Language of document : ECLI:EU:C:2022:895

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

17 de novembro de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigos 34.o e 36.o TFUE — Livre circulação de mercadorias — Propriedade intelectual — Marca da União Europeia — Regulamento (UE) 2017/1001 — Artigo 15.o — Esgotamento do direito conferido pela marca — Colocação no mercado no Espaço Económico Europeu (EEE) — Consentimento do titular da marca — Lugar onde o produto foi colocado no mercado pela primeira vez pelo titular da marca ou com o seu consentimento — Prova — Diretiva 2004/48/CE — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Tutela jurisdicional efetiva — Dispositivo das decisões judiciais que não identifica os produtos visados — Dificuldades de execução — Recurso limitado no órgão jurisdicional competente em matéria de execução — Processo equitativo — Direitos da defesa — Princípio da igualdade de armas»

No processo C‑175/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia), por Decisão de 3 de fevereiro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de março de 2021, no processo

Harman International Industries, Inc.

contra

AB S.A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, D. Gratsias, M. Ilešič (relator), I. Jarukaitis e Z. Csehi, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação da Harman International Industries, Inc., por D. Piróg e J. Słupski, adwokaci,

—        em representação da AB S.A., por K. Kucharski e K. Sum, radcowie prawni,

—        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

—        em representação da Comissão Europeia, por É. Gippini Fournier, S. L. Kalėda e B. Sasinowska, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 36.o, segundo período, TFUE, em conjugação com o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1), e com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Harman International Industries, Inc., com sede nos Estados Unidos (a seguir «Harman»), à AB S.A., com sede na Polónia, a respeito da contrafação de várias marcas da União Europeia.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Regulamento 2017/1001

3        Nos termos do artigo 9.o do Regulamento 2017/1001, intitulado «Direitos conferidos por uma marca da UE»:

«1.      O registo de uma marca da UE confere ao seu titular direitos exclusivos.

2.      Sem prejuízo dos direitos dos titulares adquiridos antes da data de depósito ou da data de prioridade da marca da UE, o titular dessa marca da UE fica habilitado a proibir que terceiros, sem o seu consentimento, façam uso, no decurso de operações comerciais, de qualquer sinal em relação aos produtos ou serviços caso o sinal seja:

a)      Idêntico à marca da UE e seja utilizado para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca da UE foi registada;

b)      Idêntico ou semelhante à marca da UE e seja utilizado para produtos ou serviços idênticos ou afins àqueles para os quais a marca da UE foi registada, se existir risco de confusão no espírito do público; o risco de confusão compreende o risco de associação entre o sinal e a marca;

c)      Idêntico ou semelhante à marca da UE, independentemente de ser utilizado para produtos ou serviços idênticos, ou afins àqueles para os quais a marca da UE foi registada, sempre que esta última goze de prestígio na União e que a utilização injustificada do sinal tire indevidamente partido do caráter distintivo ou do prestígio da marca da UE ou lhe cause prejuízo.

3.      Ao abrigo do n.o 2, pode ser proibido, nomeadamente:

[…]

b)      Oferecer os produtos, colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esses fins, ou oferecer ou prestar serviços sob o sinal;

c)      Importar ou exportar produtos sob o sinal;

[…]»

4        O artigo 15.o deste regulamento, intitulado «Esgotamento do direito conferido pela marca da UE», prevê, no n.o 1:

«A marca da UE não confere ao seu titular o direito de proibir a sua utilização para produtos que tenham sido comercializados no espaço económico europeu sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento.»

5        O artigo 129.o do referido regulamento, intitulado «Direito aplicável», dispõe:

«1.      Os tribunais de marcas da UE aplicam as disposições do presente regulamento.

2.      Às questões relativas a marcas comerciais não abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os tribunais de marcas da UE aplicam o direito nacional aplicável.

3.      Salvo disposição em contrário do presente regulamento, o tribunal de marcas da UE aplica as normas processuais aplicáveis ao mesmo tipo de processos relativos a marcas nacionais dos Estados‑Membros em cujo território estiverem situados.»

 Diretiva 2004/48/CE

6        Nos termos do artigo 1.o da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO 2004, L 157, p. 45, e retificação no JO 2004, L 195, p. 16), intitulado «Objeto»:

«A presente diretiva estabelece as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Para efeitos da presente diretiva, a expressão “direitos de propriedade intelectual” engloba os direitos da propriedade industrial.»

