Language of document : ECLI:EU:C:2012:719

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

15 de novembro de 2012 (*)

«Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.° 44/2001 — Artigos 32.° e 33.° — Reconhecimento das decisões judiciais — Conceito de ‘decisão’ — Efeitos de uma decisão judicial na competência internacional — Pacto atributivo de jurisdição»

No processo C‑456/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Landgericht Bremen (Alemanha), por decisão de 25 de agosto de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 2 de setembro de 2011, no processo

Gothaer Allgemeine Versicherung AG,

ERGO Versicherung AG,

Versicherungskammer Bayern‑Versicherungsanstalt des öffentlichen Rechts,

Nürnberger Allgemeine Versicherungs‑AG,

Krones AG

contra

Samskip GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts (relator), exercendo funções de presidente da Terceira Secção, E. Juhász, G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 4 de julho de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação da Gothaer Allgemeine Versicherung AG, da ERGO Versicherung AG, da Versicherungskammer Bayern‑Versicherungsanstalt des öffentlichen Rechts e da Nürnberger Allgemeine Versicherungs‑AG, por K. Ramming, Rechtsanwalt,

¾        em representação da Krones AG, por A. Nerz e M. Theisen, Rechtsanwälte, assistidos por R. Geimer, professor, e C. Wagner, Justiziar,

¾        em representação da Samskip GmbH, por O. Hartenstein, Rechtsanwalt,

¾        em representação do Governo alemão, por T. Henze e F. Wannek, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux e T. Materne, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo austríaco, por A. Posch, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo suíço, por D. Klingele, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e A.‑M. Rouchaud‑Joët, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 6 de setembro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 32.° e 33.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe quatro seguradoras alemãs, a saber, a Gothaer Allgemeine Versicherung AG, a ERGO Versicherung AG, a Versicherungskammer Bayern‑Versicherungsanstalt des öffentlichen Rechts e a Nürnberger Allgemeine Versicherungs‑AG (a seguir «seguradoras»), bem como a Krones AG (a seguir «Krones»), uma sociedade alemã segurada daquelas, à Samskip GmbH (a seguir «Samskip»), filial alemã da sociedade Samskip Holding BV, uma empresa de transporte e de logística com sede nos Países Baixos, mas constituída na Islândia, relativamente à entrega, pela Samskip, de equipamento de produção de cerveja vendido a um comprador, Cerveceria Cuauthemoc Monezum SA (a seguir «destinatário»), que é uma empresa mexicana.

3        O referido litígio tem por objeto pedidos de indemnização apresentados nos órgãos jurisdicionais alemães, pelas seguradoras e pela Krones, relativos a alegados danos causados ao dito equipamento durante o transporte, quando os órgãos jurisdicionais belgas, em particular o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), já tinham julgado inadmissíveis pedidos semelhantes que lhes tinham sido apresentados, com o fundamento de que o conhecimento de embarque («Bill of Lading») emitido em 13 de agosto de 2006, data da receção do equipamento pela Samskip em Antuérpia (Bélgica), continha uma cláusula contratual que designa os órgãos jurisdicionais islandeses como competentes em caso de litígio e o direito islandês como aplicável ao contrato de transporte.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

4        A Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em 30 de outubro de 2007, que foi aprovada em nome da Comunidade pela Decisão 2009/430/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2008 (JO 2009, L 147, p. 1, a seguir «Convenção de Lugano»), enuncia no seu artigo 23.°, n.° 1, cuja redação é bastante semelhante à do artigo 17.° da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, celebrada em Lugano, em 16 de setembro de 1988 (JO L 319, p. 9), sua predecessora:

«Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado vinculado pela presente convenção, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado vinculado pela presente convenção têm competência para decidir qualquer litígio, presente ou futuro, decorrente de determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais são competentes. Essa competência será exclusiva, a menos que as partes convencionem o contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a)      Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou

b)      Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou

c)      No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»

 Direito da União

5        Os considerandos 2, 6 e 15 a 17 do Regulamento n.° 44/2001 têm a seguinte redação:

«(2)      Certas disparidades das regras nacionais em matéria de competência judicial e de reconhecimento de decisões judiciais dificultam o bom funcionamento do mercado interno. São indispensáveis disposições que permitam unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem como simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados‑Membros abrangidos pelo presente regulamento.

[…]

(6)      Para alcançar o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento jurídico comunitário vinculativo e diretamente aplicável.

