Edição provisória
CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
TAMARA ĆAPETA
apresentadas em 25 de abril de 2024 (1)
Processo C‑60/23
Skatteverket
contra
Digital Charging Solutions GmbH
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia)]
«Reenvio prejudicial — Tributação — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigos 14.°, 15.° e 24.° — Postos de carregamento de veículos elétricos — Disponibilização de dispositivos para carregamento de veículos elétricos, fornecimento da eletricidade necessária e prestação de assistência técnica e de serviços informáticos — Qualificação de “entrega de bens” ou de “prestação de serviços” — Artigo 14.°, n.° 1, artigo 14.°, n.° 2, alínea c), e artigo 28.° — Natureza e papel do fornecedor de dispositivos nessa entrega»
I. Introdução
1. O número de veículos elétricos (VE) matriculados na União Europeia tem vindo a aumentar de forma constante (2). Tal está em consonância com o Pacto Ecológico para a Europa que visa tornar a União Europeia um climático com impacto neutro no clima até 2050. A utilização de VE exige intrinsecamente uma infraestrutura conexa, como postos de carregamento.
2. Paralelamente às mudanças ocorridas no mundo real, é necessário adotar ou (re)interpretar a legislação já existente com vista a reger as novas relações que surgem na sequência dessa mudança. O presente processo aborda esta questão, dado que o órgão jurisdicional nacional pede a interpretação da Diretiva IVA (3), quando aplicada às operações que resultam da utilização de dispositivos de carregamento de VE (como um cartão ou uma aplicação).
3. O presente pedido de decisão prejudicial tem origem num litígio pendente no Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia) que opõe a Digital Charging Solutions GmbH (DCS), uma sociedade de direito alemão, à Skatteverket (Administração Fiscal, Suécia) a respeito da validade da decisão fiscal antecipada desta última de 8 de abril de 2022 (a seguir «decisão fiscal antecipada»).
II. Antecedentes do litígio no processo principal, questões prejudiciais e processo no Tribunal de Justiça
4. A DCS tem a sede da sua atividade económica na Alemanha e não dispõe de um estabelecimento estável na Suécia. Esta sociedade disponibiliza aos utilizadores de VE na Suécia acesso a uma rede de postos de carregamento. Através desta rede, os utilizadores recebem informações em tempo real sobre preços, localização e disponibilidade dos postos de carregamento. Além disso, o serviço da rede inclui funções para procurar postos de carregamento bem como para planear itinerários.
5. Os postos de carregamento que fazem parte da rede não são explorados pela DCS mas por operadores de postos de carregamento (a seguir «OPC») com os quais a DCS celebrou contratos. A DCS fornece aos utilizadores de VE um cartão e uma aplicação de autenticação para permitir que estes carreguem os seus veículos nos postos de carregamento (a seguir «utilizadores do cartão/da aplicação»). Quando o cartão ou a aplicação são utilizados, a sessão de carregamento é registada junto do OPC, que, em seguida, fatura à DCS esta sessão. A faturação é feita mensalmente no final de cada mês civil e o pagamento deve ser efetuado no prazo de 30 dias.
6. Com base nas faturas recebidas dos CPO, a DCS fatura aos utilizadores do cartão/da aplicação, primeiro, a quantidade de eletricidade fornecida mensalmente e, segundo, o acesso à rede e aos serviços adjacentes. O preço da eletricidade fornecida varia em função da quantidade faturada, porém, é cobrada uma tarifa fixa pelo acesso e pelo serviço prestado, a qual é faturada independentemente de o utilizador ter ou não efetivamente adquirido eletricidade durante o período em causa. Não é possível comprar apenas eletricidade à sociedade sem pagar simultaneamente pelo acesso à rede.
