Language of document : ECLI:EU:C:2024:498

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)

13 de junho de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Artigo 5.o, n.o 3 — Indemnização dos passageiros em caso de atraso considerável ou de cancelamento de um voo — Dispensa da obrigação de indemnização — Circunstâncias extraordinárias — Medidas razoáveis de prevenção — Falhas técnicas causadas por um defeito de conceção oculto — Defeito de conceção do motor de uma aeronave — Obrigação da transportadora aérea de dispor de aeronaves de substituição»

No processo C‑411/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia), por Decisão de 26 de maio de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de julho de 2023, no processo

D. S.A.

contra

P. S.A.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),

composto por: N. Piçarra, presidente de secção, N. Jääskinen e M. Gavalec (relator), juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da D. S.A., por P. Gad, K. Puchalska e K. Żbikowska, adwokaci,

–        em representação da P. S.A., por E. Cieplak‑Greszta, adwokat,

–        em representação do Governo Polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por N. Yerrell e B. Sasinowska, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a D. S.A., anteriormente P. [R] (a seguir «demandante no processo principal»), cessionária dos direitos de J. D., à P. S.A., uma transportadora aérea (a seguir «transportadora aérea em causa no processo principal»), a respeito da recusa desta última em indemnizar J. D., passageiro cujo voo sofreu um atraso considerável à chegada.

 Quadro jurídico

3        Os considerandos 1, 14 e 15 do Regulamento n.o 261/2004 enunciam:

«(1)      A ação da Comunidade [Europeia] no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

[…]

(14)      Tal como ao abrigo da Convenção [para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, e aprovada, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001 (JO 2001, L 194, p. 38)], as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)      Considerar‑se‑á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a companhia aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

4        O artigo 5.o deste regulamento, sob a epígrafe «Cancelamento», dispõe:

«1.      Em caso de cancelamento de um voo, os passageiros em causa têm direito a:

[…]

c)      Receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7.o, salvo se [tiverem sido informados do cancelamento do voo]:

[…]

3.      A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

[…]»

5        O artigo 7.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Direito a indemnização», prevê, no n.o 1:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

a)      250 euros para todos os voos até 1 500 quilómetros;

b)      400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros;

c)      600 euros para todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) ou b).

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        Em 2 de julho de 2018, J. D. celebrou com a transportadora aérea em causa no processo principal um contrato relativo a um serviço de transporte aéreo relativo a um voo entre Cracóvia (Polónia) e Chicago (Estados Unidos).

7        Anteriormente, durante o mês de abril de 2018, o fabricante do motor que equipava o avião previsto para efetuar esse voo tinha comunicado a essa transportadora uma diretriz e um boletim que revelavam a existência de um defeito de conceção oculto que afeta as alhetas de impulsor de alta pressão dos motores que equipavam os aviões do mesmo modelo (a seguir «defeito de conceção do motor») e que impunham um certo número de restrições à utilização desses aviões. A partir dessa data, a referida transportadora alega ter contactado várias vezes diversas transportadoras a fim de fretar aviões suplementares para solucionar a eventual ocorrência de um defeito de conceção do motor de um dos aviões da sua frota.

8        Em 28 de junho de 2018, a saber, quatro dias antes do voo previsto, ocorreu uma avaria do motor no decurso de um voo operado pelo avião previsto para efetuar o voo reservado por J. D. Em conformidade com as recomendações do fabricante do motor, a transportadora aérea em causa no processo principal inspecionou com urgência o motor em causa e identificou um defeito de conceção do motor. Depois de ter consultado o fabricante do motor, o motor em causa foi posto fora de serviço, depois desmontado e enviado para reparação num centro de manutenção. Na falta de motor sobresselente imediatamente disponível devido a uma escassez mundial de motores, o motor defeituoso só pôde ser substituído em 5 de julho de 2018, pelo que o avião entrou em funcionamento em 7 de julho seguinte.

9        Neste contexto, essa transportadora efetuou o voo previsto para 2 de julho de 2018 nesse mesmo dia, não com o avião inicialmente previsto, mas através de um avião de substituição, com um atraso à chegada de mais de três horas em relação à hora de chegada inicialmente prevista.

10      Em 18 de julho de 2018, J. D. cedeu o seu crédito resultante do atraso considerável à chegada do voo à demandante no processo principal.

