Language of document : ECLI:EU:T:2020:394

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

9 de setembro de 2020 (*)

«Política económica e monetária — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Contribuições para o sistema de garantia dos depósitos ou para o fundo único de resolução através dos compromissos irrevogáveis de pagamento — Atribuições conferidas ao BCE — Poderes de supervisão específicos do BCE — Artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e artigo 16.o, n.o 1, alínea c), e n.o 2, alínea d), do Regulamento (UE) n.o 1024/2013 — Medida que impõe a dedução do montante cumulado dos compromissos irrevogáveis de pagamento em dívida dos fundos próprios principais de nível 1 — Falta de exame individual»

Nos processos T‑150/18 e T‑345/18,

BNP Paribas, com sede em Paris (França), representada por A. Gosset‑Grainville, M. Trabucchi e M. Dalon, advogados,

recorrente,

contra

Banco Central Europeu (BCE), representado por E. Koupepidou, R. Bax e F. Bonnard, na qualidade de agentes,

recorrido,

que tem por objeto um pedido baseado no artigo 263.o TFUE e destinado à anulação parcial da Decisão ECB/SSM/2017‑R0MUWSFPU8MPRO8K5P83/248 do BCE, de 19 de dezembro de 2017, da Decisão ECB‑SSM‑2018‑FRBNP‑17 do BCE, de 26 de abril de 2018, e da Decisão ECB‑SSM‑2019‑FRBNP‑12 do BCE, de 14 de fevereiro de 2019,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada),

composto por: E. Buttigieg, exercendo funções de presidente, F. Schalin (relator), B. Berke, M. J. Costeira e C. Mac Eochaidh, juízes,

secretário: M. Marescaux, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 11 de setembro de 2019,

profere o presente

Acórdão

 Quadro jurídico

1        Na sequência da crise financeira de 2008, que deu origem à crise da área do euro, foi instituído um novo quadro regulamentar destinado a assegurar a estabilidade e a segurança da atividade bancária na União Europeia e que completou a União Económica e Monetária e o mercado interno. Este novo quadro caracteriza‑se por um conjunto único de regras aplicável de forma idêntica às instituições de crédito de todos os Estados‑Membros em causa. A união bancária assenta em três pilares, no caso em apreço, num mecanismo único de supervisão, num mecanismo único de resolução e num sistema europeu de garantia de depósitos.

2        A Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento, que altera a Diretiva 2002/87/CE e revoga as Diretivas 2006/48/CE e 2006/49/CE (JO 2013, L 176, p. 338), e o Regulamento (UE) n.o 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e que altera o Regulamento (UE) n.o 648/2012 (JO 2013, L 176, p. 1; retificações no JO 2013, L 208, p. 68, e no JO 2013, L 321, p. 6), fazem parte do conjunto único de regras mencionado no n.o 1, supra, e, em conjunto, formam o quadro jurídico que regula as atividades bancárias, o quadro de supervisão e as regras prudenciais aplicáveis às instituições de crédito e empresas de investimento. O Regulamento n.o 575/2013 prevê que as instituições de crédito devem possuir uma determinada percentagem de fundos próprios em função do seu perfil de risco. Entre esses fundos próprios, existem os fundos próprios principais de nível 1 (Common Equity Tier 1, CET 1), a saber, os destinados a assegurar a continuidade das atividades de uma instituição de crédito e a prevenir situações de insolvência.

3        Os requisitos prudenciais gerais constantes do Regulamento (UE) n.o 575/2013 são complementados por disposições de caráter especial a respeito das quais as autoridades competentes devem adotar decisões na sequência do exercício de supervisão contínua de cada instituição de crédito e empresa de investimento.

4        O mecanismo único de supervisão estabelecido pelo Regulamento (UE) n.o 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013, que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito (JO 2013, L 287, p. 63) (o primeiro pilar da união bancária mencionado no n.o 1, supra), tem por objetivo garantir a segurança e a solidez das instituições de crédito. O referido regulamento atribui competência ao Banco Central Europeu (BCE) para exercer as atribuições de supervisão prudencial mencionadas no seu artigo 4.o, n.o 1. Em conformidade com o artigo 6.o do mesmo regulamento, o BCE exerce as suas atribuições no âmbito do mecanismo único de supervisão, composto pelo BCE e pelas autoridades nacionais competentes. O BCE tem competência, especialmente, para assegurar a supervisão prudencial das instituições de crédito da área do euro classificadas de «significativas».

5        Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1024/2013, o BCE aplica toda a legislação aplicável da União para efeitos do exercício das atribuições que lhe são conferidas. Para esse efeito, o BCE sujeita as suas decisões ao cumprimento «de qualquer ato legislativo e não legislativo, incluindo aqueles a que se referem os artigos 290.o e 291.o [TFUE]», sendo que, «em particular, o BCE está sujeito às normas técnicas vinculativas de regulamentação e de execução elaboradas pela [Autoridade Bancária Europeia (EBA)] e adotadas pela Comissão nos termos dos artigos 10.o a 15.o do [Regulamento] n.o 1093/2010, do artigo 16.o desse regulamento, e de disposições desse regulamento relativ[as] ao manual europeu de supervisão elaborado pela EBA nos termos do referido regulamento».

6        As autoridades competentes estão obrigadas, em conformidade com o artigo 97.o da Diretiva 2013/36, a instituir um processo de revisão e avaliação pelo supervisor (Supervisory Review and Evaluation Process; a seguir «SREP») para, designadamente, decidir «se as disposições, as estratégias, os processos e os mecanismos aplicados pelas instituições e os fundos próprios e se a liquidez por elas detidos garantem uma gestão sólida e a cobertura dos seus riscos».