7. Em 14 de abril de 2021, a DCS solicitou uma decisão fiscal antecipada à Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal, Suécia). Em 8 de abril de 2022, este órgão governamental emitiu uma decisão segundo o qual o fornecimento efetuado pela DCS constituía uma operação complexa principalmente caracterizada pelo fornecimento de eletricidade aos utilizadores e que se devia considerar que o lugar do fornecimento era na Suécia.
8. A Skatteverket (Administração Fiscal sueca) interpôs no Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia), órgão jurisdicional de reenvio, um recurso destinado a obter a confirmação da referida decisão fiscal antecipada. A DCS também interpôs recurso no mesmo órgão jurisdicional, pedindo a alteração da decisão fiscal antecipada. Esta sociedade alegou, perante o órgão jurisdicional de reenvio, que existiam duas prestações distintas, a saber, um fornecimento de eletricidade e uma prestação de serviços (a facilitação do acesso à rede de postos de carregamento), pelo que a única parte da prestação que devia ser tributada na Suécia é a parte que consiste no fornecimento de eletricidade.
9. Como resulta do pedido de decisão prejudicial, a Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal) está dividida. Por um lado, a maioria considera que os OPC fornecem eletricidade à DCS, que, por sua vez, a fornece aos utilizadores. Trata‑se, portanto, de uma cadeia de operações em que os OPC não estão contratualmente vinculados a esses utilizadores.
10. Em contrapartida, uma minoria na Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal) considera que a DCS presta um serviço aos utilizadores que consiste, nomeadamente, na disponibilização de uma rede de postos de carregamento e na faturação posterior, o que implica que lhes concede uma certa forma de crédito para a compra de eletricidade (4). Esta abordagem tem especialmente em conta o facto de os utilizadores serem livres de escolher entre condições como, a qualidade, a quantidade, o momento da compra e o modo de utilização da eletricidade.
11. Nestas circunstâncias, o Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) A prestação ao utilizador de um [VE] que consiste no carregamento do veículo num posto de carregamento constitui uma entrega de bens na aceção [do artigo] 14.°, n.° 1, e [do artigo] 15.°, n.° 1, da Diretiva IVA?
2) Em caso de resposta afirmativa à questão 1, deve considerar‑se que essa entrega existe em todas as fases de uma cadeia de transações que inclui uma empresa intermediária, em que a cadeia de transações é acompanhada por contratos em todas as fases, mas só o utilizador do veículo tem o direito de decidir sobre questões como a quantidade, o momento e o local de carregamento, bem como o modo como a eletricidade será utilizada?»
12. A DCS, a Skatteverket (Administração Fiscal sueca), o Governo Húngaro e a Comissão Europeia Foram apresentaram observações escritas no Tribunal de Justiça.
13. Em 7 de fevereiro de 2024, foi realizada uma audiência, na qual o Governo Sueco e a Comissão apresentaram alegações orais.
III. Enquadramento jurídico
14. O artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA dispõe que «[se entende] por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário».
15. O artigo 14.°, n.° 2, desta diretiva prevê:
«Para além da operação referida no n.° 1, são consideradas entregas de bens as seguintes operações:
[...]
c) A transmissão de um bem efetuada nos termos de um contrato de comissão de compra ou de venda.»
16. O artigo 28.°, relativo às prestações de serviços, dispõe:
«Quando um sujeito passivo participe numa prestação de serviços agindo em seu nome mas por conta de outrem, considera‑se que recebeu e forneceu pessoalmente os serviços em questão.»
17. O Tribunal de Justiça considerou que o raciocínio aplicado à interpretação do artigo 28.° da Diretiva IVA também se aplica às entregas de bens com base num contrato de comissão de compra, em conformidade com o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA (5).
IV. Análise
18. O artigo 15.° da Diretiva IVA prevê que, para efeitos de IVA, a eletricidade é um bem corpóreo.
19. O Tribunal de Justiça considera que uma operação complexa que consiste no fornecimento de eletricidade à bateria de um veículo e no acesso aos dispositivos de carregamento e ao suporte técnico e informático necessário constitui uma entrega de bens na aceção do artigo 14.°, n.° 1, e do artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva IVA (6).