[…]

(15)      O funcionamento harmonioso da justiça a nível comunitário obriga a minimizar a possibilidade de instaurar processos concorrentes e a evitar que sejam proferidas decisões inconciliáveis em dois Estados‑Membros competentes. Importa prever um mecanismo claro e eficaz para resolver os casos de litispendência e de conexão e para obviar aos problemas resultantes das divergências nacionais quanto à data a partir da qual um processo é considerado pendente. Para efeitos do presente regulamento, é conveniente fixar esta data de forma autónoma.

(16)      A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado‑Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, exceto em caso de impugnação.

(17)      A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado‑Membro uma decisão proferida noutro Estado‑Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada.»

6        Nos termos do artigo 23.°, n.° 1, do referido regulamento, cuja redação é, no essencial, idêntica à do artigo 23.°, n.° 1, da Convenção de Lugano, referido no n.° 4 do presente acórdão:

«Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a)      Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou

b)      Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou

c)      No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»

7        O artigo 32.° do mesmo regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, considera‑se ‘decisão’ qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo.»

8        O artigo 33.° do Regulamento n.° 44/2001 tem a seguinte redação:

«1.      As decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo.

2.      Em caso de impugnação, qualquer parte interessada que invoque o reconhecimento a título principal pode pedir, nos termos do processo previsto nas secções 2 e 3 do presente capítulo, o reconhecimento da decisão.

3.      Se o reconhecimento for invocado a título incidental perante um tribunal de um Estado‑Membro, este será competente para dele conhecer.»

9        Nos termos do artigo 34.° do referido regulamento:

«Uma decisão não será reconhecida:

1.      Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido;

2.      Se o ato que iniciou a instância, ou ato equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir‑lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer;

3.      Se for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado‑Membro requerido;

4.      Se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em ação com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado‑Membro requerido.»

10      O artigo 35.° do Regulamento n.° 44/2001 prevê:

«1.      As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no artigo 72.°

2.      Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado‑Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

3.      Sem prejuízo do disposto nos primeiros e segundo parágrafos, não pode proceder‑se ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34.°»

11      Nos termos do artigo 36.° do Regulamento n.° 44/2001:

«As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objeto de revisão de mérito.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      Em 2006, a Krones vendeu um equipamento de produção de cerveja ao destinatário. Encarregou a Samskip de organizar e executar o transporte desse equipamento de Antuérpia até Guadalajara (México), através de Altamira, cidade igualmente situada no México.

13      A remessa, constituída por contentores e armações de transporte, foi entregue à Samskip em 13 de agosto de 2006. Esta emitiu, no mesmo dia, o conhecimento de transporte que designa a Krones como expedidor («shipper»), a destinatária como consignatária («consignee»), Antuérpia como porto de carga e Altamira como porto de destino. No n.° 2 das condições inscritas no verso deste documento («Endorsements») é estipulado:

«Competência judiciária. Qualquer litígio decorrente do presente conhecimento de transporte será decidido na Islândia, com base no direito islandês.»

14      Segundo as demandantes no processo principal, a carga foi danificada durante o transporte marítimo e uma parte dessa carga foi igualmente danificada durante o transporte terrestre de Altamira para Guadalajara. A Krones cedeu os seus direitos — no montante da responsabilidade máxima no direito marítimo de dois direitos de saque especiais, com o valor, no momento da cessão, de 235 666,46 euros — às seguradoras, proporcionalmente à sua participação no risco. O destinatário cedeu também às seguradoras os seus direitos decorrentes do conhecimento de embarque, proporcionalmente à sua participação no risco.

15      O destinatário e as seguradoras propuseram, em 30 de agosto de 2007, uma ação nos tribunais belgas e requereram que a Samskip comparecesse no rechtbank van koophandel te Antwerpen (Tribunal de Comércio de Antuérpia) em 16 de outubro de 2007. Esse órgão jurisdicional proferiu uma sentença favorável às seguradoras e ao destinatário, mas o hof van beroep te Antwerpen reformou essa decisão por acórdão de 5 de outubro de 2009, no qual se declarou «sem competência judiciária».

16      Na fundamentação do seu acórdão, o hof van beroep te Antwerpen declarou que o destinatário não tinha nenhum direito de ação em virtude do contrato de transporte. Na verdade, as seguradoras tinham interesse em agir enquanto sucessores de direito da Krones, mas estavam vinculadas pelo pacto atributivo de jurisdição constante do conhecimento de embarque. Nos termos do n.° 2 das cláusulas do mesmo, estava estabelecida a competência exclusiva dos tribunais islandeses para conhecer dos litígios decorrentes do contrato de transporte, razão pela qual os órgãos jurisdicionais belgas não tinham competência. Esse acórdão transitou em julgado.

