CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL
JULIANE KOKOTT
apresentadas em 15 de abril de 2021 (1)
Processo C‑490/20
V.М.А.
contra
Stolichna obshtina, rayon «Pancharevo» (Município de Sófia, distrito de Pancharevo, Bulgária)
[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia, Bulgária)]
«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Artigo 21.o TFUE — Direito de livre circulação e de residência no território dos Estados‑Membros — Filho de um casal casado do mesmo sexo nascido num Estado‑Membro — Certidão de nascimento emitida por esse Estado‑Membro, que designa duas mães para a criança, uma das quais nacional de outro Estado‑Membro — Regulamentação nacional desse segundo Estado‑Membro que não admite a emissão de uma certidão de nascimento que designe duas mães — Determinação da filiação da criança — Recusa em indicar a mulher que deu à luz a criança — Artigo 4.o, n.o 2, TUE — Respeito da identidade nacional dos Estados‑Membros — Intensidade da fiscalização jurisdicional»
I. Introdução
1. Deve um Estado‑Membro emitir uma certidão de nascimento na qual estão inscritas duas mulheres como mães, uma das quais é nacional desse Estado‑Membro, para uma criança nascida noutro Estado‑Membro onde essa certidão de nascimento lhe foi emitida? É, em substância, a questão submetida ao Tribunal de Justiça pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia, Bulgária) no presente processo prejudicial.
2. A recusa das autoridades búlgaras de emitir essa certidão de nascimento justifica‑se, no essencial, pelo facto de o direito búlgaro não permitir inscrever duas mães como progenitoras de uma criança num assento de nascimento. Esta impossibilidade decorre do facto de, na Bulgária, prevalecer a conceção da família dita «tradicional» que constitui, segundo as declarações do órgão jurisdicional de reenvio, um valor protegido a título de identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE. Uma vez que isso implica que só pode haver uma mãe de uma criança, as autoridades búlgaras consideram, consequentemente, necessário identificar a mulher que deu à luz a criança para apenas inscrever esta no assento de nascimento, informação que o casal em causa recusa revelar.
3. Assim, a emissão da certidão de nascimento pedida confirmaria, de facto, não só a nacionalidade da criança em causa, como também o seu estatuto de cidadã da União Europeia. Disso depende igualmente a possibilidade de a recorrente no processo principal e a sua esposa virem a ser consideradas como sendo as progenitoras da sua filha por força do direito nacional do Estado‑Membro de origem de uma delas. Foi nestas condições que o órgão jurisdicional de reenvio submeteu ao Tribunal de Justiça a questão de saber se a recusa de emissão de uma certidão de nascimento búlgara que reconheça os vínculos de parentesco constituídos em Espanha é contrária ao artigo 21.o, n.o 1, TFUE e aos direitos fundamentais da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), nomeadamente aos seus artigos 7.o e 24.o, n.o 2.
4. Esta questão reveste caráter muito sensível, tendo em conta a competência exclusiva que detêm os Estados‑Membros no domínio da nacionalidade e do direito da família e as diferenças consideráveis que existem atualmente na União quanto ao estatuto jurídico e aos direitos reconhecidos aos casais do mesmo sexo. Além disso, tem uma importância prática significativa, como demonstra o processo C‑2/21, Rzecznik Praw Obywatelskich, atualmente pendente no Tribunal de Justiça, cujo quadro factual e jurídico é muito semelhante ao do presente processo e que suscita em parte questões quase idênticas.
II. Quadro jurídico
A. Direito da União
1. Regulamento (UE)2016/1191
5. O Regulamento (UE) 2016/1191 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de julho de 2016, relativo à promoção da livre circulação dos cidadãos através da simplificação dos requisitos para a apresentação de certos documentos públicos na União Europeia e que altera o Regulamento (UE) n.o 1024/2012 (2) dispensa de legalização ou de uma formalidade semelhante certos documentos públicos emitidos pelas autoridades de um Estado‑Membro em conformidade com o seu direito nacional, cuja finalidade seja comprovar, designadamente, o nascimento e a filiação. Em conformidade com o seu artigo 2.o, n.o 1, é aplicável quando esses documentos tenham de ser apresentados às autoridades de outro Estado‑Membro.
6. Em conformidade com o seu considerando 7, este regulamento não deverá obrigar os Estados‑Membros a emitir documentos públicos que não existam no seu direito nacional.
7. O artigo 2.o, n.o 4, do referido regulamento prevê que não se aplica ao reconhecimento, por um Estado‑Membro, dos efeitos jurídicos ligados ao conteúdo dos documentos públicos emitidos pelas autoridades de outro Estado‑Membro.
2. Diretiva2004/38/CE
8. A Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (3), define, no seu artigo 2.o, ponto 2, os «Membro[s] da família» de um cidadão da União como sendo:
«a) O cônjuge;
b) O parceiro com quem um cidadão da União contraiu uma parceria registada com base na legislação de um Estado‑Membro, se a legislação do Estado‑Membro de acolhimento considerar as parcerias registadas como equiparadas ao casamento, e nas condições estabelecidas na legislação aplicável do Estado‑Membro de acolhimento;
c) Os descendentes diretos com menos de 21 anos de idade ou que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou do parceiro na aceção da alínea b);
d) Os ascendentes diretos que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou do parceiro na aceção da alínea b);»
9. Esta diretiva prevê, no seu artigo 4.o, epigrafado «Direito de saída»:
«(1) Sem prejuízo das disposições em matéria de documentos de viagem aplicáveis aos controlos nas fronteiras nacionais, têm direito a sair do território de um Estado‑Membro a fim de se deslocar a outro Estado‑Membro todos os cidadãos da União, munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido, e os membros das suas famílias que, não tendo a nacionalidade de um Estado‑Membro, estejam munidos de um passaporte válido.
[…]
(3) Os Estados‑Membros, agindo nos termos do respetivo direito, devem emitir ou renovar aos seus nacionais um bilhete de identidade ou passaporte que indique a nacionalidade do seu titular.
[…]»
B. Direito búlgaro
10. Nos termos do artigo 46.o, n.o 1, da Constituição da Bulgária, que consta do seu capítulo 2, com a epígrafe «Principais direitos e obrigações dos cidadãos», «[o] casamento é uma união voluntária entre um homem e uma mulher».
11. No estado atual, o direito búlgaro não permite o casamento nem qualquer outra forma de união que produza efeitos jurídicos entre pessoas do mesmo sexo.
12. A filiação é regulada pelo capítulo VI do Semeen kodeks (Código da Família) (4). Nos termos do seu artigo 60.o, n.os 1 e 2:
«(1) A filiação em relação à mãe é determinada pelo nascimento.
(2) A mãe da criança é a mulher que a deu à luz, inclusive no caso de procriação assistida.»
13. O artigo 61.o do Código da Família prevê:
«(1) O esposo da mãe é considerado o pai da criança nascida durante o casamento ou no prazo de trezentosdias subsequentes à sua dissolução.
(2) Se a criança nascer dentro de trezentos dias após a dissolução do casamento, mas depois de a mãe ter voltado a casar, o novo esposo da mãe é considerado o pai da criança.
[…]»
14. Em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família, quando a filiação de uma criança em relação a um dos seus progenitores é desconhecida, qualquer dos progenitores pode reconhecer o seu filho. Esse reconhecimento é feito segundo o artigo 65.o desse mesmo código, mediante declaração unilateral junto do agente civil ou de uma declaração com assinatura certificada conforme por um notário.
15. O naredba no RD‑02‑20‑9, de 21 de maio de 2012, sobre o funcionamento do sistema único de registo do estado civil, do Ministro do Desenvolvimento Regional e do Ordenamento do Território (a seguir «Regulamento n.o RD‑02‑20‑9») (5) prevê, no seu artigo 12.o:
«(1) Em caso de registo de um nascimento ocorrido no estrangeiro, as informações relativas ao nome do titular, à data e ao local de nascimento, ao sexo e à filiação estabelecida são inscritas no assento de nascimento conforme constam da cópia ou da tradução em língua búlgara do documento estrangeiro apresentado.
[…]
(3) Quando a filiação relativa a um progenitor (mãe ou pai) não estiver estabelecida, quando do registo de um assento de nascimento na República da Bulgária, o campo correspondente, destinado aos dados desse progenitor, não é preenchido e é trancado.
(4) Se a cópia ou o extrato não contiverem todos os dados necessários relativos aos progenitores, recorre‑se aos dados dos seus documentos de identidade ou do registo da população. As informações relativas ao número de identificação pessoal, à data de nascimento, ao patronímico (se o houver) e à nacionalidade do progenitor nacional búlgaro são completadas com base no registo da população. A data de nascimento e a nacionalidade do progenitor, cidadão estrangeiro, podem ser completadas com o seu documento de identificação nacional. Em caso de impossibilidade de completar todos os dados relativos a esse progenitor, o assento contém apenas as informações disponíveis.
[…]»
III. Factos e litígio no processo principal
16. V.M.A., a recorrente no processo principal, é uma nacional búlgara, ao passo que a sua esposa é uma nacional do Reino Unido, nascida em Gibraltar, onde as duas mulheres se casaram em 2018. Desde 2015, residem em Espanha. Em dezembro de 2019, tiveram uma filha que nasceu e que reside com os seus dois progenitores, igualmente em Espanha. A certidão de nascimento desta menina, emitida pelas autoridades espanholas, designa a recorrente no processo principal como «mãe A» e a sua esposa como «mãe» da criança.
17. Em 29 de janeiro de 2020, a recorrente no processo principal pediu à autoridade competente, a saber, a Stolichna obshtina (município de Sófia, Bulgária) que lhe emitisse uma certidão de nascimento da sua filha, certidão esta necessária, nomeadamente, para a emissão de um documento de identidade búlgaro. Em apoio desse pedido, apresentou uma tradução em língua búlgara, legalizada e certificada conforme, do extrato do registo civil de Barcelona (Espanha) relativo ao assento de nascimento da criança.
18. Por correio eletrónico de 7 de fevereiro de 2020, o município de Sófia comunicou à recorrente no processo principal que apresentasse, no prazo de 7 dias, provas relativas à filiação da criança no que respeita à sua mãe biológica. Argumentou, a este respeito, que o modelo de assento de nascimento que faz parte do direito nacional em vigor prevê apenas um único campo para a «mãe» e um outro campo para o «pai», podendo um só nome ser inscrito em cada um dos campos.
19. Em 18 de fevereiro de 2020, a recorrente no processo principal respondeu a esse pedido que não podia prestar a informação pedida e que, ao abrigo da legislação búlgara, não era obrigada a fazê‑lo.
20. Por Decisão de 5 de março de 2020, o município de Sófia indeferiu o pedido de emissão de uma certidão de nascimento. Fundamentou essa decisão de indeferimento pela falta de informações relativas à mãe biológica da criança e pelo facto de a inscrição de dois progenitores do sexo feminino num assento de nascimento ser contrária à ordem pública da Bulgária, que não autoriza os casamentos entre duas pessoas do mesmo sexo.
21. A recorrente no processo principal interpôs então recurso dessa decisão de indeferimento para o órgão jurisdicional de reenvio, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia).
22. Este órgão jurisdicional refere que, por força do artigo 25.o, n.o 1, da Constituição da Bulgária e do artigo 8.o da Zakon za balgarskoto grazhdanstvo (Lei Relativa à Nacionalidade Búlgara), a criança tem a nacionalidade búlgara, ainda que, até à data, não tenha um assento de nascimento búlgaro. Com efeito, a falta de emissão desse ato não constitui uma recusa de conceder a nacionalidade búlgara.