20. Isto parece resolver a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio. Por conseguinte, a pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões limitar‑se‑ão à análise da segunda questão.
21. Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, de que forma a Diretiva IVA se aplica a cada fase da operação que consiste em carregar um VE através de um cartão ou de uma aplicação.
22. Para responder a esta questão, importa sublinhar, antes de mais, que o critério fundamental para a aplicação do sistema comum do IVA é a realidade económica e comercial. O Tribunal de Justiça repetiu‑o em várias ocasiões (7).
23. Por conseguinte, é necessário começar a análise perguntando como se realiza(m) a(s) operação(ões) em causa no presente caso.
24. No meu entender, a DCS efetua duas prestações diferentes: uma prestação de serviços e uma entrega de bens.
25. A prestação do serviço consiste em fornecer a um condutor de VE um cartão ou uma aplicação, que presta informações sobre a rede de postos de carregamento e autoriza o acesso à mesma. Para esta prestação de serviços, a DSC emite (mensalmente) uma fatura com uma tarifa fixa, independentemente de a eletricidade ser ou não comprada. Com base no artigo 43.° da Diretiva IVA, o lugar da «prestação» deste serviço é na Alemanha, uma vez que é onde o prestador de serviços está estabelecido.
26. A entrega de bens, a saber, a eletricidade, é uma prestação dissociável da prestação de serviços. Para a primeira, é emitida uma fatura no final de cada mês, em função da quantidade de eletricidade utilizada.
27. Embora faturas distintas não excluam necessariamente uma prestação complexa única e, portanto, uma operação única (8), quando duas prestações não parecem estar tão estreitamente ligadas de modo que constituam uma prestação económica indissociável, seria artificial não as manter separadas. Consequentemente, devem, em princípio, ser consideradas operações distintas e independentes para efeitos de IVA (9).
28. Considerar que as prestações no processo principal são uma prestação complexa em vez de duas prestações distintas violaria, na minha opinião, as disposições contratuais pertinentes e negligenciaria, assim, a realidade económica e comercial (10).
29. Reconhecer que o acesso à rede é autónomo em relação ao fornecimento de eletricidade seria, na minha opinião, a representação jurídica mais realista, para efeitos do tratamento em matéria de IVA das relações jurídicas em causa. Por conseguinte, o argumento apresentado pela DSC no órgão jurisdicional de reenvio (v. n.° 8 das presentes conclusões) afigura‑se correto.
30. Tanto a Comissão como o Governo Sueco admitiram, na audiência, que a prestação de serviços que consiste no acesso à rede, faturada separadamente, não tem interesse para o presente processo. Assim, o foco no caso em apreço é a qualificação jurídica das operações da segunda prestação, o fornecimento de eletricidade.
31. As operações envolvidas no fornecimento de eletricidade dizem respeito à relação entre o OPC e a DCS e à relação entre a DCS e o utilizador do cartão/da aplicação. Não existe nenhuma relação direta entre o OPC e o utilizador do cartão/da aplicação, nem este facto é contestado no presente processo.
32. Existem três formas possíveis de caracterizar as relações em causa para efeitos de IVA.
33. A primeira decorre da jurisprudência Auto Lease Holland (11). Esta jurisprudência trata a operação entre a DCS e o utilizador do cartão/da aplicação como uma prestação de serviços de concessão de crédito [portanto isenta de IVA pelo artigo 135.°, n.° 1, alínea b), da Diretiva IVA]. Tal abordagem não me parece adequada para o tratamento das presentes operações. No entanto, uma vez que esta abordagem é proposta por uma minoria na Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal), analisarei esta opção em primeiro lugar (A).
34. A segunda opção é o tratamento das duas operações como vendas sucessivas, ambas sujeitas ao artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA; trata‑se do chamado «modelo de compra/revenda». Esta é a posição da maioria na Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal), bem como de todos os participantes no presente processo. Analisarei esta opção na secção (B).