17      Durante o mês de setembro de 2010, as seguradoras propuseram, no Landgericht Bremen, ações de indemnização contra a Samskip, enquanto a Krones propôs uma ação de indemnização contra a Samskip no Landgericht Landshut. Por despacho de 3 de junho de 2011, este remeteu este último processo ao órgão jurisdicional de reenvio.

18      O Landgericht Bremen salienta que, segundo a Samskip, as ações são inadmissíveis, dado que o acórdão do hof van beroep te Antwerpen de 5 de outubro de 2009 produz efeitos jurídicos não apenas no que respeita à competência dos tribunais belgas mas também no que respeita à declaração da competência dos tribunais islandeses, que figura nos fundamentos do mesmo acórdão. Com efeito, a Samskip considera que, por força dos artigos 32.° e 33.° do Regulamento n.° 44/2001, o referido acórdão produz efeitos vinculativos em relação ao órgão jurisdicional de reenvio.

19      As seguradoras e a Krones consideram que, no máximo, pode retirar‑se do acórdão do hof van beroep te Antwerpen de 5 de outubro de 2009 um efeito vinculativo no que respeita à conclusão de que os órgãos jurisdicionais belgas são incompetentes. Esse acórdão não tem, porém, outro efeito, nomeadamente no que respeita à incompetência dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros diferentes do Reino da Bélgica devido à alegada competência dos órgãos jurisdicionais islandeses.

20      O órgão jurisdicional de reenvio, tendo em consideração a doutrina alemã, salienta que o acórdão do hof van beroep te Antwerpen de 5 de outubro de 2009 é uma «decisão sobre requisitos processuais» («Prozessurteil»), em que a ação é julgada inadmissível, por não se verificarem os pressupostos necessários para proferir decisão sobre o mérito da causa. Decisões deste tipo emitidas por órgãos jurisdicionais estrangeiros não são suscetíveis, na sua maioria, de ser reconhecidas na Alemanha. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se deve reconhecer esse acórdão e, eventualmente, se o alcance desse reconhecimento se estende à fundamentação do mesmo.

21      Nestas condições, o Landgericht Bremen decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem os artigos 32.° e 33.° do Regulamento n.° 44/2001 ser interpretados no sentido de que, em princípio, também são abrangidas pelo conceito de ‘decisão’ as decisões que se limitam a declarar a falta de requisitos de admissibilidade processual (as chamadas decisões sobre requisitos processuais)?

2)      Devem os artigos 32.° e 33.° do Regulamento [n.° 44/2001] ser interpretados no sentido de que o conceito de ‘decisão’ também abrange um acórdão que põe termo à instância, através do qual é negada a competência internacional por existir um pacto atributivo de jurisdição?

3)      Atendendo à jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao princípio da extensão dos efeitos (acórdão de 4 de fevereiro de 1988, Hoffmann, […]145/86, Colet., p. 645), devem os artigos 32.° e 33.° do Regulamento [n.° 44/2001] ser interpretados no sentido de que cada Estado‑Membro deve reconhecer as decisões de um tribunal de outro Estado‑Membro relativas à eficácia de um pacto atributivo de jurisdição entre as partes quando, nos termos do direito nacional do tribunal onde foi intentada a primeira ação, a constatação da eficácia do pacto atributivo de jurisdição tem força de caso julgado, mesmo quando a decisão a este respeito é parte de uma decisão que julga inadmissível uma petição inicial?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e segunda questões

22      Com a primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 32.° do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que abrange igualmente uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro se declara incompetente com fundamento num pacto atributivo de jurisdição, ainda que essa decisão seja classificada como «decisão sobre requisitos processuais» pelo direito de outro Estado‑Membro.

23      Refira‑se desde já que, segundo a letra do artigo 32.° do Regulamento n.° 44/2001, o conceito de «decisão» abrange «qualquer» decisão proferida por um tribunal de um Estado‑Membro, sem fazer distinção em função do conteúdo da decisão em causa, o que implica, em princípio, que esse conceito inclui igualmente uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro se declara incompetente com fundamento num pacto atributivo de jurisdição.

