Language of document : ECLI:EU:C:2021:292

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PRIIT PIKAMÄE

apresentadas em 15 de abril de 2021 (1)

Processo C564/19

Processo penal

contra

IS

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest, Hungria)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Direito à informação em processo penal — Diretiva 2012/13/UE — Direito à interpretação e tradução — Diretiva 2010/64/UE — Direito de comparecer em julgamento em processo penal — Diretiva 2016/343/UE — Direito à ação e a um tribunal imparcial — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 267.o TFUE — Admissibilidade — Recurso no interesse da lei de uma decisão que ordena um reenvio prejudicial — Poder do órgão jurisdicional superior de declarar ilegal essa decisão»






1.        Como determinar se a questão prejudicial solicitada é necessária para o órgão jurisdicional de reenvio proceder ao «julgamento da causa», na aceção do artigo 267.o, n.o 2, TFUE? Como interpretar este conceito de «julgamento da causa» que constitui a chave do pretório prejudicial? Seguramente, a questão não é nova, mas adquiriu uma dimensão muito particular no âmbito dos muitos, demasiados, numerosos processos de alegados danos ao Estado de direito e à independência dos juízes tratados pelo Tribunal de Justiça ou pendentes. Importa constatar que são regularmente submetidas ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais que, por vezes, são outros tantos pedidos de socorro de juízes nacionais inquietos ou mesmo inquietados pela instauração de processos disciplinares, às quais se deve responder respeitando a ortodoxia desta singular via que é o reenvio prejudicial.

2.        No Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (C‑558/18 e C‑563/18, a seguir «Acórdão Miasto Łowicz», EU:C:2020:234), o Tribunal de Justiça procurou consolidar a sua jurisprudência em matéria de admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial nesse domínio tão sensível, no qual o conceito de «força de caso julgado» pode ter uma dimensão diferente da estritamente jurídica. O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de precisar o alcance desse acórdão, respondendo, nomeadamente, a uma interrogação inédita relativa a uma decisão de ilegalidade de um despacho de reenvio prejudicial proferido por um órgão jurisdicional superior que decide em última instância, sem que sejam afetados os efeitos jurídicos do referido despacho.

I.      Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        Além de certas disposições de direito primário, a saber, os artigos 19.o TUE, 267.o TFUE e 47.o, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), também são pertinentes, no âmbito do presente processo, os artigos 2.o e 5.o da Diretiva 2010/64/UE (2), os artigos 1.o, 6.o e 8.o da Diretiva 2012/13/UE (3) e os artigos 1.o e 8.o da Diretiva (UE) 2016/343 (4).

B.      Direito húngaro

1.      Regras relativas ao direito de o arguido utilizar a sua língua materna

4.        O artigo 78.o, n.o 1, da büntetőeljárásról szóló 2017. évi XC. törvény (Lei XC de 2017 Que Aprova o Código de Processo Penal) (Magyar Közlöny 2017/99, p. 9484; a seguir «Código de Processo Penal») prevê, em substância, que, se uma parte num processo penal pretender utilizar como língua materna outra língua que não o húngaro, tem o direito de utilizar a sua língua materna e de ser assistida por um intérprete.

5.        Nos termos do artigo 201.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, só um intérprete com qualificação oficial pode ser designado num processo penal, mas, se tal não for possível, também poderá ser designado um intérprete com um conhecimento suficiente da língua.

6.        Nos termos do artigo 755.o, n.o 1, alíneas a) e aa), do Código de Processo Penal, se o arguido, com residência conhecida no estrangeiro, tiver sido devidamente notificado e não comparecer à audiência, o processo penal deverá prosseguir à revelia, se não houver lugar à emissão de um mandado de detenção europeu ou internacional ou se esse mandado não for emitido, pelo facto de o procurador não propor a aplicação de uma pena privativa de liberdade ou uma colocação num centro de educação sob vigilância.

7.        Por força do artigo 2.o da szakfordításról és tolmácsolásról szóló 24/1986. (VI.26.) minisztertanácsi rendelet (Decreto 24/1986 do Conselho de Ministros Relativo à Tradução e à Interpretação Oficiais) (Magyar Közlöny 1986/24.), uma tradução ou uma interpretação especializada só pode ser feita mediante remuneração no âmbito de um contrato de trabalho ou de outra relação com vista à execução de um trabalho por um tradutor ou intérprete com as qualificações exigidas. A administração e a gestão central dos serviços de tradução ou de interpretação são da competência do ministro da Justiça. A partir de 1 de outubro de 2009, a certificação das qualificações profissionais dos intérpretes que exercem a sua atividade como atividade não assalariada deixa de ser regulamentada.

8.        O szakfordító és tolmácsképesítés megszerzésének feltételeiről szóló 7/1986. (VI.26) MM rendelet (Decreto 7/1986 do Ministro da Educação Relativo aos Requisitos para a Obtenção da Qualificação de Tradutor e de Intérprete) (Magyar Közlöny 1986/24.) estabelece que têm a qualificação de tradutor e intérprete especializados as pessoas com a qualificação de tradutor especializado, de tradutor revisor especializado, de intérprete, de intérprete especializado e de intérprete de conferência. Estas qualificações podem ser obtidas nos estabelecimentos de ensino superior em formação de base ou em formação contínua e nos estabelecimentos designados pelo ministro da Cultura. O regulamento define igualmente as condições em que as qualificações podem ser obtidas, mas não prevê nenhuma certificação do cumprimento dessas condições.

2.      Regras relativas ao processo prejudicial e ao recurso no interesse da lei

9.        O artigo 490.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal prevê, em substância, que um órgão jurisdicional nacional pode, oficiosamente ou a pedido das partes, suspender a instância e submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito do processo de reenvio prejudicial.

10.      O artigo 513.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal dispõe que o despacho de reenvio não é suscetível de recurso ordinário.

11.      O artigo 491.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal prevê, em substância, que o processo penal suspenso deve ser retomado se os motivos que implicam a suspensão tiverem deixado de existir.

12.      O artigo 667.o, n.o 1, do Código de Processo Penal dispõe que o procurador‑geral pode interpor um recurso extraordinário, intitulado «recurso no interesse da lei» para obter a declaração da ilegalidade, pela Kúria (Supremo Tribunal, Hungria, a seguir «Kúria»), de acórdãos e despachos proferidos pelos órgãos jurisdicionais inferiores.

13.      O artigo 669.o do Código de Processo Penal estabelece o seguinte:

«1.      Se a Kúria der provimento ao recurso interposto no interesse da lei, declara, em acórdão, que a decisão lesiva é ilegal, caso contrário, nega, por despacho, provimento ao recurso.

2.      A Kúria pode, quando declara a ilegalidade da decisão em causa, absolver o arguido, descartar um tratamento médico forçado, pôr termo ao processo, aplicar uma pena ou uma medida mais leve, anular a decisão impugnada e, se for caso disso, remeter o processo ao órgão jurisdicional competente com vista a um novo procedimento.

3.      Com exceção dos casos previstos no n.o 2, a decisão da Kúria limita‑se apenas à declaração da ilegalidade.

[…]»

II.    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14.      O órgão jurisdicional de reenvio, enquanto juiz singular do Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest, Hungria) (a seguir «juiz de reenvio»), é chamado a pronunciar‑se sobre processos instaurados contra o arguido, IS, com base num Despacho de acusação proferido em 26 de fevereiro de 2018 pelo procurador dos V e XIII distritos de Budapeste (Hungria), por uma alegada violação da legislação sobre armas e munições. O referido arguido, cidadão sueco de origem turca, foi detido na Hungria em 25 de agosto de 2015 e foi ouvido na qualidade de suspeito no mesmo dia. Antes da audição, este último pediu a assistência de um advogado e de um intérprete. Na audição, à qual o advogado não pôde assistir, o arguido foi informado por intermédio do intérprete das suspeitas que recaíam sobre ele, mas recusou‑se a depor por não poder consultar o seu advogado. O arguido foi libertado após a audição.

15.      O arguido reside fora da Hungria e a convocação para se apresentar em juízo foi devolvida com a menção «não reclamada». Perante o pedido do Ministério Público de uma simples pena de multa, o órgão jurisdicional de reenvio está obrigado, de acordo com o direito nacional, a prosseguir com o processo à revelia. Na audiência, a defesa do arguido requereu a apresentação de um pedido de decisão prejudicial, que foi deferido.

16.      No pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio observa que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2010/64 dispõe que os Estados‑Membros devem tomar medidas concretas para assegurar que a qualidade da interpretação e da tradução prestadas satisfaz os requisitos de qualidade estabelecidos no n.o 8 do artigo 2.o e no n.o 9 do artigo 3.o, desta diretiva, o que significa que a interpretação deve ter qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, nomeadamente assegurando que os suspeitos ou os arguidos tenham conhecimento dos factos que lhes são imputados e estejam em condições de exercer os seus direitos de defesa. Salienta também que o artigo 5.o, n.o 2, da mesma diretiva prevê que, a fim de promover um nível adequado de interpretação e tradução e um acesso eficiente às mesmas, os Estados‑Membros devem procurar criar um ou mais registos de tradutores e intérpretes independentes com qualificações adequadas. Segundo o juiz de reenvio, não existe nenhuma informação no processo sobre a maneira como o intérprete foi selecionado e o modo como a sua competência foi verificada, nem sobre o facto de o intérprete e o arguido se compreenderem um ao outro.

17.      Além disso, o juiz de reenvio refere que o artigo 4.o, n.o 5, e o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13 preveem que os suspeitos ou acusados devem ser imediatamente informados dos seus direitos por escrito numa língua que estes compreendam, bem como do ato criminoso que são suspeitos ou acusados de ter cometido. Neste contexto, refere que na Hungria não existe nenhum registo oficial de tradutores e intérpretes e que a regulamentação húngara não especifica quem pode ser designado no processo penal como tradutor ou intérprete ad hoc, nem segundo que critérios, estando apenas regulamentada a tradução certificada de documentos. Assim, segundo o juiz de reenvio, coloca‑se a questão de saber se a regulamentação e a prática nacionais em causa são compatíveis com as diretivas relativas aos direitos dos acusados na União e se da regulamentação da União decorre que, em caso de incompatibilidade, o juiz nacional não pode prosseguir o processo à revelia.