35. A terceira possibilidade consiste em considerar que as operações em causa assentam num modelo de comissão nos termos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA. Esta opção, embora não tenha sido suscitada no pedido de decisão prejudicial nem pelos participantes na fase escrita do processo, foi discutida na audiência. Esta opção é, na minha opinião, a qualificação mais adequada das operações em causa no presente processo. Abordarei a aplicação do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA na secção (C).
A. Jurisprudência Auto Lease Holland
36. Os Acórdãos Auto Lease Holland e Vega International diziam respeito ao tratamento em matéria de IVA das operações relacionadas com a utilização de cartões de combustível. As circunstâncias desses dois processos não são idênticas, mas apresentam certas características comuns. Ambos envolviam vários intervenientes, além do utilizador do cartão, do fornecedor do cartão e do fornecedor de energia, e ambos diziam respeito a vendas sucessivas realizadas através de uma operação financeira. Nesses acórdãos, o Tribunal de Justiça colocou a tónica menos na entrega de bens (combustível) do que nas modalidades de pagamento dessa entrega (12).
37. O resultado do Acórdão Vega International, que é apenas a consequência lógica do Acórdão Auto Lease Holland, foi a constatação de que a operação entre o emitente do cartão e o utilizador do cartão constituía um serviço de concessão de crédito.
38. Ora, como ilustram a doutrina (13) e as conversações no âmbito do Comité do IVA (14), esses processos suscitaram preocupações diferentes. Numerosas críticas censuraram o facto de a interpretação proposta conduzir à invisibilidade do intermediário.
39. Parece‑me duvidoso que as circunstâncias concretas desses processos sejam comparáveis às do presente processo. De um modo mais geral, o modelo de negócio de carregamento de VE não é o mesmo que o de carregamento de combustível, pelo menos não atualmente. Embora seja possível carregar um veículo não elétrico utilizando o cartão de combustível ou qualquer outro cartão ou dinheiro, e fazê‑lo em qualquer estação de combustível, o mesmo não se aplica ao carregamento de VE. Os VE utilizam sistemas de carregamento diferentes e só podem ser carregados nos postos de carregamento incluídos na rede em causa. O carregamento não pode ser efetuado sem a utilização de um cartão ou de uma aplicação que permita o acesso à rede. Por último, é pacífico que os cartões e as aplicações dos VE não são instrumentos de pagamento.
40. Além disso, se a operação entre o emitente do cartão e o utilizador do cartão/da aplicação for uma operação não tributável diferente (concessão de um crédito), o utilizador não poderá deduzir o IVA se for um sujeito passivo, uma vez que a fatura de eletricidade é emitida unicamente pelo OPC ao emitente do cartão.
41. Por conseguinte, as conclusões da jurisprudência Auto Lease Holland não são automaticamente transponíveis para os diferentes modelos de negócio e operações de dispositivos de carregamento de VE e não devem, por conseguinte, ser utilizadas fora das circunstâncias em que esses acórdãos foram proferidos (15).
B. Modelo de «compra/revenda» (artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA)
42. O modelo de «compra/revenda» define as operações em causa como vendas sucessivas com uma cadeia de entregas única e horizontal. A DCS compra eletricidade ao OPC e depois vende‑a ao utilizador do cartão/da aplicação.
43. Para efeitos de IVA, este modelo baseia‑se no artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA. Cada operação é uma entrega de bens distinta que, segundo esta disposição, implica a transferência do poder de dispor do bem corpóreo como proprietário.
44. Como o Tribunal de Justiça explicou, a transferência de propriedade inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo, por uma parte, que confira à outra parte o poder de dispor dele, de facto, como se fosse o proprietário desse bem (16).
45. Tal poderia ser entendido no sentido de que se exige a transferência de uma determinada forma de controlo sobre os bens para que uma operação possa ser qualificada de entrega de bens (17). Isto é particularmente difícil quando o bem fornecido é energia, como no processo principal, que não pode ser facilmente transferida ou armazenada (18).
