não tinha capacidade para produzir um efeito de exclusão.

58      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para excluir o caráter abusivo de um comportamento de uma empresa em posição dominante, deve considerar‑se que não é suficiente, por si só, a prova, apresentada pela empresa em questão, de que esse comportamento não produziu efeitos restritivos concretos. Este elemento pode constituir um indício da incapacidade do comportamento em causa para produzir efeitos anticoncorrenciais, o qual, todavia, deverá ser completado por outros elementos de prova destinados a demonstrar essa incapacidade.

 Quanto à quarta questão

59      Com a sua quarta questão, que importa examinar em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a existência de uma prática de exclusão abusiva por uma empresa que ocupa uma posição dominante deve ser apreciada unicamente com fundamento na capacidade dessa prática para produzir efeitos anticoncorrenciais ou se há que ter em conta a intenção da empresa em causa de restringir a concorrência.

60      A esse respeito, recorde‑se que a exploração de forma abusiva de uma posição dominante, proibida pelo artigo 102.o TFUE, é um conceito objetivo [v., designadamente, Acórdãos de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 148, bem como de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 41].

61      Como foi recordado no n.o 50 do presente acórdão, a qualificação de abusiva de uma prática de exclusão depende dos efeitos de exclusão que esta é ou era capaz de produzir. Assim, para demonstrar o caráter abusivo de uma prática de exclusão, uma autoridade da concorrência deve demonstrar que, por um lado, essa prática tinha a capacidade, quando foi aplicada, de produzir esse efeito de exclusão, no sentido de que era suscetível de tornar mais difícil a penetração ou a manutenção dos concorrentes no mercado em causa, e, desse modo, que a referida prática era suscetível de ter incidência na estrutura de mercado e, por outro, que essa prática assentava na exploração de meios diferentes daqueles que decorrem de uma concorrência pelo mérito. Ora, nenhuma destas condições exige, em princípio, a prova de um elemento intencional.

62      Consequentemente, para declarar a exploração abusiva de uma posição dominante para efeitos da aplicação do artigo 102.o TFUE, uma autoridade da concorrência não é de modo nenhum obrigada a demonstrar a existência de uma intenção anticoncorrencial por parte da empresa em posição dominante (Acórdão de 19 de abril de 2012, Tomra Systems e o./Comissão, C‑549/10 P, EU:C:2012:221, n.o 21).

63      Porém, se, para efeitos da aplicação do artigo 102.o TFUE, não é de modo nenhum, exigido demonstrar a existência de uma intenção anticoncorrencial por parte da empresa em posição dominante, a prova de tal intenção, ainda que não seja por si só suficiente, constitui uma circunstância de facto suscetível de ser tomada em conta para efeitos da determinação de um abuso de posição dominante [Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 162 e jurisprudência referida].

64      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a existência de uma prática de exclusão abusiva por parte de uma empresa em posição dominante deve ser apreciada com fundamento na capacidade dessa prática para produzir efeitos anticoncorrenciais. Uma autoridade da concorrência não é obrigada a provar a intenção da empresa em causa de excluir os seus concorrentes através de meios ou de recursos diferentes dos que regulam uma concorrência pelo mérito. A prova dessa intenção constitui, no entanto, uma circunstância factual suscetível de ser tida em conta para efeitos da determinação de um abuso de posição dominante.

 Quanto à primeira questão

65      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma prática, de resto, lícita à margem do direito da concorrência, pode, quando aplicada por uma empresa em posição dominante, ser qualificada de «abusiva», na aceção desta disposição, unicamente com fundamento nos seus efeitos potencialmente anticoncorrenciais ou se essa qualificação exige, além disso, que essa prática seja aplicada através de meios ou de recursos diferentes dos que regulam uma concorrência normal. Nesta segunda hipótese, esse mesmo órgão jurisdicional interroga‑se sobre os critérios que permitem diferenciar os meios ou os recursos próprios de uma concorrência normal em relação aos que são próprios de uma concorrência falseada.

66      A este respeito, importa recordar que o artigo 102.o TFUE declara incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja suscetível de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste.

67      Segundo jurisprudência constante, o conceito de «exploração abusiva», na aceção do artigo 102.o TFUE, baseia‑se numa apreciação objetiva do comportamento em causa. Ora, a ilegalidade de um comportamento abusivo à luz dessa disposição é independente da qualificação desse comportamento noutros ramos do direito (v., neste sentido, Acórdão de 6 de dezembro de 2012, AstraZeneca/Comissão, C‑457/10 P, EU:C:2012:770, n.os 74 e 132).

68      Concretamente, como resulta do n.o 44 do presente acórdão, este conceito designa qualquer prática suscetível de pôr em causa, através de recursos diferentes dos que regem uma competição normal, uma estrutura de concorrência efetiva. Visa, assim, sancionar os comportamentos de uma empresa em posição dominante que, num mercado no qual, precisamente devido à presença da empresa em questão, o grau de concorrência já está enfraquecido, têm por efeito impedir, através do recurso a meios diferentes dos que regem uma concorrência normal dos produtos ou dos serviços com base nas prestações dos operadores económicos, a manutenção do grau de concorrência ainda existente no mercado ou o desenvolvimento dessa concorrência (Acórdão de 13 de fevereiro de 1979, Hoffmann‑La Roche/Comissão, 85/76, EU:C:1979:36, n.o 91 e de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 41).

