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Processo T54/21

(publicação por excertos)

OHB System AG

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Sexta Secção) de 26 de abril de 2023

«Contratos públicos de serviços — Processo de concurso — Diálogo concorrencial — Fornecimento de satélites de transição Galileo — Rejeição da proposta de um proponente — Critérios de exclusão — Falta grave de um proponente em matéria profissional — Inexistência de sentença transitada em julgado ou de decisão administrativa definitiva — Recurso à instância referida no artigo 143.° do Regulamento Financeiro — Igualdade de tratamento — Proposta anormalmente baixa — Erro manifesto de apreciação»

1.      Recurso de anulação — Fundamentos — Falta de fundamentação ou fundamentação insuficiente — Fundamento de conhecimento oficioso — Invocação extemporânea pelo recorrente — Irrelevância

(Artigos 263.° e 296.° TFUE)

(cf. n.° 35)

2.      Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Decisão de não selecionar uma proposta no âmbito do procedimento de adjudicação de um contrato público — Obrigação de comunicar, na sequência de um pedido escrito, as características e as vantagens relativas da proposta selecionada e o nome do adjudicatário — Obrigação de a entidade adjudicante fornecer uma análise comparativa minuciosa da proposta selecionada e da proposta do proponente preterido — Inexistência — Obrigação de comunicar o relatório do comité de avaliação — Inexistência — Fundamentação suficiente

[Regulamento 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 170.°, n.° 3, alínea a)]

(cf. n.os 41‑45, 210, 211, 213)

3.      Contratos públicos da União Europeia — Procedimento de concurso — Adjudicação dos contratos — Exclusão dos proponentes por falta grave em matéria profissional — Inexistência de sentença transitada em julgado ou de decisão administrativa definitiva — Obrigação de recurso à instância referida no artigo 143.° do Regulamento Financeiro — Obrigação de investigar as alegações contra o proponente — Pressupostos — Factos ou resultados suscetíveis de constituir indícios suficientes para estabelecer uma presunção de culpabilidade do proponente — Inclusão

(Regulamento 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 135.°, n.° 1, 2, parágrafos 2 e 4, 136.°, n.os 1 e 2, 1.° parágrafo, e 143.°)

(cf. n.os 73‑79, 84, 91, 96)

4.      Contratos públicos da União Europeia — Processo de concurso — Obrigação de respeitar o princípio da igualdade de tratamento dos proponentes — Necessidade de garantir a igualdade de oportunidades e de dar cumprimento ao princípio da transparência — Alcance

(Regulamento 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 160.°, n.° 1)

(cf. n.os 104, 105)

5.      Contratos públicos da União Europeia — Celebração de um contrato mediante concurso — Proposta anormalmente baixa — Obrigação de a entidade adjudicante ouvir o proponente — Exame pela entidade adjudicante do caráter anormalmente baixo da proposta — Elementos a ter em consideração

(Regulamento 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, anexo I)

(cf. n.os 116‑120)

6.      Recurso de anulação — Fundamentos — Recurso de uma decisão que rejeita a proposta de um proponente no âmbito de uma adjudicação de um contrato público por uma instituição da União — Fundamento relativo a um erro manifesto de apreciação da entidade adjudicante — Ónus da prova do recorrente

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.° 140)

Resumo

Programa Galileo: é negado provimento ao recurso da OHB System que tem por objeto a adjudicação do contrato dos satélites de transição à Thales Alenia Space Italia e à Airbus Defence & Space

Segundo o Tribunal Geral, a Comissão não estava obrigada a investigar mais a fundo as acusações da OHB System formuladas contra a Airbus Defence & Space

Por anúncio de concurso de 15 de maio de 2018 (1), a Agência Espacial Europeia (ESA), agindo em nome e por conta da Comissão, lançou um concurso para o fornecimento de satélites de transição no contexto do programa Galileo, que visa criar e explorar um sistema europeu de navegação e de posicionamento por satélite concebido para fins civis. Este procedimento foi lançado sob a forma de diálogo concorrencial, uma vez que a Comissão já tinha identificado e definido as suas necessidades, mas não tinha ainda definido os meios precisos mais adequados para lhes dar resposta. A ESA foi encarregada de organizar o procedimento de concurso, ao passo que a Comissão continuava a ser a entidade adjudicante (2). Foi decidido que poderiam ser selecionados dois adjudicatários e que a adjudicação do contrato se basearia na proposta economicamente mais vantajosa.

