Language of document : ECLI:EU:C:2024:436

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

30 de maio de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 2011/83/UE — Artigo 8.o, n.o 2 — Contratos celebrados à distância por via eletrónica — Obrigações de informação que impendem sobre o profissional — Encomenda que implica uma obrigação de pagamento — Encomenda realizada através da ativação de um botão ou uma função semelhante num sítio Internet — Obrigação do profissional de apor nesse botão ou nessa função semelhante a expressão “encomenda com obrigação de pagar” ou uma formulação correspondente — Obrigação de pagamento condicional»

No processo C‑400/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Berlim (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), por Decisão de 2 de junho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de junho de 2022, no processo

VT,

UR

contra

Conny GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, Z. Csehi, M. Ilešič (relator), I. Jarukaitis e D. Gratsias, juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: K. Hötzel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 27 de setembro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de VT e UR, por N. Meise, Rechtsanwältin,

–        em representação da Conny GmbH, por C. Heber, Rechtsanwältin,

–        em representação da Comissão Europeia, por I. Rubene, E. Schmidt e G. von Rintelen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2011, L 304, p. 64).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe VT e UR, senhorios de uma habitação (a seguir, conjuntamente, «senhorios»), à Conny GmbH, a respeito dos direitos de um arrendatário (a seguir «arrendatário em causa») cedidos à Conny que, na sua qualidade de cessionária dos direitos desse arrendatário, reclama dos referidos senhorios o reembolso de rendas pagas em excesso.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 4, 5, 7 e 39 da Diretiva 2011/83 têm a seguinte redação:

«(4)      Nos termos do artigo 26.o, n.o 2, [TFUE], o mercado interno deverá compreender um espaço sem fronteiras internas no qual são asseguradas a livre circulação das mercadorias e dos serviços e a liberdade de estabelecimento. A harmonização de certos aspetos do direito dos contratos à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial é necessária para a promoção de um verdadeiro mercado interno dos consumidores, que, além de estabelecer o justo equilíbrio entre um elevado nível de defesa dos consumidores e a competitividade das empresas, assegure, ao mesmo tempo, o respeito pelo princípio da subsidiariedade.

(5)      […] [A] harmonização total da informação aos consumidores e o direito de retratação relativo aos contratos à distância e aos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial contribuirão para um nível elevado de proteção dos consumidores e para um melhor funcionamento do mercado interno entre empresas e consumidores.

[…]

(7)      A harmonização total de alguns aspetos regulamentares fundamentais deverá aumentar consideravelmente a segurança jurídica, tanto para os consumidores como para os profissionais, que deverão passar a poder contar com um quadro regulamentar único, baseado em noções jurídicas claramente definidas destinadas a reger certos aspetos dos contratos celebrados na União [Europeia] entre empresas e consumidores. O efeito dessa harmonização deverá ser a eliminação dos entraves resultantes da fragmentação das normas e a plena concretização do mercado interno nesta área. Esses entraves só podem ser eliminados através do estabelecimento de regras uniformes a nível da União. Além disso, os consumidores deverão gozar de um elevado nível comum de defesa em toda a União.

[…]

(39)      É importante garantir que, nos contratos à distância celebrados através de sítios Internet, o consumidor possa ler e compreender integralmente os principais elementos do contrato antes de efetuar a encomenda. Para o efeito, é necessário prever disposições na presente diretiva para que esses elementos sejam visíveis na proximidade da confirmação exigida para a realização da encomenda. É igualmente importante garantir que, nessas situações, o consumidor possa determinar o momento em que assume a obrigação de pagar ao profissional. É, por isso, necessário chamar a atenção do consumidor, mediante uma formulação inequívoca, para o facto de a realização de uma encomenda implicar a obrigação de pagar ao profissional.»

4        O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», dispõe:

«A presente diretiva tem por objeto contribuir, graças à consecução de um elevado nível de defesa dos consumidores, para o bom funcionamento do mercado interno através da aproximação de certos aspetos das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas aos contratos celebrados entre consumidores e profissionais.»