7        O artigo 2.o desta diretiva, intitulado «Âmbito de aplicação», prevê, no n.o 1:

«Sem prejuízo dos meios já previstos ou que possam vir a ser previstos na legislação comunitária ou nacional e desde que esses meios sejam mais favoráveis aos titulares de direitos, as medidas, procedimentos e recursos previstos na presente diretiva são aplicáveis, nos termos do artigo 3.o, a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação comunitária e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa.»

8        O capítulo II da referida diretiva, sob a epígrafe «Medidas, procedimentos e recursos» inclui, nomeadamente, o artigo 3.o, intitulado «Obrigação geral», que dispõe, no n.o 2:

«As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra os abusos.»

 Direito polaco

9        O artigo 325.o da ustawa — Kodeks postępowania cywilnego (Lei que aprova o Código de Processo Civil), de 17 de novembro de 1964, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código de Processo Civil»), enuncia:

«O dispositivo da sentença deve conter o nome do tribunal, os nomes dos juízes, do secretário e do procurador do Ministério Público, se este tiver intervindo no processo, a data e o local da audiência e da prolação da sentença, os nomes das partes e o objeto do processo, bem como a decisão do tribunal sobre os pedidos das partes.»

10      Ao abrigo do artigo 758.o do Código de Processo Civil, os sądy rejonowe (tribunais de primeira instância, Polónia) e os oficiais de justiça adstritos a esses tribunais são competentes em matéria de execução.

11      Nos termos do artigo 767.o desse código:

«1.      Salvo disposição legal em contrário, os atos do oficial de justiça podem ser objeto de recurso para o Sąd Rejonowy (Tribunal de Primeira Instância). É igualmente possível interpor recurso da omissão de um ato por parte do oficial de justiça. O recurso é apreciado pelo tribunal do foro do gabinete do oficial de justiça.

2.      O recurso pode ser interposto por uma das partes ou por outra pessoa cujos direitos tenham sido violados ou ameaçados pelo ato ou pela omissão do oficial de justiça.

[…]»

12      O artigo 840.o do referido código dispõe, no n.o 1:

«O devedor pode pedir, através de recurso, a anulação total ou parcial ou a limitação do efeito executório do título executivo quando:

1)      contestar os factos que justificaram a aposição da fórmula executória, nomeadamente quando impugnar a existência da obrigação declarada por título executivo simples diferente de uma decisão judicial ou quando impugnar a transmissão de uma obrigação apesar da existência de um documento formal que a certifique;

2)      após a emissão de um título executivo simples, tiver ocorrido um facto que implique a extinção da obrigação ou a impossibilidade de a executar; se o título for uma decisão judicial, o devedor pode igualmente basear o seu recurso em factos ocorridos após o encerramento da discussão, na exceção de execução da prestação, quando a invocação dessa exceção no processo em causa fosse inadmissível ex lege, bem como na exceção de compensação. […]»

13      O artigo 843.o do mesmo código prevê, no n.o 3:

«No recurso, o recorrente deve apresentar todas as alegações que possam ser invocadas nessa fase, sob pena de preclusão do direito de as invocar posteriormente no processo.»

14      O artigo 1050.o do Código de Processo Civil dispõe:

«1.      Quando o devedor for obrigado a praticar um ato que não possa ser praticado por outra pessoa e cuja prática dependa exclusivamente da sua vontade, o tribunal em cuja jurisdição o ato deva ser praticado, a pedido do credor e ouvidas as partes, fixará ao devedor um prazo para praticar o ato, sob pena de multa, se não o fizer no prazo estabelecido.

[…]

3.      Se o prazo concedido ao devedor para praticar um ato tiver expirado sem que o devedor o tenha praticado, o tribunal aplicará ao devedor, a pedido do credor, uma multa e fixará simultaneamente um novo prazo para a prática do ato, sob pena de multa agravada.»

15      O artigo 1051.o deste código enuncia no n.o 1:

«Se o devedor estiver vinculado à obrigação de não praticar ou obstaculizar os atos do credor, o tribunal em cuja jurisdição o devedor não cumpriu a sua obrigação, a pedido do credor, condena‑o a pagar uma multa, ouvidas as partes e depois de declarar que o devedor não cumpriu a sua obrigação. O tribunal procede do mesmo modo em caso de novo pedido por parte do credor.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

16      A Harman fabrica material audiovisual, nomeadamente altifalantes, auscultadores e sistemas de áudio. Celebrou um contrato com um distribuidor para venda dos seus produtos no território polaco, com marcas da União Europeia JBL e Harman de que é titular.

17      A AB distribui no mercado polaco produtos da Harman, adquiridos a um fornecedor diferente do distribuidor autorizado pela Harman nesse mercado.