No termo da primeira fase do diálogo concorrencial, que convidava a apresentar um pedido de participação, a ESA selecionou três proponentes, a saber, a OHB System AG, ora recorrente, a Airbus Defence and Space GmbH (ADS) e a Thales Alenia Space Italia (TASI). Após a segunda fase, que visava identificar e definir os meios adequados para preencher as necessidades da entidade adjudicante, e a terceira fase, no decurso da qual a ESA convidou os proponentes a apresentarem a sua «proposta final», as propostas finais foram avaliadas por um comité de avaliação que apresentou os seus resultados num relatório de avaliação. Com base neste relatório, a Comissão decidiu não selecionar a proposta da recorrente e adjudicar o contrato à TASI e à ADS (a seguir «decisões recorridas»), que foram comunicadas à recorrente por ofício de 19 de janeiro de 2021.

Antes da adoção das decisões recorridas, a recorrente, por carta de 23 de dezembro de 2020, informou a Comissão e a ESA de que um dos seus antigos empregados, diretor-geral administrativo, que teve acesso alargado aos dados do projeto e participou na preparação da sua proposta, foi contratado pela ADS em dezembro de 2019. A recorrente alegou que existiam indícios de que esse antigo empregado tinha obtido informações sensíveis e que tinha sido aberto um inquérito penal nacional no seguimento de uma queixa apresentada contra esse antigo empregado. A recorrente pediu por conseguinte à Comissão que suspendesse o diálogo concorrencial controvertido, que investigasse esta questão e que, sendo caso disso, excluísse a ADS desse diálogo. Por ofício de 20 de janeiro de 2021, a Comissão informou a recorrente de que não havia motivos suficientes para justificar semelhante suspensão e que, sendo as alegações objeto de um inquérito que estava a ser levado a cabo pelas autoridades nacionais, não havendo sentença transitada em julgado nem decisão administrativa definitiva sobre essas alegações, não havia razão para excluir a ADS do diálogo concorrencial controvertido.

Decidindo no âmbito de um recurso de anulação que tem por objeto as decisões recorridas, ao qual nega integralmente provimento, o Tribunal Geral apresenta nomeadamente precisões quanto à aplicação dos critérios de exclusão de um proponente e ao recurso à instância nos termos do Regulamento Financeiro de 2018 (3). Faz o mesmo quanto à obrigação de verificar a composição de uma proposta que seja considerada anormalmente baixa e quanto à autonomia da decisão de adjudicação, nos casos em que a entidade adjudicante se limita a fazer sua a fundamentação do relatório de avaliação.

Apreciação do Tribunal Geral

Em primeiro lugar, o Tribunal Geral julga improcedente a acusação relativa a uma pretensa violação dos critérios de exclusão de um proponente previstos no Regulamento Financeiro de 2018.

A título preliminar, o Tribunal lembra que uma entidade adjudicante exclui um proponente da participação num procedimento de concurso quando este se encontre numa ou em algumas das situações correspondentes aos três critérios de exclusão previstos no Regulamento Financeiro de 2018.

No presente caso, o Tribunal observa que, não existindo, no momento do diálogo concorrencial, uma sentença transitada em julgado ou uma decisão administrativa definitiva que dê por provado que o proponente em causa ou uma pessoa singular ou coletiva, membro do órgão de administração, de direção ou de fiscalização desse proponente ou que dele tenha poderes de representação, decisão ou fiscalização, cometeu uma falta grave em matéria profissional, os dois primeiros critérios não são aplicáveis. Por força do terceiro critério de exclusão, único critério suscetível de ser aplicado ao presente caso, não existindo uma sentença transitada em julgado ou uma decisão administrativa definitiva, a entidade adjudicante só pode tomar uma decisão de excluir um proponente de um procedimento de concurso com base numa qualificação preliminar (4), e apenas depois de ter obtido uma recomendação da instância referida no artigo 143.º do Regulamento Financeiro de 2018, nos termos da qual se determine, atendendo aos factos e aos resultados apurados, que o proponente cometeu uma falta grave em matéria profissional.

O Tribunal começa por examinar se, por não ter recorrido a essa instância no presente caso, a Comissão incumpriu as suas obrigações em violação do terceiro critério de exclusão.

A este respeito, o Tribunal refere que a proteção dos interesses financeiros da União é a finalidade subjacente ao recurso à instância e que a qualificação jurídica preliminar, que cabe exclusivamente à instância, tem por objeto, por um lado, necessariamente as condutas dos próprios proponentes e, por outro, factos ou resultados apurados, em substância, no âmbito de auditorias ou de inquéritos levados a cabo pelas autoridades competentes da União ou, sendo caso disso, dos Estados-Membros. Daqui, o Tribunal conclui que a entidade adjudicante só deve recorrer à instância quando os factos apurados de que dispõe constituam indícios, e não meras suspeitas, suficientes para sustentar uma presunção de culpabilidade do proponente. Ora, no presente caso, o Tribunal verifica que, primeiro, a carta de 23 de dezembro de 2020 era o único elemento de que a Comissão dispunha relativamente a um pretenso comportamento faltoso da ADS. Segundo, as alegações que a recorrente formulou nessa carta não faziam parte de factos e dos resultados apurados no âmbito de auditorias ou de inquéritos levados a cabo pelas autoridades competentes da União ou pelos Estados-Membros. Terceiro, essa carta não foi acompanhada de nenhum elemento de prova suscetível de sustentar essas acusações. Quarto, as acusações formuladas não diziam respeito à conduta da ADS, mas ao pretenso comportamento do antigo empregado da recorrente.

Daqui o Tribunal conclui que essas acusações não podiam ser consideradas factos ou resultados apurados suscetíveis de constituir indícios suficientes para sustentar uma presunção de culpabilidade da ADS que justificasse recorrer à instância.

Tendo chegado a esta conclusão, o Tribunal verifica se a Comissão estava, ainda assim, obrigada a investigar essas acusações. A este respeito, o Tribunal refere que o único comportamento imputado à ADS era o facto de esta ter contratado, durante o procedimento de concurso em causa, um antigo empregado da recorrente. Ora, em princípio, este facto não constitui, só por si, um indício de um comportamento suscetível de constituir uma falta grave em matéria profissional.

Do mesmo modo, no que se refere à acusação da recorrente de que o seu antigo empregado violou os segredos comerciais, na medida em que obteve ilegalmente informações sensíveis que lhe diziam respeito, suscetíveis de conferir à ADS uma vantagem indevida no diálogo concorrencial controvertido, o Tribunal considera que essa violação, de qualquer forma, não constitui um indício de uma conduta da própria ADS e não é, portanto, suscetível de estabelecer uma presunção de culpabilidade desta. Quanto ao restante, não havendo argumentos e elementos concretos apresentados pela recorrente na sua carta de dezembro de 2020, o Tribunal verifica que a acusação de obtenção de informações sensíveis, suscetíveis de terem conferido uma vantagem indevida à ADS, era vaga e hipotética, pelo que não pode constituir um indício. De resto, o Tribunal refere que o antigo empregado deixou de estar ao serviço da recorrente pouco depois de ter sido apresentada a sua proposta revista no âmbito da segunda fase do diálogo concorrencial, pelo que, de qualquer forma, não podia ter informações sobre o diálogo que decorreu entre a recorrente e a ESA na terceira fase, nem sobre o conteúdo da proposta final da recorrente.

Por conseguinte, não sendo as acusações contidas na carta de dezembro de 2020 suscetíveis de constituir indícios suficientes para estabelecer uma presunção de culpabilidade da ADS que justificasse o recurso à instância, a Comissão não tinha que investigar essas acusações.

Em segundo lugar, o Tribunal rejeita a acusação respeitante à violação das obrigações relativas ao exame das propostas anormalmente baixas. Lembra que, por força das disposições do Regulamento Financeiro de 2018, a apreciação efetuada pela entidade adjudicante quanto à existência de propostas anormalmente baixas, conceito analisado relativamente à composição da proposta e à prestação em causa, é feita em dois momentos (5). Num primeiro momento, a entidade adjudicante deve verificar se as propostas apresentadas contêm um indício suscetível de levantar a suspeita de que podem ser anormalmente baixas. É o que sucede nomeadamente se se revelar incerto, por um lado, que a proposta respeita a legislação em vigor e, por outro, que o preço proposto integra todos os custos induzidos pelos aspetos técnicos da proposta. Sucede o mesmo quando o preço proposto é consideravelmente inferior aos dos das outras propostas ou ao preço habitual do mercado. Num segundo momento, se tais indícios existirem, a entidade adjudicante deve proceder à verificação da composição da proposta, dando ao proponente em causa possibilidade de justificar o seu preço. Se, não obstante as explicações dadas, a entidade adjudicante determinar que a proposta apresenta um caráter anormalmente baixo, deve rejeitá-la.

No caso em apreço, o Tribunal verifica que a diferença entre o preço da proposta final da ADS e o preço das outras propostas não pode constituir, por si só, um indício do seu caráter anormalmente baixo, tendo em conta as especificidades do contrato em causa. Por um lado, o procedimento de concurso foi lançado sob a forma de diálogo concorrencial porque a Comissão ainda não tinha definido os meios específicos par dar resposta às suas necessidades. Assim, os preços das propostas dependiam das diferentes soluções e dos diferentes meios técnicos propostos por cada proponente. Por outro lado, resulta das características específicas dos satélites em causa que estes não são bens para os quais exista um preço padrão ou um preço de mercado. Além disso, para além da diferença de preços, a recorrente não apresentou nenhum argumento concreto em apoio da sua alegação de que a proposta da ADS devia ter-se revelado anormalmente baixa.

Daqui o Tribunal conclui que não se demonstrou que existiam indícios suscetíveis de levantar a suspeita por parte da Comissão de que a proposta da ADS podia ser anormalmente baixa. Por conseguinte, a Comissão não estava obrigada a proceder a uma verificação da composição da proposta da ADS para se assegurar de que não era anormalmente baixa.

Em terceiro lugar, o Tribunal rejeita a acusação de que, por se ter limitado a confirmar os resultados que constam do relatório de avaliação, a Comissão violou a sua obrigação de adotar uma decisão autónoma a respeito da adjudicação do contrato.

Por um lado, é certo que a Comissão assume a responsabilidade geral pelo programa Galileo e, na fase de implantação do programa, deve celebrar um acordo de delegação com a ESA que especifique as funções desta última, nomeadamente no que respeita à celebração dos contratos relativos ao sistema. Foi precisamente no âmbito do acordo de delegação celebrado entre a Comissão e a ESA que esta, agindo em nome e por conta da Comissão, estava encarregada de organizar o diálogo concorrencial controvertido, ao passo que a Comissão continuava a ser a entidade adjudicante. Contudo, a responsabilidade pelo programa Galileo não pode alterar, ou inclusivamente aumentar, as obrigações da Comissão enquanto entidade adjudicante.

Por outro lado, nos casos em que a entidade adjudicante tenha nomeado um comité de avaliação, de acordo com o Regulamento Financeiro de 2018, é a esse comité que cabe fazer a avaliação das propostas no seu relatório de avaliação. Embora a entidade adjudicante não esteja vinculada por esse relatório, pode basear-se nele para adjudicar o contrato em causa. Por conseguinte, o facto de as decisões recorridas terem sido fundamentadas através de uma remissão para o relatório de avaliação, tendo a Comissão feito sua a opinião do comité de avaliação encarregado de avaliar as propostas apresentadas, em nada altera o facto de terem sido adotadas de forma autónoma.


1      Anúncio de concurso publicado no Suplemento do Jornal Oficial da União Europeia de 15 de maio de 2018 (JO 2018/S 091-206089).


2      De acordo com o artigo 15.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.° 1285/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013, relativo à implantação e à exploração dos sistemas europeus de navegação por satélite e que revoga o Regulamento (CE) n.° 876/2002 do Conselho e o Regulamento (CE) n.° 683/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2013, L 347, p. 1), a Comissão tinha celebrado um acordo de delegação com a ESA para a fase de implantação do programa Galileo.


3.      Regulamento (UE, Euratom) 2018/1046 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de julho de 2018, relativo às disposições financeiras aplicáveis ao orçamento geral da União, que altera os Regulamentos (UE) n.º 1296/2013, (UE) n.º 1301/2013, (UE) n.º 1303/2013, UE n.º 1304/2013, (UE) n.º 1309/2013, (UE) n.º 1316/2013, (UE) n.º 223/2014 e (UE) n.º 283/2014, e a Decisão n.º 541/2014/UE, e revoga o Regulamento (UE, Euratom) n.º 966/2012 (JO 2018, L 193, p. 1), mais precisamente nos termos dos artigos 136.º e 145.º deste regulamento.


4      Na aceção do artigo 136.º, n.º 2, do Regulamento Financeiro de 2018.


5      Anexo I, capítulo 1, secção 2, pontos 23.1, primeiro parágrafo, e ponto 23.2 do Regulamento Financeiro de 2018.