69      Quanto às práticas que constituem o objeto dos litígios nos processos principais, como salientado no n.o 50 do presente acórdão, o seu caráter abusivo pressupõe que tenham tido a capacidade para produzir os efeitos de exclusão nos quais assenta a decisão controvertida.

70      É certo que tais efeitos não devem ser puramente hipotéticos (Acórdão de 6 de outubro de 2015, Post Danmark, C‑23/14, EU:C:2015:651, n.o 65). Consequentemente, por um lado, uma prática não pode ser qualificada de abusiva se tiver ficado em fase de projeto sem ter sido aplicada. Por outro lado, uma autoridade da concorrência não se pode basear nos efeitos que essa prática poderia ou teria podido produzir se certas circunstâncias particulares, que não eram as que predominavam no mercado no momento da sua aplicação e cuja realização se afigurava, então, pouco provável, se tivessem verificado ou se verificarem.

71      Em contrapartida, para proceder a tal qualificação, basta que essa prática tenha tido, durante o período em que foi aplicada, a capacidade para produzir um efeito de exclusão em relação a concorrentes pelo menos tão eficazes como a empresa em posição dominante (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, Post Danmark, C‑23/14, EU:C:2015:651, n.o 66 e jurisprudência referida).

72      Dado que o caráter abusivo de uma prática não depende da forma que esta reveste ou revestia, mas pressupõe que a referida prática tenha ou tivesse tido a capacidade para restringir a concorrência e, em especial, de produzir, no momento da sua execução, os efeitos de exclusão censurados, devendo condição ser apreciada tendo em conta todas as circunstâncias de facto pertinentes [v., neste sentido, Acórdãos de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 154, bem como de 25 de março de 2021, Slovak Telekom/Comissão, C‑165/19 P, EU:C:2021:239, n.o 42].

73      Porém, como foi recordado no n.o 45 do presente acórdão, o artigo 102.o TFUE não tem, de forma alguma, como finalidade impedir que uma empresa conquiste, pelo seu próprio mérito, nomeadamente em razão das suas competências e das suas capacidades, uma posição dominante num mercado, nem assegurar que concorrentes menos eficazes do que a empresa que detém uma posição dominante fiquem no mercado. Com efeito, nem todo o efeito de exclusão põe necessariamente em causa o jogo da concorrência, uma vez que, por definição, a concorrência pelo mérito pode conduzir ao desaparecimento do mercado ou à marginalização dos concorrentes menos eficazes e, portanto, menos interessantes para os consumidores do ponto de vista, nomeadamente, dos preços, da escolha, da qualidade ou da inovação (Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.os 133 e 134).

74      Contudo, incumbe às empresas em posição dominante, independentemente das causas de tal posição, a responsabilidade especial de não pôr em causa, através do seu comportamento uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno (v., designadamente, Acórdãos de 9 de novembro de 1983, Nederlandsche Banden‑Industrie‑Michelin/Comissão, 322/81, EU:C:1983:313, n.o 57, e de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 135).

75      Por conseguinte, embora as empresas em posição dominante possam defender‑se contra os seus concorrentes, devem fazê‑lo recorrendo a meios próprios de uma concorrência «normal», isto é, baseada no mérito.

76      Em contrapartida, essas empresas não podem tornar mais difícil a penetração ou a manutenção no mercado em causa de concorrentes tão eficientes recorrendo a meios diferentes dos que são próprios de uma concorrência baseada no mérito. Designadamente, devem abster‑se de utilizar a sua posição dominante para se estenderem a outro mercado por meios diferentes dos de uma concorrência com base no mérito (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de outubro de 1985, CBEM, 311/84, EU:C:1985:394, n.o 25; de 14 de novembro de 1996, Tetra Pak/Comissão, C‑333/94 P, EU:C:1996:436, n.o 25, e de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.o 87).

77      Deve ser considerado como constituindo meio diferente dos que são próprios de uma concorrência baseada no mérito qualquer prática para a execução da qual uma empresa dominante não tem, efetivamente, nenhum interesse económico que não seja o de eliminar os seus concorrentes para poder, a seguir, aumentar os seus preços aproveitando‑se da sua situação de monopólio (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 1991, AKZO/Comissão, C‑62/86, EU:C:1991:286, n.o 71).

78      O mesmo se diga, como salientou o advogado‑geral nos n.os 69 a 71 das suas conclusões, quanto a uma prática que não pode ser adotada por um hipotético concorrente que, embora igualmente eficaz, não ocupa uma posição dominante no mercado em causa, porque essa prática assenta na exploração de recursos ou de meios próprios da detenção dessa posição.