18.      Por outro lado, o juiz de reenvio observa que, desde a entrada em vigor da reforma judiciária de 2012, a administração e a gestão central do sistema judicial competem ao presidente do Országos bírósági Hivatal (Gabinete Judicial Nacional, Hungria; a seguir «GJN»), nomeado pelo Parlamento por um período de nove anos, e que esse presidente dispõe de amplas competências, incluindo para decidir sobre a afetação dos juízes, para nomear os magistrados de topo dos órgãos jurisdicionais e para instaurar processos disciplinares contra juízes. Esclarece ainda que o Conselho Nacional da Magistratura (a seguir «CNM») — cujos membros são eleitos pelos juízes — está encarregado de supervisionar a ação do presidente do GJN e de aprovar as suas decisões em certos casos. Ora, em 2 de maio de 2018, o CNM adotou um relatório que constatava que o presidente do GJN tinha violado reiteradamente a lei com a sua prática que consiste em declarar desertos concursos para a apresentação de candidaturas para o provimento de lugares de juiz e altos cargos judiciais sem fundamentação adequada e pelo facto de proceder à designação com caráter temporário dos lugares de topo dos órgãos jurisdicionais da sua escolha, como o presidente do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), que é o órgão jurisdicional de recurso do órgão jurisdicional de reenvio. A situação atual caracteriza‑se por um conflito tenso entre o presidente do GJN e o CNM. Neste contexto, o juiz de reenvio pergunta se tal funcionamento do GJN é compatível com o princípio da independência dos juízes consagrado no artigo 19.o TUE e no artigo 47.o da Carta. Interroga‑se igualmente sobre se, nesse contexto, o processo que lhe foi submetido pode ser considerado equitativo.

19.      Além disso, o juiz de reenvio observa que o sistema nacional de remuneração prevê um vencimento dos juízes inferior ao dos procuradores, bem como a concessão discricionária pelo presidente do GJN e pelos chefes de jurisdição, de diversos subsídios muito elevados relativamente às remunerações de base dos juízes, que podem assim potencialmente constituir uma influência indevida e implicar uma violação da independência dos juízes.

20.      Nestas circunstâncias, o Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça três grupos de questões prejudiciais [primeira questão, alíneas a) e b); segunda questão, alíneas a) e b), e terceira questão, alíneas a) e b)].

21.      Por Decisão de reenvio de 18 de novembro de 2019, o juiz de reenvio decidiu introduzir uma adenda no seu pedido inicial e submeter questões prejudiciais complementares.

22.      A este respeito, o juiz de reenvio explica que, após a apresentação do pedido de decisão prejudicial inicial, o procurador‑geral interpôs, em 19 de julho de 2019, com base no artigo 668.o do Código de Processo Penal, um recurso extraordinário para a Kúria do despacho de reenvio prejudicial no presente processo, intitulado «Recurso no interesse da lei», e que, numa Decisão definitiva de 10 de setembro de 2019, a Kúria declarou esse despacho ilegal, por considerar, em substância, que as questões submetidas não eram pertinentes para a solução do litígio no processo principal e que, na realidade, a primeira questão não se destinava à interpretação do direito da União, mas a estabelecer que o direito húngaro aplicável não era conforme com os princípios protegidos pelo direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio refere que, não obstante o efeito declarativo da decisão da Kúria, interroga‑se sobre a conduta a seguir no que respeita ao processo principal, tendo em conta a eventual incompatibilidade dessa decisão com o direito da União.

23.      O juiz de reenvio acrescenta que, em 25 de outubro de 2019, o presidente do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) lhe instaurou um processo disciplinar, retomando literalmente os fundamentos da Decisão da Kúria de 10 de setembro de 2019. Na sequência de uma informação comunicada pelo Governo húngaro, de que teria posto termo a esse processo, o Tribunal de Justiça questionou o juiz de reenvio. Na sua resposta de 10 de dezembro de 2019, este último confirmou que, por documento datado de 22 de novembro de 2019, o referido presidente tinha revogado o ato que desencadeava o processo disciplinar e declarou que não pretendia alterar o seu pedido prejudicial complementar.

24.      Foi nestas circunstância que o Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais complementares [quarta questão, alíneas a) a c), e quinta questão]. Assim, através das suas duas decisões, o órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a)      Devem o artigo 6.o, n.o 1, TUE e o artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64/UE ser interpretados no sentido de que, para garantir o direito a um processo equitativo aos arguidos que não conheçam a língua do processo, o Estado‑Membro deve criar um registo de tradutores e intérpretes independentes devidamente qualificados ou, na falta deste, assegurar, de qualquer outro modo, o controlo da qualidade da interpretação linguística no processo judicial?

b)      Em caso de resposta afirmativa à [primeira] questão, [alínea a)] e se, num caso em concreto, por falta de uma qualidade adequada da interpretação linguística, não for possível determinar se o arguido foi informado dos factos que lhe são imputados ou da acusação, devem o artigo 6.o, n.o 1, TUE e os artigos 4.o, n.o 5, e 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13/UE ser interpretados no sentido de que, nestes casos, não pode o processo continuar a sua tramitação à revelia?

2)      a)      Deve o princípio da independência [dos juízes], consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, no artigo 47.o da [Carta] e na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, ser interpretado no sentido de que este princípio é violado quando o presidente do [GJN], responsável pela administração central dos tribunais e nomeado pelo Parlamento, que é o único órgão perante o qual presta contas e que o pode demitir, ocupa o cargo de presidente de um tribunal — presidente que, entre outros, tem poderes em matéria de distribuição de processos, de instauração de processos disciplinares contra os juízes e de avaliação destes — através de nomeação direta temporária, ilidindo o procedimento de concurso para a apresentação de candidaturas e ignorando permanentemente o parecer dos órgãos competentes de administração autónoma dos juízes?

b)      Em caso de resposta afirmativa à [segunda] questão, [alínea a)] e se o juiz que conhecer da causa tiver motivos fundados para considerar que será prejudicado devido à sua atividade judicial ou administrativa, deve o referido princípio ser interpretado no sentido de que, neste caso, não está garantido um processo equitativo?

3)       a)      Deve o princípio da independência [dos juízes], consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, no artigo 47.o da [Carta] e na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, ser interpretado no sentido de que uma situação não é compatível com o referido princípio se, desde 1 de setembro de 2018 — diferentemente da prática seguida nas décadas anteriores — os juízes húngaros forem pagos, nos termos da lei, com uma retribuição inferior à dos magistrados do Ministério Público de categoria correspondente com o mesmo grau e antiguidade e, tendo em consideração a situação económica do país, os seus salários não forem, de forma geral, correspondentes à importância das funções que desempenham, tendo especialmente em conta a prática de gratificações discricionárias que se verificam nos cargos superiores?

b)      Em caso de resposta afirmativa à terceira questão, [alínea a)], deve o referido princípio da independência [dos juízes] ser interpretado no sentido de que, em tais circunstâncias, não pode ser garantido o direito a um processo equitativo?

4)       a)       Deve o artigo 267.o [TFUE] ser interpretado no sentido de que é contrária a esta disposição uma decisão de jurisprudência nacional segundo a qual a última instância judicial, no âmbito de um processo de uniformização da jurisprudência do Estado‑Membro, sem afetar os efeitos jurídicos do despacho em causa, qualifica de ilegal o despacho do tribunal inferior através do qual foi instaurado o processo prejudicial?

b)      Em caso de resposta afirmativa à [quarta] questão, [alínea a)], deve o artigo 267.o [TFUE] ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional de reenvio deve afastar as decisões do tribunal superior em sentido contrário e as posições de princípio adotadas no interesse da unidade do direito?

c)      Em caso de resposta negativa à [quarta] questão, [alínea a)], pode o processo penal suspenso prosseguir nesse caso quando o processo prejudicial esteja a correr?

5)      Deve o princípio da independência [dos juízes], consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, no artigo 47.o da [Carta] e na jurisprudência do Tribunal de Justiça, ser interpretado no sentido de que, à luz do artigo 267.o TFUE, este princípio é violado quando um processo disciplinar é instaurado contra um juiz por ter dado início a um processo prejudicial?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

25.      Foram apresentadas observações pelos Governos húngaro, neerlandês e sueco, e pela Comissão Europeia.

IV.    Análise

26.      A título preliminar, importa salientar que o Governo húngaro contesta a admissibilidade de todas as questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça, e isso com o mesmo fundamento, a saber, a inexistência de nexo de ligação entre as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada e o litígio no processo principal, uma vez que as questões submetidas são descritas como desprovidas de pertinência para a sua resolução. Esta crítica generalizada merece uma resposta diferenciada com base na jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça e, mais especificamente, da sua expressão consolidada resultante do Acórdão Miasto Łowicz.

27.      Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça recordou que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. Todavia, é igualmente jurisprudência constante que o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução dos litígios que lhes cabe decidir. A justificação do reenvio prejudicial não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio (5).

28.      Como decorre dos próprios termos do artigo 267.o TFUE, a decisão prejudicial solicitada deve ser «necessária» ao «julgamento da causa» que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a decidir. Assim, o Tribunal de Justiça tem repetidamente recordado que resulta simultaneamente dos termos e da economia do artigo 267.o TFUE que o processo de reenvio prejudicial pressupõe, nomeadamente, que esteja efetivamente pendente perante os órgãos jurisdicionais nacionais um litígio no âmbito do qual estes sejam chamados a proferir uma decisão suscetível de tomar em consideração o acórdão prejudicial. A missão do Tribunal de Justiça no âmbito de um processo prejudicial consiste em dar apoio ao órgão jurisdicional de reenvio na solução do litígio concreto nele pendente. No âmbito de um processo dessa natureza, deve existir entre o referido litígio e as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada um nexo de ligação tal, que essa interpretação responda a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio tem de tomar (6).

29.      Resulta do Acórdão Miasto Łowicz que este nexo de ligação pode ser direto ou indireto. É direto quando o órgão jurisdicional nacional é chamado a aplicar o direito da União cuja interpretação é solicitada a fim de resolver esses litígios. É indireto quando a decisão prejudicial é suscetível de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação do direito da União que lhe permita resolver questões processuais, seja do direito da União, seja do direito nacional, antes de poder decidir quanto ao mérito do litígio que lhe foi submetido (7).

30.      À luz destes esclarecimentos, considero que a resposta a dar à alegação de inadmissibilidade suscitada pelo Governo húngaro é seguramente negativa para a primeira questão e afirmativa para a segunda e a terceira questões, em contrapartida, a solução para a quarta e quinta questões requer uma análise mais matizada. A este respeito, relativamente à ordem de análise das questões, parece‑me necessário analisar prioritariamente a quarta questão prejudicial que se segue aos desenvolvimentos processuais nacionais consecutivos à primeira decisão de reenvio, constituídos, no caso em apreço, pela interposição de um recurso no interesse da lei pelo procurador‑geral e a adoção subsequente do acórdão da Kúria que declara ilegal essa decisão. Com efeito, parece‑me que esta questão apresenta um caráter prévio do ponto de vista da lógica do raciocínio, no sentido de que diz respeito à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial inicial.