7        Adicionalmente, em conformidade com o artigo 107.o, n.o 3, da Diretiva 2013/36, a Autoridade Bancária Europeia (EBA), criada pelo Regulamento (UE) n.o 1093/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, que cria uma Autoridade Europeia de Supervisão (Autoridade Bancária Europeia), altera a Decisão n.o 716/2009/CE e revoga a Decisão 2009/78/CE da Comissão (JO 2010, L 331, p. 12), estabeleceu, em 19 de dezembro de 2014, as orientações sobre os procedimentos e as metodologias comuns aplicáveis no âmbito do SREP (ABE/GL/2014/13).

8        O mecanismo único de resolução (abrangido pelo segundo pilar mencionado no n.o 1, supra), conforme instituído pelo Regulamento (UE) n.o 806/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de julho de 2014, que estabelece regras e um procedimento uniformes para a resolução de instituições de crédito e de certas empresas de investimento no quadro de um Mecanismo Único de Resolução e de um Fundo Único de Resolução bancária e que altera o Regulamento n.o 1093/2010 (JO 2014, L 225, p. 1), prevê a criação de um fundo único de resolução para o qual devem contribuir as instituições de crédito. Além disso, também faz parte do quadro jurídico pertinente a Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Diretiva 82/891/CEE do Conselho, e as Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/UE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos do Parlamento Europeu e do Conselho n.o 1093/2010 e (UE) n.o 648/2012 (JO 2014, L 173, p. 190). Esta diretiva prevê um regime específico de prevenção e de gestão de situações de insolvência bancária. Impõe, designadamente, a criação, em cada Estado‑Membro, de um mecanismo destinado a financiar a resolução no plano nacional, a saber, o fundo nacional de resolução, para o qual devem contribuir as instituições de crédito do Estado‑Membro em causa.

9        O terceiro pilar da união bancária (v. n.o 1, supra), a saber, a criação de um sistema europeu de garantia de depósitos, ainda não está concluído. No entanto, foi adotada a Diretiva 2014/49/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014, relativa aos sistemas de garantia de depósitos (JO 2014, L 173, p. 149), que se destina a reforçar a proteção dos depositantes através da constituição de um sistema de garantia pré‑financiado em cada Estado‑Membro. Este sistema assegura a cada depositante que a sua poupança será integralmente salvaguardada até ao montante máximo de 100 000 euros.

10      No que respeita ao financiamento do fundo único de resolução e dos sistemas de garantia de depósitos instituídos no âmbito do segundo e terceiro pilares, importa sublinhar que as contribuições que as instituições de crédito devem pagar ao fundo único de resolução e ao sistema de garantia dos depósitos podem ser pagas através de um pagamento imediato ou de um compromisso irrevogável de pagamento (a seguir «CIP»).

11      Assim, o artigo 70.o, n.o 3, do Regulamento n.o 806/2014 prevê que as instituições de crédito que optem por contribuir recorrendo a um CIP assumem o compromisso de pagar o montante da contribuição ao fundo único de resolução e ao sistema de garantia dos depósitos à primeira solicitação.

12      Segundo o artigo 70.o, n.o 3, do Regulamento n.o 806/2014, os CIP devem ser integralmente cobertos por garantias de ativos não expostos a direitos de terceiros (colocado à disposição das autoridades de resolução ou do sistema de garantia dos depósitos) e que possam ser liquidados a curto prazo. Este requisito figura, igualmente, no artigo 103.o, n.o 3, da Diretiva 2014/59 e no artigo 13.o, n.o 3, do Regulamento Delegado (UE) 2015/63 da Comissão, de 21 de outubro de 2014, que complementa a Diretiva 2014/59 no que se refere às contribuições ex ante para os mecanismos de financiamento da resolução (JO 2015, L 11, p. 44). Como resulta de uma decisão tomada pelo Conselho Único de Resolução, em 2016, e do direito francês que transpõe a Diretiva 2014/49, a garantia assume, na prática, a forma de um depósito em numerário de montante equivalente ao do CIP, colocado à disposição das autoridades de resolução ou do sistema de garantia dos depósitos.

13      Por último, há que mencionar que a EBA estabeleceu, em 11 de setembro de 2015, orientações relativas aos compromissos de pagamento no âmbito da Diretiva 2014/49 (EBA/GL/2015/09) (a seguir «orientações relativas aos compromissos de pagamento»).

14      As orientações relativas aos compromissos de pagamento, que o BCE declarou cumprir, confirmam que, em determinadas circunstâncias, os CIP são suscetíveis de ser objeto de medidas prudenciais. Com efeito, resulta o seguinte dos n.os 31 a 33 das referidas orientações:

«31.      O tratamento prudencial dos compromissos de pagamento deve ter como objetivo garantir a igualdade de condições de concorrência e atenuar o efeito pró‑cíclico desses compromissos em função do seu tratamento contabilístico.

32.      Sempre que o tratamento contabilístico tiver como resultado que o compromisso de pagamento seja totalmente refletido no balanço (como passivo) ou que o acordo de garantia seja totalmente refletido na conta de resultados, não deverá ser necessário aplicar um tratamento prudencial ad hoc para atenuar os efeitos pró‑cíclicos.

33.      Sempre que, pelo contrário, o tratamento contabilístico tiver como resultado que o compromisso de pagamento e o acordo de garantia sejam refletidos no balanço em contas extrapatrimoniais, as autoridades competentes, no âmbito do [SREP], devem avaliar os riscos a que estariam expostos os fundos próprios e a liquidez de uma instituição de crédito caso o [sistema de garantia dos depósitos] solicitasse a esta instituição o pagamento do […] compromisso em numerário, exercendo os poderes adequados para garantir que o efeito pró‑cíclico é atenuado por requisitos adicionais de fundos próprios/liquidez.»

 Factos na origem do litígio

15      A recorrente, BNP Paribas, é uma entidade significativa, na aceção do artigo 6.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1024/2013, e está abrangida pela supervisão prudencial direta do BCE desde 4 de novembro de 2014.