79      A pertinência da impossibilidade, material ou racional, para um hipotético concorrente igualmente eficaz, mas que não está em posição dominante, de imitar a prática em causa, a fim de determinar se esta última assenta em meios próprios de uma concorrência baseada no mérito, resulta da jurisprudência relativa às práticas tanto tarifárias como não tarifárias.

80      Quanto à primeira destas duas categorias de práticas, que compreende os descontos de fidelidade, as práticas de preços baixos sob a forma de preços seletivos ou de preços predatórios, bem como as práticas de compressão de margens, resulta da jurisprudência que estas se apreciam, em geral, recorrendo ao teste dito do «concorrente igualmente eficaz», o qual visa precisamente apreciar a capacidade que teria esse concorrente, considerado em abstrato, para reproduzir o comportamento da empresa em posição dominante (v., designadamente, Acórdão de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.os 41 a 43).

81      É certo que este teste mais não é do que uma das maneiras de demonstrar que uma empresa em posição dominante recorreu a meios diferentes dos que são próprios de uma concorrência «normal», pelo que as autoridades da concorrência não têm a obrigação de se basearem sistematicamente nesse teste para declarar o caráter abusivo de uma prática tarifária (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, Post Danmark, C‑23/14, EU:C:2015:651, n.o 57).

82      Todavia, a importância geralmente atribuída ao referido teste, quando este é realizável, não deixa de demonstrar que a incapacidade que um hipotético concorrente igualmente eficaz teria de replicar o comportamento da empresa dominante constitui, quanto às práticas de exclusão, um dos critérios que permitem determinar se esse comportamento deve ser ou considerado como tendo sido baseado ou não na utilização de meios próprios de uma concorrência normal.

83      Quanto à segunda categoria de práticas visadas no n.o 79 do presente acórdão, a saber, as práticas não tarifárias, como a recusa de fornecimento de bens ou de serviços, o Tribunal de Justiça salientou que a escolha de uma empresa dominante de reservar para ela mesma a sua própria rede de distribuição não constitui uma recusa de fornecimento contrária ao artigo 102.o TFUE sempre que, precisamente, seja possível para um concorrente criar uma rede análoga para a distribuição dos seus próprios produtos (v., neste sentido, Acórdão de 26 de novembro de 1998, Bronner, C‑7/97, EU:C:1998:569, n.os 44 e 45).

84      Quando esteja demonstrado, por uma autoridade da concorrência, que uma prática levada a cabo por uma empresa em posição dominante é suscetível de pôr em causa a concorrência efetiva e não falseada no mercado interno, é possível a essa empresa, a fim de que a prática em causa não seja considerada como a exploração abusiva de uma posição dominante, de demonstrar que esta é ou era objetivamente justificada quer por determinadas circunstâncias do caso em apreço, as quais devem designadamente ser exteriores à empresa em questão (v., neste sentido, Acórdão de 17 de fevereiro de 2011, TeliaSonera Sverige, C‑52/09, EU:C:2011:83, n.os 31 e 75), quer, relativamente ao objetivo prosseguido por último pelo artigo 102.o TFUE, o interesse dos consumidores [v., designadamente, neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 165].

85      Quanto a esta segunda hipótese, importa sublinhar que o conceito de concorrência pelo mérito se refere, em princípio, a uma situação de concorrência de que os consumidores beneficiam através de preços menos elevados, uma qualidade melhor e uma escolha mais vasta de bens e de serviços novos ou com melhor desempenho. Assim, como salientou o advogado‑geral no n.o 62 das suas conclusões, devem designadamente considerar‑se abrangidas pela concorrência pelo mérito as condutas que tenham por efeito alargar a escolha dos consumidores ao colocar no mercado novos produtos ou aumentando a quantidade ou a qualidade dos já oferecidos.

86      Nesse caso, a empresa dominante pode justificar comportamentos suscetíveis de ser abrangidos pela proibição enunciada no artigo 102.o TFUE provando que o efeito de exclusão que o seu comportamento tinha capacidade para produzir era compensado ou mesmo superado por vantagens em termos de eficácia que beneficiam igualmente aos consumidores [v., neste sentido, Acórdãos de 15 de março de 2007, British Airways/Comissão, C‑95/04 P, EU:C:2007:166, n.o 86; de 6 de setembro de 2017, Intel/Comissão, C‑413/14 P, EU:C:2017:632, n.o 140, bem como de 30 de janeiro de 2020, Generics (UK) e o., C‑307/18, EU:C:2020:52, n.o 165].

87      No que respeita aos litígios nos processos principais, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se a AGCM fez prova bastante de que a estratégia posta em prática pela empresa ENEL entre o ano de 2012 e o ano de 2017 era suscetível de pôr em causa uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno. Todavia, a fim de orientar nessa apreciação, o Tribunal de Justiça pode fornecer‑lhe todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe possam ser úteis [v., designadamente, Acórdãos de 16 de julho de 2015, CHEZ Razpredelenie Bulgaria, C‑83/14, EU:C:2015:480, n.o 62, e de 6 de outubro de 2021, A (Passagem de fronteiras numa embarcação de recreio), C‑35/20, EU:C:2021:813, n.o 85].