11      Face à recusa da transportadora aérea em causa no processo principal de proceder ao pagamento da indemnização no montante de 600 euros, prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 261/2004, com o fundamento de que o atraso à chegada do voo em causa tinha origem na deteção do defeito de conceção do motor do aparelho e que tinha tomado todas as medidas possíveis para mitigar qualquer contratempo que afetava o voo previsto, a demandante no processo principal recorreu para o Sąd Rejonowy dla m. st. Warszawy w Warszawie (Tribunal de Primeira Instância de Varsóvia, Polónia), em 29 de março de 2019.

12      Por Decisão de 3 de dezembro de 2021, esse órgão jurisdicional de primeira instância declarou que o defeito de conceção do motor detetado durante a inspeção de emergência de 28 de junho de 2018 constituía uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, e que a transportadora aérea em causa no processo principal tinha tomado todas as medidas razoáveis possíveis para preparar um avião de substituição para efetuar o voo.

13      A demandante no processo principal interpôs recurso dessa decisão no Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia, Polónia), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

14      Embora esse órgão jurisdicional parta da premissa de que o motivo do atraso do voo em causa reside na existência de um defeito de conceção do motor, que foi detetado em 28 de junho de 2018 durante uma inspeção de emergência do avião em causa, esse órgão jurisdicional tem duas dúvidas.

15      Em primeiro lugar, interroga‑se sobre a questão de saber se o defeito de conceção do motor, que foi revelado pelo fabricante do motor à transportadora aérea em causa em abril de 2018 mediante a comunicação de uma diretriz e de um boletim que impunham um certo número de restrições à utilização do avião, pode estar abrangido pelo conceito de «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771), de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618), e de 12 de março de 2020, Finnair (C‑832/18, EU:C:2020:204), apesar de a ocorrência desse defeito se ter tornado previsível.

16      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas de que o defeito de conceção do motor ocorreria necessariamente, uma vez que as inspeções realizadas nos diferentes aparelhos não tinham revelado fissuras na base da alheta. Também sublinha o facto de o fabricante do motor não ter recomendado a imobilização imediata de todos os aviões nem ter indicado que estes não podiam voar.

17      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio também observa que as transportadoras aéreas devem cumprir os procedimentos técnicos e administrativos que são particularmente rigorosos. Assim, uma transportadora aérea não pode alegar, em princípio, que não tem nenhum controlo sobre a ocorrência de problemas técnicos que afetem os aviões, seja qual for a causa, uma vez que deve seguir todos os procedimentos adequados ou tomar todas as medidas necessárias, possíveis e razoáveis para impedir a ocorrência de um evento suscetível de causar um atraso ou um cancelamento de voo.

18      Ora, no caso em apreço, tais procedimentos foram respeitados e a transportadora aérea seguiu as recomendações do fabricante do motor ao efetuar as inspeções na medida e com a frequência indicadas. Assim, pode sustentar‑se que essas inspeções são inerentes ao regular exercício da atividade da transportadora. A aplicação destes procedimentos não significa, no entanto, que a transportadora aérea disponha do controlo efetivo da descoberta do defeito oculto de conceção que afeta o motor do avião em causa.

19      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação do conceito de «todas as medidas razoáveis», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, que podem ser esperadas de uma transportadora aérea quando esta é confrontada com a ocorrência de «circunstâncias extraordinárias». Com efeito, segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma vez que nem todas as circunstâncias extraordinárias dispensam de responsabilidade, incumbe ainda à transportadora aérea que pretende invocá‑las provar que não poderiam, em todo o caso, ter sido evitadas através de medidas adaptadas à situação, a saber, através de medidas que, no momento em que ocorrem essas circunstâncias, respondem a condições técnica e economicamente suportáveis para esta. Não se pode exigir à referida transportadora que consinta na realização de sacrifícios insuportáveis face às suas capacidades.

20      Neste contexto, esse órgão jurisdicional interroga‑se, em substância, sobre o nível das «medidas razoáveis» de natureza preventiva que se pode esperar de uma transportadora aérea numa situação em que a deteção de um defeito de conceção oculto, que afeta um dos seus aparelhos, permanece incerta. Mais concretamente, embora o órgão jurisdicional duvide de que se possa exigir dessa transportadora aérea, a título dessas «medidas razoáveis» de natureza preventiva, que substitua o motor antes da deteção efetiva do defeito de conceção ou que imobilize o aparelho até à resolução do defeito de conceção do motor pelo fabricante do motor, não exclui que se possa esperar que a referida transportadora aérea elabore um plano para dispor de uma frota de aparelhos «de reserva», com uma tripulação completa que possa efetuar os voos programados em caso de ocorrência de circunstâncias extraordinárias.