18      A Harman intentou no Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia), o órgão jurisdicional de reenvio, uma ação destinada a fazer cessar a violação dos direitos conferidos pelas suas marcas, proibindo a AB, de maneira geral, de proceder à introdução ou à colocação no mercado, à importação, à oferta, à publicidade e ao armazenamento para os fins acima mencionados dos altifalantes e dos auscultadores, bem como das suas embalagens, designadas pelas referidas marcas, que não tenham sido anteriormente colocadas no mercado do Espaço Económico Europeu (EEE) pela Harman ou com o seu consentimento. Além disso, a Harman pediu que a AB fosse condenada a retirar do mercado e destruir esses produtos, bem como as suas embalagens.

19      Em sua defesa, a AB invocou o princípio do esgotamento do direito conferido pela marca e invoca, em substância, a garantia recebida do seu fornecedor de que a importação dos produtos em causa no mercado polaco não viola as marcas da Harman, na medida em que esses produtos tinham sido colocados no mercado no EEE pela Harman ou com o seu consentimento.

20      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que os sistemas de marcação dos produtos utilizados pela Harman nem sempre são suficientes para identificar o mercado de destino de cada um dos seus produtos. Para determinar com certeza se um dado produto era destinado ao mercado do EEE, seria necessário recorrer a uma base de dados pertencente à Harman.

21      Segundo esse órgão jurisdicional, a AB poderia teoricamente dirigir‑se ao seu fornecedor para obter informações sobre a identidade dos operadores intervenientes a montante da cadeia de distribuição. No entanto, uma vez que em geral os fornecedores não estão dispostos a divulgar as suas fontes de abastecimento para não perder vendas, seria pouco provável que a AB conseguisse obter esse tipo de informação.

22      Ora, os tribunais polacos têm por prática, no dispositivo das suas decisões que julgam procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia, fazer referência aos «produtos que não tenham sido anteriormente colocados no mercado no EEE pelo demandante (titular da marca da União Europeia) ou com o seu consentimento». Esta formulação não permite, na fase do processo de execução, identificar os produtos visados por esse processo, relativamente aos que são abrangidos pela exceção relativa ao esgotamento do direito conferido pela marca. Assim, o dispositivo dessas decisões não é, na realidade, diferente da obrigação geral que já decorre das disposições da lei.

23      Devido a esta prática judicial, a demandada numa ação por contrafação não está em condições de executar voluntariamente uma decisão que declara a contrafação e expõe‑se ao risco de sanção com base nos artigos 1050.o e 1051.o do Código de Processo Civil. Além disso, esta prática conduz, na maior parte das vezes, à apreensão de todos os produtos, incluindo os que circulam sem violação do direito exclusivo conferido pela marca.

24      Do mesmo modo, como resulta, nomeadamente, dos artigos 767.o, 840.o e 843.o do Código de Processo Civil, no âmbito dos processos de medidas provisórias e de execução, a demandada numa ação por contrafação confrontar‑se‑ia com vários obstáculos jurídicos a fim de se poder opor, com sucesso, às medidas ordenadas e apenas disporia de garantias processuais limitadas.

25      Em primeiro lugar, em conformidade com o artigo 767.o deste código, um recurso contra um oficial de justiça só é possível se este não tiver respeitado as normas processuais que regem o processo de execução. Assim, tal recurso não permitiria determinar se um produto que ostenta uma marca foi colocado no mercado no EEE pelo titular dessa marca ou com o seu consentimento.

26      Em segundo lugar, o demandado numa ação por contrafação não dispõe da faculdade de deduzir embargos, com base no artigo 840.o do Código de Processo Civil, uma vez que esse meio processual não pode servir para esclarecer o conteúdo da decisão judicial que constitui o título executivo.

27      Em terceiro lugar, segundo uma opinião dominante na doutrina polaca, é certo que o tribunal competente para a execução pode ouvir as partes, mas, por força do artigo 1051.o do Código de Processo Civil, não pode proceder à administração da prova para determinar se o demandado na ação por contrafação agiu em conformidade com o conteúdo do título executivo.

28      Em quarto lugar, por força do artigo 843.o, n.o 3, do Código de Processo Civil, quando interpõe um recurso no âmbito do processo de execução, o devedor deve indicar todas as alegações que puder invocar, sob pena de preclusão do direito de as invocar posteriormente no processo.

29      Por conseguinte, na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, existe o risco de a proteção jurisdicional da livre circulação de mercadorias ser restringida devido a essa prática judicial relativa à formulação do dispositivo das decisões que declaram verificada a contrafação.