A.      Quanto à quarta questão

31.      Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à adoção, pelo mais alto órgão jurisdicional nacional, de um recurso no interesse da lei, de uma decisão que declara ilegal o despacho de reenvio prejudicial, sem, todavia, afetar os seus efeitos jurídicos quanto à suspensão da instância no processo principal e à continuação do processo prejudicial, com o fundamento de que as questões prejudiciais não são necessárias para a resolução do litígio e se destinam a obter a declaração de incompatibilidade do direito nacional com o direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio interroga igualmente o Tribunal de Justiça sobre as consequências de uma resposta afirmativa ou negativa a esta questão para a tramitação do processo principal e a tomada em consideração da decisão do órgão jurisdicional superior à luz do princípio do primado do direito da União.

1.      Quanto à admissibilidade

32.      Em apoio dos seus pedidos de inadmissibilidade, o Governo húngaro sublinha a falta de pertinência desta questão para o desfecho do processo principal, na medida em que a Kúria não anulou a decisão de reenvio e de suspensão do processo penal, nem impôs ao órgão jurisdicional de reenvio que revogasse ou alterasse esta última decisão. Por conseguinte, a tramitação do processo jurisdicional não é jamais interrompida e o Tribunal de Justiça tem capacidade para considerar in fine admissível o pedido de decisão prejudicial em causa.

33.      Na minha opinião, esta argumentação não pode ser acolhida, uma vez que a questão prejudicial em causa deve ser considerada admissível em razão de um nexo indireto, mas real entre o litígio no processo principal e o artigo 267.o TFUE. Com efeito, com a quarta questão prejudicial e a interpretação desta disposição que solicita no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pretende ser esclarecido não quanto ao mérito do litígio que lhe foi submetido e que diz, ele próprio, respeito a outras questões do direito da União, mas quanto a um problema de natureza processual que tem de decidir in limine litis, uma vez que respeita às condições para a continuação do processo principal na sequência do acórdão da Kúria que declarou ilegal a decisão de reenvio inicial (8).

34.      A este respeito, importa sublinhar que nos termos do artigo 490.o, n.o 1, do Código de Processo Penal húngaro, «o órgão jurisdicional pode submeter, oficiosamente ou a pedido de uma das partes, um processo prejudicial no [Tribunal de Justiça], em conformidade com as regras fixadas pelos Tratados que constituem o fundamento da União Europeia». Em conformidade com o disposto nos n.os 2 e 3 do referido artigo, o órgão jurisdicional decide, mediante despacho, quer da abertura de um processo de decisão prejudicial e conjuntamente da suspensão da instância, quer do indeferimento do pedido de abertura de um processo prejudicial. Na sequência da interposição de um recurso no interesse da lei pelo procurador‑geral, nos termos do artigo 667.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, a Kúria efetuou uma fiscalização da legalidade da decisão inicial de reenvio ao abrigo do artigo 490.o do mesmo código.

35.      Resulta do acórdão da Kúria que esta teve a preocupação de verificar se existia um motivo para o órgão jurisdicional de reenvio submeter as questões prejudiciais, o que determinava a legalidade da subsequente suspensão do processo penal. Assim, considerou que as referidas questões não eram necessárias para a solução do litígio, que na realidade não se colocavam ou não tinham nenhuma relação com os factos do referido litígio (9), uma vez que as primeiras questões não tinham, além disso, como objeto a interpretação do direito da União, mas sim estabelecer uma não conformidade do direito húngaro aplicável com o direito da União (10). A Kúria concluiu daqui que, com o seu despacho de instauração de um processo prejudicial e de suspensão do processo penal, o órgão jurisdicional de reenvio tinha violado o direito processual penal, no caso em apreço as disposições do artigo 490.o do Código de Processo Penal. Nestas circunstâncias, embora a decisão inicial de reenvio não tenha sido anulada pela Kúria, não é menos verdade que não deixou de ser declarada ilegal no que respeita à ordem jurídica húngara (11).

36.      Confrontado com esta decisão da Kúria, o órgão jurisdicional de reenvio expressou as suas dúvidas quanto à conduta a adotar à luz de vários elementos. Antes de mais, refere o artigo 491.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Penal húngaro, que prevê que, se o fundamento pelo qual a instância foi suspensa vier a desaparecer, o juiz retoma a tramitação do processo, o que pode acontecer na hipótese de o referido fundamento ter sido considerado ilegal como no caso em apreço. Em seguida, o juiz de reenvio sublinhou que, tendo em conta a sua qualidade e as disposições estatutárias relativas, nomeadamente, à avaliação dos juízes, cabe‑lhe respeitar de modo geral a legalidade e seguir as orientações da jurisprudência dos órgãos jurisdicionais superiores e, portanto, abster‑se de tomar qualquer decisão judicial ilegal. Por último, embora a decisão da Kúria não disponha de força jurídica vinculativa, foi publicada na coletânea oficial reservada às decisões de princípio com vista a assegurar a uniformidade do direito nacional, e o órgão jurisdicional de reenvio só se pode afastar dela fundamentando expressamente a sua posição.

37.      Importa salientar que o efeito declarativo da decisão da Kúria e a inexistência de alteração da situação inter partes não vão além da fase do reenvio prejudicial e da suspensão da instância no processo principal até ao acórdão do Tribunal de Justiça. A questão posterior da responsabilidade penal do arguido continua intacta e será resolvida por uma decisão final do órgão jurisdicional de reenvio com base num despacho de reenvio inicial ilegal na ordem jurídica húngara segundo uma decisão definitiva da Kúria. É interessante observar que, no âmbito da sua fundamentação (12), a Kúria refere que o tribunal inferior tem o poder de suspender o processo penal se estiverem preenchidos os requisitos exigidos por lei, o que só pode ser feito «a fim de proferir uma decisão legal e fundamentada quanto ao mérito» (o sublinhado é meu). Deduz‑se dessa fundamentação que a ilegalidade da decisão intermédia de suspensão é necessariamente suscetível de afetar a regularidade da decisão final quanto ao mérito. Ora, é pacífico que a decisão de mérito relativa a esta responsabilidade é suscetível de ser objeto de um recurso ordinário em direito nacional, sem sequer evocar a perspetiva de um novo recurso no interesse da lei interposto pelo procurador‑geral.

38.      Resulta da decisão complementar de reenvio que a alternativa com que o juiz requerente se confronta a partir das possíveis respostas do Tribunal de Justiça à sua questão sobre a compatibilidade da decisão da Kúria com o artigo 267.o TFUE se estabelece nos seguintes termos:

–        se a Kúria podia validamente declarar ilegal a decisão de reenvio inicial, caber‑lhe‑á prosseguir o processo penal e pronunciar‑se quanto à responsabilidade do arguido tomando apenas em conta o processo nacional, uma vez que a primeira, segunda e terceira questões prejudiciais devem ser consideradas desprovidas de qualquer pertinência para esse efeito (13).

–        se foi sem razão que a Kúria declarou ilegal a decisão acima referida, caber‑lhe‑á aplicar o direito da União, tal como interpretado no acórdão do Tribunal de Justiça, a fim de resolver o litígio no processo principal, não aplicando, em nome do primado do direito da União, o acórdão da Kúria.

39.      Tendo em conta as considerações precedentes, a resposta do Tribunal de Justiça à quarta questão é, na minha opinião, suscetível de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação do direito da União, neste caso do artigo 267.o TFUE, que lhe permita resolver uma questão processual de direito nacional antes de poder decidir sobre o mérito do litígio no processo principal que lhe foi submetido (14). Por conseguinte, esta questão é plenamente admissível.

2.      Quanto ao mérito

40.      Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, de acordo com o direito processual penal húngaro, se não houver nenhuma via de recurso ordinário de uma decisão que ordena um reenvio prejudicial e a suspensão da instância no processo principal, esse ato pode ser objeto de um recurso extraordinário, neste caso, um recurso no interesse da lei interposto pelo procurador‑geral na Kúria e destinado a assegurar a unidade do direito nacional. O órgão jurisdicional superior assim chamado a pronunciar‑se pode declarar ilegal a decisão acima referida, esta declaração só produz efeitos para o futuro.

41.      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, no caso de um órgão jurisdicional cujas decisões sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, o artigo 267.o TFUE não se opõe a que as decisões desse órgão jurisdicional que submete ao Tribunal de Justiça a título prejudicial continuem a estar sujeitas às vias normais de recurso previstas pelo direito nacional. Contudo, o resultado de tal recurso não pode restringir a competência atribuída pelo artigo 267.o TFUE ao referido órgão jurisdicional para submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça se considerar que um processo nele pendente suscita questões relativas à interpretação de disposições de direito da União que carecem de uma decisão por parte deste último. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que essa competência não podia ser posta em causa pela aplicação de regras de direito nacional, que permitiam ao órgão jurisdicional de recurso reformar a decisão que ordena um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça, rejeitar esse reenvio e ordenar ao órgão jurisdicional que a proferiu que retome a tramitação do processo nacional entretanto suspensa (15). Numa situação em que um processo se encontra pela segunda vez pendente num órgão jurisdicional de primeira instância, depois de uma sentença proferida por esta ter sido anulada por um órgão jurisdicional de última instância, o Tribunal de Justiça declarou também que o referido órgão jurisdicional de primeira instância continuava a ser livre de submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.o TFUE, não obstante a existência, no direito interno, de uma regra que vincula os órgãos jurisdicionais à apreciação de direito efetuada por uma instância superior.

42.      Não se pode deixar de observar que estas duas soluções são irrelevantes, na medida em que o acórdão da Kúria não anulou o despacho de reenvio, não obriga o órgão jurisdicional de reenvio a retirá‑lo ou a alterá‑lo nem mesmo a retomar o processo penal inicialmente suspenso. O órgão jurisdicional superior declarou uma ilegalidade sem a sanar. Não obstante, a análise desta decisão não se pode limitar a esta observação e ao seu único dispositivo, que deve ser interpretado necessariamente à luz dos fundamentos de que é indissociável.