5        O artigo 2.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Definições», enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

7) “Contrato à distância”: qualquer contrato celebrado entre o profissional e o consumidor no âmbito de um sistema de vendas ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância, sem a presença física simultânea do profissional e do consumidor, mediante a utilização exclusiva de um ou mais meios de comunicação à distância até ao momento da celebração do contrato, inclusive;

[…]»

6        O artigo 3.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», prevê, nos seus n.os 1 e 5:

«1.      A presente diretiva aplica‑se, nas condições e na medida prevista nas suas disposições, aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor. […]

[…]

5.      A presente diretiva não prejudica o direito nacional no domínio dos contratos em geral, nomeadamente as regras relativas à validade, à formação ou aos efeitos dos contratos, na medida em que estes aspetos do direito nacional geral dos contratos não estejam regulados na presente diretiva.»

7        Nos termos do artigo 4.o da Diretiva 2011/83, sob a epígrafe «Nível de harmonização»:

«Os Estados‑Membros não devem manter ou introduzir na sua legislação nacional disposições divergentes das previstas na presente diretiva, nomeadamente disposições mais ou menos estritas, que tenham por objetivo garantir um nível diferente de proteção dos consumidores, salvo disposição em contrário na presente diretiva.»

8        O artigo 6.o desta diretiva, intitulado «Requisitos de informação dos contratos celebrados à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial», dispõe, no seu n.o 1:

«Antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações:

a)      Características principais dos bens ou serviços, na medida adequada ao suporte utilizado e aos bens e serviços em causa;

[…]

e)      Preço total dos bens ou serviços, incluindo impostos e taxas ou, quando devido à natureza dos bens ou serviços o preço não puder ser calculado de forma antecipada, a forma como o preço é calculado […]

[…]

o)      Duração do contrato, se aplicável, ou, se o contrato for de duração indeterminada ou de renovação automática, as condições para a sua rescisão;

p)      Se aplicável, duração mínima das obrigações dos consumidores decorrentes do contrato;

[…]»

9        O artigo 8.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Requisitos formais aplicáveis aos contratos à distância», prevê, no seu n.o 2:

«Se um contrato celebrado à distância por via eletrónica colocar o consumidor na obrigação de pagar, o profissional fornece ao consumidor, de forma clara e bem visível e imediatamente antes de o consumidor efetuar a encomenda, as informações previstas no artigo 6.o, n.o 1, alíneas a), e), o) e p).

O profissional garante que, ao efetuar a encomenda, o consumidor reconheça explicitamente que a encomenda implica uma obrigação de pagamento. Se a realização de uma encomenda implicar a ativação de um botão ou uma função semelhante, o botão ou a função semelhante é identificado de forma facilmente legível, apenas com a expressão “encomenda com obrigação de pagar” ou uma formulação correspondente inequívoca, que indique que a realização de uma encomenda implica a obrigação de pagar ao profissional. Se o profissional não respeitar o disposto no presente número, o consumidor não fica vinculado pelo contrato nem pela encomenda.»

 Direito alemão

10      O § 312j do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «BGB»), prevê, nos seus n.os 3 e 4:

«(3)      Nos contratos [de consumo celebrados por via eletrónica relativos a uma prestação a título oneroso fornecida pelo profissional], o profissional deve organizar a situação da encomenda de tal maneira que o consumidor, através da sua encomenda, reconheça explicitamente que se compromete a efetuar um pagamento. Nos casos em que a encomenda é efetuada através de um botão, a obrigação do profissional referida no primeiro período só é cumprida se este botão for identificado de forma facilmente legível, apenas com a expressão “encomenda com obrigação de pagar” ou uma formulação correspondente inequívoca.

(4)      Os contratos [de consumo celebrados por via eletrónica relativos a uma prestação a título oneroso fornecida pelo profissional] só são celebrados se o profissional cumprir a obrigação que lhe incumbe por força do n.o 3.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

11      Os senhorios e o arrendatário em causa celebraram um contrato de arrendamento de uma habitação que, nos termos do direito nacional, está sujeita a uma limitação das rendas, de modo que, em caso de ultrapassagem do referido limite, o arrendatário tem direito ao reembolso das rendas pagas em excesso.

12      A Conny, uma sociedade de responsabilidade limitada de direito alemão, registada no domínio dos serviços de cobrança de dívidas, propõe aos arrendatários de apartamentos, através do seu sítio Internet, a celebração de um contrato de gestão de negócios nos termos do qual pode agir na qualidade de cessionária de todos os direitos desses arrendatários em relação aos seus senhorios em caso de ultrapassagem do limite máximo do montante das rendas.