88      No caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, antes de mais, que, na sequência da separação das diferentes atividades da empresa ENEL, até então verticalmente integrada e que ocupava uma posição de monopólio nos mercados da produção, do transporte e da distribuição de eletricidade em Itália, foi confiada à SEN a gestão dos clientes pertencentes unicamente ao mercado protegido nesse Estado‑Membro. No entanto, estava assente que o mercado protegido não estava destinado a perdurar e que, quando da sua supressão, numa data futura, os clientes em questão deviam escolher um novo fornecedor. Além disso, a fim de evitar a transferência de uma vantagem concorrencial, a regulamentação setorial só autorizava a transferência de informações comercialmente sensíveis entre as sociedades que vendem eletricidade no mercado protegido e as sociedades que operam no mercado livre desde que o fornecimento dessas informações não fosse discriminatório.

89      Em seguida, decorre das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que o comportamento referido na decisão controvertida se prende, em substância, não com a recusa da SEN em permitir que os concorrentes da EE acedam a uma facilidade essencial que constituem os dados de contactos dos clientes do mercado protegido, mas sim com a decisão da SEN de transferir, mediante pagamento, determinadas informações comerciais por ela detidas, relativas aos seus clientes, entre as quais, nomeadamente, os seus contactos, para a EE, de uma forma que seria desfavorável e, portanto, discriminatória, em relação aos concorrentes desta segunda sociedade no mercado livre, apesar de a SEM estar em posição dominante no mercado protegido.

90      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio parece partir da premissa de que, no mínimo, a SEN e a EE formavam uma única e mesma empresa na aceção do artigo 102.o TFUE.

91      Tendo em conta estes elementos, que cabe ao órgão jurisdicional verificar, afigura‑se oportuno recordar que deve ser considerado como constitutivo de exploração de meios diferentes daqueles que são próprios da concorrência pelo mérito, porque assentando na exploração de recursos inacessíveis, no seu princípio, a um hipotético concorrente igualmente eficaz, mas que não tem uma posição dominante, o facto para uma empresa que dispõe de direitos exclusivos, como um monopólio legal, utilizar esses últimos para alargar a posição dominante que tem num mercado em razão desses direitos sobre um outro mercado (v., neste sentido, Acórdão de 17 de julho de 2014, Comissão/DEI, C‑553/12 P, EU:C:2014:2083, n.os 45 a 47 e 66 a 68).

92      Daqui resulta a fortiori que, quando uma empresa perde o monopólio legal que detinha anteriormente num mercado, esta deve abster‑se, durante toda a fase de liberalização desse mercado, de recorrer a meios de que dispunha ao abrigo do seu antigo monopólio e que, a esse título, não estão disponíveis para os seus concorrentes, para conservar, de outro modo que através do seu próprio mérito, uma posição dominante no mercado em causa recentemente liberalizado.

93      Nos litígios nos processos principais, essas considerações implicam que a empresa que teriam formado juntas, no mínimo, a SEN e a EE, tinha a responsabilidade particular de se abster de qualquer comportamento no mercado protegido suscetível de pôr em causa uma estrutura da concorrência efetiva no mercado livre e, em especial, de alargar sobre esse mercado a posição dominante que tinha no mercado protegido por meios diferentes dos que meios que regem a concorrência pelo mérito (v., por analogia, Acórdão de 3 de outubro de 1985, CBEM, 311/84, EU:C:1985:394, n.o 27).

94      Ora, é pacífico que a possibilidade de contactar a clientela do mercado protegido apresentava um interesse económico certo para qualquer empresa que pretendesse desenvolver‑se no mercado livre. Assim, uma vez que a empresa que teriam constituído conjuntamente a SEN e a EE pretendia transferir determinadas informações comerciais detidas pela SEN a respeito da sua clientela, mediante pagamento, para a EE, esta empresa devia igualmente, a fim de não pôr em causa uma estrutura de concorrência efetiva, oferecer aos concorrentes da EE a possibilidade de acederem a essas informações, e isto em condições iguais para prestações equivalentes.

95      É certo que, tendo em conta o direito à proteção dos dados pessoais, que constitui um direito fundamental garantido pelo artigo 8.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), não se pode acusar uma sociedade na situação da SEN de ter previamente obtido o consentimento dos seus clientes em que algumas das suas informações pessoais fossem, assim, transferidas. Do mesmo modo, essa sociedade também não pode ser responsabilizada pela decisão de uma parte dos seus clientes de autorizar a transferência das suas informações pessoais apenas em benefício de certas sociedades.

96      Todavia, a fim de dar cumprimento à responsabilidade particular que lhe incumbia em razão da sua posição dominante no mercado protegido, a SEN devia, a fim de antecipar a vontade de uma sociedade terceira desejosa de se desenvolver no mercado livre de aceder igualmente às referidas informações, propor aos seus clientes que recebessem as propostas de sociedades não pertencentes ao grupo ENEL de uma maneira que seja não discriminatória, nomeadamente tendo o cuidado de evitar criar uma distorção, quando da obtenção do consentimento, suscetível de levar a que as listas destinadas a ser cedidas à EE fossem significativamente mais guarnecidas do que as destinadas à venda aos concorrentes dessa sociedade.