43.      No âmbito desse acórdão, a Kúria procedeu a uma fiscalização da legalidade da decisão de reenvio inicial ao abrigo do artigo 490.o do Código de Processo penal húngaro considerado uma «projeção» na legislação nacional dos requisitos do direito da União quanto aos pedidos de decisão prejudicial (16). Em conformidade com esta premissa singular, acompanhada de precauções formais quanto ao respeito das competências do Tribunal de Justiça, a Kúria procedeu a uma forma de controlo de admissibilidade da decisão de reenvio inicial com vista a determinar se a resposta às questões submetidas pelo juiz no processo em causa era necessária para decidir quanto ao mérito do processo. A partir da sua análise, considerou que a primeira questão não se colocava na realidade e que a segunda e terceira questões não tinham nenhuma relação com o processo. Ainda mais surpreendente é o segundo fundamento de legalidade adotado, em conformidade com o requerido pelo procurador‑geral, para a primeira questão, a saber, que, na realidade, não se destinava à interpretação do direito da União, mas a demonstrar que o direito húngaro aplicável não era conforme com os princípios protegidos pelo direito da União. Este fundamento relativo à apreciação da finalidade das questões prejudiciais corresponde à aplicação de jurisprudência constante do mais alto órgão jurisdicional nacional húngaro, com a circunstância, neste caso agravante, de a solução adotada dizer respeito à própria decisão de reenvio prejudicial e não à recusa do juiz que conhece do mérito de julgar procedente um pedido de uma parte do reenvio prejudicial.

44.      Considero que o referido acórdão, assim fundamentado, viola a faculdade de o órgão jurisdicional de reenvio submeter questões ao Tribunal de Justiça a título prejudicial e, por esse facto, viola o artigo 267.o TFUE, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça.

45.      A este respeito, importa, em primeiro lugar, recordar que, em conformidade com o artigo 19.o TUE, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais e ao Tribunal de Justiça garantir a aplicação plena do direito da União em todos os Estados‑Membros, bem como a proteção jurisdicional dos direitos conferidos aos particulares pelo referido direito. Especialmente, a pedra angular do sistema jurisdicional assim concebido é constituída pelo processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, que, ao instituir um diálogo de juiz para juiz, precisamente entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assim assegurar a sua coerência, o seu pleno efeito e a sua autonomia, bem como, em última instância, o caráter adequado do direito instituído pelos Tratados (17).

46.      O artigo 267.o TFUE confere aos órgãos jurisdicionais nacionais a mais ampla faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça, se considerarem que um processo neles pendente suscita questões que exigem uma interpretação ou uma apreciação da validade de disposições do direito da União necessárias para a resolução do litígio que lhes é submetido. Os órgãos jurisdicionais nacionais podem, de resto, exercer livremente esta faculdade a qualquer momento do processo que considerem adequado. Uma regra de direito nacional não pode, por conseguinte, impedir um órgão jurisdicional nacional de fazer uso da referida faculdade, a qual é, com efeito, inerente ao sistema de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, e às funções de juiz encarregado da aplicação do direito da União, confiadas por esta disposição aos órgãos jurisdicionais nacionais (18).

47.      O diálogo prejudicial assim definido não se enquadra numa relação triangular que inclua um órgão jurisdicional, além do Tribunal de Justiça e do órgão jurisdicional de reenvio, que possa participar numa apreciação autónoma da pertinência e da necessidade do reenvio prejudicial, para em seguida declarar a ilegalidade devido à inexistência dessas características (19). Esta situação é contrária ao facto de o reenvio prejudicial assentar num diálogo de juiz para juiz cujo início depende inteiramente da apreciação que o órgão jurisdicional nacional faça da pertinência e da necessidade do referido reenvio, sem prejuízo da verificação limitada efetuada pelo Tribunal de Justiça (20). Por outras palavras, o exame de admissibilidade das questões prejudiciais insere‑se na competência exclusiva do Tribunal de Justiça.

48.      Em segundo lugar, a eficácia do direito da União ficaria ameaçada se um recurso para o mais alto órgão jurisdicional nacional pudesse impedir o juiz nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio regido pelo direito da União, no exercício da faculdade que lhe é atribuída pelo artigo 267.o TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça questões sobre a interpretação ou a validade do direito da União, a fim de lhe permitir decidir se uma norma nacional é ou não compatível com este (21). Uma tal prática jurisdicional corre o risco de ter como consequência que um juiz nacional que tenha dúvidas quanto à compatibilidade do direito interno com o direito da União se prefira abster de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça para evitar uma declaração de ilegalidade da decisão que ordena o reenvio prejudicial e a suspensão do processo principal, suscetível de comprometer a validade da futura decisão quanto ao mérito (22).

49.      Em terceiro lugar, resulta de jurisprudência constante que um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça vincula o juiz nacional, quanto à interpretação ou à validade dos atos das instituições da União em causa, para a solução do litígio no processo principal (23). Depois de ter recebido a resposta do Tribunal de Justiça a uma questão relativa à interpretação do direito da União que lhe submeteu, um órgão jurisdicional que se pronuncia em primeira ou em última instância deve, ele próprio, fazer tudo o que seja necessário para que essa interpretação do direito da União seja aplicada (24). O artigo 267.o TFUE exige do órgão jurisdicional de reenvio que dê um efeito pleno à interpretação do direito da União dada pelo Tribunal de Justiça (25). No caso em apreço, afigura‑se‑me suscetível de impedir a execução dessa obrigação pelo órgão jurisdicional de reenvio, um acórdão do mais alto órgão jurisdicional nacional, publicado na coletânea reservada às decisões de princípio, que declara ilegal de forma definitiva na ordem jurídica nacional um despacho de reenvio prejudicial prévio à decisão quanto ao mérito de resolução do litígio no processo principal que deve integrar a resposta do Tribunal de Justiça quanto à interpretação do direito da União.

50.      Afigura‑se, assim, que o acórdão da Kúria é suscetível de pôr em causa as características essenciais do sistema de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituídas pelo artigo 267.o TFUE e o primado do direito da União na ordem jurídica interna.

51.      Por último, importa acrescentar que o Tribunal de Justiça já declarou que o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União tem a obrigação de garantir a plena eficácia dessas normas, não aplicando, se necessário e no exercício da sua própria autoridade, nenhuma disposição contrária à legislação nacional, mesmo posterior. Uma disposição de direito nacional que impeça a aplicação do processo previsto no artigo 267.o TFUE deve ser afastada sem que o órgão jurisdicional em causa tenha de pedir ou de esperar a sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (26). Com efeito, seria incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de uma ordem jurídica nacional ou qualquer prática, legislativa, administrativa ou judicial, que tivesse por efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de recusar ao juiz competente para aplicar esse direito o poder de fazer, no momento exato dessa aplicação, tudo o que é necessário para afastar as disposições legislativas nacionais que eventualmente constituam um obstáculo à plena eficácia das normas da União (27).

52.      Tendo em conta as considerações que precedem, propõe‑se que se responda à quarta questão no sentido de que, quando existam regras de direito nacional relativas ao exercício de um recurso extraordinário destinado à unificação do referido direito contra uma decisão que ordena um reenvio prejudicial, o artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação dessas regras que permitem ao órgão jurisdicional superior chamado a pronunciar‑se declarar ilegal essa decisão, sem afetar os seus efeitos jurídicos quanto à suspensão do processo principal e ao prosseguimento do processo prejudicial, com o fundamento de que as questões prejudiciais não são necessárias para a solução do litígio e que se destinam a obter a declaração de que o direito nacional é incompatível com o direito da União. O primado do direito da União obriga o juiz nacional de reenvio a afastar essas regras e as decisões judiciais que as aplicam.

B.      Quanto à primeira questão

1.      Quanto à admissibilidade

53.      O Tribunal de Justiça só se pode recusar pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (28).

54.      No presente processo, não resulta de forma manifesta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que a situação no caso em apreço corresponde a uma dessas hipóteses. Pelo contrário, está atualmente pendente no órgão jurisdicional de reenvio um processo penal à revelia contra IS, cidadão sueco de origem turca, acusado de infração à legislação sobre armas de fogo e munições, na sequência de um inquérito no decurso do qual o interessado foi ouvido pelos serviços de polícia na presença de um intérprete que lhe traduziu a notificação dos seus direitos e dos factos que lhe são imputados. Há que constatar que o litígio no processo principal apresenta manifestamente, quanto ao mérito, um nexo de ligação com o direito da União, nomeadamente, com as disposições das Diretivas 2010/64 e 2012/13 sobre as quais versa a primeira questão prejudicial, e que o órgão jurisdicional de reenvio tem, por conseguinte, de aplicar este direito, a fim de resolver esses litígios.

55.      As alegações do Governo húngaro não são suscetíveis de infirmar esta constatação e a admissibilidade da questão prejudicial que daí decorre. Carecem, assim, de pertinência as considerações relativas à alegada simplicidade da apreciação de facto e de direito do processo principal e ao facto de não ser necessário uma interpretação do direito da União, uma vez que o processo contra IS não revela nenhum elemento suscetível de pôr em dúvida uma qualidade suficiente da interpretação. A este propósito, basta recordar que os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade para recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles pendente suscita questões sobre as quais têm de decidir e que implicam uma interpretação ou uma apreciação da validade de disposições do direito da União (29). Por outras palavras, mesmo admitindo que a resposta à primeira questão não suscita nenhuma dúvida, essa circunstância não pode impedir um órgão jurisdicional nacional de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça e não tem por efeito tornar inadmissível a questão assim submetida.

2.      Quanto ao alcance e à reformulação da questão prejudicial

56.      Importa recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais. Consequentemente, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado as suas questões à interpretação de certas disposições do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (30).

57.      Tendo em atenção o enunciado das duas partes da questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça quanto à interpretação do artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64 (primeira parte) bem como do artigo 4.o, n.o 5, e do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13, visando igualmente o artigo 6.o, n.o 1, TUE (segunda parte).

58.      Tendo em conta os factos que estão na origem do processo principal e com vista a dar uma resposta útil e tão completa quanto possível à questão prejudicial, o exame da questão submetida não se pode limitar apenas aos aspetos explicitamente evocados pelo órgão jurisdicional de reenvio. Importa ampliar o alcance, tomando em consideração várias outras disposições das Diretivas 2010/64 e 2012/13, bem como da Diretiva 2016/343 e o artigo 47.o da Carta. Consequentemente, propõe‑se a reformulação das duas partes da questão da seguinte forma:

–        devem os artigos 2.o, 3.o e 5.o da Diretiva 2010/64 ser interpretados no sentido de que impõem aos Estados‑Membros que assegurem aos suspeitos ou acusados, que não falam ou não compreendem a língua do processo penal, um direito à interpretação de qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, criando um registo dos tradutores e intérpretes independentes que possuam as qualificações exigidas e/ou uma fiscalização jurisdicional da referida qualidade?