23. O Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia) tem dúvidas quanto à questão de saber se a recusa das autoridades búlgaras de registar o nascimento de uma nacional búlgara, que se verificou noutro Estado‑Membro e que foi atestado por uma certidão de nascimento que menciona duas mães, emitida por este último Estado‑Membro, viola os direitos conferidos à referida nacional búlgara pelos artigos 20.o e 21.o TFUE, e pelos artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta. Com efeito, a recusa de emissão de uma certidão de nascimento búlgara é suscetível de provocar sérios obstáculos administrativos à emissão de documentos de identidade búlgaros e, portanto, tornar mais difícil para a criança o exercício do direito à livre circulação e, assim, o pleno gozo dos seus direitos de cidadã da União.
24. Além disso, na medida em que a outra mãe da criança é nacional do Reino Unido, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre se as consequências jurídicas que decorrem da saída do Reino Unido da União, nomeadamente o facto de a criança já não poder usufruir do estatuto de cidadã da União por intermédio da nacionalidade da sua outra mãe, são pertinentes para a apreciação desta questão.
25. Ao mesmo tempo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta‑se se a obrigação imposta, se for caso disso, às autoridades búlgaras, quando da emissão de uma certidão de nascimento, de inscrever no assento de nascimento búlgaro duas mães como progenitores não viola a identidade nacional da República da Bulgária, que não previu a possibilidade de inscrever no assento de nascimento dois progenitores do mesmo sexo. Esse órgão jurisdicional salienta, a este respeito, que as disposições legais que regulam a filiação da criança revestem uma importância fundamental na tradição constitucional búlgara, bem como na doutrina búlgara em matéria de direito da família e das sucessões, tanto do ponto de vista meramente jurídico como do ponto de vista dos valores, tendo em conta o estádio atual de evolução da sociedade na Bulgária.
26. Assim, esse órgão jurisdicional suscita a questão de saber se é necessário encontrar um equilíbrio entre os diferentes interesses legítimos em presença no caso em apreço: por um lado, a identidade nacional da República da Bulgária e, por outro, os interesses, nomeadamente o direito à vida privada e à livre circulação da criança, que em nada é responsável pelos diferentes escalões de valores de sociedade entre Estados‑Membros da União. A este respeito, interroga‑se, nomeadamente, sobre se esse equilíbrio pode ser alcançado aplicando o princípio da proporcionalidade. Mais especificamente, pretende saber se pode ser alcançado um equilíbrio aceitável entre esses diferentes interesses legítimos se se inscrevesse, na rubrica «mãe», uma das duas mulheres referidas na certidão de nascimento espanhola, isto é, ou a mãe biológica da criança ou a sua esposa que se tornou mãe da criança segundo outro processo (por exemplo, uma adoção), deixando por preencher a rubrica «pai».
27. Por último, se o Tribunal de Justiça concluir que o direito da União exige a inscrição das duas mães da criança no assento de nascimento búlgaro, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta como deve esta exigência ser executada, sabendo‑se que não pode substituir o modelo de assento de nascimento em vigor.
IV. Pedido de decisão prejudicial e tramitação processual no Tribunal de Justiça
28. Por Decisão de 2 de outubro de 2020, que deu entrada no mesmo dia no Tribunal de Justiça, o Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) Devem os artigos 20.o e 21.o TFUE, bem como os artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta […] ser interpretados no sentido de que não permitem às autoridades administrativas búlgaras, às quais foi apresentado um pedido de certificação do nascimento de uma criança de nacionalidade búlgara, ocorrido noutro Estado‑Membro da União Europeia, comprovado por um assento de nascimento espanhol, em que estão registadas como mães duas pessoas de sexo feminino, sem se especificar se uma delas e, em caso afirmativo, qual delas é a mãe biológica, negar a emissão de um assento de nascimento búlgaro, com o fundamento de que a recorrente recusa indicar qual é a mãe biológica da criança?
2) Devem o artigo 4.o, n.o 2, TUE e o artigo 9.o da Carta […] ser interpretados no sentido de que o respeito da identidade nacional e da identidade constitucional dos Estados‑Membros […] implica que estes últimos dispõem de um amplo poder de apreciação no que respeita às regras de estabelecimento da filiação? Em particular:
– Deve o artigo 4.o, n.o 2, TUE ser interpretado no sentido de que permite aos Estados‑Membros solicitar informações sobre a filiação biológica da criança?
– Deve o artigo 4.o, n.o 2, TUE, lido em conjugação com o artigo 7.o e o artigo 24.o, n.o 2, da Carta, ser interpretado no sentido de que, para obter um equilíbrio de interesses, é indispensável ponderar, por um lado, a identidade nacional e a identidade constitucional de um Estado‑Membro e, por outro, o superior interesse da criança, tendo em conta que não existe atualmente, nem no que respeita aos valores nem no plano jurídico, um consenso sobre a possibilidade de registar como progenitores no assento de nascimento pessoas do mesmo sexo, sem se especificar se uma delas e, em caso afirmativo, qual delas é o progenitor biológico da criança? Se for dada resposta afirmativa a esta questão, como pode esse equilíbrio de interesses ser concretamente alcançado?
3) São relevantes para a resposta à primeira questão as consequências jurídicas do Brexit, na medida em que uma mãe, referida no assento de nascimento emitido noutro Estado‑Membro, é nacional do Reino Unido e a outra mãe é nacional de um Estado‑Membro […], tendo em conta que a recusa de emissão de um assento de nascimento búlgaro constitui um obstáculo à emissão, por um Estado‑Membro […], de um documento de identidade da criança e pode, por isso, dificultar o pleno exercício dos seus direitos como cidadã da União?
4) Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: o direito da União, em especial o princípio da efetividade, impõe às autoridades nacionais competentes que derroguem o modelo de redação de um assento de nascimento, que faz parte integrante do direito nacional vigente?»
29. Em 19 de outubro de 2020, o presidente do Tribunal de Justiça deferiu o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de que o presente processo fosse submetido a tramitação prejudicial acelerada, em conformidade com o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.
30. A recorrente no processo principal, os Governos alemão, espanhol, italiano, húngaro, polaco e eslovaco, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas quanto às questões prejudiciais. Na audiência de 9 de fevereiro de 2021, intervieram a recorrente no processo principal, os Governos búlgaro, espanhol, húngaro, italiano, neerlandês e polaco, bem como a Comissão.
V. Apreciação
A. Quanto às premissas factuais do processo principal e ao seu impacto na análise das questões prejudiciais
31. Antes de mais, é necessário clarificar algumas premissas factuais do despacho de reenvio que foram contestadas pelo Governo búlgaro na audiência, bem como o seu impacto na análise das questões prejudiciais.
32. O órgão jurisdicional de reenvio afirma várias vezes no despacho de reenvio que é pacífico que a criança tem a nacionalidade búlgara por força do artigo 25.o, n.o 1, da Constituição da Bulgária. Em conformidade com esta disposição, «[tem] a nacionalidade búlgara qualquer pessoa de que pelo menos um dos progenitores seja de nacionalidade búlgara […]». A este respeito, o Governo búlgaro confirmou, na audiência no Tribunal de Justiça, que a aquisição da nacionalidade búlgara ao abrigo da referida disposição é feita de pleno direito, ou seja, que nenhum ato administrativo que atribua a nacionalidade é necessário.
33. Ora, dado que, nos termos do artigo 60.o, n.o 2, do Código da Família, a mãe da criança é «a mulher que a deu luz» (a seguir «mãe biológica»), e que esta informação está precisamente em falta no litígio no processo principal, o Governo búlgaro contestou, na audiência, a afirmação do órgão jurisdicional de reenvio de que é pacífico que a criança tem nacionalidade búlgara. Por outras palavras, a Bulgária não reconhece a filiação entre a recorrente no processo principal e a criança e, portanto, o facto de esta ter a nacionalidade búlgara, com base unicamente na apresentação da certidão de nascimento espanhola.
34. É certo que o Governo búlgaro também sublinhou que bastaria, para efeitos da concessão da nacionalidade búlgara à criança, que a recorrente no processo principal reconhecesse a sua maternidade em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família. Esta possibilidade não está reservada a um homem numa relação heterossexual nem sujeita à prova da filiação biológica. Por outras palavras, mesmo que a recorrente no processo principal não fosse a mãe biológica na aceção do artigo 60.o, n.o 2, do Código da Família, poderia assim adquirir o estatuto de mãe da criança por força do direito búlgaro (e tornar‑se no que a seguir chamaremos «mãe legal»). No entanto, isso teria como consequência, ainda segundo as explicações do Governo búlgaro, eliminar qualquer relação de filiação entre a criança e a sua mãe biológica por força do direito búlgaro.
35. A este respeito, há que recordar que não cabe ao Tribunal de Justiça, no âmbito do procedimento de cooperação instituído pelo artigo 267.o TFUE, pôr em causa a apreciação dos factos à luz da legislação nacional aplicável tal como foi efetuada pelo órgão jurisdicional de reenvio (6). Nestas condições, o Tribunal de Justiça está, em princípio, vinculado pela hipótese de que a criança tem a nacionalidade búlgara.
36. Ora, tendo em conta as incertezas aparentes que rodeiam esta questão e a fim de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que examinar o presente processo sob duas hipóteses.
37. A primeira é aquela em que a criança não adquiriu a nacionalidade búlgara de pleno direito, uma vez que a recorrente no processo principal não é a sua mãe biológica nem pode adquiri‑la no futuro, uma vez que a recorrente também não deseja reconhecer a sua maternidade em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família. A segunda hipótese é aquela em que a adquiriu porque a recorrente no processo principal é, com efeito, a sua mãe biológica, ou pode adquiri‑la pelo facto de a recorrente ter reconhecido a sua maternidade em conformidade com o artigo 64.o deste código.
38. Embora, na primeira hipótese, a criança não seja cidadã da União ao abrigo do artigo 20.o, n.o 1, segunda frase, TFUE, há, todavia, que sublinhar que a situação no processo principal não escapa, no entanto, ao âmbito de aplicação do direito da União. Com efeito, nesta hipótese, coloca‑se a questão de saber se uma cidadã da União — a recorrente no processo principal — que fez uso do seu direito à livre circulação e que se tornou mãe de uma criança juntamente com a sua esposa por força do direito nacional de outro Estado‑Membro, pode exigir do seu Estado‑Membro de origem o reconhecimento dessa situação e a emissão, para esse efeito, de uma certidão de nascimento que designa as duas mulheres como progenitoras da criança em causa. Com efeito, a formulação da primeira e da segunda questões prejudiciais não exclui que estas sejam analisadas, do ponto de vista da recorrente no processo principal, dado que não se referem expressa ou exclusivamente ao direito à livre circulação da criança.
39. Do mesmo modo, no que respeita à segunda hipótese, há que salientar que as questões prejudiciais de modo algum ficavam sem objeto se a maternidade (biológica ou legal) da recorrente no processo principal fosse demonstrada. É certo que a formulação da primeira questão prejudicial pode dar a impressão de que a emissão de uma certidão de nascimento búlgara depende apenas da identificação da mãe (biológica) da criança. Ora, na realidade, mesmo a identificação da recorrente como mãe da criança não alteraria em nada o facto de as autoridades búlgaras não estarem dispostas a emitir a certidão de nascimento pedida que designa, à semelhança da certidão de nascimento espanhola, a recorrente no processo principal e a sua esposa como mães da criança. Esta circunstância foi confirmada pelo Governo búlgaro na audiência. A recusa de emissão da certidão de nascimento pedida gera, além disso, a impossibilidade de facto de a criança obter um documento de identidade búlgaro. Por conseguinte, coloca‑se sempre a questão da compatibilidade desta situação com os artigos 20.o e 21.o TFUE e com os artigos 7.o, 24.o e 45.o da Carta.