97      No caso em apreço, as informações transmitidas ao Tribunal de Justiça não permitem compreender a natureza exata do tratamento discriminatório identificado pela AGCM. Com efeito, embora resulte da decisão de reenvio que a SEN solicitou o acordo dos seus clientes do mercado protegido para receberem propostas comerciais das sociedades do grupo ENEL e de terceiros «separadamente», esse mesmo descritivo não permite determinar, com suficiente clareza, se este conceito faz referência à circunstância de que as solicitações foram enviadas em momentos diferentes ou ao facto de que figuravam em partes diferentes de um mesmo documento, nem, aliás, se todas as sociedades terceiras eram visadas de maneira indiferenciada por um mesmo pedido, se era possível consentir em receber as propostas de sociedades terceiras sem dever igualmente consentir em receber as propostas do grupo ENEL ou se os clientes da SEN podiam escolher, de maneira individualizada, quais as empresas terceiras que estavam autorizadas a enviar‑lhes propostas comerciais, à semelhança do que estava aparentemente previsto para o grupo ENEL.

98      Porém, há que recordar que o ónus da prova da capacidade do comportamento de SPN para produzir efeitos atuais ou potenciais de exclusão recai sobre a AGCM. Dado que esta capacidade não deve ser puramente hipotética, a AGCM devia, portanto, para respeitar esse ónus, demonstrar, na decisão controvertida, com fundamento em elementos probatórios, como estudos comportamentais, que o processo utilizado pela SEN para obter o acordo dos seus clientes para a transferência dos respetivos dados era efetivamente suscetível de favorecer as listas destinadas a ser cedidas à EE.

99      Se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que a AGCM fez prova bastante, na decisão controvertida, de que a forma como a SEN solicitou o acordo dos seus clientes para receber propostas era distorcida a fim de favorecer as sociedades do grupo ENEL em detrimento dos seus concorrentes, a existência de tal distorção exclui que se possa considerar que a diferença de quantidade de informações contidas nas listas destinadas à EE e nas listas destinadas aos concorrentes se deve ao facto de o desempenho no mercado livre ser melhor para as sociedades do grupo ENEL ou de atração de informações contidas nas listas destinadas à EE e nas listas destinadas aos concorrentes se deve ao facto de os desempenhos no mercado livre serem melhores para as sociedades do grupo ENEL ou à capacidade de atração da marca ENEL. Com efeito, a própria existência dessa distorção torna, por definição, impossível a determinação da existência de causas objetivas para a diferença dos consentimentos obtidos. Por conseguinte, dado que, nessa hipótese, a referida distorção seria a consequência do comportamento da SEN, a diferença quanto ao número de clientes abrangidos pelas listas destinadas à EE e pelas listas destinadas aos concorrentes desta última deveria ser imputada à SEN.

100    Daqui resulta que, agindo deste modo, a SEN transferiu para a EE um recurso suscetível de conferir uma vantagem comparativa à empresa que, segundo o postulado mencionado no n.o 90 do presente acórdão, essas duas sociedades, no mínimo, formaram juntas, no mercado livre, embora resulte dos elementos dos autos que o processo de dissociação das atividades da ENEL tinha precisamente por finalidade evitar essa transferência. Por conseguinte, deve considerar‑se que a utilização subsequente deste recurso concretiza a aplicação de uma prática que teve, pelo menos inicialmente, capacidade para produzir efeitos de exclusão no mercado livre.

101    Ora, tal comportamento seria necessariamente insuscetível de ser adotado por um hipotético concorrente igualmente eficaz, uma vez que, devido à posição ocupada pela SEN no mercado protegido, na sequência da supressão do monopólio legal anteriormente detido pela empresa ENEL, nenhuma empresa concorrente podia dispor de uma estrutura suscetível de fornecer, em grande número, os contactos dos clientes do mercado protegido.

102    Daqui resulta que, na medida em que a exploração abusiva de uma posição dominante é apreciada tendo em conta a capacidade do comportamento em causa para produzir efeitos de exclusão, e não tendo em conta os seus efeitos concretos, se se demonstrar que a SEN solicitou aos seus clientes o consentimento para receberem propostas, respetivamente, de sociedades do grupo ENEL e dos seus concorrentes, de maneira discriminatória, esta simples circunstância bastaria para demonstrar que o comportamento da empresa formada pelo menos pela SEN e EE era suscetível de pôr em causa uma concorrência efetiva e não falseada. Tal constatação não pode ser posta em causa à luz das razões pelas quais nenhum dos referidos concorrentes decidiu comprar as informações que lhes eram propostas, da capacidade de EE para transformar essa vantagem comparativa num sucesso comercial ou das diligências que as empresas concorrentes puderam, ou poderiam ter levado a cabo, como a compra a terceiros de ficheiros contendo dados relativos aos clientes do mercado protegido, para limitar as consequências danosas dessa prática.