–        devem as disposições conjugadas das Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343, bem como do artigo 47.o da Carta, ser interpretadas no sentido de que se opõem à possibilidade de julgar à revelia o acusado, que não fala ou não compreende a língua do processo penal, relativamente ao qual não se possa provar ter sido informado, no decurso do inquérito, dos factos que lhe são imputados ou da acusação devido à falta de interpretação adequada?

3.      Quanto ao mérito

59.      Desde a adoção da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), a cooperação judiciária em matéria penal tem vindo a dotar‑se de instrumentos jurídicos cuja aplicação coordenada se destina a reforçar a confiança dos Estados‑Membros nas suas respetivas ordens jurídicas nacionais, com o objetivo de assegurar o reconhecimento e a execução, na União, das sentenças em matéria penal, a fim de evitar a total impunidade dos autores das infrações (31).

60.      As Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343 fazem parte desse conjunto de instrumentos jurídicos que concretizam o roteiro, adotado pelo Conselho em 2009, para o reforço dos direitos das pessoas em processos penais, que foi saudado pelo Conselho Europeu e declarado parte integrante do programa de Estocolmo (32). Todas estas normas de direito derivado visam reforçar os direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais com o objetivo de lhes garantir o seu direito a um processo equitativo e apoiam‑se, com esse objetivo, em conformidade com os seus respetivos considerandos, nos direitos enunciados nomeadamente nos artigos 6.o, 47.o e 48.o da Carta. Os respetivos âmbitos de aplicação das referidas diretivas são, aliás, definidos em termos quase idênticos para abranger o processo penal em toda a sua extensão, a partir do momento em que as pessoas são informadas pelas autoridades competentes de um Estado‑Membro de que são suspeitas ou acusadas de terem cometido uma infração penal, e isto até ao termo do processo, com a adoção da decisão que visa determinar definitivamente se essas pessoas cometeram a referida infração (33). Na minha opinião, para responder à questão submetida, são necessárias uma abordagem e uma compreensão de conjunto das Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343.

a)      Quanto à primeira parte da questão

61.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o direito à interpretação de qualidade suficiente prevista na Diretiva 2010/64, no que respeita à sua execução e controlo.

62.      Nos termos do considerando 17 da Diretiva 2010/64, as regras mínimas comuns que esta contém devem garantir a livre prestação de uma «adequada» assistência linguística, possibilitando que os suspeitos ou acusados que não falam ou não compreendem a língua do processo penal exerçam plenamente o seu direito de defesa e assegurando a equidade do processo. O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2010/64 prevê o direito à interpretação e tradução, nomeadamente, em processo penal. O direito à interpretação previsto no artigo 2.o da Diretiva 2010/64 tem por objeto a tradução por um intérprete das comunicações orais entre os suspeitos ou os acusados e as autoridades de investigação, as autoridades judiciais ou, se for o caso, o defensor legal. Por outras palavras, para que seja garantida a equidade do processo e que a pessoa em causa esteja em condições de exercer os seus direitos de defesa, esta disposição garante que essa pessoa, quando é chamada para declarações orais no âmbito, nomeadamente, de um processo penal, seja diretamente perante as autoridades judiciárias competentes ou à atenção do seu defensor legal, esteja habilitada a fazê‑lo na língua que ela compreenda. O artigo 3.o da Diretiva 2010/64 regula o direito à tradução de certos documentos redigidos na língua do processo pelas autoridades competentes, a saber e de forma não exaustiva, as decisões que imponham as medidas privativas de liberdade, a acusação ou a pronúncia, e as sentenças (34).

63.      Além disso, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2010/64, conjugado com o artigo 2.o, n.o 8, e o artigo 3.o, n.o 9, desta diretiva, prevê a obrigação de os Estados‑Membros tomarem medidas para assegurar uma qualidade suficiente da interpretação e da tradução que garantam a equidade do processo, o que significa que essa interpretação ou tradução deve, pelo menos, permitir que os suspeitos ou acusados conheçam os factos que lhes são imputados e sejam capazes de exercer o seu direito de defesa.

64.      Embora a Diretiva 2010/64 imponha aos Estados‑Membros, em termos inequívocos, uma obrigação de resultado preciso quanto à qualidade da interpretação e tradução, deixa‑lhes manifestamente uma margem de apreciação no que respeita às suas modalidades de execução. Assim, contrariamente à apreciação contida na decisão de reenvio, uma simples leitura literal do artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64, com a utilização do verbo «dever procurar», revela que a criação de um registo de tradutores e de intérpretes independentes que possuam as qualificações exigidas não tem caráter vinculativo. Por conseguinte, a existência ou a inexistência desse registo, como sucede na Hungria segundo as declarações do Governo desse Estado, não é, em si mesma, determinante quanto ao cumprimento ou incumprimento da obrigação que recai sobre os Estados‑Membros referida no número anterior das presentes conclusões.

65.      Contudo, para assegurar a efetividade do direito a uma assistência linguística adequada, a Diretiva 2010/64 impõe aos Estados‑Membros que prevejam, no âmbito dos procedimentos previstos pelo direito nacional, um controlo da qualidade da interpretação e da tradução. Além do direito de contestar a decisão que conclui que não é necessária interpretação ou a tradução de documentos, o artigo 2.o, n.o 5, e o artigo 3.o, n.o 5, desta diretiva dispõem que, quando esses serviços tenham sido oferecidos, os suspeitos ou acusados devem ter a possibilidade de apresentar queixa de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo. Importa, mais uma vez, salientar que a Diretiva 2010/64 não regula as modalidades, além da iniciativa do controlo, segundo as quais essa contestação pode ser levada a cabo. Resulta dos artigos referidos, supra, conjugados com os considerandos 24 e 25 da Diretiva 2010/64, que esse direito de contestação não obriga os Estados‑Membros a estabelecer um regime ou um procedimento de reclamação autónomo.

66.      Tendo em conta as considerações que precedem, propõe‑se que se responda à primeira parte da primeira questão que os artigos 2.o, 3.o e 5.o da Diretiva 2010/64 devem ser interpretados no sentido de que impõem aos Estados‑Membros que garantam aos suspeitos ou acusados, que não falam ou não compreendem a língua do processo penal, a possibilidade de apresentarem queixa de uma qualidade de interpretação insuficiente, na medida em que não lhes permite ter conhecimento dos factos que lhes são imputados e exercer os seus direitos de defesa. O artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64 não obriga os Estados‑Membros a criar um registo dos tradutores e intérpretes independentes que possuam as qualificações adequadas.

b)      Quanto à segunda parte da questão

67.      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre as consequências de uma violação do direito à informação do acusado, caso não se possa provar que teve conhecimento dos factos que lhe são imputados ou da acusação, devido à falta de interpretação adequada, para a tramitação do processo penal à revelia de que é objeto. Na minha opinião, esta questão insere‑se na apreciação do respeito dos direitos de defesa e da equidade do processo, que está necessariamente ligada aos direitos expressamente previstos pela Diretiva 2012/13 referida no enunciado da questão, e que diz igualmente respeito à Diretiva 2016/343.

68.      Embora incumba ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se as disposições da Diretiva 2012/13 foram respeitadas no processo principal e que medidas específicas devem, se for caso disso, ser adotadas para esse efeito, cabe, contudo, ao Tribunal de Justiça indicar‑lhe os elementos objetivos que devem presidir a essa apreciação (35).

69.      Resulta dos considerandos 10 e 14 da Diretiva 2012/13 que esta visa, mediante o estabelecimento de regras mínimas comuns que enquadram o direito à informação em processo penal, reforçar a confiança mútua entre os Estados‑Membros nos respetivos sistemas de justiça penal. O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13 prevê claramente que esta estabelece regras relativas ao direito dos suspeitos ou acusados sobre os seus direitos em processo penal e sobre a acusação contra eles formulada (36). Uma leitura conjugada dos artigos 3.o e 6.o da Diretiva 2012/13 confirma que o direito referido no seu artigo 1.o diz respeito a, pelo menos, dois direitos diferentes (37).

70.      Por um lado, os suspeitos ou acusados devem, em conformidade com o artigo 3.o desta diretiva, ser informados de pelo menos determinados direitos processuais que figuram numa lista que consta desta disposição e que compreende o direito de assistência de um advogado, o direito a aconselhamento jurídico gratuito e as condições para a sua obtenção, o direito de ser informado da acusação, o direito à interpretação e tradução e o direito ao silêncio (38). Quando os suspeitos ou acusados são detidos ou presos, o artigo 4.o da Diretiva 2012/13 impõe aos Estados‑Membros uma obrigação de lhes facultar uma Carta de Direitos por escrito que identifique, nomeadamente, os direitos processuais referidos, supra. O artigo 4.o, n.o 5, desta diretiva prevê que essa Carta deve ser facultada aos interessados numa língua que estes compreendam e se a mesma não estiver disponível, devem ser informados dos seus direitos oralmente numa língua que compreendam.

71.      Por outro lado, a referida diretiva define, no seu artigo 6.o, as regras relativas ao direito de ser informado sobre a acusação. O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13 diz respeito à regra segundo a qual os suspeitos ou acusados recebem informações prontamente e com os detalhes necessários, a fim de garantir a equidade do processo e de permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa, do ato criminoso de que sejam suspeitos ou acusados de ter cometido. O n.o 2 do referido artigo prevê especificamente que os suspeitos ou acusados, que sejam detidos ou presos sejam informados das razões para a sua detenção ou prisão, incluindo o ato criminoso de que são suspeitos ou acusados de ter cometido. Além disso, e sobretudo, ao abrigo do n.o 3 desse artigo, pelo menos aquando da apresentação da fundamentação da acusação perante um tribunal, sejam prestadas informações detalhadas sobre a acusação, incluindo a natureza e qualificação jurídica da infração penal, bem como a natureza da participação do acusado.

72.      Para garantir a efetividade do direito à informação assim previsto, o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13 enuncia que os suspeitos ou acusados, ou os seus advogados, tenham o direito de impugnar, de acordo com os procedimentos previstos no direito nacional, uma eventual omissão ou recusa por parte das autoridades competentes em facultar informações nos termos da presente diretiva.

73.      Saliento que, nesta fase, ao mesmo tempo que se refere, no enunciado da segunda parte da questão, ao artigo 4.o, n.o 5, e ao artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 2012/13, o órgão jurisdicional de reenvio evoca uma situação em que não se pode demonstrar que o acusado, interrogado durante a fase de inquérito na presença de um intérprete de língua sueca, foi informado oralmente dos factos que lhe são imputados ou da acusação devido a uma interpretação inadequada. Parece‑me que estas circunstâncias que caracterizam o processo principal tornam o artigo 6.o da Diretiva 2012/13 a disposição pertinente para efeitos da resposta a dar ao órgão jurisdicional de reenvio.

74.      Por conseguinte, qual é a situação de um arguido que, após ter sido notificado dos factos que lhe são imputados na fase de inquérito por um intérprete, de maneira considerada inadequada, é julgado à revelia?

75.      Conforme resulta do artigo 1.o e do considerando 9 da Diretiva 2016/343, o seu objeto é estabelecer normas mínimas comuns aplicáveis aos processos penais respeitantes a certos aspetos do direito à presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento. O artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva enuncia que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento. O considerando 35 dessa mesma diretiva precisa que o direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto e que, em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca. Assim, o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 dispõe que os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido se pode realizar na sua ausência, desde que, nos termos da alínea a) desta disposição, o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência ao seu julgamento ou, nos termos da alínea b) o suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado (39).

76.      Por conseguinte, resulta do artigo 8.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2016/343 que é possível julgar um arguido na sua ausência desde que tenha sido previamente informado da realização do seu julgamento e seja representado por um advogado da sua escolha ou designado pelo Estado. A este respeito, de acordo com os autos submetidos ao Tribunal de Justiça, IS, cuja notificação foi devolvida com a menção «não reclamada», não compareceu na audiência preliminar de 27 de novembro de 2018 e, perante requerimento do Ministério Público de aplicação de uma simples pena de multa, o órgão jurisdicional de reenvio está obrigado, de acordo com o direito nacional, a prosseguir o processo à revelia e, consequentemente, a decidir sobre a culpabilidade do arguido ausente, mas representado por um advogado nomeado pelo Estado.

77.      Desde que estejam preenchidos os pressupostos de um julgamento à revelia, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar (40), nenhuma disposição da Diretiva 2016/343 obsta à possibilidade, expressamente referida no artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2012/13, supracitada, de o advogado impugnar perante o órgão jurisdicional competente o modo como o direito à informação e, mais especificamente, o artigo 6.o deste último ato foi aplicado durante o processo (41). Por conseguinte, a impugnação da regularidade de um ato e, se for caso disso, do processo no seu todo pode ser feita pelo advogado do arguido perante o órgão jurisdicional competente chamado a pronunciar‑se sem a presença do interessado.

78.      Essa impugnação pode ter como fundamento a falta de qualidade adequada da interpretação da acusação contra o suspeito ou o acusado, conforme exigido pelo artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64. A este propósito, importa recordar que se entende precisamente por uma interpretação de qualidade suficiente a que permita a essas pessoas terem conhecimento dos factos que lhes são imputados e serem capazes de exercer os seus direitos de defesa, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 8, desta diretiva.

79.      Assim sendo, parece‑me que o processo principal suscita igualmente a questão do alcance do direito de o arguido ser informado da acusação contra ele no âmbito de um processo que prevê uma possível decisão quanto ao mérito na sua ausência. Mais especificamente, é possível sanar, na fase de julgamento à revelia do arguido, a violação do direito à informação da acusação na fase de inquérito? Parece‑me que a análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça deve conduzir a uma resposta afirmativa.

80.      Como referem, em substância, os considerandos 14 e 41 da Diretiva 2012/13, esta baseia‑se nos direitos enunciados, nomeadamente, no artigo 47.o da Carta e destina‑se a promover esses direitos. Mais especificamente, o artigo 6.o desta diretiva tem por objetivo assegurar o exercício efetivo dos direitos de defesa e a equidade do processo e consagra, portanto, um aspeto do direito à ação, previsto no artigo 47.o da Carta (42). O facto de a Diretiva 2012/13 não regular as modalidades segundo as quais a informação sobre a acusação, prevista no seu artigo 6.o, deve ser comunicada ao arguido não pode pôr em causa o objetivo visado nessa disposição (43).

81.      Ora, este objetivo determina que o arguido receba informações detalhadas sobre a acusação em tempo útil, num momento que lhe permita preparar eficazmente a sua defesa. O referido objetivo e o bom desenrolar do processo pressupõem, em princípio e salvo casos de processos especiais ou simplificados, que a referida comunicação ocorra o mais tardar no momento em que as audiências sobre o mérito da acusação têm efetivamente início perante o juiz competente para se pronunciar quanto a esse mérito (44).

82.      Além da determinação do momento último em que a comunicação de informações detalhadas sobre a acusação deve ocorrer, o Tribunal de Justiça declarou que é através desta mesma comunicação que o arguido, ou o seu advogado, é precisamente informado dos factos que lhe são imputados e da qualificação jurídica dos mesmos. A possibilidade de tomar conhecimento destas informações e destes elementos o mais tardar até ao início das audiências é essencial para permitir a esta pessoa, ou ao seu advogado, participar nas mesmas de forma útil com respeito pelo princípio do contraditório e da igualdade das armas, a fim de fazer valer a sua posição de maneira efetiva (45). O Tribunal de Justiça esclareceu ainda que, em todo o caso, independentemente do momento em que sejam prestadas as informações detalhadas sobre a acusação, deve nomeadamente, no respeito pelo princípio do contraditório e da igualdade das armas, ser concedido ao arguido e ao seu advogado um prazo suficiente para tomarem conhecimento dessas informações e devem ser‑lhes dadas condições para prepararem eficazmente a defesa, apresentarem eventuais observações e, sendo caso disso, apresentarem requerimentos, nomeadamente de abertura de instrução, a que tenham direito nos termos do direito nacional. Esta exigência impõe que o processo, se necessário, seja suspenso e que seja fixada uma nova data para a realização da audiência (46).

83.      Na medida em que, como no processo principal, o arguido que não comparece na audiência de julgamento é representado por um advogado, destinatário das informações detalhadas sobre a acusação em tempo útil para preparar a defesa, este último tem, consequentemente, a possibilidade de participar de forma útil nas audiências, contestando, se for caso disso, a regularidade de um ato e do processo no seu todo, bem como o mérito da acusação.

84.      Tendo em conta as considerações que precedem, propõe‑se que se responda à segunda parte da primeira questão que as disposições conjugadas das Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343 devem ser interpretadas no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não se opõem à possibilidade de julgar à revelia um arguido que não fala ou não compreende a língua do processo penal e acerca do qual não se possa provar que foi informado durante o inquérito dos factos imputados ou da acusação devido a uma interpretação inadequada, desde que o advogado que representa o referido arguido tenha tido a possibilidade de impugnar a regularidade de um ato e, sendo caso disso, o processo no seu todo por violação do direito à informação. O artigo 6.o da Diretiva 2012/13, conjugado com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que informações detalhadas sobre a acusação sejam comunicadas à defesa do arguido julgado à revelia antes de o juiz começar a analisar o mérito da acusação e de terem efetivamente início as audiências perante ele, desde que sejam adotadas pelo juiz todas as medidas necessárias para garantir o respeito dos direitos da defesa e a equidade do processo.

C.      Quanto à segunda e terceira questões

85.      Ao contrário da primeira questão prejudicial, parece‑me que as objeções formuladas pelo Governo húngaro quanto à admissibilidade da segunda e terceira questões, referidas em termos quase idênticos pela Comissão, devem conduzir a uma conclusão da sua inadmissibilidade. Com efeito, tendo em conta os ensinamentos que decorrem do Acórdão Miasto Łowicz, a inadmissibilidade das referidas questões não suscita dúvidas, na minha opinião. A segunda e terceira questões constituem um exemplo tópico das interrogações que o Tribunal de Justiça pretendeu excluir do processo prejudicial por serem contrárias ao espírito e à finalidade dessa via de direito, a saber, a coconstrução, pelo Tribunal de Justiça e pelo órgão jurisdicional nacional, no respeito das respetivas competências, de uma solução para o litígio concreto submetido a este último.

86.      Com a sua segunda e terceira questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o artigo 19.o TUE e o artigo 47.o da Carta devem ser interpretados no sentido de que se opõem a:

–        um sistema nacional de designação de chefes de jurisdição, responsáveis pela distribuição de processos, avaliação dos juízes e instauração de processos disciplinares, que confere ao presidente do GJN, autoridade nomeada pela representação parlamentar, um poder de nomeação direta com caráter temporário, que contorna o processo de concurso para a apresentação de candidaturas e que ignora o parecer dos órgãos judiciais competentes;

–        um sistema nacional de remunerações que prevê um vencimento dos juízes inferior ao dos procuradores e a concessão discricionária pelo presidente do GJN e pelos chefes de jurisdição de diversos subsídios muito elevados em relação às remunerações de base dos juízes e que podem, assim, potencialmente constituir uma influência indevida e implicar uma violação da independência dos juízes.

87.      Em caso de resposta afirmativa do Tribunal de Justiça a estas questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o respeito, no âmbito de um processo jurisdicional, do direito a um processo equitativo.

88.      Importa recordar que a justificação do reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE não é emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio, sendo a missão do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo prejudicial, assistir o órgão jurisdicional de reenvio na solução do litígio nele pendente. A decisão prejudicial deve ser necessária para permitir a um órgão jurisdicional de reenvio resolver o litígio que lhe foi submetido e é nesta condição que as questões prejudiciais em causa podem ser qualificadas de pertinentes e dar lugar a um reenvio prejudicial (47).

89.      Ora, o processo principal é constituído por um processo de julgamento à revelia de um cidadão sueco, a quem foi notificada por um intérprete, no decurso do inquérito, a infração à legislação húngara sobre as armas e munições. Tendo dúvidas quanto à compatibilidade das normas nacionais de processo penal, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre o alcance do direito à interpretação e à informação da acusação no contexto específico de um arguido que não comparece, mas que é representado por um advogado, situação que implica a interpretação de diversas disposições das Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343.

90.      Nestas circunstâncias, as respostas esperadas do Tribunal de Justiça quanto à compatibilidade da legislação nacional relativa à designação direta pelo presidente do GJN de lugares de topo dos órgãos jurisdicionais chefes com caráter temporário (48) e a remuneração dos juízes com o direito da União, no caso em apreço o artigo 19.o TUE, conjugado com o artigo 47.o da Carta, não respondem ao critério de necessidade referido, supra (49). Por outras palavras, o litígio no processo principal não diz respeito ao sistema judicial húngaro, considerado na sua globalidade e de que alguns aspetos são suscetíveis de violar a independência dos juízes e, mais especificamente, do órgão jurisdicional de reenvio com a aplicação do direito da União.