40. Portanto, seja como for, o Tribunal de Justiça deverá responder à questão de saber se o direito da União obriga um Estado‑Membro a reconhecer, para efeitos da emissão de uma certidão de nascimento, a filiação de uma criança em relação a um casal de mulheres casadas tal como esta foi determinada num documento público emitido por outro Estado‑Membro ou se, pelo contrário, esse primeiro Estado‑Membro é livre de determinar a filiação em conformidade com o seu direito nacional, quando isso implica reconhecer apenas uma mulher como mãe (7).
41. A questão de saber se as autoridades búlgaras podem exigir informações sobre a identidade da mãe biológica da criança, adiantada pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua primeira questão prejudicial, não tem, portanto, um caráter independente. Com efeito, embora a Bulgária deva reconhecer a filiação da criança no que respeita às duas mulheres designadas como mães no assento de nascimento espanhol, a identificação da mãe biológica passa para segundo plano, dado que as autoridades búlgaras seriam, de qualquer modo, obrigadas a inscrever as duas mulheres como mães no assento de nascimento. Em contrapartida, embora a Bulgária tenha liberdade para determinar a filiação em conformidade com o seu direito nacional, isso implica necessariamente que pode considerar apenas uma mulher como a mãe da criança, quer seja a mãe biológica ou a que a tenha reconhecido.
B. Abordagem a seguir
42. Tendo em conta as considerações precedentes, há que tratar em conjunto a primeira e segunda questões prejudiciais, tal como foram circunscritas no n.o 40 das presentes conclusões. Neste contexto, será igualmente dada resposta à terceira questão prejudicial, que diz respeito às consequências do Brexit para a situação do processo principal.
43. Assim, para responder a estas questões há que examinar, em primeiro lugar, se a recusa de emissão da certidão de nascimento pedida constitui, no que respeita a cada uma das hipóteses evocadas no n.o 37, supra, isto é, quer a criança tenha a nacionalidade búlgara ou não, um entrave aos direitos consagrados na segunda parte do TFUE, nomeadamente ao direito dos cidadãos da União de circularem e residirem livremente no território da União ao abrigo do artigo 21.o, n.o 1, TFUE.
44. Em segundo lugar, há que averiguar se um eventual entrave à livre circulação pode ser justificado, nomeadamente tendo em conta o artigo 4.o, n.o 2, TUE, que garante o respeito da identidade nacional dos Estados‑Membros. O órgão jurisdicional de reenvio aborda este aspeto mais detalhadamente no âmbito da sua segunda questão prejudicial. A este respeito, trata‑se, nomeadamente, de determinar se a invocação da identidade nacional exige uma ponderação com outros interesses, como os direitos fundamentais da Carta referidos na primeira questão prejudicial, e qual é, sendo caso disso, a intensidade da fiscalização exercida pelo Tribunal de Justiça.
45. Esta análise será antes de mais efetuada para a primeira hipótese evocada no n.o 37, supra, a saber, aquela em que a criança não tem a nacionalidade búlgara. Neste contexto, também será dada resposta à questão, suscitada pelo menos implicitamente na audiência, de saber se a República da Bulgária pode eventualmente ser obrigada, nas circunstâncias do caso em apreço, a conceder a nacionalidade ao filho da recorrente no processo principal (secção C).
46. Em seguida, será examinada a hipótese de a criança ter a nacionalidade búlgara (secção D).
47. Por último, em resposta à quarta questão prejudicial, iremos expor algumas considerações práticas para guiar o órgão jurisdicional de reenvio na execução da solução preconizada (secção E).
C. Quanto à primeira e segunda questões prejudiciais, na hipótese de a criança não ter a nacionalidade búlgara
1. Quanto ao entrave à livre circulação dos cidadãos da União
a) Quanto ao entrave aos direitos da criança
48. Por força do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação. Para garantir na prática o exercício deste direito, os Estados‑Membros, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, devem emitir aos seus nacionais um bilhete de identidade.
49. Relativamente a esta última obrigação, importa salientar, desde já, que as autoridades búlgaras não têm competência para emitir um documento de identidade para a criança, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, da referida diretiva, se esta não tiver nacionalidade búlgara.
50. Quanto à questão de saber se as autoridades búlgaras podem ser obrigadas a conceder‑lhe a nacionalidade búlgara, nas circunstâncias do caso em apreço, importa recordar, por um lado, que a definição das condições de aquisição e perda da nacionalidade está abrangida, em conformidade com o direito internacional, na competência de cada Estado Membro (8).
51. Por outro lado, em relação à reserva de que os Estados‑Membros, no exercício dessa competência, devem respeitar o direito da União (9), importa recordar que essa reserva não é aplicável quando esse exercício afeta os direitos conferidos e protegidos pela ordem jurídica da União (10). Por outras palavras, só no caso de restringir os direitos que decorrem do estatuto da União é que um ato que condicione a aquisição ou a perda da nacionalidade de um Estado‑Membro pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação do direito da União (11). Em contrapartida, se a pessoa nunca adquiriu os direitos que decorrem do estatuto de cidadão da União, esse ato não pode, à partida, restringir esses direitos. Portanto, não se pode considerar que a situação dessa pessoa é abrangida pelo direito da União «tendo em atenção a sua natureza e as suas consequências» (12).
52. É por esta razão que, na hipótese de a criança não ter adquirido a nacionalidade búlgara, não se pode examinar a questão de saber se a República da Bulgária pode ser obrigada a conceder‑lhe a nacionalidade por força dos artigos 20.o e 21.o TFUE do ponto de vista da criança (13).
53. Para todos os efeitos, há que sublinhar, neste contexto, que o Governo espanhol confirmou na audiência que, na hipótese de a criança não poder adquirir nem a nacionalidade búlgara nem a do Reino Unido (14), a criança tem o direito de reivindicar a nacionalidade espanhola, em conformidade com o artigo 17.o do Código Civil espanhol. Por conseguinte, não há o risco de a criança se tornar apátrida.
54. Portanto, se a criança não tiver a nacionalidade búlgara, não goza dos direitos decorrentes do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, nem dos artigos 20.o e 21.o TFUE, reservados aos cidadãos da União. Por conseguinte, a recusa por parte das autoridades búlgaras de emissão de uma certidão de nascimento búlgara para a criança que designa, à semelhança da certidão de nascimento espanhola, a recorrente no processo principal e a sua esposa como suas mães, bem como a recusa de emitir um documento de identidade búlgaro para essa criança, não podem violar esses direitos.
b) Quanto ao entrave aos direitos da recorrente no processo principal
55. Importa recordar que, na hipótese aqui examinada, a recorrente no processo principal não é a mãe biológica da criança e não deseja reconhecer a sua maternidade em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família (15).
56. A recusa de emitir a certidão de nascimento pedida pode, no entanto, constituir um entrave ao seu direito à livre circulação, dado que adquiriu legalmente o estatuto de mãe da criança ao abrigo da lei espanhola.
57. Um assento de nascimento reflete a filiação de uma pessoa tal como essa filiação foi estabelecida pelas autoridades competentes. Nesta ótica, resulta do pedido de decisão prejudicial e das explicações fornecidas pelo Governo búlgaro na audiência que uma transcrição do assento de nascimento espanhol teria como consequência prática conferir a qualidade de mãe à recorrente no processo principal e à sua esposa. Inversamente, se uma das duas mulheres não constar desse documento, ela não será considerada a mãe da criança na aceção do direito da família búlgaro.
58. A este respeito, é efetivamente verdade que o direito da União não regula, no estado atual da sua evolução, as normas relativas ao estabelecimento do estado civil de uma pessoa (16) e, mais especificamente, à filiação. Isto não significa, porém, que uma medida nacional adotada neste domínio não possa constituir um entrave aos direitos e liberdades fundamentais garantidos pelos Tratados. Com efeito, é jurisprudência constante que, quando uma situação é abrangida pelo âmbito de aplicação material dos Tratados, os Estados‑Membros devem exercer as suas competências no respeito do direito da União (17).
59. Não há dúvida de que a situação da recorrente no processo principal, que é uma nacional búlgara residente em Espanha, é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, e que pode invocar direitos que daí decorrem igualmente face ao seu Estado‑Membro de origem (18). A este respeito, há que recordar que pode constituir um entrave à livre circulação dos cidadãos qualquer medida nacional que seja suscetível de afetar ou de tornar menos atrativo o exercício dessa liberdade pelos nacionais da União (19).
60. Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que os direitos reconhecidos aos nacionais dos Estados‑Membros pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE incluem o de manter uma vida familiar normal tanto no Estado‑Membro de acolhimento como no Estado‑Membro de que são nacionais, quando do seu regresso a esse Estado‑Membro, beneficiando aí da presença, a seu lado, dos membros da sua família (20).
61. O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de esclarecer neste contexto que os «membros da família» são em todo o caso os referidos no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38 (21). Esta disposição refere‑se, nomeadamente, ao «cônjuge» de um cidadão da União [alínea a)] e aos seus «descendentes diretos» [alínea c)]. Ora, o facto de não qualificar de «membro da família» o cônjuge do mesmo sexo de um cidadão da União com o qual este último celebrou validamente um casamento ao abrigo da legislação de um Estado‑Membro, pelo facto de o direito de um outro Estado‑Membro não prever essa possibilidade poderia fazer variar os direitos decorrentes do artigo 21.o, n.o 1, TFUE de um Estado‑Membro para outro, em função das disposições do seu direito nacional (22). Por esta mesma razão, o Tribunal de Justiça considerou que o conceito de «descendente direto» deve ser objeto de interpretação uniforme em toda a União (23). No caso em apreço, é pacífico que tanto a recorrente no processo principal como a sua esposa adquiriram validamente o estatuto de progenitor da criança nos termos do direito espanhol (24) e que, por outro lado, têm uma vida familiar efetiva com a sua filha em Espanha.
62. Ora, a falta de reconhecimento dessas relações de parentesco estabelecidas em Espanha criaria sérios obstáculos a uma vida familiar na Bulgária. Com efeito, o estatuto de membro da família está na base de muitos direitos e obrigações que decorrem simultaneamente do direito da União e do direito nacional. Para dar apenas alguns exemplos, a começar pelas incertezas quanto ao direito de residência da criança na Bulgária, passando por obstáculos em matéria de guarda e de segurança social, esta recusa tem igualmente consequências em matéria matrimonial e sucessória. Nestas condições, não há nenhuma dúvida de que a falta de reconhecimento das relações de parentesco estabelecidas em Espanha pode dissuadir a recorrente no processo principal de regressar ao seu Estado‑Membro de origem.
63. É certo que, como indicado no n.o 34, supra, mesmo que não seja a mãe biológica da criança, a recorrente no processo principal poderia reconhecer a sua maternidade em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família. No entanto, o reconhecimento da maternidade implica necessariamente a exclusão do reconhecimento de uma outra mulher, e, em particular, da sua esposa, enquanto mãe (25).