46. Com efeito, em comparação a outros bens (como ilustram o artigo 15.°, n.° 1, e os artigos 38.° e 39.° da Diretiva IVA), a eletricidade tem uma natureza específica, sendo uma das suas características o facto de ser muito mais difícil, do que para qualquer outro bem, rastrear o seu fluxo físico (19).
47. Se fosse aplicada às circunstâncias do caso em apreço, seria necessário transferir a propriedade da eletricidade do OPC para a DCS, para que esta última a pudesse então vender ao utilizador do cartão/da aplicação. É evidente que essas não são as circunstâncias do presente processo. Pelo contrário, os bens são transferidos diretamente do OPC para o utilizador do cartão/da aplicação. Assim, nem a posse efetiva da eletricidade nem a titularidade jurídica desta são formalmente transferidas do OPC para a DCS.
48. No entanto, a lei permite que se proceda uma transferência jurídica fictícia de propriedade, sem que haja uma transferência efetiva.
49. Com efeito, segundo a jurisprudência, podem existir razões legítimas que justifiquem que os bens não tenham sido recebidos diretamente do emitente da fatura, como, designadamente, a existência de duas vendas sucessivas que têm por objeto os mesmos bens, que, conforme acordado, são transportados diretamente do primeiro vendedor para o segundo adquirente, de modo que há duas entregas sucessivas na aceção do artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA, mas um único transporte efetivo. Além disso, não é necessário que o primeiro adquirente se tenha tornado proprietário dos bens em causa no momento desse transporte, tendo em conta que a existência de uma entrega na aceção desta disposição não pressupõe a transferência da titularidade jurídica do bem (20).
50. Por conseguinte, pode‑se considerar que as circunstâncias no processo principal se enquadram no modelo de «compra/revenda», que implica vendas sucessivas. Para isso, é necessário recorrer à ficção segundo a qual o direito de dispor da eletricidade como proprietário foi transferido do OPC para a DCS, o que permite a esta última vender, em seguida, os produtos em causa.
51. Para efeitos de IVA, ambas as operações são tributáveis. Uma vez que a fatura de eletricidade é emitida pelo emitente do cartão ao utilizador do cartão/da aplicação, este último pode deduzir o IVA se for sujeito passivo.
52. No entanto, nas circunstâncias do caso em apreço, a DCS não promete ao CPO nem decide comprar uma quantidade de eletricidade. Na realidade, é a ação do utilizador do cartão/da aplicação que dá início ao processo de compra, quando decide em que posto de carregamento a eletricidade é encomendada, que quantidade de eletricidade deve ser transferida e é no veículo desse utilizador que o fornecimento tem lugar.
53. Assim, com exceção do risco de não receber o pagamento do utilizador do cartão/da aplicação, a DCS não assume nenhum risco empresarial no referido fornecimento de eletricidade porque já foi tudo vendido e entregue quando fatura essa eletricidade ao utilizador.
54. Por conseguinte, há que examinar se a outra opção, ou seja, que as operações em causa se enquadram no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA não se adequa melhor à realidade económica do carregamento de VE.
C. Modelo de comissário [artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA]
55. O modelo de comissário descreveria a operação em causa no presente processo como implicando um agente como intermediário entre o OPC e o utilizador do cartão/da aplicação.
56. Podem existir dois tipos de modelo de comissário: o modelo de comissário de vendas e o modelo de comissário de compras (21).
57. No modelo de comissário de vendas, o comitente é o OPC, enquanto o agente é o emitente do dispositivo (como a DCS). Neste modelo, o emitente do dispositivo vende eletricidade em nome próprio, mas por conta do OPC ao utilizador do cartão/da aplicação.