30      Nestas condições, o Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem o artigo 36.o, segundo período, TFUE, em conjugação com o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento [2017/1001] bem como com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, ser interpretados no sentido de que se opõem a uma prática de órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados‑Membros segundo a qual esses órgãos jurisdicionais:

—        ao apreciarem um pedido do titular de uma marca com vista à proibição da importação, comercialização, oferta ou publicidade de produtos que ostentam uma marca da União Europeia, e se ordene a retirada do mercado ou a destruição desses produtos,

—        ao decidirem num processo de medidas provisórias sobre a apreensão de produtos que ostentam uma marca da União Europeia;

se referem, no conteúdo das decisões, aos “produtos que não foram comercializados no [EEE] pelo titular da marca ou com o seu consentimento”, pelo que a determinação de quais os produtos abrangidos pela marca da União Europeia sobre que incidem as injunções e proibições impostas (isto é, a determinação de quais os produtos que não foram comercializados no [EEE] pelo titular da marca ou com o seu consentimento) é, atendendo à formulação [genérica] da decisão, deixada a cargo da autoridade de execução que, ao efetuar essa determinação, se baseia nas declarações do titular da marca da União Europeia ou nos instrumentos fornecidos pelo mesmo (incluindo ferramentas informáticas e bases de dados), ao passo que a admissibilidade da impugnação da referida determinação efetuada pela autoridade de execução, perante o órgão jurisdicional no [processo declarativo], está excluída ou limitada pela natureza das vias de recurso de que dispõe o demandado no processo de medidas provisórias ou de execução?»

 Quanto à questão prejudicial

31      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Além disso, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União a que o juiz nacional não fez referência no enunciado da sua questão (Acórdão de 8 de setembro de 2022, RTL Television, C‑716/20, EU:C:2022:643, n.o 55 e jurisprudência referida).

32      No que respeita à obrigação de os Estados‑Membros assegurarem uma tutela jurisdicional efetiva num domínio abrangido pelo direito da União, prevista no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o direito à ação é invocável apenas com base no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), sem que o seu conteúdo deva ser precisado por outras disposições do direito da União ou por disposições do direito interno dos Estados‑Membros, o reconhecimento desse direito num determinado caso pressupõe, como resulta do artigo 47.o, primeiro parágrafo, que a pessoa que o invoca beneficie dos direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União. [v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.os 54 e 55 e jurisprudência referida].

33      Por outro lado, importa recordar, por um lado, que, em conformidade com o artigo 1.o, a Diretiva 2004/48 diz respeito a todas as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual e, por outro, que, nos termos do artigo 2.o, n.o 1, desta diretiva, estas são aplicáveis a qualquer violação desses direitos, prevista na legislação da União e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa.

34      Em conformidade com o artigo 129.o, n.o 3, do Regulamento 2017/1001, o tribunal de marcas da União Europeia aplica as normas processuais aplicáveis ao mesmo tipo de processos relativos a marcas nacionais dos Estados‑Membros em cujo território esse tribunal estiver situado. Daqui resulta que as garantias processuais de que dispõe o demandado numa ação por contrafação na fase de execução de uma decisão judicial devem ser apreciadas igualmente à luz da Diretiva 2004/48.

35      Nestas condições, há que considerar que, com a sua única questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, em conjugação com o artigo 36.o, segundo período, TFUE, o artigo 47.o da Carta e a Diretiva 2004/48, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática judicial segundo a qual o dispositivo da decisão que julga procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia é redigido em termos que, devido ao seu caráter geral, deixa a cargo da autoridade competente para a execução dessa decisão a determinação de quais os produtos a que a referida decisão se aplica.

36      Esta questão deve ser entendida no sentido de que contém três partes. A primeira é relativa ao esgotamento do direito conferido pela marca da União Europeia e às exigências decorrentes da proteção da livre circulação de mercadorias. A segunda visa as exigências que devem satisfazer, em conformidade com a Diretiva 2004/48, todas as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. A terceira diz respeito à obrigação, de os Estados‑Membros, por um lado, estabelecerem os meios processuais necessários para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva num domínio abrangido pelo direito da União e, por outro, assegurarem as condições de um processo equitativo em conformidade com o artigo 47.o da Carta.

37      Quanto à primeira parte, cabe recordar que o artigo 9.o do Regulamento 2017/1001 confere ao titular da marca da União Europeia um direito exclusivo que lhe permite proibir que qualquer terceiro, designadamente, importe produtos que ostentem a sua marca, os ofereça, os coloque no mercado ou os detenha para esse fim, sem o seu consentimento (v., por analogia, Acórdão de 16 de julho de 2015, TOP Logistics e o., C‑379/14, EU:C:2015:497, n.o 32 e jurisprudência referida).

38      O artigo 15.o, n.o 1, desse regulamento contém uma exceção a esta regra, na medida em que prevê que o direito do titular fica esgotado quando os produtos tiverem sido colocados no mercado do EEE pelo titular ou com o seu consentimento (v., por analogia, Acórdão de 14 de julho de 2011, Viking Gas, C‑46/10, EU:C:2011:485, n.o 26 e jurisprudência referida).

39      Esta disposição está redigida em termos que correspondem aos usados pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos que, ao interpretarem os artigos 30.o e 36.o do Tratado CE (que passaram a artigos 28.o e 30.o CE, os quais, por sua vez, passaram a artigos 34.o e 36.o TFUE), reconheceram no direito da União o princípio do esgotamento do direito de marca. Assim, esta disposição retoma a jurisprudência do Tribunal no sentido de que o titular de um direito de marca protegido pela legislação de um Estado‑Membro não pode invocar essa legislação para se opor à importação ou à comercialização de um produto que foi colocado em circulação num outro Estado‑Membro por si próprio ou com o seu consentimento (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Schweppes, C‑291/16, EU:C:2017:990, n.o 34 e jurisprudência referida).

40      Esta jurisprudência relativa ao princípio do esgotamento do direito de marca, baseada no artigo 36.o TFUE, destina‑se, tal como o artigo 15.o do Regulamento 2017/1001, a conciliar os interesses fundamentais da proteção dos direitos de marca, por um lado, com os da livre circulação de mercadorias no mercado interno, por outro, de tal modo que estas duas disposições, que visam o mesmo resultado, devem ser interpretadas de maneira idêntica (v., por analogia, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Schweppes, C‑291/16, EU:C:2017:990, n.o 35 e jurisprudência referida).

41      A fim de assegurar um justo equilíbrio entre esses interesses fundamentais, a possibilidade de invocar o esgotamento do direito conferido pela marca da União Europeia, enquanto exceção a esse direito, está delimitada em vários aspetos.

42      Em primeiro lugar, o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001 consagra o princípio do esgotamento dos direitos conferidos pela marca para produtos comercializados pelo titular ou com o seu consentimento, não independentemente do local em que a colocação no mercado foi efetuada, mas unicamente em relação aos produtos colocados no mercado do EEE (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 1998, Silhouette International Schmied, C‑355/96, EU:C:1998:374, n.os 21, 26 e 31).

43      Ao precisar que a comercialização fora do EEE não esgota o direito de o titular se opor à importação destes produtos feita sem o seu consentimento, o legislador comunitário permitiu assim ao titular da marca controlar a primeira comercialização no EEE dos produtos que ostentam a marca (v., por analogia, Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C‑414/99 a C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 33 e jurisprudência referida).

44      Em segundo lugar, não se pode considerar que os produtos que ostentam uma marca foram «colocados no mercado no EEE» quando o titular da marca os importou no EEE para aí os vender ou quando os ofereceu para venda aos consumidores no EEE, nas suas próprias lojas ou nas de uma sociedade coligada, mas sem os conseguir vender (v., neste sentido, Acórdão de 30 de novembro de 2004, Peak Holding, C‑16/03, EU:C:2004:759, n.o 44).

45      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça declarou que o consentimento do titular deve, além disso, versar sobre cada exemplar do produto para o qual o esgotamento é invocado. Assim, o facto de o titular da marca já estar a comercializar, no mercado do EEE, produtos idênticos ou similares àqueles para os quais se invoca o esgotamento não é suficiente (v., neste sentido, Acórdão de 1 de julho de 1999, Sebago e Maison Dubois, C‑173/98, EU:C:1999:347, n.os 21 e 22).

46      Em quarto lugar, o consentimento, que equivale a uma renúncia do titular ao seu direito exclusivo decorrente do artigo 9.o do Regulamento 2017/1001 de proibir a um terceiro de importar produtos que ostentem a sua marca, deve ser expresso de um modo que traduza inequivocamente uma vontade de renunciar a esse direito (v., neste sentido, Acórdão de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C‑414/99 a C‑416/99, EU:C:2001:617, n.os 41 e 45).

47      Essa vontade resulta normalmente de uma formulação expressa do consentimento. Todavia, as exigências resultantes da proteção da livre circulação de mercadorias conduziram o Tribunal de Justiça a considerar que essa regra é suscetível de sofrer adaptações (v., neste sentido, Acórdão de 15 de outubro de 2009, Makro Zelfbedieningsgroothandel e o., C‑324/08, EU:C:2009:633, n.o 23 e jurisprudência referida).

48      Assim, não é de excluir que, em determinados casos, mesmo nas hipóteses em que a primeira comercialização dos produtos em causa no EEE foi efetuada sem o consentimento explícito do titular da marca, a vontade de renunciar a este direito possa resultar implicitamente de elementos e de circunstâncias anteriores, concomitantes ou posteriores à comercialização, os quais, apreciados pelo julgador nacional, também traduzem inequivocamente, uma renúncia do titular ao seu direito (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C‑414/99 a C‑416/99, EU:C:2001:617, n.o 46, e de 15 de outubro de 2009, Makro Zelfbedieningsgroothandel e o., C‑324/08, EU:C:2009:633, n.os 25 a 27).

49      Dito isto, o consentimento implícito não pode resultar de um mero silêncio do titular da marca. Do mesmo modo, um tal consentimento não pode resultar da falta de comunicação, pelo titular da marca, da sua oposição a uma comercialização no EEE nem da falta de indicação, nos produtos, de uma proibição de colocação no mercado no EEE, dado que as exigências aplicáveis em matéria de prova da existência de um consentimento implícito não efetuam uma distinção de princípio, consoante a sua comercialização inicial tenha ocorrido fora do EEE ou dentro dele (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de novembro de 2001, Zino Davidoff e Levi Strauss, C‑414/99 a C‑416/99, EU:C:2001:617, n.os 55 e 56, e de 15 de outubro de 2009, Makro Zelfbedieningsgroothandel e o., C‑324/08, EU:C:2009:633, n.o 28).

50      Em quinto e último lugar, incumbe, em princípio, ao operador que invoca o esgotamento fazer a prova de que os pressupostos de aplicação do esgotamento estão preenchidos. No entanto, esta regra deve ser adaptada quando seja suscetível de permitir ao titular a compartimentação dos mercados nacionais, favorecendo desse modo a manutenção das diferenças de preços entre os Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Schweppes, C‑291/16, EU:C:2017:990, n.os 52 e 53 e jurisprudência referida).

51      Essa adaptação do ónus da prova impõe‑se, nomeadamente, em caso de sistema de distribuição exclusiva (Acórdão de 8 de abril de 2003, Van Doren + Q, C‑244/00, EU:C:2003:204, n.o 39).

52      Resulta assim do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, lido à luz do artigo 36.o TFUE e da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida nos n.os 38 a 40 do presente acórdão, que o operador que se vê confrontado com uma ação por contrafação, do titular de uma marca da União Europeia, para se defender, tem o direito de alegar e provar que os produtos que ostentam essa marca, visados pela ação por contrafação, foram colocados no mercado no EEE por esse titular ou com o seu consentimento. Como resulta da jurisprudência referida no número anterior do presente acórdão, o referido operador deve igualmente poder beneficiar de uma adaptação do ónus da prova a seu favor, quando estejam preenchidas as condições previstas a este respeito pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

53      Em contrapartida, não resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida nos n.os 44 e 49 do presente acórdão que o titular da marca seja obrigado a adotar um sistema de marcação dos seus produtos que permita, para cada produto, estabelecer se era destinado ao mercado do EEE.

54      Com efeito, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 76 das suas conclusões, na falta de uma disposição do direito da União cuja interpretação possa conduzir a essa solução tendo em conta, nomeadamente, a sua redação, o contexto em que se insere, bem como os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte, uma mera constatação de uma situação de dificuldade sentida pela demandada numa ação por contrafação em obter informações sobre o fornecedor inicial de uma rede de distribuição paralela não pode constituir o fundamento jurídico para fazer pesar tal obrigação sobre o titular da marca.

55      Além disso, qualquer obrigação nesse sentido limitaria indevidamente a possibilidade de o titular mudar, à última hora, o mercado de destino inicialmente previsto para um determinado produto.

56      No que respeita à segunda parte da questão submetida, há que salientar que os aspetos processuais do respeito dos direitos de propriedade intelectual, incluindo do direito exclusivo previsto no artigo 9.o do Regulamento 2017/1001, são regulados, em princípio, pelo direito nacional, conforme harmonizado pela Diretiva 2004/48, a qual, como resulta, especialmente, dos seus artigos 1.o a 3.o, diz respeito às medidas, aos procedimentos e aos recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Por conseguinte, qualquer procedimento nacional relativo a uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia deve respeitar as disposições desta diretiva.