64. Por conseguinte, isso impediria a recorrente no processo principal, no caso do seu regresso à Bulgária, de continuar a vida familiar que teve em Espanha. Concretamente, teria de assumir sozinha todas as obrigações parentais que exigem a prova do estatuto de progenitor, quer sejam a matrícula escolar, as decisões médicas ou qualquer tipo de diligência administrativa em nome da criança, uma vez que a sua esposa estaria excluída do estatuto de mãe. Além disso, nesta perspetiva, esta última, que também adquiriu legalmente o estatuto de mãe, e, portanto, o direito de guarda da criança no Estado‑Membro de residência do casal, a saber em Espanha, poderia opor‑se a um regresso da criança à Bulgária. Isto é igualmente suscetível de dissuadir a recorrente no processo principal de regressar ao seu Estado‑Membro de origem.
65. Em contrapartida, o facto de não conceder a nacionalidade búlgara à criança não constitui, por si só, um entrave ao direito de livre circulação da recorrente no processo principal. Com efeito, enquanto os vínculos familiares estabelecidos em Espanha forem respeitados e reconhecidos para efeitos da aplicação das regras da União em matéria de livre circulação (26), o simples facto de não ser concedida ao filho de uma cidadã da União a nacionalidade de um Estado‑Membro em consequência desses vínculos não é suscetível de entravar a livre circulação da cidadã da União em causa. Como se expôs supra, os Estados‑Membros continuam, em princípio, a ter liberdade para definir as condições de aquisição e de perda da nacionalidade (27). Não são, nomeadamente, obrigados, por força do direito da União, a conceder a nacionalidade aos descendentes diretos dos seus cidadãos. Esta consideração é ilustrada pela própria existência da Diretiva 2004/38, que tem precisamente por objeto garantir a livre circulação dos cidadãos da União conjuntamente com os seus membros da família, entre os quais, nomeadamente, os seus descendentes diretos, que são nacionais de Estados terceiros.
c) Conclusão intercalar
66. Na hipótese de a criança não ter a nacionalidade búlgara, não pode invocar os direitos decorrentes do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 nem os que decorrem dos artigos 20.o e 21.o TFUE. Estas últimas disposições também não lhe conferem o direito de reivindicar a concessão da nacionalidade búlgara.
67. Contudo, nessa mesma hipótese, a recusa das autoridades búlgaras em lavrar um assento de nascimento búlgaro que designe, à semelhança das autoridades espanholas, a recorrente no processo principal e a sua esposa como progenitores da criança, constitui um entrave ao direito da recorrente no processo principal por força do artigo 21.o, n.o 1, TFUE.
2. Quanto à justificação do entrave ao direito à livre circulação da recorrente no processo principal
68. Segundo jurisprudência constante, um entrave à livre circulação de pessoas pode ser justificado se assentar em considerações objetivas e se for proporcionado ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional (28).
69. No caso em apreço, as autoridades búlgaras alegam que a inscrição num assento de nascimento de um casal casado do mesmo sexo, enquanto progenitores de uma criança, violaria a identidade nacional da República da Bulgária na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE. Por conseguinte, importa, antes de mais, examinar se a República da Bulgária pode invocar neste contexto uma violação da sua identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE [secção a)]. Em caso afirmativo, há, em seguida, que examinar as consequências jurídicas dessa invocação, nomeadamente sobre a intensidade da fiscalização exercida pelo Tribunal de Justiça [secção b)], antes de proceder, por último, ao exame do caso em apreço [secção c)].
a) Quanto ao conceito de «identidade nacional» na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE
70. Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita a identidade nacional inerente às estruturas fundamentais políticas e constitucionais dos Estados‑Membros. Esta limitação às estruturas fundamentais políticas e constitucionais demonstra que o artigo 4.o, n.o 2, TUE não opera uma simples remissão para as conceções do direito constitucional dos Estados‑Membros, mas que introduz um conceito autónomo do direito da União cuja interpretação incumbe ao Tribunal de Justiça. No entanto, o conteúdo preciso deste conceito é suscetível de variar de um Estado‑Membro para outro e, pela sua própria natureza, não pode ser determinado sem ter em conta as conceções acolhidas pelos Estados‑Membros da sua identidade nacional.
71. A este respeito, a obrigação da União de respeitar a identidade nacional dos Estados‑Membros pode, com efeito, ser entendida como uma obrigação de respeitar a pluralidade de conceções e, portanto, as diferenças que caracterizam cada Estado‑Membro (29). A identidade nacional garante assim a divisa da União, tal como foi consagrada pela primeira vez no artigo I‑8 do projeto de um Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (a seguir «Tratado constitucional») (30), a saber, «Unida na diversidade».
72. É por esta razão que o conceito de identidade nacional não pode ser objeto de uma interpretação abstrata ao nível da União.
73. Com efeito, constituem o ponto de partida da interpretação do artigo 4.o, n.o 2, TUE as indicações do órgão jurisdicional de reenvio e do Estado‑Membro em causa (31), que dispõe a este respeito de uma ampla margem de apreciação (32). Esta encontra, no entanto, um limite na obrigação de cooperação leal inscrita no n.o 3 desta mesma disposição (33). Além disso, só pode ser protegida nos termos do artigo 4.o, n.o 2, TUE uma conceção da identidade nacional que esteja em conformidade com os valores fundamentais da União consagrados, nomeadamente, no artigo 2.o TUE (34).
74. No caso em apreço, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a violação da identidade nacional búlgara reside no facto de o assento de nascimento pedido se afastar da conceção da família tradicional, consagrada no artigo 46.o, n.o 1, da Constituição da Bulgária, que constitui, no plano jurídico, o fundamento do direito da família e das sucessões e um dos valores fundamentais da sociedade búlgara. Esta conceção implica necessariamente que apenas pode haver uma única mãe (e um único pai) para uma criança.
75. Atualmente, não há consensus, na União, no que respeita às condições prévias para o acesso às instituições fundamentais do direito da família. São as normas nacionais que regulam o casamento (ou o divórcio) e a filiação (ou até a procriação) que definem os vínculos familiares que constituem o próprio objeto desta matéria. No que respeita, por exemplo, ao divórcio, foram constatadas divergências conceptuais insuperáveis quando da elaboração de um regulamento sobre a lei aplicável a esta instituição, que conduziram ao fracasso a iniciativa legislativa da Comissão e à implementação de uma cooperação reforçada em seu lugar (35). No que respeita ao casamento, apenas treze dos 27 Estados‑Membros da União abriram, até hoje, esta instituição aos casais do mesmo sexo (36). Além disso, entre esses treze Estados‑Membros, só uma parte prevê a parentalidade «automática» da esposa da mãe biológica de uma criança (37). Devido a estas divergências, o Regulamento 2016/1191, que simplifica os requisitos para a apresentação de certos documentos públicos que atestam, entre outros, o nascimento, o casamento, o divórcio e a filiação, reitera por diversas vezes que não altera nem o direito material neste domínio nem as obrigações de reconhecimento dos efeitos jurídicos ligados a esse documento (38).
76. Neste contexto, o Tribunal de Justiça já reconheceu implicitamente que as normas que regulam o casamento fazem parte da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE (39).
77. A razão para tal é que o direito da família é uma matéria jurídica particularmente sensível que se caracteriza por uma pluralidade de conceções e de valores à escala dos Estados‑Membros e das sociedades que os compõem. O direito da família — quer se baseie em valores tradicionais ou mais «modernos» — é a expressão da própria imagem de um Estado, tanto no plano político como no plano social. Pode basear‑se em ideias religiosas ou marcar a renúncia do Estado em causa a essas ideias. Nesta ótica, no entanto, é, de qualquer modo, uma expressão da identidade nacional inerente às estruturas políticas e constitucionais fundamentais.
78. Acresce que as regras que definem os vínculos familiares revestem uma importância primordial no funcionamento da coletividade estatal em geral (40). Assim, a filiação de uma pessoa determina, quando um Estado aplica a este respeito o ius sanguinis, a nacionalidade e, consequentemente, a pertença de uma pessoa a um determinado Estado.
79. A definição, em sentido jurídico, do que é uma família ou um dos seus membros afeta, assim, as estruturas fundamentais de uma sociedade. Por conseguinte, esta definição é suscetível de abranger a identidade nacional de um Estado‑Membro na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE.
b) Quanto às consequências jurídicas de uma invocação da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE
80. Uma vez assente que a definição de vínculos familiares pode fazer parte da identidade nacional dos Estados‑Membros, há que examinar quais as consequências que daí decorrem no que respeita à possibilidade de justificar a recusa, por parte das autoridades de um Estado‑Membro, em reconhecer a definição dos vínculos familiares feita por outro Estado‑Membro. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta nomeadamente ao Tribunal de Justiça, no âmbito da sua segunda questão prejudicial, se a invocação da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE exige uma ponderação com outros interesses decorrentes do direito da União, em particular os direitos fundamentais garantidos pela Carta.
81. Para responder a esta questão, há que abordar, num primeiro momento, a natureza e a função da cláusula de salvaguarda da identidade nacional [ponto 1)], a fim de retirar daí, num segundo momento, conclusões no que respeita aos efeitos jurídicos da sua invocação [ponto 2)].
1) Quanto à natureza e à função da cláusula de salvaguarda da identidade nacional
82. Contrariamente ao que parece sugerir, à primeira vista, a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria até esta data (41), a identidade nacional consagrada no artigo 4.o, n.o 2, TUE não é apenas um objetivo legítimo, entre outros, que pode ser tido em conta na análise de uma eventual justificação de uma restrição do direito de livre circulação.
83. Com efeito, uma leitura desta disposição no contexto do artigo 4.o e de outras disposições do título I do Tratado UE revela que este conceito tem igualmente uma dimensão vertical, ou seja, que os Tratados lhe atribuem um papel na delimitação das competências entre a União e os Estados‑Membros.
84. A este respeito, há que recordar que um dos objetivos principais do Tratado de Lisboa era uma delimitação mais clara das competências entre a União e os Estados‑Membros. Neste contexto, o Tratado Constitucional marcou a transição da cláusula de salvaguarda da identidade nacional para um princípio oponível relacionado com a repartição de competências. Isto já era visível na epígrafe do artigo I‑5 do Tratado Constitucional, no qual se inspira o atual artigo 4.o TUE, que tinha como epígrafe «Relações entre a União e os Estados‑Membros». A título de comparação, a disposição relativa à identidade nacional, introduzida pelo Tratado de Maastricht, encontrava‑se, antes de mais, no artigo F, n.o 1, TUE (42), e depois no artigo 6.o, n.o 3, TUE, relativo aos valores e princípios da União (43).
85. Esta interpretação é corroborada pelos dois outros números do atual artigo 4.o TUE: à cláusula relativa ao princípio da cooperação leal, já associada à salvaguarda da identidade nacional no artigo I‑5.o, n.o 2, do Tratado Constitucional, acresce atualmente o artigo 4.o, n.o 1, TUE. Este enuncia o princípio da atribuição, que estabelece assim claramente a relação desta disposição com a repartição de competências entre a União e os seus Estados‑Membros. Do mesmo modo, o artigo 4.o, n.o 2, TUE, que refere, a título de exemplo, à semelhança do seu modelo no Tratado Constitucional, diferentes domínios suscetíveis de se enquadrarem na identidade nacional, como a segurança nacional, que contém agora o esclarecimento adicional de que esta «continua a ser da exclusiva responsabilidade de cada Estado‑Membro».
86. Esta evolução demonstra que a identidade nacional tal como consta do artigo 4.o, n.o 2, TUE foi concebida para limitar o impacto do direito da União em domínios julgados essenciais para os Estados‑Membros e não apenas como um valor da União que deve ser ponderado com outros interesses de igual valor.
87. Isto está em conformidade com o objetivo da identidade nacional de preservar, no que respeita às estruturas políticas e constitucionais fundamentais, as abordagens específicas próprias de cada Estado‑Membro (44).