58. No modelo de comissário de compras, o comitente é o utilizador do cartão/da aplicação e o agente é a DCS. Neste modelo, o emitente do dispositivo (DCS) compra eletricidade ao OPC em nome próprio, mas por conta do utilizador do cartão/da aplicação. Este modelo descreve melhor a situação no caso em apreço, uma vez que a compra de eletricidade é efetuada, como já referi (v. n.° 52 das presentes conclusões), por iniciativa do utilizador do cartão/da aplicação.
59. Do ponto de vista jurídico, os dois submodelos de comissário baseiam‑se no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), e no artigo 28.° da Diretiva IVA (22). O artigo 28.° prevê que, numa situação em que uma pessoa atua na qualidade de agente, ou seja, em seu nome mas por conta de outrem, se considera que essa pessoa recebeu e forneceu pessoalmente o serviço em causa. Embora o artigo 28.° da Diretiva IVA apenas diga respeito às prestações de serviços, o Tribunal de Justiça declarou que o mesmo se aplica às entregas de bens (23).
60. Além disso, o Tribunal de Justiça considerou que o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), desta diretiva cria, portanto, a ficção jurídica de duas entregas de bens iguais efetuadas consecutivamente, as quais entram no âmbito de aplicação do IVA (24).
61. Por conseguinte, para serem abrangidas pelo modelo de comissário, as operações em causa devem preencher dois requisitos. Por um lado, é necessário que exista um mandato em cuja execução o comissário intervém, por conta do comitente, na entrega de bens e/ou na prestação de serviços e, por outro, que haja uma identidade entre as entregas de bens e/ou as prestações de serviços adquiridas pelo comissário e as entregas de bens e/ou as prestações de serviços vendidas ou cedidas ao comitente (25).
62. Na audiência, o Governo Sueco e a Comissão admitiram que, nas circunstâncias do processo principal, estes dois requisitos estavam preenchidos.
63. Estou de acordo com este entendimento.
64. No que respeita ao primeiro requisito do mandato, a situação em causa pode ser descrita mais precisamente como uma transferência de bens com base no contrato de mandato, no qual o utilizador do cartão/da aplicação é o comitente e a DCS é o agente, em vez de como uma sucessão de acordos bilaterais. Mesmo a redação da questão prejudicial submetida ao Tribunal de Justiça reconhece que a DCS aparece como intermediária.
65. É certo que não existe nenhum pedido expresso por parte do utilizador do cartão/da aplicação à DCS no sentido de comprar eletricidade em seu nome quando de cada carregamento. No entanto, o Tribunal de Justiça já declarou que o comprador não tem de expressamente mandatar o comissário (26). Subsidiariamente, a apresentação do cartão ou da aplicação no posto de carregamento pode ser entendida como um mandato conferido ao agente para comprar uma quantidade específica de eletricidade.
66. Quanto ao segundo requisito, foi alegado que o fornecimento de eletricidade pelo OPC ao cartão do dispositivo não é idêntico ao fornecimento de eletricidade pelo emitente do dispositivo ao utilizador, uma vez que, neste último caso, existem elementos adicionais em relação ao fornecimento de eletricidade (27).
67. Tal poderá ser verdade em determinadas circunstâncias (28).
68. Ora, no caso em apreço, a prestação dos serviços ligados à utilização do cartão ou da aplicação é distinta do fornecimento de eletricidade (v. n.° 29 das presentes conclusões). O fornecimento de eletricidade restante não difere na operação entre o OPC e a DCS e na operação entre a DCS e o utilizador do cartão/da aplicação.
69. Por conseguinte, parece que ambos os requisitos — a existência de um mandato e a identidade das prestações — estão preenchidos nas circunstâncias do presente processo e, por conseguinte, as operações em causa correspondem ao modelo de comissário de compras.
70. Por último, a aplicação do modelo de comissário a uma situação como a do presente processo permitiria ao utilizador do cartão/da aplicação, que é um sujeito passivo, deduzir o IVA, dado que recebe a fatura com IVA da DCS.