103    Em face do exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma prática lícita à margem do direito da concorrência pode, quando aplicada por uma empresa em posição dominante, ser qualificada de «abusiva», na aceção desta disposição, se puder produzir um efeito de exclusão e se assentar na utilização de meios diferentes dos que resultam de uma concorrência pelo mérito. Quando estas duas condições estão preenchidas, a empresa em posição dominante em causa pode porém escapar à proibição enunciada no artigo 102.o TFUE demonstrando que a prática em causa era quer objetivamente justificada e proporcionada a essa justificação quer contrabalançada ou mesmo superada por ganhos em termos de eficácia que aproveitam de modo igual aos consumidores.

 Quanto à quinta questão

104    Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, quando uma posição dominante é explorada de forma abusiva por uma ou várias filiais pertencentes a uma unidade económica, a existência dessa unidade é suficiente para considerar que a sociedade‑mãe é, também ela, responsável por esse abuso, mesmo quando esta última não tenha participado nas práticas abusivas, ou se é necessário fazer prova, ainda que indireta, de uma coordenação entre essas diferentes sociedades e, particularmente, demonstrar o envolvimento da sociedade‑mãe.

105    A título preliminar, importa recordar que os autores do Tratado FUE escolheram, para designar o autor de uma infração ao direito da concorrência, recorrer ao conceito de «empresa», o qual designa, nesse contexto, uma unidade económica, mesmo que, do ponto de vista jurídico, essa unidade económica seja constituída por várias pessoas singulares ou coletivas (Acórdão de 27 de abril de 2017, Akzo Nobel e o./Comissão, C‑516/15 P, EU:C:2017:314, n.o 48).

106    Decorre desta escolha que, quando essa entidade económica infringe as regras relativas à concorrência, incumbe‑lhe, de acordo com o princípio da responsabilidade pessoal, responder pela referida infração (Acórdão de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 73).

107    Todavia, uma vez que uma tal infração deve ser imputada a uma pessoa jurídica à qual poderão ser aplicadas coimas, a aplicação do conceito de «empresa» e, através dele, o de «unidade económica» implicam de pleno direito uma responsabilidade solidária entre as entidades que compõem a unidade económica no momento da prática da infração (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Sumal, C‑882/19, EU:C:2021:800, n.o 44).

108    Quando pessoas juridicamente distintas são organizadas sob a forma de um grupo, é jurisprudência constante que estas formam uma só e mesma empresa quando não determinam, de modo autónomo, o seu comportamento no mercado em causa, mas que, atendendo em especial aos vínculos económicos, organizacionais e jurídicos que as unem a uma sociedade‑mãe, estas sofrem, para alcançar esse fim, os efeitos do exercício efetivo, por parte desta unidade de direção, de uma influência determinante (v., neste sentido, Acórdão de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.o 74 e 75).

109    Resulta de jurisprudência igualmente constante que, na hipótese especial em que a sociedade‑mãe detém, diretamente ou indiretamente, a totalidade ou praticamente a totalidade do capital da sua filial que cometeu uma infração às regras de concorrência da União, o exercício efetivo de uma influência determinante pela sociedade‑mãe pode ser presumido (v., neste sentido, Acórdão de 15 de abril de 2021, Italmobiliare e o./Comissão, C‑694/19 P, não publicado, EU:C:2021:286, n.o 55).

110    Tal presunção é, no entanto, ilidível (v., neste sentido, Acórdão de 8 de maio de 2013, Eni/Comissão, C‑508/11 P, EU:C:2013:289, n.o 47). Com efeito, como o Tribunal de Justiça sublinhou, é não a detenção dessa percentagem do capital social da filial que fundamenta essa presunção mas o grau de controlo que esta detenção implica (Acórdão de 27 de janeiro de 2021, The Goldman Sachs Group/Comissão, C‑595/18 P, EU:C:2021:73, n.o 35). Ora, a detenção, por uma sociedade, da quase totalidade do capital social de outra, embora constituindo um indício muito forte a favor da detenção desse controlo, não permite excluir com certeza que uma ou várias outras pessoas possam deter, isoladamente ou conjuntamente, o poder de decisão, uma vez que, nomeadamente, a propriedade do capital social pode ter sido dissociada dos direitos de voto.

111    De resto, resulta da jurisprudência recordada anteriormente que, para formar com a sua filial uma só e mesma empresa, uma sociedade‑mãe deve exercer controlo sobre o comportamento da sua filial, o que pode ser demonstrado provando quer que a sociedade‑mãe tem capacidade para exercer uma influência determinante no comportamento da filial e que, além disso, efetivamente exerceu essa influência, quer que essa filial não determina de modo autónomo o seu comportamento no mercado, mas que aplica, no essencial, as instruções que lhe são dadas pela sociedade‑mãe, tendo em conta, em especial, os vínculos económicos, organizacionais e jurídicos que unem essas duas entidades jurídicas (v., designadamente, Acórdão de 25 de março de 2021, Deutsche Telekom/Comissão, C‑152/19 P, EU:C:2021:238, n.os 94 e 95).