24      De resto, o Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 25.° da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), cuja interpretação feita pelo Tribunal de Justiça é válida também, em princípio, para a disposição correspondente do Regulamento n.° 44/2001 (v., neste sentido, acórdão de 18 de outubro de 2011, Realchemie Nederland, C‑406/09, Colet., p. I‑9773, n.° 38), a saber, o artigo 32.° deste regulamento, não se limita às decisões que põem total ou parcialmente termo ao litígio, mas visa também as decisões interlocutórias ou que determinam medidas provisórias ou cautelares (acórdão de 14 de outubro de 2004, Mærsk Olie & Gas, C‑39/02, Colet., p. I‑9657, n.° 46).

25      Além disso, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições do Regulamento n.° 44/2001 devem ser interpretadas de maneira autónoma, com referência ao seu sistema e aos seus objetivos (v., neste sentido, acórdãos de 13 de julho de 2006, Reisch Montage, C‑103/05, Colet., p. I‑6827, n.° 29; de 23 de abril de 2009, Draka NK Cables e o., C‑167/08, Colet., p. I‑3477, n.° 19; e de 16 de julho de 2009, Zuid‑Chemie, C‑189/08, Colet., p. I‑6917, n.° 17).

26      Ora, um dos objetivos do Regulamento n.° 44/2001, como resulta do seu considerando 2, é «simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e à execução rápidos e simples das decisões proferidas nos Estados‑Membros» vinculados por esse regulamento, o que constitui igualmente um argumento a favor de uma interpretação do conceito de «decisão» que não tenha em conta a qualificação pelo direito de um Estado‑Membro de um ato adotado por um tribunal nacional, seja o do Estado‑Membro de origem ou o do Estado‑Membro requerido. Com efeito, uma interpretação deste conceito baseada nas particularidades de cada direito nacional constituiria um importante entrave à realização desse objetivo.

27      Além disso, o considerando 6 do Regulamento n.° 44/2001 refere «o objetivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial». Este objetivo é suscetível de corroborar a necessidade de uma interpretação do conceito de «decisão» na aceção do artigo 32.° do Regulamento n.° 44/2001 que inclui as decisões em que um tribunal de um Estado‑Membro declara a sua incompetência com fundamento num pacto atributivo de jurisdição. Com efeito, o não reconhecimento dessas decisões poderia atentar gravemente contra a livre circulação das decisões judiciais.

28      Quanto ao sistema instituído pelo Regulamento n.° 44/2001, os seus considerandos 16 e 17 sublinham a importância do princípio da confiança recíproca entre os tribunais dos Estados‑Membros no que respeita ao reconhecimento e execução das decisões judiciais, o que pressupõe também que o referido conceito não seja interpretado de forma restrita, para evitar, nomeadamente, diferendos quanto à existência de uma «decisão».

29      Com efeito, esta confiança recíproca seria prejudicada se um tribunal de um Estado‑Membro pudesse recusar o reconhecimento de uma decisão em que um tribunal de outro Estado‑Membro se declarou incompetente com fundamento num pacto atributivo de jurisdição. Admitir que um tribunal de um Estado‑Membro possa recusar o reconhecimento de tal decisão iria contra o sistema instituído pelo Regulamento n.° 44/2001, pois essa recusa seria suscetível de comprometer o funcionamento eficaz das regras enunciadas no capítulo II deste regulamento, relativas à repartição da competência entre os tribunais nacionais dos Estados‑Membros.

30      Como salientou o advogado‑geral nos n.os 49 e 50 das suas conclusões, as disposições dos artigos 33.° a 35.° do Regulamento n.° 44/2001 também se opõem a uma interpretação restritiva do conceito de «decisão» na aceção do seu artigo 32.° Com efeito, o artigo 33.º enuncia o princípio segundo o qual as decisões devem ser reconhecidas, enquanto os artigos 34.° e 35.° preveem as exceções a este princípio, que devem ser interpretadas de maneira estrita. De resto, o artigo 35.°, n.° 3, dispõe que não se pode proceder ao controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem e que o critério da ordem pública não pode ser aplicado às regras de competência.

31      Há que salientar que uma interpretação restritiva do conceito de decisão teria como consequência a criação de uma categoria de atos adotados pelos tribunais, não incluídos no número de exceções exaustivamente enumeradas nos artigos 34.° e 35.° do Regulamento n.° 44/2001, que não poderiam ser qualificados de «decisões» na aceção do referido artigo 32.° e que os tribunais dos outros Estados‑Membros não seriam, pois, obrigados a reconhecer. Não se pode deixar de observar que a existência de uma tal categoria de atos, que incluiria nomeadamente aqueles em que um tribunal de outro Estado‑Membro se declararia incompetente com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição, seria incompatível com o sistema estabelecido nos artigos 33.° a 35.° do Regulamento n.° 44/2001, que favorece o reconhecimento sem entraves das decisões judiciais e exclui o controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem pelos do Estado‑Membro requerido.