16      Em 14 de setembro de 2017, o BCE enviou à recorrente um projeto de decisão no termo do SREP que tinha por objeto, designadamente, o CIP. Este projeto incluía, designadamente, o requisito prudencial de que o montante cumulado dos CIP em dívida fosse deduzido dos fundos próprios principais de nível 1. A recorrente foi convidada a pronunciar‑se sobre este projeto.

17      Por carta de 29 de setembro de 2017, a recorrente apresentou as suas observações.

18      Em 19 de dezembro de 2017, o BCE adotou a Decisão ECB/SSM/2017‑R0MUWSFPU8MPRO8K5P83/248, em aplicação do artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e do artigo 16.o do Regulamento n.o 1024/2013, impondo que os montantes cumulados dos CIP assumidos para com os sistemas de garantia de depósitos ou os fundos de resolução fossem deduzidos dos fundos próprios principais de nível 1 (a seguir «Decisão de 19 de dezembro de 2017»).

19      A recorrente interpôs recurso da Decisão de 19 de dezembro de 2017 para a Comissão de Reexame do BCE, que emitiu um parecer em 19 de março de 2018.

20      Em 26 de abril de 2018, o BCE decidiu, na sequência do parecer da Comissão de Reexame, substituir a Decisão de 19 de dezembro de 2017 pela Decisão ECB‑SSM‑2018‑FRBNP‑17 (a seguir «Decisão de 26 de abril de 2018»). A secção desta decisão relativa aos CIP permaneceu inalterada.

 Tramitação processual e pedidos das partes

21      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 1 de março de 2018, a recorrente interpôs recurso de anulação da Decisão de 19 de dezembro de 2017, registado com o número de processo T‑150/18.

22      A contestação, a réplica e a tréplica no processo T‑150/18 foram apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral, respetivamente, em 30 de maio, 7 de setembro e 24 de outubro de 2018.

23      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 1 de junho de 2018, a recorrente interpôs recurso de anulação da Decisão de 26 de abril de 2018, registado com o número de processo T‑345/18.

24      A contestação, a réplica e a tréplica no processo T‑345/18 foram apresentadas na Secretaria do Tribunal Geral, respetivamente, em 26 de julho, 20 de setembro e 5 de novembro de 2018.

25      Sob proposta da Segunda Secção, o Tribunal Geral, em aplicação do artigo 28.o do seu Regulamento de Processo, decidiu remeter os processos T‑150/18 e T‑345/18 a uma formação de julgamento alargada.

26      Em 23 de abril de 2019, na sequência da adoção da Decisão ECB‑SSM‑2019‑FRBNP‑12 do BCE, de 14 de fevereiro de 2019, que substituiu a Decisão de 26 de abril de 2018 a partir de 1 de março de 2019 e que impôs a mesma medida de dedução (a seguir «Decisão de 14 de fevereiro de 2019»), a recorrente apresentou na Secretaria do Tribunal Geral um articulado de adaptação no qual pediu também a anulação parcial da Decisão de 14 de fevereiro de 2019, com base nos mesmos fundamentos que os invocados na petição contra a Decisão de 26 de abril de 2018.

27      Por Decisão do presidente do Tribunal Geral, de 23 de abril de 2019, os presentes processos foram atribuídos a um novo juiz relator, afeto à Segunda Secção.

28      Por carta de 17 de maio de 2019, o BCE apresentou as suas observações sobre o articulado de adaptação e pediu que fosse negado provimento ao recurso na íntegra.

29      Sob proposta do juiz relator, o Tribunal Geral (Segunda Secção alargada) decidiu abrir a fase oral do processo.

30      Por Decisão de 5 de agosto de 2019, o presidente da Segunda Secção alargada decidiu apensar os processos para efeitos da fase oral do processo.

31      Na audiência de 11 de setembro de 2019, foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às perguntas submetidas pelo Tribunal Geral.

32      No processo T‑150/18, a recorrente conclui pedindo, em substância, que o Tribunal Geral se digne:

–        anular os n.os 9.1 a 9.3 da Decisão de 19 de dezembro de 2017;

–        condenar o BCE nas despesas.

33      No processo T‑150/18, o BCE conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

34      No processo T‑345/18, a recorrente conclui pedindo, em substância, que o Tribunal Geral se digne:

–        anular os n.os 9.1 a 9.3 da Decisão de 26 de abril de 2018;

–        anular os n.os 8.1 a 8.4 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019;

–        condenar o BCE nas despesas.

35      No processo T‑345/18, o BCE conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Decisões impugnadas

36      Como resulta dos n.os 18, 20 e 26, supra, nas Decisões de 19 de dezembro de 2017, de 26 de abril de 2018 e de 14 de fevereiro de 2019 (a seguir, conjuntamente, «decisões impugnadas»), o BCE impôs à recorrente que deduzisse um montante equivalente ao dos CIP assumidos para com os sistemas de garantia de depósitos ou aos fundos de resolução dos fundos próprios principais de nível 1.

37      Nas decisões impugnadas, o BCE considerou que era necessário garantir uma cobertura sólida dos riscos a que os CIP, tratados como elementos extrapatrimoniais, expunham a recorrente. No n.o 8.2 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019, precisou o montante da dedução através da aplicação da seguinte fórmula: CET1aj = CET1non aj — c. Na referida fórmula, «CET1aj» designava os fundos próprios principais de nível 1 da entidade sujeita à supervisão prudencial em causa após o ajustamento, «CET1non aj» os fundos próprios principais de nível 1 dessa entidade antes do ajustamento e «c» o montante mais reduzido entre, por um lado, o justo valor dos ativos expostos ou das garantias em numerário prestadas para garantir o montante cumulado dos CIP em dívida e, por outro, o montante nominal do total dos CIP em dívida da entidade sujeita à supervisão prudencial em causa que estes garantiam.

38      A este respeito, o BCE baseou‑se, como resulta do n.o 8.3 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019, nos seguintes fundamentos:

«[A]s garantias em numerário prestadas para garantir os CIP estão indisponíveis até que o pagamento seja efetuado a pedido da autoridade de resolução ou do sistema de garantia de depósitos:

–        se esse pagamento for efetuado, os CIP em dívida são contabilizados como encargos que têm um efeito negativo sobre os fundos próprios principais de nível 1, o que significa que as garantias em numerário prestadas só ficarão disponíveis quando o pagamento em numerário já tiver tido efeito sobre os fundos próprios principais de nível 1;

–        se esse pagamento não for efetuado, a autoridade de resolução ou o sistema de garantia dos depósitos utilizará as garantias em numerário prestadas, o que terá um efeito negativo direto sobre os fundos próprios principais de nível 1.

Por conseguinte, […] as garantias em numerário nunca estarão disponíveis para cobrir perdas que a entidade sujeita à supervisão prudencial possa sofrer regularmente. Além disso, a autoridade de resolução e o sistema de garantia dos depósitos são ambos suscetíveis de impor a execução dos CIP quando uma determinada instituição de crédito é objeto de um processo de resolução ou de liquidação, de modo que, nesse caso, um pagamento em numerário dos CIP em dívida será contabilizado como uma perda que tem um efeito negativo sobre os fundos próprios principais de nível 1, o que pode ocorrer durante um período de perturbações sistemáticas acompanhado de possíveis efeitos pró‑cíclicos. O montante para o qual são prestadas garantias em numerário deve, portanto, ser considerado como não estando disponível para cobrir as perdas da instituição de crédito em causa. Atualmente, isso não surge nos fundos próprios principais de nível 1 da entidade sujeita à supervisão prudencial, o que, por conseguinte, não oferece uma visão exata da sua real solidez financeira e dos riscos em que incorre no que respeita à utilização dos CIP.»

39      As partes estão de acordo quanto ao facto de que a Decisão de 14 de fevereiro de 2019 é, em substância, idêntica às Decisões de 19 de dezembro de 2017 e de 26 de abril de 2018 no que respeita tanto ao dispositivo como aos fundamentos apresentados em seu apoio.

40      O BCE concluiu, assim, que o recurso aos CIP dava lugar à circunstância problemática a que se refere o artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013 e que, a fim de solucionar esse problema, podia exercer os poderes que lhe confere o artigo 16.o, n.o 2, alínea d), deste regulamento para exigir que qualquer destinatário dessas decisões aplicasse uma política específica de constituição de provisões ou de tratamento de ativos em termos de requisitos de fundos próprios.

 Questão de direito

41      Ouvidas as partes na audiência a esse respeito, o Tribunal Geral decidiu apensar os presentes processos para efeitos da decisão que põe termo à instância, em conformidade com o artigo 68.o do Regulamento de Processo.

42      No âmbito dos presentes recursos de anulação parcial das decisões impugnadas, a recorrente invoca quatro fundamentos. O primeiro fundamento é relativo à falta de base jurídica, uma vez que o BCE impôs um requisito prudencial de alcance geral apesar de esse poder estar reservado ao legislador. O segundo fundamento é relativo a um erro de direito resultante de uma interpretação errada das disposições do direito da União que permitem o recurso aos CIP e da privação dessas disposições de efeito útil. O terceiro fundamento é relativo à violação do princípio da proporcionalidade. O quarto fundamento é relativo a um erro de apreciação e à violação do princípio da boa administração.

43      O primeiro fundamento, relativo à falta de base jurídica, articula‑se em torno de duas acusações. No âmbito da primeira acusação, a recorrente alega, em substância, que, à luz das regras que enquadram a execução pelo BCE das suas atribuições de supervisão prudencial, as decisões impugnadas impõem um novo requisito prudencial de alcance geral. O BCE não procedeu a nenhuma avaliação dos riscos de solvência e de liquidez da recorrente e não apreciou o perfil de risco desta.

44      A segunda acusação assenta no facto de o BCE ter excedido os poderes previstos no artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e no artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013. Em primeiro lugar, a recorrente sustenta que o artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013 foi violado pelo facto de o BCE não ter demonstrado em que é que os dispositivos, as estratégias, os processos e os mecanismos por si implementados, assim como os fundos próprios e a liquidez por ela detidos não asseguravam uma boa gestão e cobertura dos seus riscos, limitando‑se a estabelecer uma lista de considerações de natureza geral e vaga. Em segundo lugar, alega que o artigo 4.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013 prevê que o BCE só pode impor às instituições de crédito requisitos específicos de fundos próprios adicionais que, à luz das disposições dos regulamentos em causa e da Diretiva 2013/36, possam ser adotados pelas autoridades competentes. Ora, nenhuma disposição permite às autoridades competentes impor um requisito adicional de capital através de uma dedução fixa a título de elementos extrapatrimoniais. Com efeito, a dedução integral e permanente dos CIP não está prevista na regulamentação aplicável. A dedução dos fundos próprios só está prevista no artigo 36.o do Regulamento n.o 575/2013. Em terceiro lugar e em todo o caso, a dedução só pode ser aplicada, nos termos do artigo 104.o, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2013/36 e do artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013, a elementos do ativo, e não a elementos extrapatrimoniais. As orientações do SREP preveem a possibilidade de impor um requisito de capital adicional, seja através de um requisito adicional de fundos próprios, seja através das medidas previstas no artigo 104.o da Diretiva 2013/36, a saber, um tratamento dos ativos incluídos no balanço.

45      O BCE contesta este fundamento. Relativamente à primeira acusação, sublinha que não impôs nenhuma nova regra geral e alega que o tratamento prudencial dos CIP é alheio aos diplomas que regulam estes últimos (a Diretiva 2014/49 e o Regulamento n.o 806/2014). As decisões impugnadas foram adotadas no âmbito do processo de revisão e avaliação pelo supervisor definido no artigo 4.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013 e respeitando o artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do mesmo regulamento. Neste âmbito, contesta a falta de exame individual, sublinhando que o nível de fundos próprios não influencia a existência do risco que justifica as decisões impugnadas, risco esse que consiste em os fundos próprios principais de nível 1 realmente disponíveis não colocarem a recorrente em posição de cobrir um nível de risco equivalente ao que deveria ser coberto pelos fundos próprios principais de nível 1 conforme refletidos no seu balanço.

46      Além disso, as decisões impugnadas são apenas um conjunto de decisões individuais oponíveis unicamente aos destinatários, fixando requisitos próprios de cada entidade, e cujos efeitos diferem para cada uma delas. Adicionalmente, estando as instituições de crédito expostas a riscos idênticos, as medidas devem logicamente ser formuladas de forma idêntica.

47      Quanto à segunda acusação, o BCE contesta ter excedido os poderes de que foi dotado pela regulamentação, alegando que fez um uso correto das suas prerrogativas para colocar a instituição de crédito em posição de cobrir corretamente os riscos a que se expunha. A medida em causa baseia‑se no artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013, que confere ao BCE atribuições específicas relacionadas com as políticas em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito. Com efeito, segundo o BCE, o exame da situação individual da recorrente pôs em evidência que certos riscos a que estava exposta não estavam corretamente cobertos. Essa conclusão basta para demonstrar que a recorrente estava numa das circunstâncias a que se refere esse artigo, justificando que tenha sido imposta uma medida para a solucionar.

48      Além disso, o artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013 permite‑lhe impor um «tratamento de ativos em termos de requisitos de fundos próprios», constituindo a dedução de CIP tal tratamento. Por conseguinte, uma vez que a medida de dedução se inscreve no âmbito do segundo pilar, a referência feita pela recorrente ao artigo 36.o do Regulamento n.o 575/2013 e à lista de deduções dos fundos próprios principais de nível 1 que este artigo estabelece não é pertinente. Por último, segundo o BCE e contrariamente ao que alega a recorrente, os CIP, enquanto elementos extrapatrimoniais, podem ser objeto de medidas prudenciais. A este respeito, refere, nomeadamente, as orientações da EBA que lhe exigem a tomada de medidas adequadas para cobrir o risco pró‑cíclico, se o compromisso de pagamento e a garantia que o acompanha não forem refletidos no balanço. Segundo o BCE, a EBA considera que só não é incorrido nenhum risco pró‑cíclico na hipótese de os CIP serem objeto de um tratamento contabilístico idêntico ao de uma contribuição em numerário. O BCE recorda, igualmente, que a garantia que acompanha o CIP constitui um ativo registado no balanço da instituição. Por conseguinte, o referido compromisso reflete‑se na garantia que o acompanha, o que implica que devem ser tratados como um conjunto indissociável.

 Quanto à primeira acusação, relativa à eventual falta de base jurídica

49      À semelhança das partes no presente litígio, há que fazer uma distinção, em termos de requisitos prudenciais, entre, por um lado, as obrigações de natureza regulamentar, igualmente denominadas, neste âmbito, de «pilar 1», e, por outro, as medidas prudenciais adicionais, denominadas, por sua vez, neste âmbito, de «pilar 2».

50      Assim, os requisitos prudenciais mínimos gerais são estabelecidos pelo legislador e constam principalmente do Regulamento n.o 575/2013, em conformidade com o que já foi mencionado no n.o 2, supra. O referido regulamento estabelece requisitos de fundos próprios aplicáveis a todas as instituições de crédito obrigadas. Daqui decorre que cada instituição deve dispor, a qualquer momento, de um nível suficiente de fundos próprios. Além disso, no que respeita aos fundos próprios principais de nível 1, o Regulamento n.o 575/2013 define os instrumentos que podem ser classificados entre estes fundos e exige que as instituições de crédito apliquem os filtros prudenciais referidos nos artigos 32.o a 35.o desse regulamento, que consistem, designadamente, em excluir determinados elementos, ajustar o seu valor ou deduzir dos fundos próprios principais de nível 1 os elementos enumerados nos artigos 36.o a 47.o do mesmo regulamento.

51      Concretamente, o artigo 26.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.o 575/2013 enumera os elementos de fundos próprios principais de nível 1 como sendo os seguintes: «a) Instrumentos de fundos próprios […]; b) Prémios de emissão relacionados com os instrumentos [de fundos próprios]; c) Resultados retidos; d) Outro rendimento integral acumulado; e) Outras reservas; f) Fundos para riscos bancários gerais». Estes fundos próprios principais de nível 1 estão entre os mais sólidos dos que dispõe a instituição de crédito, sendo utilizáveis imediatamente e sem restrição.

52      O artigo 36.o do Regulamento n.o 575/2013 prevê que devem ser deduzidos vários elementos dos fundos próprios principais de nível 1, entre os quais, designadamente, as perdas relativas ao exercício em curso, os ativos intangíveis, os ativos por impostos diferidos que dependam de rendibilidade futura e as participações noutras instituições de crédito ou financeiras.

53      A par destes ajustamentos prudenciais aplicáveis em geral a todas as instituições de crédito, o direito da União autoriza a supervisor, neste caso o BCE, a impor outras medidas, de forma casuística e tendo em conta a situação específica de cada instituição, designadamente no âmbito da sua atribuição de efetuar exercícios de revisão e avaliação pelo supervisor, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013.

54      No que respeita à questão de saber se o BCE excedeu a sua competência na medida em que impôs um requisito prudencial de alcance geral, importa observar que é pacífico que o BCE não tem poder regulamentar no âmbito do primeiro pilar, o qual diz respeito às obrigações de natureza regulamentar, sendo este poder da competência exclusiva do legislador da União.

55      Com efeito, a competência do BCE está sujeita, no âmbito das suas atribuições de supervisão prudencial, designadamente a que exerce nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013, à realização de um exame individual a fim de verificar a adequação dos fundos próprios das entidades diretamente supervisionadas aos riscos a que estão ou poderão vir a estar expostas. Uma vez efetuadas estas verificações, o BCE pode, com base nas vulnerabilidades e nas fraquezas recenseadas, impor medidas corretivas.

56      A esse respeito, há que observar que, por ocasião da adoção das decisões impugnadas, o BCE se inscreveu no âmbito das revisões e avaliações pelo supervisor abrangidas pelo segundo pilar. Com efeito, em primeiro lugar, na parte introdutória das decisões impugnadas, o BCE indicou ter exercido a supervisão prudencial ao abrigo do artigo 4.o, n.o l, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013. Nos termos desta disposição, foi conferida ao BCE uma competência exclusiva para exercer a atribuição que consiste em efetuar exercícios de revisão e avaliação pelo supervisor a fim de determinar se os dispositivos, as estratégias, os processos e os mecanismos implementados pelas instituições de crédito e os fundos próprios por elas detidos asseguram uma boa gestão e cobertura dos seus riscos e, com base nesse processo de revisão, impor às instituições de crédito, designadamente, requisitos específicos de fundos próprios adicionais, requisitos específicos de liquidez e outras medidas que à luz da legislação aplicável da União possam ser adotadas pelas autoridades competentes.

57      Em segundo lugar, resulta dos números consagrados aos CIP nas decisões impugnadas que são objeto do pedido de anulação parcial, a saber, o n.o 9 da Decisão de 19 de dezembro de 2017, o n.o 9 da Decisão de 26 de abril de 2018 e o n.o 8 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019, que o BCE se baseou em duas disposições para impor a dedução dos CIP dos fundos próprios principais de nível 1.

58      Trata‑se, por um lado, do artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013. Este prevê que, para efeitos do exercício das atribuições a que se refere o artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1024/2013, são atribuídos ao BCE, nos termos do artigo 16.o, n.o 2, do mesmo regulamento, poderes para exigir que as instituições de crédito tomem as medidas necessárias para solucionar problemas relevantes em determinadas circunstâncias. Entre estas circunstâncias, encontra‑se aquela em que, no quadro de um processo de supervisão realizado nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alínea f), do Regulamento n.o 1024/2013, o BCE conclui que os dispositivos, as estratégias, os processos e os mecanismos implementados pela instituição de crédito, assim como os fundos próprios e liquidez por elas detidos, não asseguram uma boa gestão e cobertura dos seus riscos.

59      Trata‑se, por outro lado, do artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013, que serve de fundamento ao n.o 9 das Decisões de 19 de dezembro de 2019 e de 26 de abril de 2018 e ao n.o 8 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019. Esta disposição prevê que o BCE dispõe, especialmente, do poder de exigir que as instituições apliquem uma política específica de constituição de provisões ou de tratamento de ativos em termos de requisitos de fundos próprios.

60      Daqui resulta que as diligências do BCE se inscreveram no âmbito dos seus poderes de supervisão prudencial abrangidos pelo segundo pilar. Consequentemente, a medida adotada pelo BCE não é desprovida de base jurídica. Por conseguinte, na medida em que, com a primeira acusação do primeiro fundamento, a recorrente pôs em causa a falta de base jurídica, este fundamento deve ser julgado improcedente.

 Quanto à segunda acusação, relativa a uma eventual falta de exame individual

61      No âmbito da segunda acusação, há que verificar se, no caso em apreço, o BCE exerceu corretamente os poderes que lhe são conferidos nos termos do segundo pilar. A este respeito, como resulta dos n.os 58 e 59, supra, para exercer os seus poderes ao abrigo do artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013, o BCE deve proceder a um exame individual da situação de cada instituição de crédito a fim de poder avaliar se «os dispositivos, as estratégias, os processos e os mecanismos implementados pela instituição de crédito e os fundos próprios e liquidez por elas detidos não asseguram uma boa gestão e cobertura dos seus riscos».

62      A este respeito, há que examinar, com base no raciocínio constante das decisões impugnadas, de que modo o BCE exerceu, no caso em apreço, os seus poderes de revisão e de avaliação pelo supervisor relativamente à recorrente.

63      Resulta do raciocínio seguido no caso em apreço pelo BCE, conforme reproduzido no n.o 38, supra, que o risco por si identificado consistia na sobreavaliação dos fundos próprios principais de nível 1, risco esse que tinha origem no facto de os CIP serem tratados como um elemento extrapatrimonial, de não estarem, por conseguinte, incluídos no passivo do balanço da instituição de crédito e de a garantia associada aos CIP estar indisponível até ao pagamento dos CIP.

64      Com efeito, quando uma instituição de crédito assume um CIP, os fundos próprios principais de nível 1 dessa instituição permanecem a um nível inalterado. No entanto, as quantias transferidas ao abrigo da garantia já não podem ser mobilizadas para cobrir, em condições normais, as eventuais perdas da atividade.

65      Uma vez que o risco reside, segundo o BCE, na diferença entre o montante de fundos próprios principais de nível 1 apresentado pela instituição em causa e o montante real das perdas que esta é capaz de suportar, o BCE, no seu papel de supervisor prudencial, considerou, como resulta das decisões impugnadas resumidas nos n.os 38 e 40, supra, que essa situação não oferecia uma visão exata da real solidez financeira da instituição de crédito em causa nem dos riscos em que incorria no que respeita à utilização dos CIP.

66      Não se pode deixar de observar que o raciocínio desenvolvido pelo BCE não resulta de uma pura abstração, uma vez que se baseia na conclusão de que a recorrente recorreu aos CIP e os trata como elementos extrapatrimoniais.

67      Tendo em conta, designadamente, a importância dos fundos próprios principais de nível 1 na solidez financeira das instituições e, mais globalmente, na estabilidade do setor financeiro, a existência do risco assim identificado pelo BCE não pode ser negada, sendo que, por outro lado, esse risco é confirmado pelas orientações relativas aos compromissos de pagamento da EBA. Com efeito, resulta destas orientações (v. n.o 14, supra) que as autoridades competentes, incluindo o BCE, devem avaliar, no âmbito do SREP, os riscos a que estariam expostos os fundos próprios e a liquidez de uma instituição de crédito que trate os seus CIP extrapatrimonialmente.

68      De resto, a este respeito, há que observar que as partes estão de acordo quanto ao facto de que, no plano do tratamento contabilístico, os CIP são geralmente contabilizados, como no caso em apreço, enquanto elementos extrapatrimoniais, apenas sendo registados no balanço como perda, diminuindo em igual medida os fundos próprios principais de nível 1, no momento em que a instituição de crédito é obrigada a pagar a quantia a um dos fundos em causa.

69      Além disso, há que observar que não são os CIP enquanto tais que são objeto da medida de dedução em causa, mas as quantias depositadas em garantia, como decorre igualmente do n.o 8.2 da Decisão de 14 de fevereiro de 2019. As quantias depositadas em garantia constituem, geralmente, um ativo registado no balanço da instituição de crédito. Com efeito, as garantias dos CIP são obrigatoriamente ativos líquidos com baixo nível de risco. Estas assumem, na prática, a forma de um depósito em numerário de montante equivalente ao dos CIP, colocado à disposição das autoridades de resolução ou do sistema de garantia dos depósitos. Por outras palavras, os CIP refletem‑se na sua garantia, dispondo ambos estes elementos de um nexo indissociável e não podendo, por conseguinte, ser considerados separadamente.

70      Assim, contrariamente ao que sustenta a recorrente, o BCE pôde considerar, sem cometer um erro de direito quanto a este ponto, que o tratamento prudencial dos CIP, e, portanto, da garantia que é indissociável deste, podia dar origem à aplicação de uma das medidas previstas no artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013, e isto não obstante o facto de, num plano contabilístico, os CIP enquanto tais serem contabilizados como elementos extrapatrimoniais.

71      Por conseguinte, importa julgar improcedente o argumento da recorrente relativo ao facto de, uma vez que são tratados extrapatrimonialmente, os CIP não poderem, por esse motivo, ser objeto da política específica prevista no artigo 16.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013.

72      No entanto, há que examinar se, no caso em apreço, o BCE procedeu ao exame individual do perfil de risco da recorrente que lhe impunha o artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013 (v. n.o 61, supra) e, mais concretamente, se os dispositivos, as estratégias, os processos e os mecanismos implementados por esta última e os fundos próprios e a liquidez por ela detidos não lhe permitiam fazer face ao risco assim identificado, resultante do tratamento contabilístico dos CIP como elementos extrapatrimoniais e da indisponibilidade da garantia a estes associada.

73      A este respeito, a recorrente e o BCE têm opiniões opostas em relação ao exame efetuado por este último.

74      O BCE alega que examinou todas as circunstâncias pertinentes. Em contrapartida, a recorrente considera que o raciocínio do BCE se baseia unicamente em considerações de ordem geral, e não em nenhum exame concreto que tenha tido por objetivo, designadamente, avaliar o perfil de risco de uma instituição especial. Segundo a recorrente, esse exame, a ter sido efetuado, teria demonstrado que o montante dos fundos próprios principais de nível 1 de que dispunha era suficiente para fazer face a eventuais perdas que pudesse vir a sofrer na hipótese de os CIP por si assumidos terem de ser executados.

75      No caso em apreço, resulta das decisões impugnadas que o BCE concluiu que a recorrente tinha recorrido ao dispositivo do CIP e que tratava o CIP como um elemento extrapatrimonial, ao passo que a correspondente garantia era refletida no balanço enquanto ativo. O BCE indicou, na Decisão de 14 de fevereiro de 2019, o montante total dos CIP em dívida para os quais eram prestadas garantias em numerário pela recorrente, tanto ao nível consolidado como por instituição da recorrente. Em seguida, calculou a percentagem do montante das posições em risco, em aplicação do artigo 92.o, n.o 3, do Regulamento n.o 575/2013. Ao fazê‑lo, o BCE estabeleceu o nível de posições da recorrente em risco resultante do facto de ter assumido os CIP. Resulta igualmente dos autos no Tribunal Geral que, embora esse exercício de cálculo não constasse das Decisões de 19 de dezembro de 2017 e de 26 de abril de 2018, o BCE dispunha, no momento da adoção dessas decisões, das informações pertinentes para proceder a essa avaliação.

76      Ora, o raciocínio do BCE equivale a considerar que o tratamento contabilístico extrapatrimonial dos CIP é, por si só, problemático, uma vez que esse tratamento implica, por definição, uma sobreavaliação dos fundos próprios principais de nível 1. A posição do BCE resulta, designadamente, dos seus articulados no Tribunal Geral e das suas declarações na audiência. Com efeito, declarou que o risco que a medida em causa devia solucionar resultava do facto de o tratamento contabilístico aplicável aos CIP não refletir a indisponibilidade das quantias mobilizadas a esse título no rácio dos fundos próprios principais de nível 1 da instituição contribuinte. Segundo o BCE, esta situação permitiu‑lhe recorrer, de forma proporcionada, aos poderes de que dispunha nos termos do artigo 16.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1024/2013. Tal raciocínio, apesar de ser aplicado concretamente à recorrente, diz respeito, todavia, a conclusões de natureza geral suscetíveis de serem aplicadas a qualquer instituição de crédito que opte pelo tratamento extrapatrimonial dos CIP sem tomar em conta qualquer circunstância própria da instituição em causa.

77      Em contrapartida, as decisões impugnadas não referem nenhum exame individual a que o BCE tenha procedido e que se destinasse a verificar se a recorrente tinha implementado dispositivos, estratégias, processos e mecanismos na aceção do artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e do artigo 16.o, n.o 1, alínea c), do Regulamento n.o 1024/2013 para fazer face aos riscos prudenciais relacionados com o tratamento extrapatrimonial dos CIP e, sendo caso disso, a garantir a sua pertinência à luz destes riscos.

78      A esse respeito, há que observar que o recurso aos CIP é expressamente admitido e enquadrado pelo legislador. É certo que, como alega o BCE, o Regulamento n.o 806/2014 e a Diretiva 2014/49 não abordam o assunto do tratamento contabilístico dos CIP. Além disso, a possibilidade prevista pelo legislador de recorrer, numa percentagem limitada, aos CIP para financiar os fundos e os sistemas de garantia não impede a existência de um risco prudencial. A eventualidade desse risco também pode ser deduzida das orientações relativas aos compromissos de pagamento. Todavia, e sem haver que se pronunciar sobre a exatidão da interpretação dada pelo BCE às orientações relativas aos compromissos de pagamento, a saber, que a única forma de excluir um risco pró‑cíclico consiste em tratar contabilisticamente os CIP de maneira idêntica a uma contribuição em numerário, a verdade é que resulta do artigo 16.o do Regulamento n.o 1024/2013, bem como das orientações relativas aos compromissos de pagamento, na medida em que fazem referência ao exame aplicado no âmbito do SREP, que é exigido um exame de forma casuística.

79      Ora, como já foi referido (v. n.o 76, supra), decorre da abordagem do BCE que este considerou que existia um risco a partir do momento em que uma instituição optasse pelo recurso aos CIP e por um tratamento extrapatrimonial, tornando inútil qualquer exame mais circunstanciado da situação específica dessa instituição.

80      De resto, a argumentação do BCE segundo a qual a medida em causa foi adotada no âmbito do SREP, sendo que, por conseguinte, cada decisão adotada nesse âmbito é uma decisão individual cujo alcance não ultrapassa o seu destinatário, não é pertinente. É certo que, como alega o BCE, riscos idênticos podem ser cobertos por medidas idênticas. Todavia, o facto de a medida em causa ter sido adotada no âmbito do exercício decorrente da aplicação do SREP não implica que a medida prudencial tomada nesse contexto seja forçosamente uma decisão adotada na sequência de um exame individual que tome em conta as circunstâncias próprias da recorrente.

81      Além disso, o argumento do BCE segundo o qual, antes da adoção das decisões impugnadas, procedeu a um exame individual por ocasião do estudo de impacto também não pode proceder. Com efeito, tal exame destina‑se, no máximo, a avaliar as consequências da adoção de uma medida à luz dos objetivos pretendidos. É verdade que um estudo de impacto pode ter utilidade para apreciar o caráter proporcional da medida em causa, como resulta, em substância, da argumentação do BCE quando alega que o referido estudo demonstra que a medida apenas teria um impacto reduzido em termos de fundos próprios adicionais e não representaria, por conseguinte, um encargo desproporcionado para a recorrente. No entanto, esse estudo persegue outro objetivo e caracteriza‑se por uma lógica diferente da subjacente à análise que incumbe ao BCE por força do artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e do artigo 16.o, n.o 1, alínea c), e n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013. Por força destas disposições, cabe efetivamente ao BCE avaliar a necessidade de adotar a medida em apreço à luz da situação individual da instituição em causa, tendo em conta, designadamente, os eventuais dispositivos, estratégias, processos ou mecanismos que esta tenha implementado.

82      Por conseguinte, há que concluir que, ao não prosseguir o seu exame além da simples constatação do risco potencial causado pelo CIP em razão do seu tratamento contabilístico como elemento extrapatrimonial, ao não examinar a situação concreta da recorrente, designadamente o seu perfil de risco e o seu nível de liquidez, e ao não ter em conta eventuais fatores atenuantes do risco potencial, o BCE não procedeu ao processo de supervisão individual da recorrente conforme imposto pelo artigo 4.o, n.o 1, alínea f), e pelo artigo 16.o, n.o 1, alínea c), e n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 1024/2013, de modo que estas disposições foram violadas.

83      Na medida em que a acusação relativa à falta de exame individual é fundada, o primeiro fundamento deve ser julgado procedente.

84      Daqui resulta que o presente recurso, na medida em que se destina à anulação parcial das decisões impugnadas, deve ser julgado procedente, sem que seja necessário examinar os outros fundamentos invocados pela recorrente.

 Quanto às despesas

85      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o BCE sido vencido, há que condená‑lo nas despesas, em conformidade com os pedidos da recorrente.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção alargada)

decide:

1)      Os processos T150/18 e T345/18 são apensados para efeitos do presente acórdão.

2)      Os n.os 9.1 a 9.3 da Decisão ECB/SSM/2017R0MUWSFPU8MPRO8K5P83/248 do Banco Central Europeu (BCE), de 19 de dezembro de 2017, os n.os 9.1 a 9.3 da Decisão ECBSSM2018FRBNP17 do BCE, de 26 de abril de 2018, e os n.os 8.1 a 8.4 da Decisão ECBSSM2019FRBNP12 do BCE, de 14 de fevereiro de 2019, são anulados.

3)      O BCE é condenado nas despesas.

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 9 de setembro de 2020.



*      Língua do processo: francês.