D. Modelo de comissário como opção mais adequada nas circunstâncias do presente processo
71. Resulta do que precede que as operações abrangidas pelo modelo de negócio em causa no presente processo podem ser descritas simultaneamente pelo artigo 14.°, n.° 1, e pelo artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA. Tanto o modelo de «compra/revenda» como o modelo de comissário são suscetíveis de descrever estas operações sucessivas e estas entregas em cadeia.
72. A questão que se coloca é saber que disposição deve ser aplicada?
73. Na minha opinião, o modelo de comissário, conforme descrito no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA, é o tratamento em matéria de IVA mais adequado para o modelo de negócio como o do caso em apreço.
74. No que diz respeito à relação entre o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA e o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da mesma diretiva, pode observar‑se que a definição da operação que é objeto do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), não faz nenhuma referência ao «poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário», como figura no artigo 14.°, n.° 1. Assim, o Tribunal de Justiça considerou que, embora agrupando‑as sob o mesmo conceito de «entregas de bens», o legislador da União entendeu distinguir a operação referida no artigo 14.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva IVA da referida no artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva, uma vez que estas duas operações não são definidas nos mesmos termos (29). Por conseguinte, embora ambos tenham por objeto o conceito de «entrega de bens», o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA é autónomo em relação ao artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva (30).
75. Resulta da redação e da estrutura do artigo 14.° da Diretiva IVA, e é confirmado pela jurisprudência, que o n.° 2 deste artigo constitui, relativamente à definição geral enunciada no n.° 1 do mesmo, uma lex specialis, cujos requisitos de aplicação revestem caráter autónomo relativamente aos do referido n.° 1 (31).
76. Quando uma operação pode ser abrangida simultaneamente pelo âmbito de aplicação da regra geral e da lex specialis, deve estar sujeita a esta última, caso contrário a regra especial não teria razão de ser.
77. Além disso, descrever a relação em causa por referência ao artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA implicaria menos «ficção» do que invocar o artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva. A aplicação desta última disposição pressupõe que a eletricidade seja fornecida sucessivamente, mas só seja transportada uma única vez, e que, no entanto, cada uma das partes envolvidas tenha tido a possibilidade de dispor dela como proprietária. O modelo de comissário, nos termos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA em conjugação com o artigo 28.° da mesma diretiva, prevê que se considere que o intermediário tenha recebido e fornecido pessoalmente a eletricidade (v. n.° 59 das presentes conclusões). Por conseguinte, apenas seria necessário pressupor, além disso, que o utilizador do cartão/da aplicação mandatou a DCS para comprar eletricidade por sua conta, mas em seu nome próprio, sempre que utiliza o cartão ou a aplicação (v. n.° 65 das presentes conclusões).
78. Fundamentar o raciocínio no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA permitiria evitar qualquer dificuldade quanto ao facto de dispor do bem corpóreo como proprietário (32).
79. Além disso, basear o raciocínio nesta mesma disposição refletiria melhor a verdadeira natureza das operações económicas e comerciais que implicam dispositivos de carregamento de VE, como os que estão em causa no processo principal.
80. É verdade que o Comité do IVA publicou orientações sobre os dispositivos de carregamento de VE, sugerindo a aplicação do artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA (33). No entanto, estas orientações não são tão simples ou exaustivas quanto se poderia pensar ou esperar.
81. Em primeiro lugar, essas orientações abordam, na sua maioria, a relação entre o OPC e o emitente do dispositivo (34), e não necessariamente todos os modelos de negócio de carregamento de VE.
82. Num modelo em que existem, como no caso em apreço, duas prestações e, consequentemente, duas operações distintas — ou seja, uma prestação de serviços, pela qual é cobrada uma tarifa fixa, independentemente do facto de a eletricidade ser adquirida ou não, e uma entrega de bens, a saber, a eletricidade, faturada no final de cada mês — é igualmente possível aplicar o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA.