88. Por outro lado, só esta função da cláusula de salvaguarda da identidade nacional pode explicar por que razão a disposição do artigo 4.o, n.o 2, TUE foi restringida em relação à disposição anterior do Tratado de Maastricht (45), reduzindo o âmbito de aplicação da identidade nacional às estruturas políticas e constitucionais fundamentais. Com efeito, se a identidade nacional fosse apenas um interesse entre outros que pudessem ser invocados como justificação de uma derrogação ao direito da União, essa limitação não teria nenhum sentido e entraria, além disso, em contradição com a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Com efeito, segundo jurisprudência constante, qualquer interesse legítimo pode, regra geral, ser invocado para justificar uma restrição dos direitos que decorrem do direito da União e não apenas um interesse inerente às estruturas políticas e constitucionais fundamentais dos Estados‑Membros (46).
2) Quanto à intensidade da fiscalização exercida pelo Tribunal de Justiça
89. Pode deduzir‑se da prática jurisprudencial do Tribunal de Justiça que a intensidade da fiscalização das medidas nacionais que restringem as liberdades fundamentais depende, de maneira geral, do grau de harmonização da matéria em causa. Com efeito, na medida em que uma matéria não foi (ainda) objeto de harmonização a nível da União ou que se enquadra na competência dos Estados‑Membros, o Tribunal de Justiça reconhece uma margem de apreciação alargada aos Estados‑Membros (47).
90. Se a obrigação de respeitar a identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE visa, por conseguinte, preservar as estruturas políticas e constitucionais fundamentais próprias de cada Estado‑Membro e demarca assim o limite da ação integrativa da União, daqui resulta que o Tribunal de Justiça só pode exercer uma fiscalização restrita das medidas adotadas por um Estado‑Membro para salvaguardar a sua identidade nacional. Pelo contrário, uma fiscalização da proporcionalidade dessas medidas reduziria a identidade nacional a um simples objetivo legítimo (48).
91. É assim que se explica o facto de todos os participantes no processo no Tribunal de Justiça, com exceção, todavia, do Governo espanhol e da recorrente no processo principal, terem sustentado que a República da Bulgária não era obrigada a reconhecer a filiação tal como foi estabelecida no assento de nascimento espanhol para efeitos da aplicação do direito da família e das sucessões búlgaro, dado que a determinação da filiação na aceção do direito da família é da exclusiva competência dos Estados‑Membros. Por conseguinte, esses participantes consideraram, pelo menos implicitamente, que esta competência não pode ser posta em causa por considerações relativas ao direito da recorrente no processo principal e da sua filha a respeito da sua vida privada e familiar por força do artigo 7.o da Carta ou ao interesse superior da criança, conforme consagrado no seu artigo 24.o, n.o 2.
92. Essa fiscalização restrita não deve, no entanto, ser aplicada a qualquer expressão da identidade nacional, mas apenas no que respeita à expressão fundamental da identidade nacional em causa, a fim de evitar que a aplicação do artigo 4.o, n.o 2, TUE colida com o princípio do primado do direito da União (49).
93. Nos processos que até à data suscitaram a questão da proteção da identidade nacional não estava em causa a expressão fundamental da conceção que o Estado‑Membro interessado pretendia proteger a título da sua identidade nacional. Esses processos tinham por objeto, na maior parte dos casos, restrições à livre circulação dos cidadãos da União devido à recusa em reconhecer o nome que tinham adotado noutro Estado‑Membro. É certo que o Tribunal de Justiça declarou que a abolição da nobreza, a proteção da língua oficial nacional ou a forma republicana do Estado, adiantadas, respetivamente, como justificação para essa recusa, podiam fazer parte da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE (50).Todavia, importa sublinhar que a obrigação de transcrição ou de reconhecimento de um nome não afeta geralmente a essência desses objetivos. Foi por esta razão que o Tribunal de Justiça analisou a justificação apresentada pelo Estado‑Membro em causa a título de objetivo legítimo suscetível de justificar a restrição (51).
94. Para ilustrar esta distinção, importa notar que a obrigação de reconhecer um título ou um elemento nobiliárquico como componente de um nome — em causa nos processos Sayn‑Wittgenstein e Bogendorff von Wolfersdorff — não põe em causa a abolição da nobreza ou a forma republicana de um Estado, na medida em que nenhum privilégio daí decorre. Do mesmo modo, no processo Coman, o Tribunal de Justiça declarou que a obrigação de reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo, celebrados noutro Estado‑Membro em conformidade com o direito deste, apenas para efeitos da concessão de um direito de residência derivado a um nacional de um Estado terceiro, não viola a instituição do casamento, que é da exclusiva competência dos Estados‑Membros. A razão disso é que o reconhecimento desse casamento com a única finalidade de conceder um direito de residência não implica, para o referido Estado‑Membro, prever a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo no seu direito nacional. Portanto, essa obrigação de reconhecimento apenas para efeitos do exercício dos direitos conferidos aos cidadãos da União pelo direito da União não viola a identidade nacional do Estado‑Membro em causa (52).
95. A situação é diferente quando o ato pedido com fundamento no direito da União é efetivamente suscetível de alterar a instituição ou a conceção nacional, invadindo assim a competência exclusiva dos Estados‑Membros no domínio em causa. Tal pode acontecer, nomeadamente, quando estão em causa as regras que constituem o próprio objeto da conceção que o Estado‑Membro pretende proteger a título da sua identidade nacional.
96. Tratando‑se de uma expressão fundamental da identidade nacional, impõe‑se, portanto, uma restrição da intensidade da fiscalização para preservar a existência de domínios de competências materiais reservados aos Estados‑Membros no âmbito de aplicação do direito da União (53).
97. O presente processo ilustra perfeitamente esta necessidade.
98. Assim, em razão da falta de competência da União na matéria, o direito da família nacional não está, em princípio, sujeito a uma fiscalização à luz da Carta, uma vez que os Estados‑Membros não aplicam o direito da União na aceção do seu artigo 51.o, n.o 1, neste domínio. Tendo em conta o caráter particularmente sensível e a importância fundamental desta matéria, esta é mesmo suscetível de ser abrangida pela identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE, o que implica que o direito da União respeite as diferenças nos valores e conceções (54).
99. Ora, desde que exista um elemento transfronteiriço numa relação familiar, qualquer disposição nacional em matéria de direito da família é suscetível de constituir uma restrição ao artigo 21.o, n.o 1, TFUE pelo simples facto da sua divergência relativamente à regulamentação de outro Estado‑Membro (55). Se, no âmbito do exame da justificação dessa restrição, o Tribunal de Justiça procedesse, em cada vez, a uma fiscalização exaustiva da legislação nacional à luz da Carta e, nomeadamente, das suas disposições relativas às relações familiares — como os artigos 7.o e 24.o — isso teria como consequência que todo o direito da família nacional, incluindo a expressão fundamental das diferenças que a União respeita ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, TUE, deveria conformar‑se com uma conceção uniforme de política familiar que o Tribunal de Justiça extrairia da sua interpretação das referidas disposições.
100. Tal interpretação seria além disso contrária ao artigo 51.o, n.o 2, da Carta, segundo o qual esta não alarga o âmbito de aplicação do direito da União para além das competências da União.
c) Aplicação ao caso em apreço
101. Decorre das considerações precedentes que, quando esteja em causa a expressão fundamental da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE, o Tribunal de Justiça deve limitar‑se a uma fiscalização dos limites da invocação deste princípio, nomeadamente do respeito dos valores consagrados no artigo 2.o TUE (56). Por conseguinte, há que examinar se é isso que se verifica no caso em apreço.
1) Quanto à afetação da expressão fundamental da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE
102. Importa recordar que o entrave à livre circulação da recorrente no processo principal resulta do não reconhecimento dos seus vínculos relações familiares estabelecidas em Espanha (57).
i) Quanto ao reconhecimento da filiação para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento
103. A este respeito, por um lado, em relação ao estabelecimento de um assento de nascimento como é pedido no caso em apreço, ou seja, no qual constem a recorrente no processo principal e a sua esposa enquanto mães da criança, há que constatar que a inscrição, nesse ato, da recorrente no processo principal como mãe implica necessariamente o reconhecimento dos efeitos jurídicos do casamento na determinação da filiação. Com efeito, na hipótese examinada na presente parte, ou seja, que a recorrente no processo principal não é a mãe biológica da criança (58), a sua maternidade resulta do seu estatuto de cônjuge da mãe biológica da criança. Além disso, a sua inscrição no assento de nascimento juntamente com esta última conferir‑lhe‑ia, pelo menos nos factos, a qualidade de mãe na aceção do direito da família búlgaro (59).
104. Assim, a obrigação de deferir o pedido com base no direito da União criaria, para a República da Bulgária, obrigações no domínio do direito da família, ou seja, num domínio suscetível de se enquadrar na identidade nacional dos Estados‑Membros, e não apenas, como foi o caso no processo Coman, num domínio regido pelo direito da União, como o direito de residência dos cidadãos da União e os membros da sua família. Com efeito, como salientou, em substância, o Governo polaco no processo que decorre no Tribunal de Justiça, não é possível lavrar um assento de nascimento apenas para efeitos da livre circulação na aceção do direito da União (60). É o assento de nascimento que, pela sua própria natureza, reflete a filiação na aceção do direito da família.
105. Ora, as regras relativas à filiação determinam os vínculos familiares que constituem o próprio objeto do direito da família. Dizem respeito à essência da conceção que a República da Bulgária entende proteger ao abrigo da sua identidade nacional (61). Com efeito, como se expôs no n.o 78 das presentes conclusões, a definição do que é uma família e os seus membros reveste uma importância fundamental para a coletividade estatal. Assim, a obrigação de transcrever o assento de nascimento espanhol leva mesmo a antecipar a quem é que a República da Bulgária deve conceder a nacionalidade.
106. O artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento 2016/1191 evidencia claramente neste contexto a vontade do legislador europeu de excluir uma obrigação de reconhecer, nomeadamente, a filiação estabelecida num documento público emitido por outro Estado‑Membro. Nestas condições, há que considerar que a obrigação de reconhecer a filiação para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento afeta a expressão fundamental da identidade nacional da República da Bulgária no sentido descrito supra (62).
107. É certo que se poderia objetar, e não sem boas razões, que o reconhecimento jurídico de outras formas de vida familiar não acarretaria, de modo nenhum, repercussões negativas sobre a conceção da família «tradicional» que a República da Bulgária pretende proteger, antes pelo contrário, deixá‑las‑ia completamente intactas. Todavia, o que importa é que se trata de uma apreciação normativa que cabe, tendo em conta o sistema de repartição de competências, aos Estados‑Membros. Se o Tribunal de Justiça tivesse de se colocar no lugar dos Estados‑Membros para apreciar a necessidade de uma medida para a salvaguarda da identidade nacional tal como foi definida pelo Estado‑Membro em causa, esse próprio conceito seria privado de qualquer sentido. Esta circunstância vem ilustrar, na minha opinião, a conclusão de que a invocação da essência da identidade nacional não pode ser objeto de uma fiscalização de proporcionalidade (cuja análise do caráter necessário de uma medida à luz do objetivo prosseguido constitui uma etapa).
ii) Quanto ao reconhecimento da filiação para efeitos do exercício dos direitos que decorrem do direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos
108. Todavia, por outro lado, importa salientar que uma boa parte dos obstáculos à livre circulação da recorrente descritos no n.o 62, supra, pode ser eliminada através do reconhecimento dos vínculos de parentesco estabelecidos em Espanha apenas para efeitos da aplicação do direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos. Assim, o reconhecimento da sua filha como a sua «descendente direta» na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2004/38, tal como o reconhecimento da sua esposa como «cônjuge» na aceção da alínea a) desta mesma disposição, teriam como consequência permitir‑lhes residir no território do Estado búlgaro juntamente com a recorrente no processo principal (63). Do mesmo modo, uma vez que a definição desses conceitos no âmbito da Diretiva 2004/38 deve ser igualmente acolhida no que respeita ao conceito de «membros da família» de um trabalhador migrante na aceção do Regulamento n.o 492/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativo à livre circulação dos trabalhadores no interior da União (JO 2011, L 141, p. 1) (64), isso garantiria, além disso, que o filho pudesse aceder, por exemplo, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 7.o, n.o 2, deste mesmo regulamento (65), aos benefícios sociais e fiscais ligados ao eventual estatuto de trabalhadora migrante da recorrente no processo principal, e isso nos mesmos termos que um filho biológico.