13      Para celebrar esse contrato no sítio Internet desta sociedade, os arrendatários devem aprovar as condições gerais da mesma, nas quais é feita referência ao caráter oneroso do contrato e, em seguida, clicar num botão para encomendar. Os arrendatários deviam pagar, a título de contrapartida, uma remuneração correspondente a um terço do montante anual da renda poupada se as tentativas da Conny para fazer valer os seus direitos tivessem êxito e, uma vez enviada uma interpelação para pagamento ao senhorio, uma remuneração equivalente àquela que seria devida a um advogado por força das disposições da Lei relativa à Remuneração dos Advogados.

14      No caso em apreço, sendo a renda mensal superior ao limite máximo autorizado pela regulamentação nacional, o arrendatário em causa celebrou com a Conny um contrato de gestão de negócios desse tipo destinado a fazer valer os seus direitos em relação aos senhorios. Para tal, este arrendatário registou‑se no sítio Internet da Conny, assinalou aí uma quadrícula para aceitar as condições gerais e confirmou a sua encomenda clicando no botão correspondente. Em seguida, o referido arrendatário assinou um formulário fornecido pela Conny, intitulado «Confirmação, procuração e cessão, autorização», o qual não continha nenhuma informação sobre qualquer obrigação de pagamento a cargo do arrendatário.

15      Por carta de 21 de janeiro de 2020, a Conny invocou junto dos senhorios os direitos do arrendatário em causa resultantes da regulamentação nacional relativa ao montante das rendas, sustentando, para o efeito, que o montante da renda estipulado no contrato celebrado entre este arrendatário e os senhorios excedia o limite fixado por essa regulamentação.

16      Não tendo esta carta produzido efeitos, a Conny intentou uma ação contra os senhorios no Amtsgericht Berlin‑Mitte (Tribunal de Primeira Instância de Berlim‑Centro, Alemanha), a título dos direitos cedidos.

17      O Amtsgericht Berlin‑Mitte (Tribunal de Primeira Instância de Berlim‑Centro) julgou essa ação procedente pelo facto, nomeadamente, de a renda exigida ultrapassar a renda que os senhorios estavam autorizados a pedir, e isso na proporção invocada pela Conny.

18      Os senhorios interpuseram recurso dessa sentença no Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim, Alemanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Sustentaram, nomeadamente, que a Conny não podia invocar os direitos do arrendatário em causa, uma vez que o contrato de gestão de negócios que esteve na origem da cessão desses direitos era nulo, por inobservância das exigências previstas no § 312j, n.o 3, segundo período, do BGB, que transpõe para a ordem jurídica nacional o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2011/83.

19      O órgão jurisdicional de reenvio expõe, antes de mais, que o êxito deste recurso depende exclusivamente da interpretação do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83. A este respeito, interroga‑se, nomeadamente, sobre a questão de saber se a exigência, prevista nesse artigo 8.o, n.o 2, lido em conjugação com o § 312j, n.os 3 e 4, do BGB, segundo a qual o botão de encomenda deve conter uma indicação explícita sobre a obrigação de pagamento associada à encomenda ou uma formulação correspondente, é suscetível de se aplicar numa situação como a que está em causa no processo principal.

20      Este órgão jurisdicional alega que, no caso em apreço, a obrigação de pagar ao arrendatário em causa não nasce apenas da encomenda feita por este no sítio Internet da Conny, mas exige a reunião de condições posteriores, como o sucesso no exercício dos direitos do arrendatário ou o envio de uma interpelação para pagamento ao senhorio.

21      Por conseguinte, coloca‑se a questão de saber se o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que um contrato celebrado à distância por via eletrónica implica também uma «obrigação de pagamento», na aceção desta disposição, quando uma contrapartida a título oneroso só for devida em determinadas condições posteriores, por exemplo, apenas em caso de eventual sucesso ou no caso de ser enviada posteriormente uma interpelação para pagamento a um terceiro.

22      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a regulamentação nacional que transpõe o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 não é interpretada de modo uniforme na jurisprudência nacional.