83. Na minha opinião, é um indício de que a DCS não atua como um verdadeiro fornecedor de eletricidade porque não assume nenhum risco empresarial nesse fornecimento. Em contrapartida, esta sociedade desempenha um papel económico na entrega de bens no processo principal e pode, assim, ser considerada um intermediário (35).
84. Parece‑me, portanto, mais exato, em termos de realidade económica e comercial, considerar que, no caso de existirem vendas diferentes sobre os mesmos bens, os quais, mediante instruções, são transportados diretamente do primeiro vendedor para o adquirente, com a consequência de que há duas entregas sucessivas, a pessoa que se encontra no meio só intervém como intermediário.
85. Por último, mas não menos importante, se o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA for escolhido para regular a operação como a do caso em apreço, o direito à dedução (36) seria garantido de forma transparente ao utilizador do cartão/da aplicação. Consequentemente, a solução proposta seria conforme com o princípio da neutralidade fiscal (37).
86. Por conseguinte, considero que a opção baseada no artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA é a solução mais adequada em circunstâncias como as do processo principal.
87. Só se os dois requisitos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA (mandato e identidade das prestações) não estiverem preenchidos é que o artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva será aplicável ao processo principal. É ao órgão jurisdicional nacional que compete verificar se os requisitos estão preenchidos.
88. Se o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva IVA for aplicado, como sugerem as Orientações do Comité do IVA relativas aos dispositivos de carregamento de VE (ver n.° 80 das presentes conclusões), então pode considerar‑se a que DCS é um «sujeito passivo revendedor», na aceção do artigo 38.°, n.° 2, desta diretiva, e que o lugar do fornecimento de eletricidade pelo OPC à DCS é o lugar onde o sujeito passivo revendedor (a DCS) tem a sede da sua atividade, em conformidade com o artigo 38.°, n.° 1, da mesma diretiva. Nas circunstâncias do caso em apreço, seria a Alemanha.
89. Em todo o caso, em conformidade com o artigo 39.° da Diretiva IVA, deve considerar‑se que o lugar do fornecimento de eletricidade pela DCS a um utilizador do cartão/da aplicação que carrega o seu VE é o lugar onde o condutor utiliza e consome efetivamente a eletricidade, ou seja, o lugar onde se encontra o posto de carregamento. No caso em apreço, seria a Suécia.
90. Com base no que precede, considero que a Diretiva IVA deve ser interpretada no sentido de que o carregamento de um VE numa rede de postos de carregamento a que um utilizador tem acesso através de uma assinatura contratada com uma sociedade diferente do OPC implica que a eletricidade consumida é fornecida por esse operador a esse utilizador, e que a sociedade que disponibiliza o acesso a esses postos de carregamento atua, no âmbito desse fornecimento, como comissária, na aceção do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), desta diretiva.
91. A título subsidiário, se os dois requisitos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva IVA não estiverem preenchidos, deve considerar‑se que o fornecimento de eletricidade ao utilizador é efetuado pela sociedade que disponibiliza aos utilizadores o acesso a uma rede de postos de carregamento, na aceção do artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva.
V. Conclusão
92. Tendo em conta o que precede, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia) da seguinte forma:
A Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,
deve ser interpretada no sentido de que:
o carregamento de um veículo elétrico numa rede de postos de carregamento a que o utilizador tem acesso através de uma assinatura contratada com uma sociedade diferente do operador de postos de carregamento implica que a eletricidade consumida é fornecida por esse operador a esse utilizador, e que a sociedade que disponibiliza o acesso a esses postos de carregamento atua, no âmbito desse fornecimento, como comissária, na aceção do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), desta diretiva.
A título subsidiário, se os dois requisitos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112 não estiverem preenchidos, deve considerar‑se que o fornecimento de eletricidade ao utilizador é efetuado pela sociedade que disponibiliza aos utilizadores o acesso a uma rede de postos de carregamento, na aceção do artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva.