Language of document : ECLI:EU:C:2003:516

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

30 de Setembro de 2003 (1)

«Livre circulação dos trabalhadores - Artigo 39.°, n.° 4, CE - Empregos na Administração Pública - Capitães de navios de pesca - Atribuição de prerrogativas de autoridade pública a bordo - Empregos reservados aos nacionais do Estado do pavilhão»

No processo C-47/02,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pelo Schleswig-Holsteinisches Oberverwaltungsgericht (Alemanha), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Albert Anker,

Klaas Ras,

Albertus Snoek

e

Bundesrepublik Deutschland, representada pela Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 39.°, n.° 4, CE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J.-P. Puissochet, M. Wathelet (relator), R. Schintgen e C. W. A. Timmermans, presidentes de secção, C. Gulmann, D. A. O. Edward, A. La Pergola, P. Jann, V. Skouris, F. Macken, N. Colneric, S. von Bahr, J. N. Cunha Rodrigues e A. Rosas, juízes,

advogada-geral: C. Stix-Hackl,


secretário: M.-F. Contet, administradora principal,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação dos demandantes no processo principal por P. Slabschi, Rechtsanwalt,

-    em representação da demandada no processo principal e do Governo alemão, por W.-D. Plessing, e M. Lumma, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo dinamarquês, por J. Molde e J. Bering Liisberg, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo francês, por G. de Bergues e C. Bergeot-Nunes, na qualidade de agentes,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por D. Martin e H. Kreppel, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações dos demandantes no processo principal, representados por P. Slabschi, da demandada no processo principal, representada por B. Karsten, Regierungsrätin, do Governo alemão, representado por M. Lumma, do Governo francês, representado por G. de Bergues e C. Bergeot-Nunes, e da Comissão, representada por I. Martínez del Peral, na qualidade de agente, e H. Kreppel, na audiência de 21 de Janeiro de 2003,

ouvidas as conclusões da advogada-geral apresentadas na audiência de 12 de Junho de 2003,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por decisão de 31 de Janeiro de 2002, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de Fevereiro seguinte, o Schleswig-Holsteinisches Oberverwaltungsgericht colocou, nos termos do artigo 234.° CE, uma questão prejudicial relativa à interpretação do artigo 39.°, n.° 4, CE.

2.
    Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe A. Anker, K. Ras e A. Snoek, de nacionalidade neerlandesa, à Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord (direcção da navegação e dos transportes marítimos do Norte) a propósito do acesso a empregos de capitão de navio de pesca arvorando pavilhão alemão.

Enquadramento jurídico

As disposições comunitárias

3.
    Nos termos do artigo 39.° CE:

«1.    A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na Comunidade.

2.    A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.

3.    A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de:

a)    Responder a ofertas de emprego efectivamente feitas.

b)    Deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados-Membros.

c)    Residir num dos Estados-Membros a fim de nele exercer uma actividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais.

d)    Permanecer no território de um Estado-Membro depois de nele ter exercido uma actividade laboral, nas condições que serão objecto de regulamentos de execução a estabelecer pela Comissão.

4.    O disposto no presente artigo não é aplicável aos empregos na Administração Pública.»

As disposições internacionais

4.
    A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, assinada em Montego Bay, em 10 de Dezembro de 1982, contém, na sua parte VII, sob a epígrafe «Alto-mar», secção I, sob a epígrafe «Disposições gerais», que engloba os artigos 86.° a 115.°, disposições gerais relativas à navegação no alto-mar.

5.
    Os artigos 91.°, n.° 1, 92.°, n.° 1, 94.°, n.os 1 a 3, e 97.°, n.os 1 e 2, desta convenção dispõem nomeadamente:

«Artigo 91.°

Nacionalidade dos navios

1.    Os Estados devem estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade a navios, para o registo de navios no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira. Os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira estejam autorizados a arvorar. Deve existir um vínculo substancial entre o Estado e o navio.

[...]

Artigo 92.°

Estatuto dos navios

1.    Os navios devem navegar sob a bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente convenção, devem submeter-se, no alto-mar, à jurisdição exclusiva desse Estado. [...]

[...]

Artigo 94.°

Deveres do Estado de bandeira

1.    Os Estados devem exercer, de modo efectivo, a sua jurisdição e seu controlo em questões administrativas, técnicas e sociais sobre navios que arvorem a sua bandeira.

2. Em particular, os Estados devem:

[...]

b) Exercer a sua jurisdição em conformidade com o seu direito interno sobre qualquer navio que arvore a sua bandeira e sobre o capitão, os oficiais e a tripulação, em questões administrativas, técnicas e sociais que se relacionem com o navio.

3.    Os Estados devem tomar, para os navios que arvorem a sua bandeira, as medidas necessárias para garantir a segurança no mar, [...]

[...]

Artigo 97.°

Jurisdição penal em caso de abalroamento ou qualquer outro incidente de navegação

1.    Em caso de abalroamento ou de qualquer outro incidente de navegação ocorrido com um navio no alto-mar que possa acarretar uma responsabilidade penal ou disciplinar para o capitão ou para qualquer outra pessoa ao serviço do navio, os procedimentos penais e disciplinares contra essas pessoas só podem ser iniciados perante as autoridades judiciais ou administrativas do Estado de bandeira ou perante as do Estado do qual essas pessoas sejam nacionais.

2.    Em matéria disciplinar, só o Estado que tenha emitido um certificado de comando ou um certificado de competência ou licença é competente para [...] decretar a retirada desses títulos, mesmo que o titular não seja nacional deste Estado.

[...]»

As disposições nacionais

6.
    O § 2, n.° 2, do Schiffsbesetzungsverordnung (regulamento relativo às tripulações dos navios), de 26 de Agosto de 1998 (BGBl. I, p. 2577), alterado pelo Verordnung de 29 de Outubro de 2001 (BGBl. I, p. 2785), dispõe:

«Independentemente da arqueação bruta do navio, o capitão deve ser alemão, na acepção da Grundgesetz [Lei Fundamental], e portador de um certificado de competência alemão válido.»

7.
    A formação dos oficiais de navios assim como a emissão de certificados de aptidão profissional são reguladas pela Schiffsoffizier-Ausbildungsverordnung (regulamento relativo à formação dos oficiais de marinha), de 11 de Fevereiro de 1985 (BGBl. I, p. 323), alterado em último lugar pelo Verordnung de 29 de Outubro de 2001, já referido (a seguir «SchOffzAusbV»).

8.
    Os certificados de aptidão obtidos noutro Estado-Membro ou num Estado-Membro do Espaço Económico Europeu pelos nacionais de um destes Estados são reconhecidos como equivalentes aos certificados alemães nos termos do § 21a, n.° 1, do SchOffzAusbV, se estiverem preenchidas na Directiva 89/48/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, relativa a um sistema geral de reconhecimento dos diplomas de ensino superior que sancionam formações profissionais com uma duração mínima de três anos (JO L 19, p. 16), ou na Directiva 92/51/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa a um segundo sistema geral de reconhecimento das formações profissionais, que completa a Directiva 89/48/CEE (JO L 209, p. 25). Em especial, se se tratar de uma actividade de comando, o § 21a, n.° 2, do SchOffzAusbV exige a prova de que o interessado se submeteu com êxito à prova de aptidão prevista no artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/48 ou no artigo 4.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 92/51. Nos termos do § 21c, do SchOffzAusbV, a Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord emite, mediante requerimento, certificado de validade das qualificações reconhecidas como equivalentes em conformidade com o § 21a, n.° 1, do SchOffzAusbV.

9.
    Todavia, o título reconhecido como equivalente, em conformidade com o § 21a do SchOffzAusbV, não dá às pessoas que não possuam nacionalidade alemã na acepção da Grundgesetz o direito de comandar navios arvorando pavilhão alemão. Com efeito, nos termos do § 24 do SchOffzAusbV:

«É autorizada a emissão de certificados de competência a pessoas que não sejam alemãs na acepção da Lei Fundamental, mas que preencham os requisitos para a obtenção de certificados de competência (§ 7). Nestes casos, o certificado de competência dos serviços náuticos não permite, porém, comandar navios arvorando bandeira alemã. Esta informação deve ser averbada no certificado de competência [...]»

10.
    Além disso, nos termos da § 106 da Seemannsgesetz (lei relativa aos trabalhadores marítimos), de 26 de Julho de 1957 (BGBl. II, p. 713), várias vezes alterada (a seguir «SeemG»):

«(1) O capitão é o chefe dos membros da tripulação (§ 3) e do restante pessoal a bordo (§ 7). É ele que detém os mais elevados poderes de autoridade.

(2) O capitão deve zelar pela manutenção da ordem e segurança a bordo e está habilitado a tomar as medidas necessárias para o efeito, no âmbito das disposições seguintes e dos restantes diplomas em vigor.

(3) Em caso de perigo iminente para as pessoas ou para o navio, o capitão pode dar as ordens necessárias à eliminação do perigo, podendo, se for caso disso, impor coercivamente a sua execução; pode proceder a detenções temporárias. Os direitos fundamentais previstos nos artigos 2.°, n.° 2, primeiro e segundo períodos, e artigo 13.°, n.os 1 e 2, da Lei Fundamental, são, nesta medida, restringidos. Se for considerada a utilização de outros meios, dever-se-á escolher de preferência o meio que menos afecte as pessoas em causa.

(4) A utilização da força ou a detenção temporária só são admissíveis se os outros meios que existem pareçam, à partida, inacessíveis ou se revelaram inacessíveis. A sua utilização só é possível na medida em que sejam necessárias para cumprir as funções do capitão nos termos dos n.os 2 e 3, e durante o tempo exigido para o efeito.

(5) Se o capitão não está em condições de exercer ele próprio o exercício dos poderes previstos nos n.os 1 a 4, pode transferir o seu exercício para o primeiro oficial de convés e para o primeiro oficial de máquinas dentro do seu serviço. [...]

[...]»

11.
    Nos termos do § 115 da SeemG, o não cumprimento das ordens dadas pelo capitão é passível de sanções penais se essas ordens se destinarem a proteger pessoas, o navio ou a sua mercadoria contra um perigo iminente, a impedir um prejuízo excessivamente elevado, perturbações graves à navegação, a cumprir normas públicas de segurança ou a manter a segurança e a ordem a bordo. O exercício abusivo dos poderes de autoridade é, por sua vez, punível (§ 117, em conjugação com o § 115, n.° 4, da SeemG.

12.
    Diversas disposições de direito alemão conferem aos capitães dos navios que arvoram pavilhão alemão funções no âmbito do registo civil.

13.
    Assim, nos termos do § 45, n.° 1, do Verordnung zur Ausführung des Personenstandsgesetzes (regulamento de aplicação da lei sobre o Estado das pessoas), de 12 de Agosto de 1957 (BGBl. I, p. 1139), alterado em último lugar pelo Verordnung de 17 de Dezembro de 2001 (BGBl. I, p. 3752, a seguir «PersStdGAV»), o nascimento ou o falecimento de uma pessoa durante uma viagem num navio alemão devem ser autenticados por um funcionário do registo civil de Berlim I. Nos termos do § 45, n.° 2, o nascimento ou o falecimento devem ser notificados ao capitão o mais tardar no dia seguinte à sua ocorrência. Se a pessoa obrigada a fazer a declaração termina a sua viagem antes do termo desse prazo, esta notificação deve ter lugar quando essa pessoa se encontra ainda no navio em causa. Segundo o § 45, n.° 3, o capitão elabora um auto de declaração de nascimento ou de falecimento que deve seguidamente transmitir ao primeiro posto das inscrições marítimas em que lhe seja possível fazê-lo.

O litígio no processo principal e a questão prejudicial

14.
    Os demandantes no processo principal estão empregados como marinheiros a bordo de navios de pesca que arvoram pavilhão alemão e que praticam a pequena pesca de alto-mar. São titulares de um «diploma voor de Zeevisvaart SW V» (diploma neerlandês de navegação para os navios de pesca), que, nos termos do direito neerlandês, lhes dá o direito de comandar navios da categoria daqueles em que trabalham actualmente.

15.
    Em 30 de Setembro de 1998, a Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord passou a K. Ras uma autorização para exercer as funções de segundo ou de primeiro oficial de mecânica em navios de pesca arvorando pavilhão alemão. Por carta de 30 de Outubro de 1998, K. Ras solicitou, com fundamento no § 21c do SchOffzAusbV, um certificado de aptidão mais amplo autorizando-o a exercer igualmente as funções de capitão de navio de pesca arvorando pavilhão alemão. A Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord indeferiu este pedido, que examinou como reclamação, por decisão de 14 de Dezembro de 1998.

16.
    Além disso, os requerimentos semelhantes apresentados em 16 de Março de 1999 por A. Anker e A. Snoek com o fim de obter autorização para exercer as funções de capitão, de segundo ou de primeiro oficial mecânico em navios de pesca arvorando pavilhão alemão foram igualmente indeferidos pela Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord por decisões de 30 de Julho de 1999 na parte em que diziam respeito às funções de capitão. As reclamações apresentadas por A. Anker e A. Snoek destas decisões foram indeferidas por decisão de 6 de Setembro de 1999.

17.
    A Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord baseou-se, em especial, no § 106, n.os 2 e 3, da SeemG e no § 24, segundo período, do SchOffzAusbV.

18.
    Foi negado provimento aos recursos interpostos das decisões de indeferimento da Wasser- und Schiffahrtsdirektion Nord, pelos mesmos fundamentos, por sentenças do Verwaltungsgericht (Tribunal Administrativo) de 14 de Novembro de 2000. Este órgão jurisdicional considerou que a actividade de capitão de navio comportava prerrogativas de autoridade pública na acepção do artigo 39.°, n.° 4, CE.

19.
    Por decisão de 30 de Julho de 2001 do Schleswig-Holsteinisches Oberverwaltungsgericht, foram admitidos os recursos interpostos pelos demandantes no processo principal das sentenças do Verwaltungsgericht.

20.
    No Oberverwaltungsgericht, os demandantes no processo principal contestaram a aplicação em relação a si do artigo 39.°, n.° 4, CE, o qual, por ser uma excepção, é de interpretação estrita. Esta disposição só se aplica quando o emprego em causa pressuponha uma solidariedade específica do seu titular em relação ao Estado, que deveria ser garantida pelo vínculo da nacionalidade. Tal vínculo só existe se o emprego comportar de maneira característica o exercício de prerrogativas de autoridade pública e se for confiada ao titular uma responsabilidade do interesse geral do Estado. Estas condições são cumulativas. Ora, não estão preenchidas no que se refere a um capitão de navio de pesca. Mesmo que existissem casos em que os capitães teriam feito uso de prerrogativas de autoridade pública, estas revestiriam uma importância de tal modo secundária que não poderiam em caso algum constituir o cerne da sua actividade.

21.
    Além disso, mesmo não existindo qualquer restrição ligada à nacionalidade no domínio do transporte aéreo, o § 3 do Luftverkehrs-Ordnung (regulamento relativo aos transportes aéreos), de 10 de Agosto de 1963 (BGBl. I, p. 652), alterado por várias vezes, atribui aos comandantes de bordo das aeronaves responsabilidades e competências alargadas que vão mesmo para além das dos capitães de navios.

22.
    Segundo a demandada no processo principal, as competências reconhecidas ao capitão nos termos do § 106 da SeemG integram-se na Administração Pública e constituem a expressão do «genuine link» instituído pelo Estado do pavilhão entre o navio e o Estado. Refere igualmente, a este propósito, o artigo 94.° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

23.
    As competências de autoridade pública do capitão não decorrem de princípios gerais de direito privado. O capitão não tem somente por missão garantir a bordo a ordem e a segurança para as suas necessidades próprias, agindo também para a defesa de interesses juridicamente protegidos, se necessário pondo de lado os seus próprios interesses.

24.
    A demandada no processo principal invoca igualmente as funções exercidas pelo capitão na qualidade de funcionário do registo civil em caso de nascimento ou de falecimento a bordo, tal como previstas no § 45, n.° 3, do PersStdGAV.

25.
    O Oberverwaltungsgericht duvida que o § 24, segundo período, do SchOffzAusbV seja compatível com o artigo 39.° CE, particularmente no que se refere a navios que praticam a pequena pesca de alto-mar.

26.
    Refere que, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, um emprego enquadrado na Administração Pública pressupõe, por parte do seu titular, a existência de uma relação especial de solidariedade em relação ao Estado-Membro que o vínculo da nacionalidade tenta precisamente garantir (acórdão de 17 de Dezembro de 1980, Comissão/Bélgica, 149/79, Recueil, p. 3881). Ora, segundo o Oberverwaltungsgericht, tal não sucede no caso das actividades abrangidas pelos domínios dos transportes marítimos e aéreos, que estão muito afastadas das actividades específicas da Administração Pública e não implicam qualquer participação, directa ou indirecta, no exercício da autoridade pública e nas funções que têm por objecto a salvaguarda dos interesses gerais do Estado ou de outras colectividades públicas.

27.
    Todavia, o Oberverwaltungsgericht considera que subsiste uma dúvida quanto à questão de saber se as competências atribuídas pelo § 106 da SeemG são de natureza a implicar de maneira geral o exercício de prerrogativas de autoridade pública ou se, pelo contrário, decorrem essencialmente das obrigações gerais derivadas tanto do direito civil - dado que o capitão é a bordo o representante do armador por conta do qual exerce os direitos baseados nos contratos de engajamento de marinheiros - como do direito penal - dado que o capitão tem uma posição de garante perante uma situação perigosa.

28.
    O Oberverwaltungsgericht observa que, em qualquer circunstância, o § 106 da SeemG abrange uma parte muito modesta da actividade do capitão. A actividade principal deste reside na direcção do navio, assim como na gestão da tripulação. Exerce nesta ocasião funções reguladas pelo direito civil e pelo direito do trabalho que incumbem habitualmente aos chefes de empresa ou aos directores de fábrica.

29.
    Foi nestas condições que o Schleswig-Holsteinisches Oberverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«As normas de direito interno que, para o exercício da actividade de comandante (capitão) de um navio com pavilhão de um Estado-Membro utilizado na ‘pequena navegação marítima’ (‘Kleine Seeschifffahrt’), exigem a nacionalidade do respectivo Estado (no caso em apreço, a alemã) são compatíveis com o artigo 39.° CE?»

Quanto à questão prejudicial

30.
    Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta essencialmente se o artigo 39.°, n.° 4, CE deve ser interpretado no sentido de que autoriza um Estado-Membro a reservar aos seus nacionais os empregos de capitão de navios arvorando o seu pavilhão afectos à «pequena navegação marítima» («Kleine Seeschifffahrt»).

Observações apresentadas no Tribunal de Justiça

31.
    Os demandantes na causa principal consideram que se deve responder pela negativa à questão prejudicial.

32.
    A título liminar, sublinham que A. Anker e A. Snoek possuem a qualidade de trabalhadores na acepção do artigo 39.° CE. Embora esta qualidade possa ser discutida no que se refere a K. Ras, que é sócio minoritário da Zeevisserijbedrijf Ras BV, accionista única da Seefischereibetrieb SC-25 GmbH, que explora o navio de pesca no qual K. Ras navega, este último, se não for considerado trabalhador assalariado poderá ser considerado trabalhador independente. Neste caso, haverá que aplicar o artigo 43.° CE e questionar se a actividade de capitão de um navio como aquele no qual ele navega pode validamente ser abrangida pela disposição derrogatória do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE. A este propósito, os demandantes no processo principal sustentam que, tendo em conta a sua redacção, o conceito de «autoridade pública», na acepção do artigo 45.°, primeiro parágrafo, CE, é mais restrito do que o de «Administração Pública», na acepção do artigo 39.°, n.° 4, CE.

33.
    Segundo os demandantes no processo principal, a actividade de capitão de navio de pesca não está abrangida pelo artigo 39.°, n.° 4, CE. O conceito comunitário de Administração Pública deverá, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ser interpretado restritivamente enquanto excepção a um princípio fundamental de direito comunitário e ser limitado ao que é absolutamente necessário para garantir os interesses que o artigo 39.°, n.° 4, CE autoriza os Estados a proteger (v., nomeadamente, acórdão de 16 de Junho de 1987, Comissão/Itália, 225/85, Colect., p. 2625, n.° 7). Este conceito deverá ser entendido no seu sentido funcional: o que importa é que a actividade esteja associada de maneira característica a prerrogativas de autoridade pública; ao mesmo tempo, o titular do emprego deverá estar investido da responsabilidade para a salvaguarda dos interesses gerais do Estado (v. acórdão Comissão/Bélgica, já referido, n.° 12).

34.
    Os demandantes no processo principal acrescentam que não basta que o titular do emprego exerça ocasionalmente prerrogativas de autoridade pública: o exercício dessas prerrogativas deverá constituir o essencial da actividade (v., neste sentido, acórdãos de 3 de Julho de 1986, Lawrie-Blum, 66/85, Colect., p. 2121, n.os 26 a 28, e de 27 de Novembro de 1991, Bleis, C-4/91, Colect., p. I-5627, n.° 7).

35.
    No caso concreto, as disposições nacionais alemãs não conferem qualquer prerrogativa de autoridade pública ao capitão. Os poderes conferidos a este último pelo § 106 da SeemG constituem a expressão de obrigações gerais de direito civil e de direito penal adaptadas à situação de um navio no mar. Além disso, as situações em que o navio enfrenta situações perigosas terão diminuído consideravelmente devido, nomeadamente, à modernização dos meios de comunicação e à diminuição do tempo passado no mar, limitado aos dias úteis, no que se refere aos pequenos navios de pesca, os quais, além disso, pescam sempre na proximidade da costa.

36.
    O cerne das funções do capitão consiste na condução do navio e na gestão da tripulação. Trata-se aí de funções que se enquadram no direito civil e no direito do trabalho, que são habitualmente as dos chefes de empresa ou dos directores de fábrica. Além disso, o próprio capitão está em grande parte ocupado pela captura e transformação do peixe.

37.
    Finalmente, os demandantes no processo principal alegam que nos n.os 34 e 35 do seu acórdão de 2 de Julho de 1996, Comissão/Grécia (C-290/94, Colect., p. I-3285), já referido, o Tribunal de Justiça declarou que os sectores dos transportes marítimos e aéreos não estão abrangidos pelos domínios nos quais se exerce uma actividade específica de administração. Isto significa que estes sectores se enquadram a priori na liberdade de circulação dos trabalhadores e que incumbe às autoridades nacionais demonstrar, relativamente a determinados empregos, que, na realidade, se mostram preenchidas as condições do artigo 39.°, n.° 4, CE [v. n.os 110 a 112 das conclusões do advogado-geral P. Léger no processo Comissão/Luxemburgo (acórdão de 2 de Julho de 1996, C-473/93, Colect., p. I-3207)]. Ora, a demandada no processo principal não fez tal demonstração no que se refere ao emprego de capitão de navio de pesca.

38.
    Os Governos alemão, dinamarquês e francês, bem como a Comissão, estão de acordo em considerar que os empregos de capitão de navios arvorando pavilhão de um Estado-Membro afecto à pequena navegação marítima podem, em conformidade com o artigo 39.°, n.° 4, CE, ser reservados aos nacionais deste Estado na medida em que os seus titulares, em conformidade com a legislação nacional do referido Estado e com vários instrumentos internacionais, tais como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, são susceptíveis de exercer funções enquadradas na «Administração Pública» na acepção da referida disposição, tal como interpretada pelo Tribunal de Justiça, e relativas à manutenção da segurança e ao exercício de poderes de polícia, assim como à elaboração de actos de registo civil.

39.
    Segundo o Governo alemão, o facto de na prática normal da pesca marítima nem sempre haver matéria para exercer prerrogativas de autoridade pública não significa que as medidas que o capitão está habilitado a tomar, se necessário, não tenham um tal carácter. Além disso, um navio que pratica a pequena pesca de alto-mar não está, em princípio, sujeito a restrições de navegação, de forma que não é de excluir que possa exercer as suas actividades fora das águas territoriais do Estado do pavilhão ou nas proximidades imediatas das costas deste Estado.

40.
    O Governo dinamarquês considera que se o emprego de capitão de navio implica o exercício a bordo de prerrogativas de autoridade pública que, em terra firme, competem às autoridades de polícia, nomeadamente as de ordenar a detenção de suspeitos ou de tomar depoimentos ou declarações, existe uma participação directa da sua parte no exercício da autoridade pública. A manutenção da ordem e da segurança constituem o tipo de funções cujo exercício pressupõe, por parte dos seus titulares, a existência de uma relação particular de solidariedade para com o Estado, abrangida pelo artigo 39.°, n.° 4, CE.

41.
    O facto de no processo principal estarem em causa navios de pequeno porte não implica, segundo o Governo dinamarquês, qualquer restrição ao direito do Estado-Membro de reservar os empregos de capitão nos navios arvorando o seu pavilhão aos seus nacionais. Com efeito, as situações nas quais se pode revelar necessário o exercício de prerrogativas de autoridade pública pelos capitães de navios podem ocorrer em qualquer tipo de navio e em qualquer momento.

42.
    Este governo acrescenta que a circunstância de o Estado-Membro em causa não ter feito uso da possibilidade de reservar aos seus próprios nacionais empregos comparáveis no domínio do transporte aéreo é destituída de pertinência, pois o artigo 39.°, n.° 4, CE apenas confere aos Estados-Membros uma simples faculdade de reservar os empregos aí previstos.

43.
    Segundo o Governo francês, os capitães de navios exercem manifestamente funções enquadradas no exercício da autoridade pública, funções que não podem ser confundidas com as obrigações que incumbem a qualquer cidadão, a qualquer chefe de empresa ou director de fábrica ou ainda a qualquer comandante de bordo de aeronave. O mesmo sucede se o emprego for exercido em empresas privadas, uma vez que as actividades específicas da Administração Pública são exercidas, por delegação, por conta do Estado e não da entidade patronal.

44.
    O Governo francês remete, por analogia, para determinadas disposições do Código Civil francês e do Código Disciplinar e Penal da Marinha Mercante francesa que confiam ao capitão tanto funções de «funcionário do registo civil», como verdadeiros poderes de polícia que o fazem participar no serviço público da justiça. Observa que estas prerrogativas vão muito além das conferidas pelo artigo 73.° do Código de Processo Penal francês a qualquer pessoa em caso de flagrante delito. Com efeito, resulta desta última disposição que, embora qualquer pessoa tenha qualidade para deter o autor de um crime em flagrante delito, deve conduzi-lo ao oficial de polícia judiciária mais próximo, pois só este tem poderes para ordenar a detenção.

45.
    O Governo francês contesta igualmente a equiparação das prerrogativas dos capitães de navios às obrigações, que incumbem aos chefes de empresa e aos directores de fábrica, de tomarem as medidas necessárias para garantir a segurança e a saúde dos seus trabalhadores. Assim, diferentemente de um capitão de navio, um chefe de empresa não tem o poder de deter um dos seus empregados nem de o guardar num lugar determinado, dado que tem possibilidades de recorrer à autoridade pública.

46.
    Da mesma forma, segundo o Governo francês, os poderes conferidos aos comandantes de bordo de aeronaves não podem ser comparados às prerrogativas dos capitães de navios, pois o comandante de bordo de uma aeronave dispõe de poderes comparáveis aos de qualquer cidadão perante uma ameaça.

47.
    Finalmente, o Governo francês considera que a circunstância de os capitães de navios só raramente exercerem os seus poderes de autoridade pública não tem consequências quanto à inclusão do seu emprego no âmbito de aplicação do artigo 39.°, n.° 4, CE. Com efeito, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta última disposição aplica-se apenas a «empregos que comportam uma participação, directa ou indirecta, no exercício da autoridade pública e nas funções que têm por objecto a protecção dos interesses gerais do Estado ou das outras colectividades públicas» (acórdão Comissão/Bélgica, já referido, n.° 10). Assim, o simples facto de o emprego «comportar» atribuições de autoridade pública será suficiente para que se enquadre no artigo 39.°, n.° 4, CE. Além disso, sempre que as circunstâncias o exigirem, o exercício das atribuições de autoridade pública é uma necessidade concreta e não poderá ser confiada a um outro membro da tripulação, pois tal privaria o capitão de uma grande parte da sua autoridade.

48.
    A título subsidiário, o Governo francês considera que um Estado-Membro tem o direito de reservar os empregos de capitão para os seus nacionais com fundamento no artigo 39.°, n.° 3, CE. Com efeito, pela sua participação no exercício da autoridade pública, estes empregos enquadram-se nas excepções à livre circulação de trabalhadores ligadas à ordem pública ou à segurança pública.

49.
    A Comissão sublinha, antes de mais, que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os demandantes no processo principal satisfazem as condições necessárias para serem considerados trabalhadores na acepção do artigo 39.° CE.

50.
    A Comissão refere seguidamente que, embora sendo certo que um navio arvorando pavilhão de um Estado-Membro é considerado como fazendo parte do território desse Estado, uma vez que se tenha afastado da costa, o referido Estado não tem normalmente possibilidade de intervir com os seus próprios órgãos de autoridade pública para salvaguardar os seus interesses gerais ou os da colectividade pública. Por conseguinte, o Estado do pavilhão confere ao capitão o poder de exercer, enquanto representante da autoridade pública, diversas funções com vista a salvaguardar os referidos interesses gerais, previstos na legislação nacional ou nos instrumentos internacionais. Nestas condições, o artigo 39.°, n.° 4, CE pode validamente ser invocado.

51.
    O acórdão de 31 de Maio de 2001, Comissão/Itália (C-283/99, Colect., p. I-4363, n.° 25), que dizia respeito a guardas particulares ajuramentados, não é susceptível de pôr em causa esta análise, uma vez que as prerrogativas de autoridade pública são conferidas aos capitães de navios precisamente para salvaguardar os interesses gerais do Estado.

52.
    Todavia, um particular só exerce um emprego na Administração Pública, na acepção do artigo 39.°, n.° 4, CE, se os órgãos da autoridade pública que se enquadram institucionalmente na Administração Pública não tiverem a possibilidade de intervir ou só dificilmente o puderem fazer. A mera atribuição de competências de autoridade pública não basta, portanto, para que o artigo 39.°, n.° 4, CE possa ser invocado. Será necessário, além disso, que nenhum órgão de autoridade pública possa intervir para resolver um eventual conflito.

53.
    Além disso, segundo a Comissão, a questão de saber se as competências atribuídas ultrapassam as que incumbem, nos termos do direito civil e do direito penal, a qualquer proprietário, a qualquer entidade patronal ou a qualquer cidadão deve ser apreciada à luz do direito nacional e decidida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Na hipótese de se demonstrar que estas competências se enquadram na autoridade pública, a Comissão considera que o recurso à derrogação prevista no artigo 39.°, n.° 4, CE não pode, além disso, depender do grau de probabilidade das situações em que o capitão do navio em causa deve efectivamente exercer estas competências de autoridade pública nem do porte deste navio.

54.
    Finalmente, a comparação efectuada com a situação existente no domínio da navegação aérea é destituída de pertinência, pois o artigo 39.°, n.° 4, CE limita-se a deixar aos Estados-Membros a faculdade de restringir a livre circulação dos trabalhadores.

55.
    Por outro lado, no que se refere à aplicabilidade do artigo 39.°, n.° 3, CE, a Comissão considera que esta disposição é aplicável unicamente a indivíduos cujo comportamento pessoal ponha em perigo a ordem pública ou a segurança pública. Por conseguinte, não há que invocá-la para excluir da aplicação do princípio da livre circulação de pessoas toda uma profissão com fundamento em que os seus membros seriam incumbidos de garantir a ordem pública ou a segurança a bordo (v., neste sentido, acórdão de 29 de Outubro de 1998, Comissão/Espanha, C-114/97, Colect., p. I-6717, n.° 42).

Resposta do Tribunal

56.
    Importa recordar, a título liminar, que o artigo 39.°, n.os 1 a 3, CE consagra o princípio da livre circulação dos trabalhadores e a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade entre os trabalhadores dos Estados-Membros. O artigo 39.°, n.° 4, CE prevê, todavia, que as disposições deste artigo não são aplicáveis aos empregos na Administração Pública.

57.
    Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o conceito de Administração Pública na acepção do artigo 39.°, n.° 4, CE deve receber uma interpretação e uma aplicação uniformes em toda a Comunidade e não pode, portanto, ser deixado à total discricionariedade dos Estados-Membros (v., nomeadamente, acórdãos de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu, 152/73, Colect., p. 91, n.° 5, e Comissão/Bélgica, já referido, n.os 12 e 18).

58.
    Aquele conceito aplica-se aos empregos que envolvem uma participação, directa ou indirecta, no exercício da autoridade pública e nas funções que têm por objecto a salvaguarda dos interesses gerais do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, que pressupõem, portanto, a existência de uma particular relação de solidariedade com o Estado, bem como a reciprocidade de direitos e deveres que são o fundamento do vínculo da nacionalidade (acórdãos, já referidos, Comissão/Bélgica, n.° 10, e Comissão/Grécia, n.° 2).

59.
    Em contrapartida, a excepção prevista no artigo 39.°, n.° 4, CE não se aplica a empregos que, mesmo dependendo do Estado ou de outros organismos de direito público, não implicam contudo nenhum concurso em tarefas dependentes da Administração Pública propriamente dita (acórdãos, já referidos, Comissão/Bélgica, n.° 11, e Comissão/Grécia, n.° 2), nem, por maioria de razão, a empregos ao serviço de um particular ou de uma pessoa colectiva de direito privado, sejam quais forem as tarefas que incumbem ao empregado (acórdãos, já referidos, Comissão/Espanha, n.° 33, e de 31 de Maio de 2001, Comissão/Itália, n.° 25).

60.
    Resulta igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, enquanto derrogação à regra fundamental da livre circulação e da não discriminação dos trabalhadores comunitários, o artigo 39.°, n.° 4, CE deve ser interpretado de modo a limitar o seu alcance ao estritamente necessário para salvaguardar os interesses que esta disposição permite proteger pelos Estados-Membros (v., nomeadamente, acórdão de 16 de Junho de 1987, Comissão/Itália, já referido, n.° 7).

61.
    No caso concreto, verifica-se que o direito alemão confere aos capitães de navios de pesca arvorando pavilhão alemão prerrogativas ligadas à manutenção da segurança e ao exercício de poderes de polícia, nomeadamente em caso de perigo a bordo, acrescidas, se for necessário, de poderes de investigação, de coação ou de sanção, que vão para além da simples contribuição para a manutenção da segurança pública à qual qualquer indivíduo pode ser obrigado. Além disso, determinadas funções auxiliares em matéria de registo civil, que não poderão explicar-se apenas pelas necessidades do comando do navio, são conferidas ao capitão, em particular a de receber a notificação do nascimento ou de falecimento de uma pessoa durante uma viagem, mesmo que incumba a um funcionário do registo civil, em terra, autenticar os actos de registo. Embora possam subsistir certas dúvidas a propósito destas funções em matéria de registo civil, quanto à questão de saber se as mesmas implicam a participação directa ou indirecta na autoridade pública, dúvida que compete ao órgão jurisdicional de reenvio dissipar, é certo, em contrapartida, que as funções ligadas à manutenção da segurança e ao exercício de poderes de polícia constituem uma participação no exercício de prerrogativas de autoridade pública para fins de salvaguarda dos interesses gerais do Estado do pavilhão.

62.
    A circunstância de os capitães serem empregados de uma pessoa singular ou colectiva de direito privado não é, enquanto tal, susceptível de afastar a aplicabilidade do artigo 39.°, n.° 4, CE desde que se demonstre que, para o cumprimento das missões públicas que lhes são atribuídas, os capitães agem na qualidade de representantes da autoridade pública, ao serviço dos interesses gerais do Estado do pavilhão.

63.
    Todavia, o recurso à derrogação à livre circulação dos trabalhadores, previsto no artigo 39.°, n.° 4, CE, não pode ser justificado pelo simples facto de serem atribuídas prerrogativas de autoridade pública pelo direito nacional aos titulares dos empregos em causa. É ainda necessário que essas prerrogativas sejam efectivamente exercidas de forma habitual pelos referidos titulares e não representem uma parte muito reduzida das suas actividades. Com efeito, como foi recordado no n.° 60 do presente acórdão, o alcance desta derrogação deve ser limitado ao que é estritamente necessário à salvaguarda dos interesses gerais do Estado-Membro em causa, a qual não pode ser posta em perigo se as prerrogativas de autoridade pública só forem exercidas de forma esporádica, ou mesmo excepcional, por nacionais de outros Estados-Membros.

64.
    Ora, resulta das indicações do órgão jurisdicional de reenvio que os empregos de capitão de navio que praticam a pequena pesca de alto-mar, que consistem no essencial em dirigir embarcações de pequeno porte, com uma tripulação reduzida, e em participar directamente na pesca e na transformação dos produtos de pesca, constituem empregos nos quais a função de representação do Estado do pavilhão ocupa, na prática, um lugar insignificante.

65.
    Além disso, como observou com razão a advogada-geral no n.° 68 das suas conclusões, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar não exige que o capitão do navio possua a nacionalidade do Estado do pavilhão.

66.
    Importa ainda examinar se a condição de nacionalidade a que estará subordinado o acesso às categorias de empregos em causa poderá ser justificada com fundamento no artigo 39.°, n.° 3, CE.

67.
    Quanto a este ponto, basta recordar que a faculdade de os Estados-Membros limitarem a livre circulação de pessoas por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública não tem por objecto colocar sectores económicos, como o da pesca, ou profissões, como a de capitão de navios de pesca, ao abrigo da aplicação deste princípio, do ponto de vista do acesso ao emprego, visando antes permitir aos Estados-Membros recusarem o acesso ou a permanência no seu território a pessoas cujo acesso ou permanência nesses territórios constitua, enquanto tal, um perigo para a ordem pública, a segurança pública ou a saúde pública (v., no que diz respeito à saúde pública, acórdão de 7 de Maio de 1986, Gül, 131/85, Colect., p. 1573, n.° 17, e, no que se refere à segurança privada, acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.° 42).

68.
    Em consequência, uma exclusão geral do acesso aos empregos de capitão de navios de pesca não pode ser justificada pelas razões previstas no artigo 39.°, n.° 3, CE.

69.
    Tendo em conta o que antecede, deve responder-se à questão prejudicial que o artigo 39.°, n.° 4, CE deve ser interpretado no sentido de que só autoriza um Estado-Membro a reservar aos seus nacionais os empregos de capitão dos navios que arvoram o seu pavilhão afectos à «pequena navegação marítima» («Kleine Seeschifffahrt») na condição de as prerrogativas de autoridade pública atribuídas aos capitães desses navios serem efectivamente exercidas de forma habitual e não representarem uma parte muito reduzida das suas actividades.

Quanto às despesas

70.
    As despesas efectuadas pelos Governos alemão, dinamarquês e francês, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes no processo principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Schleswig-Holsteinisches Oberverwaltungsgericht, por decisão de 31 de Janeiro de 2002, declara:

O artigo 39.°, n.° 4, CE deve ser interpretado no sentido de que só autoriza um Estado-Membro a reservar aos seus nacionais os empregos de capitão dos navios que arvoram o seu pavilhão afectos à «pequena navegação marítima» («Kleine Seeschifffahrt») na condição de as prerrogativas de autoridade pública atribuídas aos capitães desses navios serem efectivamente exercidas de forma habitual e não representarem uma parte muito reduzida das suas actividades.

Rodríguez Iglesias
Puissochet
Wathelet

Schintgen

Timmermans
Gulmann

Edward

La Pergola
Jann

Skouris

Macken
Colneric

von Bahr

Cunha Rodrigues
Rosas

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de Setembro de 2003.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: alemão.