21      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, desde abril de 2018, a transportadora aérea em causa só contactou oito transportadoras para fretar um avião de substituição, o que é insuficiente na perspetiva da demandante no processo principal, que alega que a transportadora aérea em causa no processo principal não contactou outras 18 transportadoras aéreas, incluindo as que praticam wet lease, a saber, o fretamento de aviões com tripulação. Além disso, a demandante no processo principal observa que as diligências efetuadas por essa transportadora para fretar um aparelho de substituição tinham ocorrido em setembro de 2018, o que demonstra a reação tardia da referida transportadora à provável ocorrência de um defeito de conceção que afeta o motor de um dos seus aparelhos.

22      Nestas condições, o Sąd Okręgowy w Warszawie (Tribunal Regional de Varsóvia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um defeito de [conceção] no motor de um avião, revelado pelo fabricante, constitui uma “circunstância extraordinária” e está abrangido pelo conceito de “falhas inesperadas” na aceção dos considerandos 14 e 15 do Regulamento [n.o 261/2004], se a transportadora já tinha conhecimento desse possível defeito de [conceção] alguns meses antes do voo?

2)      Se o defeito de [conceção] no motor referido [na primeira questão] constituir uma “circunstância extraordinária” na aceção dos considerandos 14 e 15 do Regulamento [n.o 261/2004], no âmbito da tomada de “todas as medidas razoáveis” referidas no considerando 14 e no artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, há que esperar da transportadora aérea que, tendo em conta a provável revelação de um defeito de [conceção] no motor do avião, tome medidas preventivas para assegurar a disponibilidade de aviões de substituição, na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, para ser exonerada da sua obrigação de pagar a indemnização prevista no artigo 5.o, n.o 1, alínea c), e no artigo 7.o, n.o 1, desse regulamento?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

23      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que a deteção de um defeito de conceção oculto do motor de um avião que deva efetuar um voo está abrangida pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, mesmo quando a transportadora aérea tenha sido informada da existência de um defeito desse tipo pelo fabricante do motor vários meses antes do voo em causa.

24      Antes de mais, há que recordar que os passageiros de voos atrasados podem ser equiparados aos passageiros de voos cancelados, para efeitos da aplicação do direito a indemnização, e de que esses passageiros podem, assim, invocar o direito a indemnização previsto no artigo 7.o desse regulamento, quando o tempo que perderam por causa de um voo atrasado seja igual ou superior a três horas, a saber, quando cheguem ao seu destino final três horas ou mais após a hora de chegada inicialmente prevista pela transportadora aérea (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2009, Sturgeon e o., C‑402/07 e C‑432/07, EU:C:2009:716, n.o 69).

25      O artigo 5.o, n.o 3, do referido regulamento, lido à luz dos considerandos 14 e 15 deste último, isenta a transportadora aérea dessa obrigação de indemnização se puder provar que o cancelamento ou o atraso considerável à chegada se ficou a dever a «circunstâncias extraordinárias» que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis e, caso tais circunstâncias se verifiquem, que adotou as medidas adaptadas à situação, mobilizando todos os recursos humanos, materiais e financeiros de que dispunha, a fim de evitar que esta levasse ao cancelamento do voo em causa (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 22 e jurisprudência referida).

26      Uma vez que este artigo 5.o, n.o 3, constitui uma derrogação ao princípio do direito a indemnização dos passageiros, e atendendo ao objetivo prosseguido pelo Regulamento n.o 261/2004, que, como decorre do seu considerando 1, é garantir um elevado nível de proteção dos passageiros, o conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do referido artigo 5.o, n.o 3, deve ser objeto de interpretação estrita (v., neste sentido, Acórdão de 17 de abril de 2018, Krüsemann e o., C‑195/17, C‑197/17 a C‑203/17, C‑226/17, C‑228/17, C‑254/17, C‑274/17, C‑275/17, C‑278/17 a C‑286/17 e C‑290/17 a C‑292/17, EU:C:2018:258, n.o 36 e jurisprudência referida).

27      A este respeito, há que recordar que o conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, designa acontecimentos que, devido à sua natureza ou à sua origem, não são inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e escapam ao controlo efetivo desta, sendo estes dois requisitos cumulativos e devendo a sua observância ser objeto de apreciação caso a caso (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 23 e jurisprudência referida).

28      Assim, salvo se preencherem os dois requisitos cumulativos recordados no número anterior, as falhas técnicas não constituem, enquanto tais, «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 (v., neste sentido, acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 25, e de 12 de março de 2020, Finnair, C‑832/18, EU:C:2020:204, n.o 39).

29      É neste contexto que há que apreciar se a deteção de um defeito de conceção oculto do motor de uma aeronave que causa um atraso considerável à chegada de um voo, e apesar de a transportadora aérea ter sido informada da existência de um defeito desse tipo pelo fabricante de motor vários meses antes desse voo, é suscetível de constituir uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004.

30      Em primeiro lugar, há que determinar se um defeito de conceção oculto com as características mencionadas no número anterior é suscetível de constituir, pela sua natureza ou pela sua origem, um acontecimento que não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea.

31      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que, tendo em conta as condições específicas em que é efetuado o transporte aéreo e o grau de sofisticação tecnológica dos aparelhos, uma vez que o funcionamento dos aviões revela inevitavelmente problemas técnicos, avarias ou a falha prematura e inesperada de certas peças de uma aeronave, as transportadoras aéreas são habitualmente confrontadas, no âmbito da sua atividade, com tais problemas (v., neste sentido, Acórdão de 4 de abril de 2019, Germanwings, C‑501/17, EU:C:2019:288, n.o 22 e jurisprudência referida).

32      Daqui decorre que a resolução de um problema técnico proveniente de uma avaria, de uma falta de manutenção de um aparelho ou ainda de uma falha prematura e inesperada de certas peças de uma aeronave é considerada inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 25; de 17 de setembro de 2015, van der Lans, C‑257/14, EU:C:2015:618, n.os 41 e 42; e de 12 de março de 2020, Finnair, C‑832/18, EU:C:2020:204, n.o 41).

33      Todavia, não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e, portanto, é suscetível de estar abrangida pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias» a falha técnica em relação à qual o construtor dos aparelhos da frota da transportadora aérea em causa ou uma autoridade competente revela, após a entrada em serviço dos aparelhos, que os mesmos têm um defeito de fabrico oculto que afeta a segurança dos voos (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 26), e de 17 de setembro de 2015, van der Lans, C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 38).

34      No caso vertente, como resulta da decisão de reenvio, está demonstrado que o avião inicialmente previsto para operar o voo atrasado tinha um defeito de conceção oculto relativo a todos os motores do mesmo tipo e que afeta a segurança do voo, defeito que foi revelado pelo fabricante do motor alguns meses antes da sua deteção no aparelho em causa. Tal acontecimento não é, em conformidade com a jurisprudência referida no número anterior, inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea.

35      Em segundo lugar, há que apreciar se a deteção de um defeito de conceção oculto do motor com as características mencionadas no n.o 29 do presente acórdão deve ser considerada um acontecimento que escapa inteiramente ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa, a saber como um acontecimento sobre o qual a transportadora aérea não tem nenhum controlo (v., neste sentido, Acórdão de 23 de março de 2021, Airhelp, C‑28/20, EU:C:2021:226, n.o 36).

36      É verdade que, por princípio, a falha técnica ou a avaria não escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea, uma vez que a prevenção ou a reparação dessas falhas e avarias fazem parte da responsabilidade que incumbe a esta transportadora aérea de assegurar a manutenção e o bom funcionamento da aeronave que explora para fins económicos (Acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans, C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 43). No entanto, a situação é diferente no caso de um defeito de conceção oculto do motor de uma aeronave.

37      Com efeito, por um lado, embora incumba à transportadora aérea assegurar a manutenção e o bom funcionamento da aeronave que explora para fins económicos, é legítimo duvidar de que, na hipótese de um defeito de conceção oculto só ser revelado pelo construtor da aeronave em causa ou pelo fabricante do motor ou, ainda, pela autoridade competente após a entrada em serviço dessa aeronave, essa transportadora dispõe efetivamente da competência para identificar e resolver esse defeito, pelo que não se pode considerar que exerce um controlo quanto à ocorrência desse defeito.

38      Por outro lado, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, que os acontecimentos cuja origem é «interna» devem ser distinguidos daqueles cuja origem é «externa» à transportadora aérea operadora, sendo que apenas estes últimos podem escapar ao controlo efetivo dessa transportadora. Estão abrangidos por este conceito de «acontecimentos de origem externa» os resultantes da atividade da transportadora aérea e de circunstâncias externas, mais ou menos frequentes na prática mas que a transportadora aérea não controla, porque têm por origem um facto de um terceiro, como outra transportadora aérea ou um ator público ou privado que interfere na atividade aérea ou aeroportuária [Acórdão de 7 de julho de 2022, SATA International — Azores Airlines (Falha do sistema de abastecimento de combustível), C‑308/21, EU:C:2022:533, n.o 25 e jurisprudência referida].