112    Consequentemente, uma sociedade‑mãe deve igualmente poder ilidir a presunção enunciada no n.o 109 do presente acórdão demonstrando que, embora detivesse a totalidade ou praticamente a totalidade do capital de outra sociedade, na prática, não lhe dava instruções, nem participava diretamente nem indiretamente, sobretudo por intermédio de administradores designados, na adoção das decisões dessa outra sociedade relativas à atividade económica em questão.

113    No caso em apreço, a ENEL sustenta que as dificuldades que surgiram no âmbito dos litígios nos processos principais estão ligadas não à aplicação dessa presunção mas à repartição do ónus da prova de que as diferentes sociedades do grupo ENEL em questão formavam uma só e mesma empresa, bem como ao dever de fundamentação que incumbe à autoridade da concorrência, quando esta última pretende afastar os elementos adiantados por uma sociedade‑mãe para ilidir a referida presunção.

114    A este respeito, quanto ao ónus de prova, como o advogado‑geral realçou no n.o 155 das suas conclusões, resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a presunção que decorre da detenção, por uma sociedade‑mãe, da totalidade ou praticamente da totalidade do capital da sua filial implica que o exercício efetivo, por uma sociedade‑mãe, de uma influência determinante sobre a sua filial e, portanto, a existência, entre essas sociedades, de uma só e mesma empresa, sejam consideradas provadas, sem que a autoridade da concorrência tenha de apresentar qualquer prova suplementar (v., designadamente, Acórdão de 16 de junho de 2016, Evonik Degussa e AlzChem/Comissão, C‑155/14 P, EU:C:2016:446, n.os 29 e 30).

115    Quanto ao dever de fundamentação, há que recordar que este constitui um princípio geral do direito da União, refletido no artigo 41.o da Carta, que está vocacionado para ser aplicado aos Estados‑Membros quando estes aplicam este direito (v., neste sentido, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Minister van Buitenlandse Zaken, C‑225/19 e C‑226/19, EU:C:2020:951, n.o 34 e jurisprudência referida).

116    Em conformidade com o direito a um recurso efetivo, garantido pelo artigo 47.o da Carta, a fundamentação apresentada deve ser de molde a permitir, por um lado, aos interessados apreciar se a decisão adotada padece eventualmente de um vício que permita impugnar a sua validade e, por outro, ao juiz competente proceder à fiscalização da legalidade (v., neste sentido, Acórdão de 16 de maio de 2017, Berlioz Investment Fund, C‑682/15, EU:C:2017:373, n.o 84).

117    Assim, quando uma decisão conclui que uma sociedade formava, no momento dos factos, juntamente com uma ou várias das suas filiais, uma só e mesma empresa para efeitos da realização de uma atividade económica, essa decisão deve conter, para ser considerada devidamente fundamentada, uma exposição das razões que justificam tal conclusão (v., neste sentido, Acórdão de 2 de outubro de 2003, Aristrain/Comissão, C‑196/99 P, EU:C:2003:529, n.o 100, e de 29 de setembro de 2011, Elf Aquitaine/Comissão, C‑521/09 P, EU:C:2011:620, n.o 152).

118    Daqui resulta que, como salientou o advogado‑geral no n.o 160 das suas conclusões, quando, para aplicar a uma sociedade‑mãe, uma coima a título do comportamento adotado pela empresa que esta formava, no momento dos factos, juntamente com outra sociedade que era então sua filial, uma autoridade da concorrência se baseou na presunção de influência determinante resultante da detenção, por essa sociedade‑mãe, no momento dos factos, da totalidade ou praticamente da totalidade do capital dessa outra sociedade, ainda que a referida sociedade‑mãe tenha apresentado, durante o procedimento administrativo, elementos concretos a fim de ilidir a referida presunção, a autoridade da concorrência é obrigada, a fim de respeitar o seu dever de fundamentação, a expor de forma adequada as razões pelas quais esses elementos não permitiam ilidir a referida presunção (Acórdão de 29 de setembro de 2011, Elf Aquitaine/Comissão, C‑521/09 P, EU:C:2011:620, n.o 153).

119    Tal dever de fundamentação não implica, no entanto, que a autoridade da concorrência tenha de tomar posição sobre cada um dos elementos adiantados pela sociedade‑mãe para ilidir a referida presunção (Acórdão de 5 de dezembro de 2013, Comissão/Edison, C‑446/11 P, não publicado, EU:C:2013:798, n.o 23).

120    Com efeito, por um lado, a questão de saber se um ato está suficientemente fundamentado deve ser apreciada atendendo ao seu contexto e às normas aplicáveis (v., por analogia, Acórdão de 19 de novembro de 2013, Comissão/Conselho, C‑63/12, EU:C:2013:752, n.o 99). Por outro lado, sendo a fundamentação uma exigência formal, basta, para que esta exigência esteja preenchida, que a decisão impugnada refira um fundamento suscetível de demonstrar que, apesar dos diferentes elementos adiantados, não havia que ilidir a presunção. Cabe, em seguida, aos destinatários dessa decisão contestar a procedência de tal fundamento.