109. Ora, na medida em que os efeitos jurídicos de um reconhecimento dos vínculos de parentesco, apenas para efeitos do exercício dos direitos decorrentes de um ato de direito derivado, como a Diretiva 2004/38 ou o Regulamento n.o 492/2011, se circunscrevem a um domínio que é abrangido pela competência da União, não se pode considerar que a obrigação de um Estado‑Membro de garantir esses direitos aos cidadãos da União, que tenham validamente estabelecido tais vínculos de parentesco por força do direito de outro Estado‑Membro, constitui uma ingerência na competência que os Estados‑Membros conservam no domínio do direito da família.
110. Portanto, nestas condições, o reconhecimento dos vínculos de parentesco estabelecidos em Espanha apenas para efeitos da aplicação do direito derivado da União relativo à livre circulação de pessoas não viola a identidade nacional dos Estados‑Membros (66).
111. A recusa em reconhecer a situação familiar criada em Espanha e de considerar, para esse efeito, a filha como sendo a «descendente direta» da recorrente no processo principal e a sua mulher como sua «cônjuge» na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alíneas a) e c), da Diretiva 2004/38 deve, portanto, ser sujeita a um exame da sua proporcionalidade à luz da Carta (67).
112. A este respeito, importa recordar, antes de mais, que o conceito de «vida familiar» na aceção do artigo 7.o da Carta depende, em conformidade com a definição desenvolvida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») na sua jurisprudência relativa ao artigo 8.o da Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), da realidade prática de vínculos pessoais estreitos (68). Assim, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 7.o da Carta abrange as relações familiares que se desenvolveram no âmbito de uma relação entre pessoas do mesmo sexo (69), pouco importando a sua qualificação jurídica num dado Estado-Membro. Além disso, resulta de uma leitura conjugada dos n.os 2 e 3 do artigo 24.o da Carta que o interesse superior da criança implica, regra geral, a manutenção da unidade familiar (70).
113. No caso em apreço, é pacífico que não só as duas mulheres adquiriram validamente o estatuto de progenitoras ao abrigo do direito espanhol, mas que têm também uma vida familiar efetiva com a filha em Espanha. Como já foi exposto supra (71), essa vida familiar ficaria comprometida se, nomeadamente, a recorrente no processo principal não pudesse residir no seu Estado‑Membro de origem com os membros da sua família em condições normais (72). Ora, são precisamente os direitos decorrentes de atos regulamentares como a Diretiva 2004/38 e o Regulamento n.o 492/2011 que garantem a um cidadão da União viver a sua vida familiar na aceção do artigo 7.o da Carta. O Tribunal de Justiça já declarou neste contexto que o artigo 7.o da Carta pode criar obrigações «positivas» para os Estados‑Membros dado que estes devem respeitar o equilíbrio entre os interesses concorrentes das pessoas em causa e a sociedade no seu conjunto (73).
114. Nestas condições, uma vez que a obrigação de reconhecer os vínculos de parentesco estabelecidas em Espanha apenas para efeitos da aplicação do direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos não altera as conceções de filiação ou de casamento no direito da família búlgaro, nem leva à introdução de novas conceções nesse direito, há que considerar que uma recusa de reconhecimento da filiação da criança em relação à recorrente e à sua esposa para esse efeito vai além do que é necessário para preservar esses objetivos.
115. Por conseguinte, há que concluir que a República da Bulgária não pode recusar reconhecer a filiação da criança em relação à recorrente e à sua esposa apenas para efeito da aplicação do direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos pelo facto de o direito búlgaro não prever nem a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo nem a maternidade da esposa da mãe biológica de uma criança.
2) Quanto ao cumprimento do artigo 2.o TUE no que respeita ao não reconhecimento da filiação para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento
116. Resta determinar se a recusa de reconhecimento dos vínculos de parentesco estabelecidos em Espanha entre a criança, por um lado, e a recorrente no processo principal e a sua esposa, por outro, para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento não viola o artigo 2.o TUE. Em conformidade com esta disposição, a União funda‑se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.
117. O respeito dos valores consagrados no artigo 2.o TUE constitui uma condição prévia à adesão à União que qualquer Estado‑Membro deve satisfazer a todo o momento (74).
118. O exame nos termos do artigo 2.o TUE, nomeadamente o do respeito do princípio da igualdade e dos direitos do Homem, não pode, todavia, ser equiparado a um exame da medida nacional à luz dos direitos fundamentais correspondentes da Carta (75). A Carta não introduz um nível mínimo harmonizado de proteção dos direitos fundamentais nos Estados‑Membros que seja sempre aplicável. Com efeito, em conformidade com o seu artigo 51.o, n.o 2, não alarga o âmbito de aplicação do direito da União para além das competências da União. Nestas condições, a análise nos termos do artigo 2.o TUE deve limitar‑se ao respeito do conteúdo essencial desses princípios e direitos (76).
119. Ora, na medida em que a regulamentação nacional em causa respeita, na prática, as exigências da CEDH ou mesmo da Carta, deve a fortiori considerar‑se que é esse o caso no que respeita aos requisitos decorrentes do artigo 2.o TUE.
120. No caso em apreço, há que analisar, por um lado, se a própria conceção familiar que a Bulgária visa proteger a título da sua identidade nacional e, por outro, se o resultado a que chega, estão, assim, em conformidade.
121. No que respeita, em primeiro lugar, ao objetivo de proteger a família dita «tradicional», importa, nomeadamente, verificar a sua conformidade com o conteúdo essencial do princípio da não discriminação, princípio que a União promove nos termos do artigo 2.o TUE.
122. O facto de proibir, para esse efeito, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como de admitir apenas uma mulher como mãe de uma criança, implica inegavelmente uma diferença de tratamento entre casais heterossexuais e casais homossexuais. Todavia, quanto ao casamento, constate‑se que não existe, atualmente, consensus, na União, de que essa diferença de tratamento não é justificável. Assim, o Tribunal de Justiça tem afirmado até hoje, na sua jurisprudência constante, que os Estados‑Membros não são obrigados a prever a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo no seu direito nacional (77). Por outro lado, quanto à circunstância de o esposo da mãe biológica de um filho, contrariamente à cônjuge desta, ser considerado o outro progenitor dessa criança, há que salientar que o TEDH considera que isso nem sequer constitui uma diferença de tratamento. Com efeito, na medida em que não existe fundamento factual para a presunção legal de que aquela criança descende da esposa da mãe biológica (78), a situação do esposo da mãe biológica não é comparável à da esposa desta (79). Nestas condições, não se pode considerar que a conceção familiar de casamento e de filiação que a Bulgária pretende preservar como identidade nacional viola o artigo 2.o TUE.
123. Em segundo lugar, quanto ao resultado assim obtido, a saber, o facto de não existir, por força do direito búlgaro, nenhum vínculo de parentesco entre a criança e a recorrente no processo principal, este deve estar em conformidade com os requisitos que decorrem do artigo 2.o TUE relativamente ao respeito dos direitos do homem. Trata‑se, nomeadamente, do direito ao respeito pela vida privada e familiar, consagrado no artigo 8.o da CEDH, e do interesse superior da criança, cuja salvaguarda incumbe à República da Bulgária por força desta mesma disposição (80) e do artigo 3.o, n.o 1, da Convenção das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1989, relativa aos direitos da criança.
124. Segundo a jurisprudência do TEDH, o respeito da essência destes direitos não exige, todavia, o reconhecimento jurídico de uma relação de filiação com o progenitor que não é o progenitor biológico de um filho. Embora a filiação biológica seja considerada um elemento fundamental da identidade de cada um (81), protegida pelo artigo 8.o da CEDH, isso não é, no entanto, atualmente válido no que diz respeito à filiação jurídica, estabelecida no estrangeiro, de uma pessoa em relação a outra (82).
125. A este respeito, importa sublinhar que o TEDH considera igualmente, até à data, que um Estado contratante não é obrigado a autorizar a adoção simples de uma criança pelo parceiro homossexual da mãe biológica deste (83).
126. Além disso, o direito ao respeito pela vida familiar caracteriza‑se, na sua essência, pela possibilidade de vida em conjunto, em condições globalmente comparáveis àquelas em que vivem as outras famílias (84). Por outras palavras, o que é importante para efeitos do respeito do conteúdo essencial deste direito é a garantia da vida familiar efetiva. Na prática, não deveria haver, nomeadamente, o risco de separação dos membros da família através de uma medida do Estado (85). Ora, como se expôs supra (86), mesmo na falta de reconhecimento dos vínculos de parentesco na aceção do direito da família interno, na prática, está assegurado que a recorrente no processo principal e a sua esposa poderão viver juntas com a sua filha na Bulgária e nos outros Estados‑Membros da União em condições comparáveis às de outras famílias, uma vez que devem, de qualquer modo, ser tratadas como membros da família para efeitos da aplicação, nomeadamente, da Diretiva 2004/38 e do Regulamento n.o 492/2011.
127. Não se pode considerar que as exigências mais elevadas que decorreriam, sendo caso disso, do parecer do TEDH proferido a pedido do Tribunal de Cassação francês, na sequência do Acórdão do TEDH no processo Mennesson c. França refletem o conteúdo essencial do direito ao respeito pela vida privada e familiar na aceção do artigo 2.o TUE. No parecer referido supra, relativo à filiação de uma criança concebida nos Estados Unidos, através de gestação de substituição em relação à sua mãe «de intenção» que não é a mãe biológica, o TEDH considerou que, embora o Estado‑Membro de origem da mãe «de intenção» não fosse obrigado a reconhecer a filiação estabelecida no assento de nascimento americano, deveria, no entanto, oferecer outra possibilidade de esta estabelecer uma relação de parentesco com a criança, como a adoção (87). Todavia, o TEDH não tomou posição sobre a articulação desta solução com a jurisprudência referida no n.o 125 das presentes conclusões, segundo a qual um Estado contratante não é obrigado a autorizar a adoção simples de um filho pelo parceiro homossexual da sua mãe biológica.
128. Em todo o caso, como já foi recordado supra, a observância do artigo 2.o TUE constitui a condição prévia para a adesão à União (88). Nestas condições, primeiro, além do facto de apenas uma parte dos Estados‑Membros da União ter ratificado o Protocolo n.o 16 à Convenção de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais relativo ao parecer consultivo e de esses pareceres não serem vinculativos (89), não se pode considerar que qualquer violação da CEDH constitui uma violação do artigo 2.o TUE. Segundo, quanto ao domínio de competências reservado aos Estados‑Membros, o respeito dos direitos fundamentais é assegurado pelo TEDH e não pelo Tribunal de Justiça (90).