39      Por conseguinte, no caso vertente, há que determinar se a comunicação ou o reconhecimento pelo fabricante do motor da existência de um defeito oculto de conceção do motor de um aparelho e que possa afetar a segurança de um voo, previamente ao voo atrasado em causa, é suscetível de constituir um ato de um terceiro que interfere na atividade aérea da transportadora e, portanto, de constituir um acontecimento de origem externa.

40      A este respeito, há que precisar que não decorre da jurisprudência referida nos n.os 33 e 38 do presente acórdão que o Tribunal de Justiça tenha submetido a qualificação de «circunstâncias extraordinárias» de um defeito de conceção oculto à condição de o construtor do avião, o fabricante do motor ou a autoridade competente ter revelado a existência desse defeito antes da ocorrência da falha técnica causada pelo referido defeito. Com efeito, o momento em que é revelado o nexo entre a falha técnica e o defeito de conceção oculto pelo construtor do avião, pelo fabricante do motor ou pela autoridade competente não tem relevância, uma vez que esse defeito de conceção oculto existia no momento do cancelamento ou do atraso considerável do voo e que a transportadora não dispunha de nenhum meio de controlo para o resolver.

41      O facto de qualificar uma situação, como a que está em causa no processo principal, de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, é conforme com o objetivo de garantir um nível elevado de proteção dos passageiros aéreos, como se especifica no considerando 1 deste regulamento. Com efeito, esse objetivo implica que não se incentive as transportadoras aéreas a não tomar as medidas exigidas por esse incidente fazendo prevalecer a manutenção e a pontualidade dos seus voos sobre o objetivo da segurança destes últimos (v., por analogia, Acórdãos de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška, C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 25, e de 4 de abril de 2019, Germanwings, C‑501/17, EU:C:2019:288, n.o 28).

42      Tendo em conta os motivos precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que a deteção de um defeito de conceção oculto do motor de um avião que deva efetuar um voo está abrangida pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, mesmo quando a transportadora aérea tenha sido informada da existência de um defeito desse tipo pelo fabricante do motor vários meses antes do voo em causa.

 Quanto à segunda questão

43      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que uma transportadora aérea deve, a título de «todas as medidas razoáveis» que deve tomar para evitar a ocorrência e as consequências de uma «circunstância extraordinária», na aceção desta disposição, como a deteção de um defeito oculto de conceção do motor de um dos seus aparelhos, adotar uma medida preventiva que consiste em manter de reserva uma frota de aeronaves de substituição.

44      Como foi recordado no n.o 25 do presente acórdão, em caso de ocorrência de uma «circunstância extraordinária», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, a transportadora só está isenta da sua obrigação de indemnização dos passageiros, nos termos do artigo 7.o deste regulamento, se estiver em condições de provar que adotou as medidas adaptadas à situação, a saber, as medidas que, no momento em que ocorreram essas «circunstâncias extraordinárias», respondiam, nomeadamente, às condições técnica e economicamente suportáveis para esta (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 40, e de 4 de abril de 2019, Germanwings, C‑501/17, EU:C:2019:288, n.o 31).

45      Essa transportadora aérea deve provar que, mesmo que tivesse mobilizado todos os recursos humanos, materiais e financeiros de que dispunha, não poderia, manifestamente, ter evitado que as circunstâncias extraordinárias com que foi confrontada levassem ao cancelamento ou a um atraso considerável do voo, a não ser à custa de sacrifícios insuportáveis face às capacidades da sua empresa no momento relevante (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 41, e de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška, C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 29).

46      Deste modo, o Tribunal de Justiça adotou um conceito individualizado e flexível de «medida razoável», deixando ao órgão jurisdicional nacional a tarefa de apreciar se, nas circunstâncias do caso concreto, se pode considerar que a transportadora aérea tinha tomado as medidas adaptadas à situação, a saber, medidas que eram técnica e economicamente viáveis para essa transportadora aérea no momento em que ocorreram as circunstâncias extraordinárias (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 42; de 12 de maio de 2011, Eglītis e Ratnieks, C‑294/10, EU:C:2011:303, n.o 30; e de 4 de maio de 2017, Pešková e Peška, C‑315/15, EU:C:2017:342, n.o 30).

47      Daqui decorre que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 não pode ser interpretado no sentido de que impõe, de maneira geral e indiferenciada, à transportadora aérea, a título das «medidas razoáveis» referidas nesta disposição, a adoção de uma determinada medida preventiva, como a que consiste em manter de reserva uma frota de aeronaves de substituição e a tripulação correspondente, quando é informada da existência de um defeito de conceção do motor revelado pelo fabricante do motor, a fim de obviar à ocorrência de circunstâncias extraordinárias e às respetivas consequências.

48      Ainda assim, para apreciar se a transportadora aérea tomou «todas as medidas razoáveis», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio proceder a uma apreciação global que tenha em conta, por um lado, todas as medidas tomadas pela transportadora aérea desde o dia em que tomou conhecimento da existência de um defeito de fabrico do motor revelado pelo fabricante desse motor em comparação com todas as medidas que podia ter tomado para se precaver contra a ocorrência de tal circunstância extraordinária num dos seus aparelhos e, por outro lado, as diligências efetuadas por essa transportadora na sequência da deteção desse defeito num dos motores do aparelho em causa para evitar o cancelamento ou o atraso considerável do voo em causa.

49      A este respeito, importa recordar que o cumprimento das regras mínimas de manutenção de uma aeronave não basta, por si só, para provar que uma transportadora aérea tomou «todas as medidas razoáveis», na aceção desta disposição (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann, C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 43).

50      Neste contexto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz dos meios financeiros, materiais e humanos da transportadora aérea, se esta estava em condições de fretar aeronaves em reforço segundo as diferentes modalidades existentes, a saber, dry lease/wet lease, ou se podia, tendo em conta os seus próprios meios, substituir preventivamente o motor no âmbito de um plano de reparação ou imobilizar o avião até à reparação ou substituição do motor pelo fabricante. Para este efeito, o referido órgão jurisdicional deve tomar em consideração o reduzido número de motores de substituição disponíveis num contexto de escassez mundial de motores, bem como o tempo necessário para a montagem do novo motor a partir da verificação do defeito de conceção.

51      Por último, no âmbito desta análise global, importa ainda salientar que nada se opõe, em princípio, a que uma transportadora aérea, que é informada da existência de um defeito de conceção do motor e da sua eventual verificação num dos aviões que explora, deva manter de reserva, como medida preventiva, uma frota de aeronaves de substituição com a tripulação correspondente, se essa medida for técnica, económica e humanamente suportável para esta, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar.

52      Em contrapartida, está excluído considerar, de entre todas as «medidas razoáveis» que se possa esperar de uma transportadora aérea, a medida constante da proposta apresentada pela D. nas suas observações escritas, que consiste em impor a uma transportadora aérea que automaticamente redimensione a sua rede de voos proporcionalmente à sua capacidade operacional. Com efeito, tal medida pode consistir, na fase da planificação dos voos, no cancelamento ou no atraso considerável de inúmeros voos devido à ocorrência hipotética de um defeito de conceção, o que é suscetível de exigir à transportadora que consinta em sacrifícios insuportáveis em relação às capacidades da sua empresa.

53      Tendo em conta os motivos precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que uma transportadora aérea pode, a título de «todas as medidas razoáveis» que deve tomar para evitar a ocorrência e as consequências de uma «circunstância extraordinária», na aceção desta disposição, como a deteção de um defeito oculto na conceção do motor de um dos seus aparelhos, adotar uma medida preventiva que consiste em manter de reserva uma frota de aeronaves de substituição, desde que essa medida continue técnica e economicamente viável face às capacidades da transportadora no momento relevante.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:

1)      O artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91,

deve ser interpretado no sentido de que:

a deteção de um defeito de conceção oculto do motor de um avião que deva efetuar um voo está abrangida pelo conceito de «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, mesmo quando a transportadora aérea tenha sido informada da existência de um defeito desse tipo pelo fabricante do motor vários meses antes do voo em causa.

2)      O artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004

deve ser interpretado no sentido de que:

uma transportadora aérea pode, a título de «todas as medidas razoáveis» que deve tomar para evitar a ocorrência e as consequências de uma «circunstância extraordinária», na aceção desta disposição, como a deteção de um defeito oculto na conceção do motor de um dos seus aparelhos, adotar uma medida preventiva que consiste em manter de reserva uma frota de aeronaves de substituição, desde que essa medida continue técnica e economicamente viável face às capacidades da transportadora no momento relevante.

Assinaturas


*      Língua do processo: polaco.