121    Daqui resulta que, nos litígios nos processos principais, uma vez que não é contestado que a ENEL detinha a totalidade ou praticamente a totalidade do capital da SEN, a AGCM podia presumir que esta sociedade‑mãe formava juntamente com a sua filial uma só e mesma empresa para efeitos da atividade de distribuição de eletricidade no mercado em causa. A ENEL podia, porém, tentar ilidir essa presunção apresentando elementos de prova destinados a demonstrar quer que a detenção dessa parte do capital não lhe permitia controlar a SEN, quer que não fazia uso, diretamente ou indiretamente, da capacidade que detinha, em razão da detenção da totalidade ou praticamente da totalidade do capital da SEN, para exercer uma influência determinante sobre a SEN. Se fosse esse o caso, a AGCM tinha de tomar posição sobre as provas adiantadas, invocando, no mínimo, um fundamento suscetível de demonstrar que, apesar destes diferentes elementos, não havia que ilidir a presunção.

122    Porém, nos litígios nos processos principais, pode salientar‑se que a alegação segundo a qual os processos decisórios descentralizados no interior do grupo deixavam à ENEL apenas a simples função de promover sinergias e melhores práticas entre as diversas sociedades do grupo não se afigura, de qualquer modo, suficiente para ilidir a referida presunção, na medida em que, nomeadamente, a mesma não exclui que os representantes da ENEL participassem nos órgãos de decisão da SEN, nem sequer garante que os membros desses órgãos eram funcionalmente independentes da sociedade‑mãe.

123    Em face do exposto, há que responder à quinta questão que o artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, quando uma posição dominante é explorada de forma abusiva por uma ou várias filiais que pertencem a uma unidade económica, a existência dessa unidade é suficiente para considerar que a sociedade‑mãe é, também ela, responsável por esse abuso. A existência de tal unidade deve ser presumida se, no momento dos factos, pelo menos praticamente a totalidade do capital dessas filiais era detida, direta ou indiretamente, pela sociedade‑mãe. A autoridade da concorrência não tem de apresentar qualquer prova suplementar, a menos que a sociedade‑mãe demonstre que não tinha o poder de definir os comportamentos das suas filiais, agindo estas de maneira autónoma.

 Quanto às despesas

124    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

1)      O artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para demonstrar que uma prática constitui uma exploração abusiva de uma posição dominante, basta, para uma autoridade da concorrência, provar que essa prática é suscetível de pôr em causa a estrutura de concorrência efetiva no mercado relevante, a menos que a empresa dominante em questão demonstre que os efeitos anticoncorrenciais que possam resultar da referida prática são contrabalançados, ou mesmo superados, pelos efeitos positivos para os consumidores, designadamente em termos de preços, de escolha, de qualidade e de inovação.

2)      O artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, para excluir o caráter abusivo de um comportamento de uma empresa em posição dominante, deve considerarse que não é suficiente, por si só, a prova, apresentada pela empresa em questão, de que esse comportamento não produziu efeitos restritivos concretos. Este elemento pode constituir um indício da incapacidade do comportamento em causa para produzir efeitos anticoncorrenciais, o qual, todavia, deverá ser completado por outros elementos de prova destinados a demonstrar essa incapacidade.

3)      O artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que a existência de uma prática de exclusão abusiva por parte de uma empresa em posição dominante deve ser apreciada com fundamento na capacidade dessa prática para produzir efeitos anticoncorrenciais. Uma autoridade da concorrência não é obrigada a provar a intenção da empresa em causa de excluir os seus concorrentes através de meios ou de recursos diferentes dos que regulam uma concorrência pelo mérito. A prova dessa intenção constitui, no entanto, uma circunstância factual suscetível de ser tida em conta para efeitos da determinação de um abuso de posição dominante.

4)      O artigo 102.o TFUE deve ser deve ser interpretado no sentido de que uma prática lícita à margem do direito da concorrência pode, quando aplicada por uma empresa em posição dominante, ser qualificada de «abusiva», na aceção desta disposição, se puder produzir um efeito de exclusão e se assentar na utilização de meios diferentes dos que resultam de uma concorrência baseada no mérito. Quando estas duas condições estão preenchidas, a empresa em posição dominante em causa pode porém escapar à proibição enunciada no artigo 102.o TFUE demonstrando que a prática em causa era quer objetivamente justificada e proporcionada a essa justificação quer contrabalançada ou mesmo superada por ganhos em termos de eficácia que aproveitam de modo igual aos consumidores.

5)      O artigo 102.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que, quando uma posição dominante é explorada de forma abusiva por uma ou várias filiais que pertencem a uma unidade económica, a existência dessa unidade é suficiente para considerar que a sociedademãe é, também ela, responsável por esse abuso. A existência dessa unidade deve ser presumida se, no momento dos factos, pelo menos praticamente a totalidade do capital dessas filiais era detida, direta ou indiretamente, pela sociedademãe. A autoridade da concorrência não tem de apresentar qualquer prova suplementar, a menos que a sociedademãe demonstre que não tinha o poder de definir os comportamentos das suas filiais, agindo estas de maneira autónoma.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.