129. Portanto, a invocação da identidade nacional pela Bulgária no que respeita à determinação da filiação para efeitos, nomeadamente, da aplicação do direito da família e das sucessões búlgaras não viola o artigo 2.o TUE. Por conseguinte, é suscetível de constituir, no caso em apreço, o limite da ação integrativa da União a este respeito e obsta, assim, a que a República da Bulgária seja obrigada, nos termos do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, a reconhecer a filiação na aceção do direito da família tal como estabelecida em Espanha.
130. Este resultado é conforme com a vontade do legislador europeu, expressa através das disposições do Regulamento 2016/1191, de não recorrer a uma obrigação de reconhecer a situação jurídica material criada noutro Estado‑Membro a fim de eliminar os obstáculos à livre circulação dos cidadãos da União no domínio do estado das pessoas.
131. Embora daí decorra que o Tribunal de Justiça não fiscaliza a conformidade do direito nacional que regula a filiação, nomeadamente com o conceito de interesse superior da criança na aceção do artigo 24.o, n.o 2, da Carta, tal não dispensa, de modo algum, o órgão jurisdicional de reenvio da obrigação de efetuar uma fiscalização da proporcionalidade da decisão de não reconhecimento da filiação da criança por força do seu direito (constitucional) nacional e, sendo caso disso, das obrigações internacionais da República da Bulgária. Com efeito, importa recordar que a salvaguarda do interesse superior da criança incumbe à República da Bulgária em todas as situações reguladas pelo seu direito nacional por força do artigo 8.o da CEDH e do artigo 3.o, n.o 1, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Além disso, importa sublinhar que uma operação de ponderação desse interesse com eventuais outros valores de nível constitucional, como a proteção da família dita «tradicional», é inerente ao estado de direito. Por outras palavras, não se coloca, no caso em apreço, a questão de saber se se deve ou não exercer uma fiscalização da proporcionalidade da recusa de reconhecimento da filiação estabelecida em Espanha, mas a que nível — da União ou nacional — deve essa fiscalização ser efetuada.
132. A este respeito, há que sublinhar que o órgão jurisdicional de reenvio refere expressamente as suas dúvidas no que respeita à conformidade da situação que será criada com a CEDH em caso de não reconhecimento da relação de parentesco com a recorrente no processo principal, nomeadamente com o parecer consultivo do TEDH, já referido, no processo Mennesson c. França (91). Por conseguinte, se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que essa recusa viola as obrigações que incumbem à República da Bulgária por força da CEDH, deve fazer o que prevê o sistema jurídico búlgaro para criar uma situação conforme com as obrigações que decorrem dessa convenção (por exemplo, interpretar o direito búlgaro à luz das disposições da CEDH, aplicar diretamente a CEDH ou outra).
3) Conclusão intercalar
133. Resulta de todas as considerações que precedem que a invocação da identidade nacional, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE, pela Bulgária, pode justificar a recusa de reconhecimento da filiação da criança, tal como foi estabelecida no assento de nascimento espanhol, para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento que determine a filiação dessa criança na aceção do direito interno da família. Por conseguinte, a Bulgária também não é obrigada, por força do direito da União, a conceder‑lhe, com esta base, a nacionalidade búlgara.
134. Todavia, a invocação da identidade nacional não pode justificar a recusa em reconhecer os vínculos de parentesco, tal como foram lavrados no assento de nascimento espanhol, apenas para efeitos do exercício dos direitos conferidos à recorrente no processo principal pelo direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos, como a Diretiva 2004/38 e o Regulamento n.o 492/2011.
D. Quanto à primeira e segunda questões prejudiciais se a criança tiver nacionalidade búlgara
135. Antes de mais, há que recordar que, na hipótese examinada a seguir, a recorrente no processo principal é quer a mãe biológica da criança quer a sua mãe legal, do que decorre não só que a criança tem a nacionalidade búlgara mas igualmente que é cidadã da União ao abrigo do artigo 20.o, n.o 1, TFUE. Esta hipótese aproxima‑se, portanto, da situação factual na origem do processo C‑2/21, Rzecznik Praw Obywatelskich, atualmente pendente no Tribunal de Justiça (92).
1. Quanto à violação dos direitos da criança
a) Quanto a existência de um entrave
136. Relativamente à questão de saber se a recusa de emissão pelas autoridades búlgaras da certidão de nascimento pedida para a criança constitui um entrave aos seus direitos decorrentes do direito da União, o órgão jurisdicional de reenvio salienta o facto de que, por força do direito búlgaro, a emissão de uma certidão de nascimento condiciona a emissão de um documento de identidade búlgaro. Assim, ao recusarem emitir o primeiro, as autoridades búlgaras privam efetivamente a criança da possibilidade de obter um documento de identidade búlgaro, o que, no entanto, está expressamente previsto no artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 (93).
137. Não há dúvida de que o exercício efetivo do direito à livre circulação da criança fica gravemente comprometido se não dispuser de nenhum documento de identidade válido (94).
138. É certo que, a este respeito, os debates na audiência demonstraram que as autoridades búlgaras estão dispostas a lavrar um assento de nascimento que designe apenas a recorrente no processo principal como mãe, com base no qual pode em seguida ser emitido um documento de identidade para a sua filha.
139. No entanto, mesmo nessa hipótese, o simples facto de inscrever apenas a recorrente no processo principal como mãe no assento de nascimento e, sendo caso disso, nos documentos de viagem emitidos com base no mesmo, pode constituir um entrave ao direito à livre circulação desta criança. Com efeito, o assento de nascimento espanhol designa igualmente a cônjuge da recorrente no processo principal como mãe da criança e não é contestado que as duas mulheres têm uma vida familiar efetiva com a filha em Espanha.
140. Embora os Estados‑Membros sejam, em princípio, os únicos competentes para determinar a filiação que deve ser inscrita num assento de nascimento, devem, no entanto, como foi recordado no n.o 58, supra, no exercício dessa competência, respeitar o direito da União e, em especial, as disposições relativas à liberdade reconhecida a qualquer cidadão da União de circular e de residir no território dos Estados‑Membros por força do artigo 21.o TFUE.
141. A este respeito, segundo jurisprudência constante, a situação de uma criança nacional de um Estado‑Membro, nascida noutro Estado‑Membro e que aí reside legalmente, é abrangida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE. Isto é válido mesmo que essa criança nunca tenha deixado o Estado‑Membro em que nasceu (95).
142. Quanto à existência de um entrave ao direito de livre circulação, o Tribunal de Justiça já declarou que uma divergência dos dados que constam de documentos relativos ao estado civil de uma pessoa emitidos por diferentes Estados‑Membros é suscetível de criar para os interessados sérios inconvenientes de ordem profissional e privada (96). Tal divergência pode, nomeadamente, suscitar dúvidas quanto à identidade da pessoa ou à exatidão das suas declarações (97). Por conseguinte, é suscetível de criar obstáculos à livre circulação dessa pessoa no território da União.
143. No caso em apreço, em primeiro lugar, há que salientar que é exigida a apresentação de uma certidão de nascimento numa variedade de diligências administrativas e profissionais. Assim, quanto à divergência entre os dados que constam do assento de nascimento búlgaro — se este último só comportar a menção da recorrente no processo principal como mãe —, e do assento de nascimento espanhol, esta teria, portanto, como consequência suscitar interrogações ou mesmo suspeitas de falsas declarações em caso de apresentação desses documentos e gerar, consequentemente, sérios inconvenientes para a criança (98).
144. Em segundo lugar, como também já foi exposto (99), os direitos reconhecidos aos nacionais dos Estados‑Membros por esta disposição incluem o de ter uma vida familiar normal tanto no Estado‑Membro de acolhimento como no Estado‑Membro de que têm a nacionalidade, no momento do regresso a esse Estado‑Membro (100).
145. Ora, devido à recusa de emissão da certidão de nascimento pedida, a esposa britânica não é, em definitivo, considerada mãe por força do direito búlgaro. Com efeito, como já foi salientado no n.o 57 das presentes conclusões, o assento de nascimento reflete, a este respeito, o resultado da determinação da filiação de uma pessoa na aceção do direito da família pelas autoridades competentes. Tal implica todas as consequências desfavoráveis expostas no n.o 62 das presentes conclusões, resultado que é igualmente suscetível de dissuadir a criança de regressar ao seu Estado‑Membro de origem.
146. Em terceiro lugar, não resulta do pedido de decisão prejudicial se o documento de identidade, que pode ser emitido com base na certidão de nascimento, retoma integralmente os dados que nela constam, nomeadamente os nomes dos progenitores, ou se se limita aos dados relativos ao detentor em sentido estrito. De qualquer modo, se nesse documento ou outros documentos de viagem que o acompanhem, que sirvam para designar as pessoas autorizadas a viajar com a criança em causa, figurar apenas uma das duas mulheres designadas como mãe da criança no assento de nascimento espanhol, isso é igualmente suscetível de entravar o seu direito à livre circulação. Com efeito, pelas razões expostas nos números precedentes e como salientou, em substância, a Comissão no processo no Tribunal de Justiça, o direito à livre circulação ao abrigo do artigo 21.o, n.o 1, TFUE implica que a criança deve poder viajar com cada um dos seus progenitores.
147. Portanto, há que concluir que, se a criança beneficiar do estatuto de cidadão da União através da sua nacionalidade búlgara, constituem não só um entrave à sua livre circulação a recusa por parte das autoridades búlgaras de lhe emitirem um documento de identidade búlgaro, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, mas também a recusa em lhe lavrar um documento de nascimento búlgaro que designe, à semelhança do emitido pelas autoridades espanholas, a recorrente no processo principal e a sua esposa como mães da criança.
148. De resto, a eventual possibilidade de a criança obter, em função, por um lado, da vontade do Reino Unido de lhe conceder a nacionalidade (101), e, por outro, do resultado das negociações sobre as futuras relações da União com o Reino Unido, um documento de identidade que lhe permita de facto circular e residir livremente no território da União com cada um dos seus progenitores não pode infirmar esta conclusão. Além da incerteza desta possibilidade, resulta das considerações precedentes que um entrave à livre circulação dos cidadãos reside no simples facto de dispor de dois documentos públicos de conteúdo divergente que atestem o mesmo evento e os sérios inconvenientes daí resultantes. Portanto, as consequências jurídicas do Brexit, evocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no âmbito da sua terceira questão prejudicial, não têm incidência na solução do litígio no processo principal.
b) Quanto à justificação dos entraves aos direitos da criança
149. Primeiro, quanto à recusa de reconhecimento da filiação igualmente em relação à mãe britânica para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento búlgaro, decorre das considerações expostas na parte precedente (102) que a invocação da identidade nacional na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE pode justificar essa recusa.
150. Pelo contrário, no que respeita, em segundo lugar, à recusa de reconhecimento da filiação para efeitos da emissão de um documento de identidade em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, não se afigura que esse documento, se fizer referência, ou um documento que o acompanhe, aos nomes dos progenitores para designar as pessoas habilitadas a viajar com a criança em causa, possa ter os mesmos efeitos jurídicos que uma certidão de nascimento que inclua essa menção (103). Com efeito, um documento de identidade não tem função probatória no que respeita à filiação de uma pessoa. Consequentemente, parece excluído que direitos ou obrigações relativos à expressão fundamental da conceção familiar que a República da Bulgária pretende proteger, possam basear‑se na circunstância de que uma pessoa seja referida como progenitor de um menor com base no seu documento de identidade (ou um documento que acompanhe esse documento para efeitos de viagens). Assim, a inscrição nesse documento dos dois progenitores mencionados no assento de nascimento espanhol não é de modo algum suscetível de alterar as conceções de filiação ou de parentalidade no direito búlgaro. As únicas obrigações criadas para a República da Bulgária a este respeito são relativas à garantia dos direitos que o direito da União confere a essa criança, nomeadamente a Diretiva 2004/38, que prevê no seu artigo 4.o, n.o 3, a obrigação de entregar a qualquer cidadão um documento de identidade.