23      Por um lado, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal, Alemanha) declarou que a finalidade de proteção prosseguida pelo § 312j, n.os 3 e 4, do BGB não é «excecionalmente afetada», uma vez que o consumidor pede a cobrança de um crédito eventualmente existente e que só é devida uma remuneração ao profissional em determinadas circunstâncias, nomeadamente apenas em caso de sucesso.

24      Por outro lado, os órgãos jurisdicionais nacionais hierarquicamente inferiores, bem como a doutrina nacional, atribuem ao artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83, bem como ao § 312j, n.os 3 e 4, do BGB um âmbito de aplicação consideravelmente mais amplo. Com efeito, consideram que são igualmente visados nestas disposições os negócios jurídicos nos quais o caráter oneroso só indiretamente está ligado à celebração do contrato ou à ocorrência de outras condições ou a atos do consumidor.

25      O órgão jurisdicional de reenvio inclina‑se para esta última interpretação. A favor dela abona, em primeiro lugar, a redação do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83, do qual resulta que a obrigação de utilizar um botão existe quando a encomenda «implica» para o consumidor uma obrigação de pagamento. Ora, a celebração de um contrato por via eletrónica implica desde logo, em si mesma, uma obrigação de pagamento quando a sua ocorrência não seja obrigatória mas simplesmente possível e não esteja totalmente excluída.

26      Em segundo lugar, o sentido e a finalidade do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 também abonam a favor de uma interpretação extensiva, no sentido de que este visa igualmente os contratos em que a contrapartida a título oneroso só é devida pelo arrendatário noutras condições particulares, no caso em apreço, unicamente em caso de sucesso no exercício dos direitos do arrendatário ou de interpelação para pagamento. Com efeito, resulta do artigo 1.o desta diretiva, bem como dos considerandos 4, 5 e 7 da mesma que a referida diretiva prossegue o objetivo de garantir um elevado nível de defesa do consumidor, garantindo a informação e a segurança dos consumidores nas transações com profissionais.

27      No entanto, não seria compatível com esse objetivo fazer beneficiar da proteção da Diretiva 2011/83 apenas os consumidores cuja obrigação posterior de pagamento já exista no momento da celebração do contrato, privando dessa proteção os consumidores cuja obrigação de pagamento ainda não é definitiva no momento da celebração do contrato, mas depende da ocorrência posterior de outras condições, sobre as quais não têm qualquer controlo.

28      Uma interpretação contrária à exposta nos n.os 24 a 27 do presente acórdão conduziria a uma redução considerável do nível de defesa do consumidor pretendido pelo legislador da União, ou esvaziaria até parcial ou totalmente a Diretiva 2011/83 da sua substância em circunstâncias como as que estão em causa perante o órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, não se pode excluir que os profissionais insiram, no futuro nas suas condições gerais cláusulas que façam depender a obrigação de pagamento do consumidor da ocorrência de outras condições, a fim de se eximirem das obrigações que impendem sobre os profissionais previstas no artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2011/83.

29      Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, se o legislador da União tivesse querido limitar a obrigação de informação apenas ao caso de uma obrigação de pagamento incondicional, tê‑lo‑ia feito de forma expressa, evocando nos considerandos ou nas disposições da própria Diretiva 2011/83 que o nível de defesa do consumidor garantido por esta diretiva não se estende a contratos em que, no momento da sua celebração, a obrigação de pagamento do consumidor ainda não esteja estabelecida. Ora, tal não é de modo nenhum evocado na referida diretiva.

30      Nestas condições, o Landgericht Berlin (Tribunal Regional de Berlim) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«É compatível com o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva [2011/83] que uma disposição nacional [neste caso, o § 312j, n.o 3, segundo período, e n.o 4, do [BGB], na versão em vigor entre 13 de junho de 2014 e 27 de maio de 2022], seja interpretada no sentido de que o seu âmbito de aplicação, tal como o âmbito de aplicação do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva [2011/83], também abrange as situações em que o consumidor não é incondicionalmente obrigado a pagar à empresa no momento da celebração do contrato por via eletrónica mas apenas se se verificarem determinadas outras condições — por exemplo, unicamente no caso de uma ação judicial cuja instauração foi solicitada ser bem‑sucedida ou no caso de envio ulterior a um terceiro de uma interpelação para pagamento?»

 Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

31      A Conny põe em causa a pertinência da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio, opondo‑se, nomeadamente, a que um terceiro, como os senhorios no processo principal, possa invocar um eventual vício que afete a relação jurídica entre um consumidor (cedente) e um profissional (cessionário). Com efeito, segundo a Conny, isso levaria a que um terceiro pudesse neutralizar um contrato que o arrendatário celebrou com um profissional a fim precisamente de exercer os seus direitos enquanto consumidor contra esse terceiro.

32      A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 12 de outubro de 2023, KBC Verzekeringen, C‑286/22, EU:C:2023:767, n.o 21 e jurisprudência referida).

33      Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 12 de outubro de 2023, KBC Verzekeringen, C‑286/22, EU:C:2023:767, n.o 22 e jurisprudência referida).

34      No caso em apreço, as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio têm por objeto, nomeadamente, a interpretação conforme com o direito da União do § 312j, n.os 3 e 4, do BGB, que transpõe para a ordem jurídica nacional o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 prevendo, em substância, que um contrato de consumo celebrado por via eletrónica relativo a uma prestação a título oneroso fornecida pelo profissional só pode ser considerado concluído se o profissional respeitar a obrigação de informação destinada a que, quando o consumidor efetue a sua encomenda, reconheça explicitamente que se sujeita a uma obrigação de pagamento. Ora, o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 enuncia unicamente que, caso o profissional não respeite a obrigação prevista nesta disposição, o consumidor não fica vinculado pelo contrato nem pela encomenda.

35      Não obstante, resulta da resposta dada pelo órgão jurisdicional de reenvio a um pedido de informação que lhe foi dirigido pelo Tribunal de Justiça que a legislação nacional em causa no processo principal permite a um terceiro contestar a validade de um contrato de gestão de negócios celebrado entre um consumidor e um profissional quando, com base nesse contrato, o profissional tenha intentado, em nome desse consumidor, uma ação judicial contra esse terceiro. Essa faculdade pode ser exercida mesmo que a regra de direito invocada em apoio dessa ação vise exclusivamente proteger o referido consumidor, dado que, uma vez constatada a violação dessa regra, o mesmo consumidor mantém a possibilidade de confirmar o contrato ou de celebrar um novo contrato com o profissional.

36      Ora, tendo em conta esta resposta, não se pode considerar que dos elementos dos autos resulte de forma manifesta que a interpretação solicitada do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou ainda que o problema seja hipotético.

37      Dado que, por outro lado, o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil à questão que lhe é submetida, há que declarar que o presente pedido de decisão prejudicial é admissível.

 Quanto à questão prejudicial

38      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que, nos contratos à distância celebrados através de sítios Internet, a obrigação que incumbe ao profissional de garantir que o consumidor, ao efetuar a sua encomenda, aceita explicitamente uma obrigação de pagamento, se aplica mesmo quando o consumidor só fica obrigado a pagar a esse profissional a contrapartida a título oneroso após a ocorrência de uma condição posterior.

39      Importa salientar, a título preliminar, que os contratos à distância são definidos, nos termos do artigo 2.o, ponto 7, da Diretiva 2011/83, como «qualquer contrato celebrado entre o profissional e o consumidor no âmbito de um sistema de vendas ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância, sem a presença física simultânea do profissional e do consumidor, mediante a utilização exclusiva de um ou mais meios de comunicação à distância até ao momento da celebração do contrato, inclusive». Daqui resulta que um contrato de gestão de negócios, destinado a fazer valer os direitos de um arrendatário em relação ao senhorio, celebrado com o profissional no sítio Internet deste último, como o que está em causa no processo principal, está abrangido pelo conceito de «contrato à distância» e, por conseguinte, pelo âmbito de aplicação desta diretiva, conforme definido no artigo 3.o, n.o 1, da mesma.

40      Na medida em que, em conformidade com o artigo 4.o da Diretiva 2011/83, esta procede a uma harmonização, em princípio total, da legislação dos Estados‑Membros no que respeita às disposições que enuncia, o alcance da obrigação de informação prevista no artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, desta diretiva determina, dentro dos limites do princípio da interpretação conforme, o alcance do direito dos consumidores previsto na regulamentação nacional que transpõe esta disposição para a ordem jurídica dos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 5 de outubro de 2023, Sofatutor, C‑565/22, EU:C:2023:735, n.o 38).

41      Para efeitos da interpretação de uma disposição de direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 12 de outubro de 2023, KBC Verzekeringen, C‑286/22, EU:C:2023:767, n.o 32).

42      No que respeita, em primeiro lugar, à redação do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2011/83, importa recordar que esta disposição dispõe, no seu primeiro parágrafo, que, se um contrato celebrado à distância por via eletrónica colocar o consumidor na obrigação de pagar, o profissional deve informar o consumidor, de forma clara e bem visível e imediatamente antes de o consumidor efetuar a encomenda, de várias informações previstas no artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva relativas, em substância, às características principais dos bens ou serviços, ao preço total, à duração do contrato e, se aplicável, à duração mínima das obrigações impostas ao consumidor.

43      O artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 prevê, por seu turno, que o profissional deve garantir que o consumidor, ao efetuar a encomenda, reconheça explicitamente que esta encomenda implica uma obrigação de pagamento. Esta disposição precisa que, no caso de a ativação de um botão ou uma função semelhante ser necessária para efetuar a encomenda, o botão ou a função semelhante deve ser identificado de forma legível apenas com a expressão «encomenda com obrigação de pagar» ou uma formulação correspondente inequívoca, que indique que a realização da encomenda implica a obrigação de o consumidor pagar ao profissional, caso contrário o referido consumidor não fica vinculado pelo contrato nem pela encomenda.

44      Daqui resulta que, quando um contrato à distância é celebrado por via eletrónica através de um processo de encomenda e é acompanhado de uma obrigação de pagamento para o consumidor, o profissional deve, por um lado, fornecer a esse consumidor, imediatamente antes da encomenda, as informações essenciais relativas ao contrato e, por outro, informar expressamente o referido consumidor de que, ao efetuar a encomenda, este último fica vinculado a uma obrigação de pagamento (Acórdão de 7 de abril de 2022, Fuhrmann‑2, C‑249/21, EU:C:2022:269, n.o 25).

45      No que respeita a esta última obrigação, resulta da redação clara do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 que o botão de encomenda ou a função semelhante deve ser identificado de forma facilmente legível e inequívoca que indique que a realização da encomenda implica a obrigação de o consumidor pagar ao profissional e que só a expressão que figura nesse botão ou nessa função semelhante deve ser tida em conta para determinar se o profissional cumpriu a obrigação que lhe incumbe de garantir que o consumidor, ao efetuar a encomenda, reconheça explicitamente que esta implica uma obrigação de pagamento (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, Fuhrmann‑2, C‑249/21, EU:C:2022:269, n.os 26 e 28).

46      Ora, a redação do artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 que impõe ao profissional, quando celebra um contrato à distância por via eletrónica através de um processo de encomenda acompanhado de uma obrigação de pagamento para o consumidor, que informe expressamente este último dessa obrigação antes de esse consumidor efetuar a sua encomenda, não prevê nenhuma distinção entre as obrigações de pagamento sujeitas a condições e as obrigações incondicionais.

47      Pelo contrário, resulta desta redação que a obrigação de informação enunciada na referida disposição se aplica quando a encomenda efetuada «implica» uma obrigação de pagamento. Por conseguinte, pode deduzir‑se daí que a obrigação de o profissional informar o consumidor ocorre no momento em que este último aceita, de forma irreversível, ficar vinculado por uma obrigação de pagamento em caso de ocorrência de uma condição externa à sua vontade, mesmo que esta condição ainda não se tenha verificado.

48      A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou, aliás, que a finalização de um processo de encomenda que acarreta uma obrigação de pagamento para o consumidor é uma etapa fundamental, na medida em que implica que o consumidor aceita ficar vinculado não só pelo contrato à distância mas também pela obrigação de pagamento (Acórdão de 7 de abril de 2022, Fuhrmann‑2, C‑249/21, EU:C:2022:269, n.o 30). Com efeito, é precisamente a ativação de um botão ou de uma função semelhante para finalizar a encomenda que implica uma declaração do consumidor no sentido de que aceita, de forma irreversível, ficar vinculado por uma obrigação de pagamento.

49      No que respeita, em segundo lugar, ao contexto e aos objetivos em que se insere o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2011/83, importa salientar que esta disposição faz parte de um mecanismo que assenta num conjunto de disposições que visam, como resulta do artigo 1.o da referida diretiva, lido à luz dos considerandos 4, 5 e 7, da mesma, assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores, ao garantir a sua informação e a sua segurança nas transações com os profissionais, assegurando igualmente um justo equilíbrio entre um elevado nível de defesa dos consumidores e a competitividade das empresas (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de abril de 2022, Fuhrmann‑2, C‑249/21, EU:C:2022:269, n.o 21, e de 5 de maio de 2022, Victorinox, C‑179/21, EU:C:2022:353, n.o 39 e jurisprudência referida).

50      Concretamente, o considerando 39 da Diretiva 2011/83 sublinha a importância, para este efeito, de garantir que, nos contratos à distância celebrados através de sítios Internet, o consumidor possa determinar o momento em que assume a obrigação de pagar ao profissional e de chamar a atenção do consumidor, mediante uma formulação inequívoca, para o facto de a realização de uma encomenda implicar a obrigação de pagar ao profissional.

51      Ora, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 45 das suas conclusões, interpretar o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 no sentido de que esta disposição não se aplica quando o consumidor não tem, de forma incondicional, uma obrigação de pagar ao profissional, mas só fica obrigado a pagar a esse profissional a contrapartida a título oneroso após a ocorrência de uma condição posterior, iria contra os objetivos prosseguidos por esta diretiva, conforme enunciados nos n.os 49 e 50 do presente acórdão, de assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores, bem como, mais especificamente, de chamar a atenção do consumidor para o facto de a realização de uma encomenda implicar a obrigação de pagar ao referido profissional.

52      Com efeito, essa interpretação levaria a que o profissional não fosse obrigado a cumprir a sua obrigação de informação, enunciada nesta disposição para esclarecer o consumidor sobre as consequências pecuniárias da sua encomenda, no momento em que esse consumidor pode ainda renunciar a essa encomenda, mas apenas posteriormente, quando o pagamento se torna exigível.

53      Consequentemente, como foi sublinhado, em substância, pelo órgão jurisdicional de reenvio, essa interpretação daria aos profissionais a possibilidade de se eximirem da obrigação de informação prevista no artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 no momento precisamente em que esta é suscetível de se revelar útil para o consumidor, simplesmente inserindo nas suas condições gerais cláusulas que fizessem depender a obrigação de pagamento do consumidor da ocorrência de condições objetivas e que não dependessem da expressão da vontade do consumidor.

54      Não obstante, deve sublinhar‑se que o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 se limita a prever, nesse caso, que o consumidor não fica vinculado pelo contrato em causa. Ora, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 5, da Diretiva 2011/83, esta não prejudica o direito nacional no domínio dos contratos em geral, nomeadamente as regras relativas à validade, à formação ou aos efeitos dos contratos, na medida em que estes aspetos do direito nacional geral dos contratos não estejam regulados nesta diretiva.

55      Por conseguinte, a interpretação acolhida nos n.os 49 a 53 do presente acórdão não prejudica a possibilidade de, após ter obtido uma informação posterior sobre a obrigação de pagamento, o consumidor poder decidir manter os efeitos de um contrato ou de uma encomenda que, até então, não o vinculava devido ao incumprimento, pelo profissional, no momento da sua celebração, da sua obrigação prevista no artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83.

56      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que, nos contratos à distância celebrados através de sítios Internet, a obrigação que incumbe ao profissional de garantir que o consumidor, ao efetuar a sua encomenda, aceita explicitamente uma obrigação de pagamento, se aplica mesmo quando o consumidor só fica obrigado a pagar a esse profissional a contrapartida a título oneroso após a ocorrência de uma condição posterior.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 8.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,

deve ser interpretado no sentido de que:

nos contratos à distância celebrados através de sítios Internet, a obrigação que incumbe ao profissional de garantir que o consumidor, ao efetuar a sua encomenda, aceita explicitamente uma obrigação de pagamento, se aplica mesmo quando o consumidor só fica obrigado a pagar a esse profissional a contrapartida a título oneroso após a ocorrência de uma condição posterior.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.