32      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 32.° do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que abrange igualmente uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro se declara incompetente com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição, independentemente da qualificação dada a essa decisão pelo direito de outro Estado‑Membro.

 Quanto à terceira questão

33      Com a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 32.° e 33.° do Regulamento n.° 44/2001 devem ser interpretados no sentido de que o tribunal em que é invocado o reconhecimento de uma decisão pela qual o tribunal de outro Estado‑Membro se declarou incompetente com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição está vinculado pela conclusão relativa à validade desse pacto, que figura na fundamentação de um acórdão, transitado em julgado, que declarou a ação inadmissível.

34      Como recordou o Tribunal de Justiça, citando o relatório sobre a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial, elaborado por P. Jenard (JO 1979, C 59, p. 1), o reconhecimento deve, pois, «ter por efeito atribuir às decisões a autoridade e eficácia de que gozam no Estado em que foram proferidas» (acórdão Hoffmann, já referido, n.° 10). Por conseguinte, uma decisão estrangeira reconhecida nos termos do artigo 33.° do Regulamento n.° 44/2001 deve produzir, em princípio, no Estado requerido, os mesmos efeitos que tem no Estado de origem (v., neste sentido, acórdão Hoffmann, já referido, n.° 11).

35      Por outro lado, como foi recordado no n.° 28 do presente acórdão, o princípio da confiança recíproca entre os tribunais está subjacente ao sistema instituído pelo Regulamento n.° 44/2001. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.° 73 das suas conclusões, um grau elevado de confiança mútua tanto mais se impõe quanto é certo que os tribunais dos Estados‑Membros são chamados a aplicar regras comuns de competência. Nesta medida, estas regras e as relativas ao reconhecimento e à execução de decisões judiciais, constantes do mesmo regulamento, não constituem conjuntos distintos e autónomos, estando antes estreitamente relacionadas (acórdão de 21 de junho de 2012, Wolf Naturprodukte, C‑514/10, n.° 25). É esse vínculo que, por um lado, justifica o mecanismo simplificado de reconhecimento e execução enunciado no artigo 33.°, n.° 1, do referido regulamento, segundo o qual as decisões proferidas num Estado‑Membro são, em princípio, reconhecidas nos outros Estados‑Membros, e, por outro, conduz, nos termos do artigo 35.°, n.° 3, do mesmo regulamento, à inexistência de controlo da competência dos tribunais do Estado‑Membro de origem (v., neste sentido, parecer 1/03, de 7 de fevereiro de 2006, Colet., p. I‑1145, n.° 163).

36      Na verdade, no processo principal, o artigo 23.° do Regulamento n.° 44/2001, relativo a extensões convencionais de competência, não pode aplicar‑se, dado que o pacto atributivo de jurisdição em causa atribui a competência aos tribunais da República da Islândia, que não é um Estado‑Membro. Contudo, como salientou o advogado‑geral no n.° 76 das suas conclusões, a Convenção de Lugano, na qual a República da Islândia é parte, contém, no seu artigo 23.°, uma disposição equivalente à do artigo 23.° desse regulamento. Uma vez que um tribunal do Estado‑Membro de origem declarou a validade do pacto atributivo de jurisdição, no âmbito de uma análise da sua própria competência, será, pois, contrário ao princípio da confiança recíproca na justiça da União Europeia que um tribunal do Estado‑Membro requerido examine de novo essa mesma questão de validade.

37      Além disso, resulta do artigo 36.° do Regulamento n.° 44/2001 que a decisão do tribunal do Estado‑Membro de origem não pode, «em caso algum, ser objeto de revisão de mérito», em conformidade com o referido princípio da confiança recíproca. Com efeito, segundo o relatório elaborado por P. Jenard (p. 46), «[a] não revisão do mérito da decisão implica plena confiança no tribunal do Estado de origem; essa confiança quanto à justeza da decisão deve normalmente tornar‑se extensiva à aplicação, feita pelo juiz, das normas de competência [harmonizadas]».