151. Nestas condições, a obrigação de inscrever nesses documentos, apenas para garantir o exercício da livre circulação da criança com cada um dos seus progenitores, individualmente, os nomes das duas mulheres designadas como mães no assento de nascimento espanhol, não viola a identidade nacional (104).
152. De resto, a recusa de emissão de um documento de identidade ou um documento que o acompanhe que designe a recorrente no processo principal e a sua esposa como progenitores da criança, autorizadas a viajar com esta, também não pode ser justificada (105).
153. Com efeito, tendo em conta as considerações expostas no n.o 112 das presentes conclusões, a relação de cada mãe individualmente com a sua filha é protegida pelo artigo 7.o da Carta. No entanto, viver essa relação é consideravelmente mais difícil, nomeadamente no caso de uma família binacional residente num terceiro Estado, se uma das duas não for autorizada a viajar com essa criança por não ser reconhecida como mãe desta para esse efeito. Nestas condições, tendo em conta a inexistência de impacto formal na filiação e na instituição do casamento na ordem jurídica búlgara, afigura‑se que a recusa de emissão de documentos de viagem que permitam à criança viajar com cada um dos seus progenitores vai além do que é necessário para preservar os objetivos invocados pela República da Bulgária.
154. Estas considerações e a argumentação exposta nos n.os 108 a 115 das presentes conclusões são válidas, mutatis mutandis, para todos os direitos decorrentes da Diretiva 2004/38 e de outros atos de direito derivado que conferem direitos aos cidadãos da União e aos membros das suas famílias pelo exercício do direito de livre circulação. Daqui resulta, nomeadamente, que a recorrente no processo principal e a sua esposa devem ser consideradas «ascendentes diretas» e a criança como a sua «descendente direta» na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alíneas c) e d), da Diretiva 2004/38.
155. Decorre das considerações precedentes que, na hipótese de a criança ter a nacionalidade búlgara, a República da Bulgária não pode recusar emitir um documento de identidade e os documentos de viagem necessários à filha da recorrente no processo principal, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, que a mencionem e à sua esposa como progenitoras da filha, com o fundamento de que o direito búlgaro não reconhece a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, nem a maternidade da esposa da mãe biológica de uma criança. Também não pode recusar, por estes mesmos motivos, reconhecer os vínculos de parentesco entre essa criança e essas duas mulheres para efeitos da aplicação do direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos.
2. Quanto à violação dos direitos da recorrente no processo principal
156. Como foi recordado no início da presente parte, na hipótese agora examinada, a recorrente no processo principal é tanto a mãe biológica como a mãe legal da criança.
157. A este respeito, em primeiro lugar, se a recorrente no processo principal é a mãe biológica da criança, não se pode considerar que a mera obrigação de revelar essa informação para efeitos do reconhecimento do seu vínculo de parentesco com a filha viola os direitos reconhecidos aos cidadãos da União ao abrigo do artigo 21.o, n.o 1, TFUE. Com efeito, na medida em que uma questão não é objeto de harmonização a nível da União, essa disposição não garante a uma cidadã da União que a sua deslocação para outro Estado‑Membro seja totalmente neutra no que respeita às regras que lhe são aplicáveis na matéria (106). Não se pode considerar que qualquer legislação do Estado‑Membro de acolhimento de um cidadão da União que seja menos favorável do que a do seu Estado‑Membro de origem constitui um entrave à livre circulação (107).
158. Nestas condições, a eventual violação do direito à proteção da vida privada ou a diferença de tratamento em relação aos casais heterossexuais que resida na obrigação de revelar essa informação não pode ser apreciada à luz do direito da União, nomeadamente dos artigos 8.o e 21.o da Carta, mas apenas à luz do direito (constitucional) nacional. Com efeito, na medida em que a emissão da certidão de nascimento não comporta obstáculos à livre circulação, não constitui uma aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (108).
159. Todavia, o que constitui um entrave à livre circulação da recorrente é, como foi exposto supra, a falta de reconhecimento da sua esposa como progenitora da criança (109).
160. Ora, como acaba de ser exposto, a República da Bulgária não é obrigada, por força do artigo 21.o, n.o 1, TFUE, a reconhecer a filiação tal como foi estabelecida no assento de nascimento espanhol, ainda que isso tenha como consequência que a mãe designada como tal no referido assento de nascimento, que não é a mãe biológica da criança, não lhe seja reconhecido o estatuto de mãe nos termos do direito búlgaro (110). Todavia, por analogia com o raciocínio exposto nos n.os 108 a 114 das presentes conclusões, a República da Bulgária deve reconhecer a cônjuge da recorrente no processo principal como sendo a sua «cônjuge» na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alínea a), da Diretiva 2004/38 (111), bem como a «ascendente direta» da criança na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alínea d), desta diretiva.
161. Em segundo lugar, embora a recorrente no processo principal seja a mãe legal da criança, é certo que isso pressupõe que teve de reconhecer previamente a sua maternidade por força do artigo 64.o do Código da Família. A este respeito, embora a imposição desta diligência deva certamente ser considerada um entrave ao seu direito à livre circulação (112), deve, de qualquer modo, e pelas mesmas razões que as expostas no número anterior, ser considerada justificada.
3. Conclusão intercalar
162. Na hipótese de a criança ter a nacionalidade búlgara, a República da Bulgária não pode recusar emitir, com o fundamento de que o direito búlgaro não reconhece a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo nem a maternidade da esposa da mãe biológica de uma criança, um documento de identidade e os documentos de viagem necessários para a filha da recorrente no processo principal, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38, que mencionem esta e a sua esposa como progenitoras da filha.
163. A República da Bulgária também não pode recusar, por estes mesmos motivos, reconhecer o vínculo de parentesco entre a criança e a sua mãe britânica, e o estatuto desta última de «cônjuge» da recorrente no processo principal para efeitos da aplicação, nomeadamente, da Diretiva 2004/38 e do Regulamento n.o 492/2011.
E. Quanto à execução prática das obrigações constatadas no litígio no processo principal (quarta questão prejudicial)
164. Com a sua quarta questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se deve afastar o modelo de assento de nascimento que faz parte da legislação nacional em vigor a fim de o substituir por um modelo que permita a inscrição de duas mães na rubrica «progenitores». Embora este obstáculo à execução do acórdão a proferir não se coloque se o Tribunal de Justiça adotar a abordagem preconizada nas presentes conclusões, o órgão jurisdicional de reenvio deverá, no entanto — se a criança tiver a nacionalidade búlgara — resolver o problema prático segundo o qual o estabelecimento de um assento de nascimento búlgaro constitui a condição prévia à emissão de um documento de identidade (113).
165. Todavia, há que sublinhar, à semelhança da Comissão, que o direito da União apenas impõe às autoridades búlgaras uma obrigação de resultado a este respeito, a saber, a emissão de um documento de identidade que permita à criança viajar com cada um dos seus progenitores individualmente. Cabe à ordem jurídica interna do Estado‑Membro regulamentar as modalidades para atingir esse objetivo.
166. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio é obrigado a adotar, no âmbito das suas competências, todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar a execução desta obrigação, tomando em consideração o conjunto das regras do direito nacional e aplicando todos os métodos de interpretação por este reconhecidos (114). Daqui resulta que deve igualmente ponderar vias alternativas, na medida, porém, em que isso não conduza à aplicação do direito nacional contra legem.
167. A este respeito, afigura‑se, por um lado, que pode ser emitido um documento de identidade com base num assento de nascimento que designa apenas uma das duas mulheres como mãe, dado que, segundo as explicações do Governo búlgaro na audiência, um documento de identidade búlgaro não menciona os nomes dos progenitores. Basta, portanto, mencionar as duas mulheres num documento de viagem que acompanha o documento de identidade de uma criança para efeitos da identificação dos seus progenitores.
168. Por outro lado, como foi salientado pela Comissão no processo no Tribunal de Justiça, não parece estar excluído que possa ser emitido um documento de identidade com base na tradução certificada em língua búlgara do assento de nascimento espanhol. A este respeito, importa nomeadamente salientar que o Governo búlgaro confirmou que o estabelecimento de um assento de nascimento búlgaro não condiciona a concessão da nacionalidade búlgara (115). Portanto, este não se afigura necessário para fundamentar o direito da criança de pedir a emissão de um documento de identidade búlgaro, na medida em que a sua nacionalidade é determinada por outros meios, como a prova da filiação biológica em relação à recorrente no processo principal ou o reconhecimento da maternidade da sua parte, em conformidade com o artigo 64.o do Código da Família.
169. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apurar o que precede e aplicar a solução que, em seu entender, é a mais adaptada para assegurar a plena eficácia dos direitos que a recorrente no processo principal e o filho retiram do artigo 21.o, n.o 1, TFUE.
VI. Conclusão
170. Tendo em conta as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões submetidas pelo Administrativen sad Sofia‑grad (Tribunal Administrativo da Cidade de Sófia, Bulgária):
1) Um Estado‑Membro é obrigado, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, a emitir para um filho, nacional desse Estado‑Membro, de um casal de duas mulheres que são designadas na certidão de nascimento que foi emitida pelo Estado‑Membro de nascimento e de residência como mães dessa criança, um documento de identidade e os documentos de viagem necessários que mencionem essas duas mulheres como progenitoras da criança, mesmo que o direito do Estado‑Membro de origem da criança não preveja nem a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo nem a maternidade da esposa da mãe biológica de uma criança.
O artigo 21.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que este Estado‑Membro também não pode recusar, por esses mesmos motivos, reconhecer os vínculos de parentesco entre essa criança e as duas mulheres designadas como sendo as suas progenitoras na certidão de nascimento emitida pelo Estado‑Membro de residência para efeitos do exercício dos direitos conferidos a essa criança pelo direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos.
2) O artigo 21.o, n.o 1, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um Estado‑Membro não pode recusar reconhecer os vínculos de parentesco, estabelecidos no assento de nascimento de outro Estado‑Membro, entre uma das suas nacionais, a sua esposa e o filho destas para efeitos do exercício dos direitos conferidos a essa nacional pelo direito derivado da União relativo à livre circulação dos cidadãos pelo facto de o direito interno do Estado‑Membro de origem dessa mulher não prever a instituição do casamento entre pessoas do mesmo sexo nem a maternidade do cônjuge da mãe biológica de uma criança. Isto é válido independentemente da questão de saber se a nacional desse Estado‑Membro é ou não a mãe biológica ou legal dessa criança por força do direito do seu Estado‑Membro de origem e da nacionalidade da criança.
3) A invocação da identidade nacional, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, TUE, pode justificar a recusa de reconhecimento da filiação de uma criança relativamente a um casal casado de duas mulheres, tal como foi estabelecida na certidão de nascimento emitida pelo Estado‑Membro de residência da criança, para efeitos do estabelecimento de um assento de nascimento no seu Estado‑Membro de origem ou no de uma dessas duas mulheres, que determine a filiação dessa criança na aceção do direito da família deste último Estado‑Membro.
4) As consequências jurídicas da retirada do Reino Unido da União ao abrigo do artigo 50.o TUE não têm incidência na solução do litígio no processo principal.