91.      O facto de poder existir uma conexão material entre o litígio no processo principal e o artigo 47.o da Carta, ou mesmo de forma mais ampla com o artigo 19.o TUE, não é suficiente para preencher o critério da necessidade. É ainda necessário que a interpretação destas disposições, tal como foi solicitada no âmbito das segunda e terceira questões, responda a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio deve tomar, o que não acontece no caso em apreço. Não se vislumbra de que forma o órgão jurisdicional de reenvio pode ser levado a adotar, em aplicação dos ensinamentos que decorrem de uma interpretação destas disposições tendo em conta o alcance dessas questões, uma decisão que é exigida para julgar o litígio no processo principal (50).

92.      Além disso, embora o Tribunal de Justiça já tenha declarado admissíveis questões prejudiciais sobre a interpretação de disposições processuais do direito da União que o órgão jurisdicional de reenvio em causa estava obrigado a aplicar, não é esse o alcance das questões submetidas no âmbito do presente processo. Do mesmo modo, uma resposta do Tribunal de Justiça às referidas questões também não parece poder fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação do direito da União que lhe permita resolver as questões processuais de direito nacional antes de poder decidir sobre o mérito do litígio que lhe foi submetido. Por conseguinte, nestas condições, as referidas questões não versam sobre uma interpretação do direito da União que responda a uma necessidade objetiva para a resolução do referido litígio, mas revestem antes caráter geral e são, consequentemente, inadmissíveis (51).

D.      Quanto à quinta questão

93.      Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.o, n.o 1, TUE, o artigo 47.o da Carta e o artigo 267.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que permite a instauração de um processo disciplinar contra um juiz com fundamento no envio, por este último, de um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Tanto o Governo húngaro como a Comissão concluíram pela inadmissibilidade desta questão, conclusão a que me parece possível aderir num plano estritamente jurídico, apesar de circunstâncias posteriores ao reenvio prejudicial, particularmente perturbadoras e lamentáveis, expressão eufemística se isso assim for.

94.      Com efeito, é pacífico que, em 25 de outubro de 2019, o presidente do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) adotou um despacho relativo à instauração de um processo disciplinar contra o juiz de reenvio, primeira fase de um processo submetido à apreciação de um tribunal disciplinar que decidiu a abertura efetiva do processo e a aplicação de uma sanção disciplinar. Nos termos do despacho referido, supra, o juiz de reenvio era acusado de ter:

–        por um lado, violado o prestígio da profissão de juiz à luz, nomeadamente, da decisão da Kúria que declara ilegal o reenvio prejudicial [artigo 105.o, alínea b), da Lei Relativa ao Estatuto e à Remuneração dos Juízes];

–        por outro lado, incumprido culposamente as obrigações ligadas à função de juiz, no sentido de que se deduzia da decisão da Kúria a existência de uma causa de recusa em relação ao juiz em causa devido a acusações pessoais contra alguns dirigentes do poder judicial e que o interessado devia ter declarado este motivo de recusa ao presidente da sua jurisdição e não continuar a ser juiz no processo principal [artigo 105.o, alínea a), da Lei Relativa ao Estatuto e à Remuneração dos Juízes].

95.      Em 22 de novembro de 2019, ou seja, quatro dias após o pedido de decisão prejudicial complementar, o presidente do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital) revogou o despacho de abertura de um processo disciplinar, determinando o seu arquivamento, com o fundamento de que, se, na sua qualidade de presidente do órgão jurisdicional em causa, tinha tido a obrigação de iniciar o processo disciplinar, os interesses do poder judicial exigiam agora a revogação dessa iniciativa.

96.      Como exposto, o Tribunal de Justiça só pode recusar um pedido de decisão prejudicial apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (52).

97.      A este respeito, há que salientar que o litígio no processo principal no contexto do qual o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se a título prejudicial não tem por objeto a instauração de um processo disciplinar contra o juiz de reenvio, tal como não diz respeito ao estatuto da magistratura e às suas disposições relativas ao regime disciplinar dos juízes. Por outro lado, é pacífico que o despacho relativo à abertura do processo disciplinar foi revogado e este último arquivado. Neste contexto, a quinta questão prejudicial submetida ao Tribunal de Justiça não tem por objeto uma interpretação do direito da União que responda a uma necessidade inerente à resolução do litígio no processo principal e uma resposta a esta levaria o Tribunal de Justiça a emitir um parecer sobre questões gerais ou hipotéticas, como as possíveis reações psicológicas dos juízes húngaros ao processo disciplinar instaurado com base no acórdão da Kúria quanto à submissão de questões prejudiciais no futuro. Por conseguinte, a quinta questão prejudicial deve ser declarada inadmissível. Todavia, tendo em conta a gravidade intrínseca do despacho que dá início a um processo destinado à aplicação de uma sanção disciplinar a um juiz com fundamento no reenvio prejudicial submetido por este, parece‑me indispensável que o Tribunal de Justiça recorde, no seu acórdão, os n.os 55 a 59 do Acórdão Miasto Łowicz para o esclarecimento das autoridades nacionais competentes e a prevenção de qualquer reiteração deste tipo de ação (53).

98.      Por uma questão de exaustividade da missão de assistência do Tribunal de Justiça, evoco, ainda assim, brevemente, a via frágil de uma possível admissibilidade da quinta questão prejudicial. Assim, é possível considerar o pedido de decisão prejudicial complementar como um conjunto indivisível, no qual a quarta e a quinta questões estão estreitamente ligadas para não dizer indissociáveis. Com estas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se pode, nos termos do direito da União, não aplicar o acórdão da Kúria para decidir quanto ao mérito do litígio no processo principal integrando a decisão prejudicial sem ter de recear ser objeto de uma reabertura do processo disciplinar baseado precisamente nesse acórdão, uma vez que o conjunto constitui o problema de natureza processual que deve ser decidido in limine litis.

99.      Saliento, a este respeito, que a expressão «questões processuais de direito nacional», utilizada no n.o 51 do Acórdão Miasto Łowicz, se caracteriza por uma generalidade oportuna, sendo a escolha do termo «questões» e não a de «disposições» que provavelmente testemunham a vontade do Tribunal de Justiça de se abster de uma certa flexibilidade de interpretação do critério de necessidade decorrente do artigo 267.o TFUE. Esta expressão é, portanto, suscetível de abranger qualquer questão que não se enquadre na resolução do mérito do litígio, mas que nela participe indiretamente, ainda que não esteja estritamente abrangida pela aplicação de uma regra de natureza legislativa ou jurisprudencial que regule a propositura de uma ação num juiz competente, a tramitação do processo, o seu desfecho e as vias de recurso (54).

100. Nestas circunstâncias, uma resposta do Tribunal de Justiça à quarta e quinta questões, analisadas em conjunto, é suscetível de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação do direito da União que lhe permita decidir uma questão processual de direito nacional antes de poder decidir quanto ao mérito do litígio que lhe foi submetido. Esta questão é, no caso em apreço, a das condições do prosseguimento do processo penal no processo principal na sequência de um acórdão do Tribunal de Justiça que responde a uma decisão de reenvio previamente declarada ilegal por um acórdão do mais alto órgão jurisdicional nacional que serviu igualmente de fundamento à instauração de um processo disciplinar contra o juiz de reenvio. Se o Tribunal de Justiça optasse por declarar admissível a quinta questão, a resposta quanto ao mérito parece‑me contida de forma clara nos n.os 55 a 59 do Acórdão Miasto Łowicz.

V.      Conclusão

101. À luz das considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo ao Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest, Hungria):

1)      Quando existam regras de direito nacional relativas ao exercício de um recurso extraordinário destinado à unificação do referido direito contra uma decisão que ordena um reenvio prejudicial, o artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação dessas regras que permitem ao órgão jurisdicional superior chamado a pronunciar‑se declarar ilegal essa decisão, sem afetar os seus efeitos jurídicos quanto à suspensão do processo principal e ao prosseguimento do processo prejudicial, com o fundamento de que as questões prejudiciais não são necessárias para a solução do litígio e que se destinam a obter a declaração de que o direito nacional é incompatível com o direito da União. O primado do direito da União obriga o juiz nacional de reenvio a afastar essas regras e as decisões judiciais que as aplicam.

2)      Os artigos 2.o, 3.o e 5.o da Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, devem ser interpretados no sentido de que impõem aos Estados‑Membros que garantam aos suspeitos ou acusados, que não falam ou não compreendem a língua do processo penal, a possibilidade de apresentarem queixa de uma qualidade de interpretação insuficiente, na medida em que não lhes permite ter conhecimento dos factos que lhes são imputados e exercer os seus direitos de defesa. O artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2010/64 não obriga os Estados‑Membros a criar um registo dos tradutores e intérpretes independentes que possuam as qualificações adequadas.

3)      As disposições conjugadas das Diretivas 2010/64, 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal e (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal, devem ser interpretadas no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não se opõem à possibilidade de julgar à revelia um arguido que não fala ou não compreende a língua do processo penal e acerca do qual não se possa provar que foi informado durante o inquérito dos factos imputados ou da acusação devido a uma interpretação inadequada, desde que o advogado que representa o referido arguido tenha tido a possibilidade de impugnar a regularidade de um ato e, sendo caso disso, o processo no seu todo por violação do direito à informação. O artigo 6.o da Diretiva 2012/13, conjugado com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que informações detalhadas sobre a acusação sejam comunicadas à defesa do arguido julgado à revelia antes de o juiz começar a analisar o mérito da acusação e de terem efetivamente início as audiências perante ele, desde que sejam adotadas pelo juiz todas as medidas necessárias para garantir o respeito dos direitos da defesa e a equidade do processo.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal (JO 2010, L 280, p. 1).


3      Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1).


4      Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).


5      Acórdão Miasto Łowicz (n.os 43 e 44).


6      Acórdão Miasto Łowicz (n.os 45 e 46).


7      V., neste sentido, Acórdão Miasto Łowicz (n.os 49 a 51). No Acórdão de 25 de junho de 2020, Ministerio Fiscal (Autoridade suscetível de receber um pedido de proteção internacional) (C‑36/20 PPU, EU:C:2020:495, n.o 49), precisa‑se que a rejeição de um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se se revelar que o processo do artigo 267.o TFUE foi desviado do seu objetivo e visa, na realidade, conduzir o Tribunal de Justiça a decidir através de um litígio inventado, ou no caso de ser manifesto que o direito da União não pode aplicar‑se, nem direta nem indiretamente, às circunstâncias do caso concreto.