38      Admitir que o tribunal do Estado‑Membro requerido possa considerar nulo o pacto atributivo de competência que o tribunal do Estado‑Membro de origem reconheceu como válido iria contra esta proibição de revisão do mérito da decisão, nomeadamente em circunstâncias em que esse tribunal poderia ter concluído que seria competente caso não existisse o referido pacto. Com efeito, nesta hipótese, essa constatação por parte do tribunal do Estado‑Membro requerido poria em causa não apenas a conclusão intermédia do tribunal do Estado‑Membro de origem relativa à validade do pacto atributivo de jurisdição mas também a decisão desse tribunal que declara a sua própria incompetência, enquanto tal.

39      Como salientou o advogado‑geral no n.° 82 das suas conclusões, a exclusão da fiscalização da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem implica, correlativamente, uma restrição ao poder do tribunal do Estado‑Membro requerido de verificar a sua própria competência, na medida em que este último está vinculado à decisão do tribunal do Estado‑Membro de origem. A exigência fundamental de uniformidade de aplicação do direito da União implica que o alcance dessa restrição seja definido ao nível da União, em vez de depender das diferentes regras nacionais relativas à autoridade de caso julgado.

40      Ora, o conceito de autoridade de caso julgado no direito da União não existe apenas no que respeita à parte decisória da decisão judicial em causa, mas abrange também os fundamentos desse acórdão que representam o alicerce necessário da sua parte decisória, dela sendo, por isso, indissociáveis [v., designadamente, acórdãos de 1 de junho de 2006, P & O European Ferries (Vizcaya) e Diputación Foral de Vizcaya/Comissão, C‑442/03 P e C‑471/03 P, Colet., p. I‑4845, n.° 44, e de 19 de abril de 2012, Artegodan/Comissão, C‑221/10 P, n.° 87]. Tendo em conta o facto, salientado no n.° 35 do presente acórdão, de que as regras comuns de competência aplicadas pelos tribunais dos Estados‑Membros têm como fonte o direito da União, e mais em particular o Regulamento n.° 44/2001, e a exigência de uniformidade recordada no n.° 39 desse mesmo acórdão, o conceito de autoridade de caso julgado do direito da União é relevante para determinar os efeitos que produz uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro declarou a sua incompetência com fundamento num pacto atributivo de jurisdição.

41      Assim, uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro se declara incompetente com fundamento num pacto atributivo de jurisdição, sustentando que esse pacto é válido, vincula os tribunais dos outros Estados‑Membros tanto no que respeita à decisão de incompetência desse tribunal, contida no dispositivo da sua decisão, como no que respeita à conclusão relativa à validade desse pacto, contida nos fundamentos dessa decisão, que constituem o alicerce necessário desse dispositivo.

42      Além disso, esta solução não é posta em causa pelo argumento invocado pela República Federal da Alemanha, nomeadamente com base no fundamento do n.° 66 do acórdão de 28 de abril de 2009, Apostolides (C‑420/07, Colet., p. I‑3571), nos termos do qual não há razão para atribuir a uma sentença, na execução, direitos que não lhe são atribuídos nos Estados‑Membros em causa. Com efeito, o reconhecimento das decisões dos tribunais dos Estados‑Membros que declaram a sua incompetência por força do Regulamento n.° 44/2001, tomadas, como foi salientado no n.° 35 do presente acórdão, em aplicação de regras comuns de competência previstas no direito da União, obedece a um regime próprio, como descrito nos n.os 39 a 41 do presente acórdão.

43      Resulta do exposto que há que responder à terceira questão que os artigos 32.° e 33.° do Regulamento n.° 44/2001 devem ser interpretados no sentido de que o tribunal em que é invocado o reconhecimento de uma decisão em que o tribunal de outro Estado‑Membro declarou a sua incompetência com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição está vinculado pela conclusão relativa à validade desse pacto, que figura nos fundamentos de um acórdão que transitou em julgado e declara a ação inadmissível.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

1)      O artigo 32.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que abrange igualmente uma decisão em que o tribunal de um Estado‑Membro se declara incompetente com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição, independentemente da qualificação dada a essa decisão pelo direito de outro Estado‑Membro.

2)      Os artigos 32.° e 33.° do Regulamento n.° 44/2001 devem ser interpretados no sentido de que o tribunal em que é invocado o reconhecimento de uma decisão em que o tribunal de outro Estado‑Membro declarou a sua incompetência com fundamento na existência de um pacto atributivo de jurisdição está vinculado pela conclusão relativa à validade desse pacto, que figura nos fundamentos de um acórdão que transitou em julgado e declara a ação inadmissível.

Assinaturas


** Língua do processo: alemão.