57      Todavia, há que observar que o aspeto processual que é objeto específico da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no presente processo não é regulado pela Diretiva 2004/48, uma vez que esta não contém nenhuma disposição sobre a formulação do dispositivo das decisões judiciais relativas a uma ação por contrafação. Esta questão é, pois, abrangida pelo princípio da autonomia processual, que é objeto da terceira parte da questão submetida.

58      No que se refere a essa terceira parte, o órgão jurisdicional de reenvio parece entender que existe um nexo de causa e efeito entre a formulação do dispositivo da decisão a adotar para pôr termo ao litígio no processo principal e os pretensos inconvenientes com que a demandada poderia ser confrontada na fase da execução. Ora, não se pode deixar de observar que esses inconvenientes decorrem desse processo de execução, a jusante da ação por contrafação.

59      Por conseguinte, importa examinar se o facto de, na fase da execução, a demandada dispor, ao abrigo do direito nacional, de meios processuais e de garantias processuais limitadas, colide com as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva impostas pelo direito da União e, portanto, com a unidade e a eficácia desse direito.

60      O princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União constitui um princípio geral do direito da União que decorre das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, que foi consagrado nos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, e que está atualmente afirmado no artigo 47.o da Carta (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 57 e jurisprudência referida).

61      O conteúdo essencial do direito à ação consagrado no artigo 47.o da Carta inclui, entre outros elementos, o de o titular desse direito poder aceder a um tribunal competente que assegure o respeito pelos direitos que o direito da União lhe garante e, para o efeito, examine todas as questões de facto e de direito pertinentes para o litígio que é chamado a decidir [Acórdão de 6 de outubro de 2020, État luxembourgeois (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 66 e jurisprudência referida].

62      Além disso, o princípio da igualdade de armas, que é um corolário do próprio conceito de processo equitativo e tem por objetivo assegurar o equilíbrio entre as partes no processo, garantindo que qualquer documento apresentado ao órgão jurisdicional possa ser avaliado e impugnado por qualquer parte no processo, é parte integrante do princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União, consagrado no artigo 47.o da Carta. Este princípio implica, especialmente, a obrigação de oferecer às partes a possibilidade razoável de apresentarem as suas causas, incluindo provas, em condições que não as coloque numa situação de clara desvantagem relativamente aos seus adversários [v., neste sentido, Acórdãos de 17 de julho de 2014, Sánchez Morcillo e Abril García, C‑169/14, EU:C:2014:2099, n.o 49 e jurisprudência referida, e de 10 de fevereiro de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Prazo de prescrição), C‑219/20, EU:C:2022:89, n.o 46 e jurisprudência referida].

63      Importa também recordar que o princípio do respeito dos direitos de defesa constitui um princípio fundamental do direito da União. Seria violar esse princípio fundar uma decisão judicial em factos e documentos de que as próprias partes, ou uma delas, não puderam tomar conhecimento e sobre os quais, portanto, não estavam em condições de tomar posição (Acórdão de 12 de novembro de 2014, Guardian Industries e Guardian Europe/Comissão, C‑580/12 P, EU:C:2014:2363, n.o 30 e jurisprudência referida).

64      Segundo jurisprudência constante, o respeito dos direitos de defesa em qualquer processo instaurado contra uma pessoa e suscetível de conduzir a um ato lesivo deve ser assegurado mesmo na ausência de uma regulamentação específica (v., neste sentido, Acórdão de 13 de setembro de 2007, Land Oberösterreich e Áustria/Comissão, C‑439/05 P e C‑454/05 P, EU:C:2007:510, n.o 36 e jurisprudência referida).

65      No entanto, sem prejuízo da existência de regras da União na matéria, como as previstas na Diretiva 2004/48, cabe, ao abrigo do princípio da autonomia processual, à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das ações judiciais desde que, no entanto, estas modalidades não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União, menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 58 e jurisprudência referida).

66      Verifica‑se, à luz das informações fornecidas na decisão de reenvio, que as disposições do direito processual nacional pertinentes não violam o princípio da equivalência.

67      No que se refere ao princípio da efetividade, importa recordar que o direito da União não tem por efeito obrigar os Estados‑Membros a instituírem meios processuais diferentes dos previstos no direito interno, a menos, no entanto, que resulte da sistemática da ordem jurídica nacional em causa que não existe nenhum meio processual que permita, ainda que a título incidental, assegurar o respeito pelos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, ou que a única via de acesso aos tribunais signifique que os litigantes são obrigados a violar a lei (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Randstad Italia, C‑497/20, EU:C:2021:1037, n.o 62).

68      De resto, importa sublinhar que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, considerado no seu todo, a tramitação deste e as suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se for caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a boa marcha do processo (Acórdãos de 10 de março de 2022, Grossmania, C‑177/20, EU:C:2022:175, n.o 51 e jurisprudência referida, e de 17 de maio de 2022, SPV Project 1503 e o., C‑693/19 e C‑831/19, EU:C:2022:395, n.o 60 e jurisprudência referida).

69      Ora, um operador que detenha produtos colocados no mercado do EEE sob uma marca da União Europeia pelo titular dessa marca ou com o seu consentimento retira direitos da livre circulação de mercadorias garantida pelos artigos 34.o e 36.o TFUE e pelo artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, que os órgãos jurisdicionais nacionais devem proteger (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de dezembro de 1968, Salgoil, 13/68, EU:C:1968:54, p. 676, e de 11 de junho de 2015, Berlington Hungary e o., C‑98/14, EU:C:2015:386, n.o 105 e jurisprudência referida).

70      Todavia, à luz do princípio da autonomia processual, reconhecido na jurisprudência referida no n.o 65 do presente acórdão, sem prejuízo das disposições da Diretiva 2004/48, o direito da União não se pode opor a uma prática judicial segundo a qual o dispositivo da decisão que julga procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia é redigido em termos gerais, desde que o demandado disponha de uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos que pretende retirar dos artigos 34.o e 36.o TFUE, bem como do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001.

71      Por conseguinte, se o órgão jurisdicional nacional é obrigado a designar, no dispositivo das suas decisões que julgam procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia, através de uma formulação geral, os produtos que não foram anteriormente colocados no mercado no EEE pelo titular ou com o seu consentimento, o demandado deve beneficiar, na fase da execução, de todas as garantias de um processo equitativo para poder contestar utilmente a existência de uma violação ou de uma ameaça de violação dos direitos exclusivos do titular da marca, bem como opor‑se à apreensão dos exemplares dos produtos relativamente aos quais os direitos exclusivos do titular foram esgotados e que podem portanto circular livremente no EEE.

72      Quanto à circunstância indicada pelo órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual, na falta de acesso às bases de dados da Harman, não é objetivamente possível à AB demonstrar que os produtos que adquiriu tinham sido colocados no mercado no EEE pela Harman ou com o seu consentimento, poderia revelar‑se necessário, como salientou o advogado‑geral no n.o 90 das suas conclusões, mesmo na hipótese de não estar demonstrada a existência de uma distribuição exclusiva, que a autoridade competente para a execução ou, consoante os casos, o órgão jurisdicional competente para decidir sobre os recursos contra os atos dessa autoridade proceda a uma adaptação do ónus da prova, na medida em que considerem, em função das circunstâncias específicas relativas à comercialização dos produtos em questão, que a regra relativa ao ónus da prova, recordada no n.o 50 do presente acórdão, é suscetível de permitir ao titular a compartimentação dos mercados nacionais, favorecendo desse modo a manutenção das diferenças de preços entre os Estados‑Membros.

73      Tendo em conta todas estas considerações, há que responder à questão submetida que o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento 2017/1001, em conjugação com o artigo 36.o, segundo período, TFUE, o artigo 47.o da Carta e a Diretiva 2004/48, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma prática judicial segundo a qual o dispositivo da decisão que julga procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia é redigido em termos que, devido ao seu caráter geral, deixam a cargo da autoridade competente para a execução desta decisão a determinação de quais os produtos a que a referida decisão se aplica, desde que, no âmbito do processo de execução, seja permitido ao demandado contestar a determinação dos produtos visados por esse processo e um órgão jurisdicional possa examinar e decidir, na observância do disposto na Diretiva 2004/48, que produtos foram efetivamente colocados no mercado no EEE pelo titular da marca ou com o seu consentimento.

 Quanto às despesas

74      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia, em conjugação com o artigo 36.o, segundo período, TFUE, o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e com a Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a uma prática judicial segundo a qual o dispositivo da decisão que julga procedente uma ação por contrafação de uma marca da União Europeia é redigido em termos que, devido ao seu caráter geral, deixam a cargo da autoridade competente para a execução desta decisão a determinação de quais os produtos a que a referida decisão se aplica, desde que, no âmbito do processo de execução, seja permitido ao demandado contestar a determinação dos produtos visados por esse processo e um órgão jurisdicional possa examinar e decidir, na observância do disposto na Diretiva 2004/48, que produtos foram efetivamente colocados no mercado no Espaço Económico Europeu pelo titular da marca ou com o seu consentimento.

Assinaturas


*      Língua do processo: polaco.