8      V., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 99).


9      V. n.os 61 e 70 do acórdão da Kúria.


10      V. n.o 64 do acórdão da Kúria.


11      No n.o 20 do acórdão da Kúria, esclarece‑se que o recurso no interesse da lei permite evitar que uma decisão judicial, em princípio, ilegal não possa vir a ser anulada.


12      V. n.o 75 do acórdão da Kúria.


13      A redação da quarta questão, alínea c), parece‑me, a este respeito, conter uma certa ambiguidade que impede uma resposta útil do Tribunal de Justiça no âmbito de um processo prejudicial cuja tramitação não é afetada pela decisão da Kúria. A formulação da referida questão, que evidencia um problema de temporalidade, só teria sentido se o pedido de decisão prejudicial complementar fosse tratado isolada e prioritariamente pelo Tribunal de Justiça, o que não é o caso, uma vez que todas as questões estão reunidas no âmbito de um único processo prejudicial a propósito do qual o Tribunal de Justiça tomará uma única decisão. Por outras palavras e contrariamente às indicações da Comissão e do Governo neerlandês, a questão não é saber se vale a pena, para o órgão jurisdicional de reenvio, esperar pela resposta do Tribunal de Justiça sem dever, «entretanto», retomar a tramitação do processo nacional suspenso.


14      Acórdão Miasto Łowicz (n.o 51).


15      Acórdãos de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.os 89, 93, 95 e 98) e de 16 de janeiro de 1974, Rheinmühlen‑Düsseldorf (166/73, EU:C:1974:3).


16      V. n.os 47 e 66 do acórdão da Kúria.


17      Acórdão de 6 de março de 2018, Achmea (C‑284/16, EU:C:2018:158, n.os 36 e 37).


18      Acórdãos Miasto Łowicz (n.os 56 e 57), e de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199, n.o 34).


19      No n.o 26 das suas observações relativas ao primeiro pedido de decisão prejudicial, o Governo húngaro não receia referir que se justifica que, no âmbito da sua apreciação da admissibilidade das questões prejudiciais submetidas, o Tribunal de Justiça «tenha em conta a opinião expressa pela Kúria», uma vez que esta última deu expressamente o seu parecer sobre a pertinência das referidas questões.


20      V., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.os 91 e 96), e de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.o 31). Como afirmou o advogado‑geral Poiares Maduro nas suas conclusões no processo Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:294) «[a]través do pedido de decisão prejudicial, o tribunal nacional torna‑se parte de um discurso de direito [da União], sem depender de outros poderes nacionais […]. O Tratado pretendeu que esse diálogo não fosse filtrado por outros tribunais nacionais, independentemente da hierarquia judicial existente num Estado‑Membro».


21      Acórdão de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.o 45).


22      V., neste sentido, Acórdão de 5 de julho de 2016, (C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 25).


23      V. Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov (C‑173/09, EU:C:2010:581, n.o 29).


24      V., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199, n.o 42).


25      Acórdão de 5 de julho de 2016, Ognyanov (C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 28).


26      Acórdão de 2 de março de 2021, A.B. e o. (Nomeação dos juízes do Supremo Tribunal — Recursos) (C‑824/18, EU:C:2021:153, n.o 141).


27      Acórdãos de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.os 43 e 44), e de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199, n.os 40 e 41).


28      V. Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.os 97 e 98).


29      Acórdão de 11 de setembro de 2014, A (C‑112/13, EU:C:2014:2195, n.o 35).


30      Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.os 39 e 40).


31      Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Parquet général du Grand‑Duché de Luxembourg e Openbaar Ministerie (Procuradores de Lyon e de Tours) (C‑566/19 PPU e C‑626/19 PPU, EU:C:2019:1077, n.o 43).


32      Resolução do Conselho, de 30 de novembro de 2009, sobre um Roteiro para o reforço dos direitos processuais dos suspeitos ou acusados em processos penais (JO 2009, C 295, p. 1) e «Programa de Estocolmo — Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos», ponto 2.4 (JO 2010, C 115, p. 1).


33      Resulta da decisão de reenvio que IS é acusado, no processo principal, no âmbito de um processo penal iniciado por uma fase de inquérito na qual foi ouvido pelos serviços de polícia durante a sua detenção com o apoio de um intérprete, uma vez que não domina a língua do referido processo, e que ainda não foi adotada uma decisão final destinada a determinar a sua culpabilidade pela infração penal em causa. Nestas circunstâncias, há que considerar que as Diretivas 2010/64, 2012/13 e 2016/343 se aplicam ao interessado e a esse processo nacional.


34      V., neste sentido, Acórdão de 15 de outubro de 2015, Covaci (C‑216/14, EU:C:2015:686, n.os 33, 40, 44 e 45).


35      Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o. (C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 81).


36      A Diretiva 2012/13, que visa regular o direito à informação dos suspeitos e acusados em processo penal, está estreitamente ligada à Diretiva 2010/64, que confere a esses mesmos indivíduos, que não falam ou não compreendem a língua do processo penal em causa, um direito à interpretação e tradução das informações assim comunicadas. Como refere expressamente o considerando 25 da Diretiva 2012/13, quando forem prestadas informações aos suspeitos ou aos acusados nos termos desta diretiva, os interessados devem dispor, se for caso disso, de uma tradução ou de uma interpretação numa língua que compreendam, de acordo com as normas que constam da Diretiva 2010/64/UE.


37      V., neste sentido, Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.os 34, 42 e 43).


38      No n.o 53 do Acórdão de 19 de setembro de 2019, Rayonna prokuratura Lom (C‑467/18, EU:C:2019:765), o Tribunal de Justiça esclareceu que as pessoas suspeitas de terem cometido uma infração penal devem ser informadas dos seus direitos o mais rapidamente possível a partir do momento em que as suspeitas de que são objeto justificam, num contexto que não seja de urgência, que as autoridades competentes restrinjam a sua liberdade através de medidas de coação e, o mais tardar, antes do seu primeiro interrogatório oficial pela polícia.


39      V., neste sentido, Acórdão de 13 de fevereiro de 2020, Spetsializirana prokuratura (Audiência na ausência do arguido) (C‑688/18, EU:C:2020:94, n.os 29, 32 e 33).


40      Recordo, a este respeito, que o direito de comparecer ao seu julgamento não tem caráter absoluto, o considerando 35 da Diretiva 2016/343 indica que, em determinadas condições, o arguido deverá poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca. O considerando 38 desta diretiva acrescenta que, para determinar se o modo como a informação é prestada é suficiente para assegurar que a pessoa tem conhecimento do julgamento, deverá ser dada especial atenção ao grau de diligência demonstrado pela pessoa em causa para receber a informação que lhe é dirigida.


41      Em conformidade com o considerando 36 da Diretiva 2012/13, esse direito não implica a obrigação de os Estados‑Membros estabelecerem um processo de recurso específico, um regime autónomo ou um procedimento de reclamação pelo qual essa omissão ou recusa possa ser impugnada.


42      V. Acórdão de 14 de maio de 2020, Staatsanwaltschaft Offenburg (C‑615/18, EU:C:2020:376, n.os 70 e 71). O Tribunal de Justiça acrescentou, nos n.os 72 e 73 desse acórdão, que, à semelhança do artigo 47.o da Carta, o qual basta, por si só, e não deve ser precisado por disposições do direito da União ou do direito nacional para conferir aos particulares um direito que pode ser invocado enquanto tal, deve considerar‑se que o artigo 6.o da Diretiva 2012/13 tem efeito direto e, por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, no âmbito das suas competências, tomar todas as medidas necessárias para garantir a plena eficácia desse artigo 6.o


43      Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.o 51).


44      V., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o. (C‑612/15, EU:C:2018:392, n.os 90 e 92).


45      V., neste sentido, Acórdão de 5 de junho de 2018, Kolev e o. (C‑612/15, EU:C:2018:392, n.o 93).


46      Acórdão de 13 de junho de 2019, Moro (C‑646/17, EU:C:2019:489, n.o 53).


47      V., neste sentido, Acórdãos de 3 de julho de 2014, Da Silva (C‑189/13, não publicado, EU:C:2014:2043, n.o 36), e de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz (C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.os 44 e 45).


48      Saliento que as dúvidas do juiz de reenvio quanto à regularidade das nomeações judiciais dizem especificamente respeito à designação de presidente do Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria), sem que se alegue que este último possa ser levado a participar no processo penal pendente no referido juiz do Pesti Központi Kerületi Bíróság (Tribunal Distrital Central de Pest).


49      V., por analogia, Despacho de 6 de outubro de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słubicach (C‑623/18, não publicado, EU:C:2020:800).


50      V., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz (n.os 48 e 52), e Despacho de 6 de outubro de 2020, Prokuratura Rejonowa w Słubicach (C‑623/18, não publicado, EU:C:2020:800, n.o 30).


51      V. Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz (n.os 50, 51 e 53).


52      Acórdão de 19 de novembro de 20019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.os 97 e 98).


53      Vale a pena recordar as palavras do advogado‑geral L. A. Geelhoed nas suas conclusões no processo Comissão/Itália (C‑129/00 EU:C:2003:656), segundo as quais os juízes nacionais «constituem tanto uma garantia como um contrapoder num Estado‑Membro em caso de violação, por outros organismos do Estado, das obrigações que lhes incumbem por força do Tratado».


54      Esta situação distingue‑se precisamente daquela em que o Tribunal de Justiça julgou admissíveis questões prejudiciais relativas à interpretação de «disposições» processuais do direito da União que o órgão jurisdicional de reenvio em causa estava obrigado a aplicar para proferir a sua decisão, como recorda o n.o 50 do Acórdão Miasto Łowicz. É significativo constatar que o Tribunal de Justiça considerou que os termos «julgamento da causa», na aceção do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, abrangem «todo o processo que leva à decisão final» do órgão jurisdicional de reenvio e, por conseguinte, devem ser objeto de uma interpretação lata, a fim de evitar que numerosas questões processuais sejam consideradas inadmissíveis e não possam ser objeto de interpretação pelo Tribunal de Justiça e que este último não possa conhecer da interpretação de todas as disposições do direito da União que o órgão jurisdicional de reenvio é obrigado a aplicar (Acórdão de 28 de Fevereiro de 2019, Gradbeništvo Korana (C‑579/17, UE):C:2019:162, n.o 35 e a jurisprudência referida).