Language of document : ECLI:EU:C:2016:122

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 25 de fevereiro de 2016 (1)

Processos apensos C‑458/14 e C‑67/15

Promoimpresa srl

contra

Consorzio dei comuni della Sponda Bresciana del Lago di Garda e del Lago di Idro,

Regione Lombardia (C‑458/14)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia (Tribunal Administrativo Regional da Lombardia, Itália)]

e

Mario Melis,

Tavolara Beach Sas,

Dionigi Piredda,

Claudio Del Giudice

contra

Comune di Loiri Porto San Paolo,

Provincia di Olbia Tempio (C‑67/15)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per la Sardegna (Tribunal Administrativo Regional da Sardenha, Itália)]

«Reenvio prejudicial — Liberdade de estabelecimento — Exploração de bens do domínio público marítimo e lacustre — Diretiva 2006/123/CE — Artigo 4.°, n.° 6 — Conceito de regime de autorização — Artigo 12.° — Número de autorizações limitado devido à escassez dos recursos naturais — Renovação automática das autorizações — Interpretação conforme — Efeito de uma diretiva na ordem jurídica interna»





 Introdução

1.        Os presentes processos apensos respeitam à mesma problemática da prorrogação dos direitos exclusivos de exploração de bens do domínio público marítimo e lacustre em Itália.

2.        Foram submetidos aos órgãos jurisdicionais italianos recursos de anulação de decisões administrativas que põem termo aos atos, qualificados como «concessões» em direito italiano, relativos à exploração de zonas do domínio público situadas nas margens do lago de Garda e na costa sarda (2). Ao contestarem estas decisões, os concessionários cessantes invocam a legislação que prorroga o prazo destes atos. Os órgãos jurisdicionais de reenvio interrogam‑se sobre a compatibilidade desta legislação com as disposições do Tratado FUE bem como com as da Diretiva 2006/123/CE (3).

3.        Os presentes processos oferecem, assim, ao Tribunal de Justiça a oportunidade de delimitar o âmbito de aplicação das normas aplicáveis às concessões de serviços, relativamente ao das disposições relativas à autorização da atividade de serviço, bem como de interpretar o artigo 12.° da Diretiva 2006/123 no que respeita ao regime de concessão das autorizações cujo número seja limitado devido à escassez dos recursos naturais.

 Quadro jurídico

 Direito da União

4.        Os artigos 9.° a 13.° da Diretiva 2006/123 contêm as disposições aplicáveis aos regimes de autorização que condicionam o acesso às atividades de serviços e ao seu exercício.

5.        O artigo 12.° desta diretiva, intitulado «Seleção entre vários candidatos», dispõe:

«1.      Quando o número de autorizações disponíveis para uma determinada atividade for limitado devido à escassez dos recursos naturais ou das capacidades técnicas utilizáveis, os Estados‑Membros devem aplicar um procedimento de seleção entre os potenciais candidatos que dê todas as garantias de imparcialidade e de transparência, nomeadamente, a publicidade adequada do início do procedimento, da sua condução e do seu encerramento.

2.      Nos casos referidos no n.° 1, a autorização é concedida por um período limitado adequado e não pode ser objeto de renovação automática, nem prever qualquer outra vantagem em benefício do prestador cuja autorização tenha caducado ou das pessoas que com ele tenham vínculos especiais.

3.      Sem prejuízo do n.° 1 e dos artigos 9.° e 10.°, os Estados‑Membros podem ter em conta, na definição das regras dos procedimentos de seleção, considerações de saúde pública, objetivos de política social, a saúde e segurança dos trabalhadores assalariados e não assalariados, a proteção do ambiente, a preservação do património cultural e outras razões imperiosas de interesse geral, em conformidade com o direito comunitário.»

 Direito italiano

 Legislação relativa às concessões marítimas

6.        Os bens que fazem parte do domínio público marítimo são regidos pelo Código da navegação que prevê, nomeadamente, no seu artigo 36.°, que tais bens podem ser objeto de uma concessão.

7.        Este código prevê, além disso, no seu artigo 37.°, n.° 2, o direito de preferência do concessionário existente em caso de renovação da concessão.

8.        Na sequência de um procedimento por incumprimento iniciado pela Comissão Europeia, este direito de preferência foi eliminado através do artigo 1.°, n.° 18, do Decreto‑lei n.° 194 (decreto‑legge n.° 194 — Proroga di termini previsti da disposizioni legislative), de 30 de dezembro de 2009 (GURI n.° 302, de 30 de dezembro de 2009, a seguir «Decreto‑lei n.° 194/2009»).

9.        Este artigo prorrogou até 31 de dezembro de 2012 o prazo das concessões de bens do domínio público marítimo que caducassem o mais tardar nessa data.

10.      Por ocasião da conversão do Decreto‑lei n.° 194/2009 em lei, através da Lei n.° 25 (legge n.° 25), de 26 de fevereiro de 2010 (GURI n.° 48, de 27 de fevereiro de 2010), esta disposição foi alterada no sentido de prorrogar até 31 de dezembro de 2015 o prazo das concessões que caducassem o mais tardar nessa data.

11.      Esta disposição foi, seguidamente, alterada pelo artigo 34.°‑K do Decreto‑lei n.° 179 (decreto‑legge n.° 179 — Ulteriori misure urgenti per la crescita del Paese), de 18 de outubro de 2012 (GURI n.° 245, de 19 de outubro de 2012), convertido na Lei n.° 221 (legge n.° 221), de 17 de dezembro de 2012 (GURI n.° 294, de 18 de dezembro de 2012), no sentido de que o prazo das concessões foi prorrogado até 31 de dezembro de 2020.

 Legislação de transposição da Diretiva 2006/123

12.      A Diretiva 2006/123 foi transposta para o direito italiano através do Decreto Legislativo n.° 59 (decreto legislativo n.° 59 — Attuazione della direttiva 2006/123/CE relativa ai servizi nel mercato interno), de 26 de março de 2010 (GURI n.° 94, de 23 de abril de 2010).

13.      O artigo 16.°, n.° 4, deste decreto legislativo dispõe que, quando o número de licenças disponíveis foi limitado devido à escassez dos recursos naturais, essas licenças não podem ser renovadas automaticamente.

 Factos na origem dos litígios nos processos principais e questões prejudiciais

 Processo C‑458/14

14.      Por decisões de 16 de junho e de 17 de agosto de 2006, o Consorzio dei comuni della Sponda Bresciana del Lago di Garda e del Lago di Idro (a seguir «Consorzio») atribuiu à Promoimpresa srl (a seguir «Promoimpresa») uma concessão para a exploração de uma zona para fins recreativos no domínio público do lago de Garda.

15.      O artigo 3.° da decisão que atribuía esta concessão previa a sua cessação de pleno direito em 31 de dezembro de 2010.

16.      Em 14 de abril de 2010, a Promoimpresa apresentou um pedido de renovação da concessão, o qual foi indeferido pelo Consorzio por decisão de 6 de maio de 2011, com fundamento em que a concessão em questão no processo principal era limitada a um prazo de cinco anos, com exclusão de qualquer forma de renovação automática, e que a nova concessão devia ser adjudicada por concurso público.

17.      A Promoimpresa recorreu desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, invocando, nomeadamente, a violação do artigo 1.°, n.° 18, do Decreto‑lei n.° 194/2009. Alegou que este decreto‑lei, embora respeitasse às concessões marítimas, se aplicava igualmente às concessões de bens do domínio público lacustre.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a disposição em questão, ao prever a prorrogação do prazo das concessões de bens do domínio público, cria uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, impossibilitando o acesso de qualquer outro concorrente às concessões cujo prazo termine.

19.      Foi neste contexto que o Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia (Tribunal Administrativo Regional da Lombardia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Opõem‑se os princípios da liberdade de estabelecimento, da não‑discriminação e da proteção da concorrência, previstos nos artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE e 106.° TFUE, e o princípio da razoabilidade neles consagrado, a uma legislação nacional que, devido a intervenções legislativas sucessivas, determina a prorrogação reiterada do prazo de caducidade de concessões de bens do domínio público marítimo, lacustre e fluvial economicamente relevantes, cuja duração é aumentada por lei em, pelo menos, onze anos, mantendo assim o mesmo concessionário o direito exclusivo de explorar economicamente o bem, não obstante ter terminado o prazo de vigência da concessão adjudicada, com a consequência de os operadores económicos interessados serem privados de qualquer possibilidade de obterem a referida concessão no âmbito de concursos públicos?»

 Processo C‑67/15

20.      Os recorrentes no processo principal, com exceção do SIB (Sindicato Italiano Balneari), a associação dos estabelecimentos balneares, gerem atividades turísticas e recreativas na zona da praia da Comune de Loiri Porto San Paolo (Sardenha), ao abrigo de concessões atribuídas pelo Comune em 2004 por um prazo de seis anos, seguidamente prorrogadas por um ano, até 2011.

21.      Apresentaram ao Comune um pedido de prorrogação das concessões para o ano de 2012. Como este pedido não teve resposta, entendiam que podiam continuar com as suas atividades, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 18, do Decreto‑lei n.° 194/2009.

22.      Em 11 de maio de 2012, o Comune publicou um aviso com vista à adjudicação de sete novas concessões, estando algumas delas situadas em zonas que eram já objeto de concessões atribuídas aos recorrentes no processo principal.

23.      Em 6 de junho de 2012, os recorrentes no processo principal impugnaram os atos em questão no Tribunale Amministrativo Regionale per la Sardegna (Tribunal Administrativo Regional da Sardenha). Alargaram, seguidamente, as suas críticas à decisão de 8 de junho de 2012, através da qual o Comune tinha procedido à adjudicação das concessões a pessoas que não os recorrentes no processo principal e impugnaram, seguidamente, as medidas pelas quais a polícia municipal lhes tinha ordenado a remoção do seu equipamento.

24.      No âmbito do seu recurso, censuraram, nomeadamente, o Comune por não ter tomado em conta a prorrogação automática das concessões prevista pela legislação nacional.

25.      O órgão jurisdicional de reenvio considera que esta prorrogação automática constitui um obstáculo à aplicação do direito da União, nomeadamente do artigo 12.° da Diretiva 2006/123. O artigo 16.° do Decreto Legislativo n.° 59/2010, que transpõe o artigo 12.° da Diretiva 2006/123, não seria, em substância, aplicado, em consequência da intervenção de uma norma legislativa especial que prorroga as concessões existentes.

26.      Foi neste contexto que o Tribunale Amministrativo Regionale per la Sardegna (Tribunal Administrativo Regional da Sardenha) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Opõem‑se os princípios da liberdade de estabelecimento, da não‑discriminação e da proteção da concorrência, previstos nos artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE e 106.° TFUE, a uma legislação nacional que, devido a intervenções legislativas sucessivas, determina a prorrogação reiterada do prazo de caducidade de concessões de bens do domínio público marítimo economicamente relevantes?

2)      Opõe‑se o artigo 12.° da Diretiva 2006/123/CE a uma disposição nacional como a do artigo 1.°, n.° 18, do Decreto Lei n.° 194, de 29 de dezembro de 2009, convertido na Lei n.° 25, de 26 de fevereiro de 2010, com as suas sucessivas alterações e acréscimos, que permite a prorrogação automática das concessões em vigor sobre o domínio público marítimo destinadas ao exercício de atividades turísticas e recreativas até 31 de dezembro de 2015, ou até 31 de dezembro de 2020, em conformidade com o artigo 34.°‑K do Decreto Lei n.° 179, de 18 de outubro de 2012 inserido pelo artigo 1.°, n.° 1, da Lei n.° 221, de 17 de dezembro de 2012, de conversão do referido decreto lei?».

 Tramitação no Tribunal de Justiça

27.      As decisões de reenvio deram entrada na secretaria do Tribunal de Justiça em 3 de outubro de 2014 (processo C‑458/14) e 12 de fevereiro de 2015 (processo C‑67/15). Foram apresentadas observações escritas pelos recorrentes nos processos principais, pelo Governo italiano e pela Comissão (em ambos os processos), bem como pelos Governos grego (processo C‑458/14) e checo (processo C‑67/15). Os processos foram apensos para efeitos da fase oral e do acórdão, por decisão de 27 de outubro de 2015.

28.      Os recorrentes no processo principal, o Comune di Loiri Porto San Paolo, os Governos italiano e neerlandês bem como a Comissão participaram na audiência, realizada em 3 de dezembro de 2015.

 Análise

29.      Através das suas questões, os órgãos jurisdicionais de reenvio pretendem saber se os artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE e 106.° TFUE obstam a uma legislação nacional que prevê uma prorrogação automática do prazo de concessões de bens do domínio público marítimo e lacustre.

30.      Além disso, através da segunda questão no processo C‑67/15, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se quanto a saber se tal legislação é conforme ao artigo 12.° da Diretiva 2006/123.

31.      Embora a questão prejudicial no processo C‑458/14 não se refira à Diretiva 2006/123, o seu artigo 12.° foi, todavia, discutido pelas partes e pelos interessados. Importa recordar, a este respeito, que, com vista a fornecer uma resposta útil, o Tribunal de Justiça pode ser levado a tomar em consideração normas de direito da União às quais o juiz nacional não tenha feito referência na sua questão (4).

 Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

32.      O Governo italiano interroga‑se sobre a admissibilidade do pedido de reenvio no processo C‑458/14, indicando que, à data dos factos no processo principal, o artigo 1.°, n.° 18, do Decreto‑lei n.° 194/09 respeitava exclusivamente às concessões do domínio público marítimo. A extensão dos efeitos desta legislação às concessões lacustres, que surgiu após a adoção dos atos impugnados perante o órgão jurisdicional de reenvio, não é, segundo este governo, aplicável ratione temporis.

33.      Quanto a este aspeto, recordo que, no que diz respeito à interpretação de disposições do direito nacional, o Tribunal de Justiça deve, em princípio, basear‑se nas qualificações que decorrem da decisão de reenvio, dado que, segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça não tem competência interpretar o direito interno de um Estado‑Membro (5).

34.      No que respeita à aplicabilidade do artigo 1.°, n.° 18, do Decreto‑lei n.° 194/09 ao litígio no processo principal, resulta da decisão de reenvio no processo C‑458/14 que a recorrente no processo principal invoca uma violação desta disposição, alegando que esta se aplica igualmente às concessões lacustres. O órgão jurisdicional de reenvio observa que o debate no processo que lhe foi submetido se concentra neste fundamento e indica várias razões pelas quais considera que os factos do processo principal são abrangidos por esta disposição.

35.      Nestas condições, dado que a decisão de reenvio contém amplos esclarecimentos quanto à pertinência da questão submetida, o Tribunal de Justiça não pode, na minha opinião, recorrer à alternativa que lhe permite julgar inadmissível um pedido de decisão prejudicial quando for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal(6).

36.      Em segundo lugar, o Governo italiano observa, em ambos os processos, que o artigo 34.°‑K do Decreto‑lei n.° 179/2012, que prorroga o prazo das concessões em questão nos processos principais até 31 de dezembro de 2020, é posterior aos atos impugnados nesses processos e que as questões prejudiciais só são, portanto, admissíveis no que respeita à prorrogação das concessões até 31 de dezembro de 2015.

37.      A este respeito, bastará observar que as questões prejudiciais respeitam a uma situação em que a legislação nacional prevê uma prorrogação automática e reiterada do prazo de concessões de bens do domínio público marítimo e lacustre. Quanto à questão de saber se as disposições nacionais aplicáveis são as que prorrogam esse prazo até 31 de dezembro de 2015, ou mesmo até 31 de dezembro de 2020, não só é da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais, como não afeta a admissibilidade das questões prejudiciais formuladas deste modo.

38.      À luz destas observações, considero que as questões prejudiciais são admissíveis.

 Quanto à interpretação da Diretiva 2006/123

 Relação entre a Diretiva 2006/123 e o Tratado FUE

39.      As questões prejudiciais respeitam à interpretação tanto das disposições do direito primário como das da Diretiva 2006/123.

40.      Saliento que, segundo jurisprudência constante, quando um domínio tenha sido objeto de harmonização exaustiva no seio da União, qualquer medida nacional que lhe diga respeito deve ser apreciada à luz das disposições dessa medida de harmonização, com exclusão das do direito primário (7).

41.      O Tribunal de Justiça já constatou, no acórdão Rina Services e o. (8), que a Diretiva 2006/123 procedeu a tal harmonização exaustiva, relativamente aos serviços abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, no que respeita ao seu artigo 14.°, relativo à liberdade de estabelecimento. Nos dois processos em que a Diretiva 2006/ 13 era aplicável nos processos principais, que deram origem aos acórdãos Trijber e Harmsen bem como Hiebler, o Tribunal de Justiça seguiu, essencialmente, a mesma abordagem, limitando‑se a fornecer uma interpretação dos artigos 10.°, 11.° e 15.° desta diretiva, sem se pronunciar sobre as disposições do Tratado FUE (9).

42.      Entendo que esta abordagem é válida para os artigos 9.° a 13.° da Diretiva 2006/123, que contêm disposições relativas aos regimes de autorização, designadamente para o seu artigo 12.°

43.      Tal como no caso do artigo 14.° da Diretiva 2006/123, que prevê uma lista de requisitos proibidos no âmbito do exercício da liberdade de estabelecimento, o legislador da União previu, nos artigos 9.° a 13.° desta Diretiva, uma série de disposições que devem ser respeitadas pelo Estados‑Membros quando a atividade de serviço está subordinada à concessão de uma autorização. Este legislador procedeu, assim, a uma harmonização exaustiva da matéria em questão.

44.      Em particular, o artigo 12.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2006/123 prevê que, quando o número de autorizações disponíveis for limitado devido à escassez dos recursos naturais ou das capacidades técnicas, as autorizações devem ser concedidas mediante um procedimento de seleção imparcial e transparente, por um período limitado e não podem ser objeto de renovação automática.

45.      Estas disposições ficariam desprovidas de efeito útil se fosse permitido aos Estados‑Membros furtar‑se‑lhes, invocando uma justificação ao abrigo do direito primário.

46.      Considero, portanto, que, no caso de o artigo 12.° da Diretiva 2006/123 ser aplicável, o exame da conformidade da legislação nacional em questão deve ser feito à luz desta disposições, com exclusão das normas do direito primário.

 Aplicabilidade do artigo 12.° da Diretiva 2006/123

47.      A título preliminar, gostaria de observar que o ato pelo qual um Estado‑Membro atribui um direito exclusivo à exploração de um bem do domínio público pode, em princípio, ser apreciado sob a perspetiva de várias disposições do direito da União, nomeadamente dos artigos 49.° TFUE, 56.° TFUE e 106.° TFUE, bem como das normas relativas aos contratos públicos.

48.      Para apurar a aplicabilidade da Diretiva 2006/123 aos casos em apreço, há que examinar se a atribuição de uma concessão do domínio público marítimo ou lacustre, ao abrigo do direito italiano, constitui um regime de autorização na aceção desta diretiva.

49.      O artigo 4.°, n.° 6, da Diretiva 2006/123 define o «regime de autorização» no sentido de se referir a qualquer procedimento que tenha por efeito obrigar um prestador ou um destinatário a efetuar uma diligência junto de uma autoridade competente para obter uma decisão formal ou uma decisão tácita relativa ao acesso a uma atividade de serviço ou ao seu exercício.

50.      Observo, a este respeito, que, distintamente do artigo 49.° TFUE, as disposições do capítulo III da Diretiva 2006/123 relativas à liberdade de estabelecimento se aplicam independentemente da existência de um elemento transfronteiriço (10). Não é, portanto, necessário determinar, para efeitos da aplicação do artigo 12.° desta diretiva, se a autorização em causa apresenta um interesse transfronteiriço certo.

51.      A aplicação deste artigo 12.° aos casos em apreço exige, em contrapartida, a análise de três elementos debatidos pelas partes, a saber, em primeiro lugar, a semelhança entre a situação em questão e a de um arrendamento comercial, em segundo lugar, a diferença relativamente a uma concessão de serviços e, em terceiro lugar, a aplicabilidade das disposições relativas às autorizações limitadas devido à escassez dos recursos naturais.

–       Quanto ao argumento que invoca a semelhança com um arrendamento comercial

52.      Os recorrentes nos processos principais, em ambos os processos, bem como o Governo grego, sustentam que as concessões do domínio público marítimo e lacustre em questão constituem arrendamentos comerciais que concedem a um particular a possibilidade de gozar de um bem público, sem constituírem uma autorização que condiciona o acesso à atividade de serviços.

53.      Esta tese não me convence.

54.      Resulta das decisões de reenvio que o acesso à atividade relativa à exploração de bens do domínio público marítimo ou lacustre em Itália, tal como a gestão de uma zona costeira do domínio público para fins turísticos e recreativos, carece da emissão de um ato de concessão por parte da autoridade municipal competente. Este ato subordina, portanto, o acesso à atividade de serviços em causa.

55.      São, de resto, os atos que recusam a prorrogação de tal autorização que são impugnados pelas recorrentes nos processos principais.

56.      O facto de esta autorização implicar igualmente uma colocação à disposição exclusiva de um bem público, sob a forma de um arrendamento, não é suscetível de afetar a qualificação desse sistema como regime de autorização.

–       Quanto à distinção relativamente às concessões de serviços

57.      Observo que um sistema que pode ser qualificado como «regime de autorização» é, todavia, excluído das disposições da Diretiva 2006/123, quando é abrangido pelo âmbito de aplicação das normas relativas aos contratos públicos (11).

58.      A este respeito, nos casos em apreço, os órgãos jurisdicionais nacionais indicam que se pode considerar que as concessões do domínio público marítimo e lacustre em causa constituem concessões de serviços.

59.      Importa examinar, portanto, se, nos casos em apreço, se trata de concessões de serviços, que seriam abrangidas, portanto, não pelas disposições da Diretiva 2006/123, mas pelos princípios e normas do direito da União em matéria de concursos públicos.

60.      A este respeito, o facto de os contratos em causa nos processos principais serem qualificados como «concessões» no direito italiano em nada prejudica a sua qualificação — autónoma — no direito da União.

61.      Como o Governo neerlandês observa, com razão, o termo «concessão» é frequentemente utilizado para designar um direito exclusivo ou um ato de autorização, sem que tal signifique que se trate de uma concessão na aceção do direito dos contratos públicos (12).

62.      Uma concessão de serviços é caracterizada, nomeadamente, pelo facto de a autoridade confiar ao concessionário o exercício de uma atividade de serviços, normalmente serviços cuja prestação incumbiria a essa autoridade, obrigando aquele, assim, a prestar um serviço determinado (13).

63.      A qualificação de um ato como concessão de serviços implica, portanto, a constatação de que a prestação de serviços está submetida a exigências específicas definidas pela autoridade em questão, e que o operador económico não é livre de renunciar a essa prestação.

64.      Estas considerações são corroboradas pelo considerando 14 da Diretiva 2014/23 (14), do qual resulta que não devem ter o estatuo de concessão certos atos, como as autorizações ou licenças, nomeadamente quando o operador económico mantém a liberdade de se retirar da execução da obra ou da prestação de serviços. Ao contrário destes atos, os contratos de concessão preveem obrigações mutuamente vinculativas, por força das quais a execução das obras ou dos serviços está sujeita a requisitos específicos definidos pela autoridade ou entidade adjudicante.

65.      Ora, nos casos em apreço, não resulta dos factos descritos nas decisões de reenvio que os recorrentes nos processos principais tenham sido obrigados, por força dos atos qualificados como «concessões do domínio público» no direito nacional, a exercer uma atividade de serviços que lhes tenha sido especificamente concedida por uma autoridade pública e que esteja submetida a exigências específicas definidas por essa autoridade.

66.      Como a Comissão corretamente observou, os atos em questão nos processos principais têm por objeto não a prestação de serviços determinados pela entidade adjudicatária, mas o exercício de atividades económicas turísticas e recreativas numa zona balnear que implica a utilização exclusiva desse domínio público.

67.      Resulta destas circunstâncias, sob reserva da sua verificação pelo órgão jurisdicional nacional, que as convenções em causa nos processos principais não constituem concessões de serviços na aceção das normas do direito da União em matéria de contratos públicos.

68.      Considero, portanto, que as disposições nacionais como as que respeitam à atribuição de concessões do domínio público marítimo e lacustre no direito italiano constituem regimes de autorização abrangidos pelos artigos 9.° a 13.° da Diretiva 2006/123.

69.      Acrescento que, no caso de as convenções em qualquer dos processos principais virem a ser qualificadas como «concessões de serviços» na aceção do direito da União, de modo a que as normas harmonizadas da Diretiva 2006/123 não sejam aplicadas, as exigências impostas às autoridades nacionais por força das regras fundamentais do Tratado e dos princípios que dele decorrem seriam, essencialmente, as mesmas. Com efeito, desde que se trate de atividades económicas com interesse transfronteiriço certo, uma autorização não se distingue de uma concessão de serviços no que respeita à obrigação de cumprir estas regras fundamentais e estes princípios (15).

–       Quanto à existência de um número limitado de autorizações devido à escassez dos recursos naturais

70.      Recordo que o artigo 12.° da Diretiva 2006/123 respeita ao caso específico dos regimes que comportam um número limitado de autorizações, devido à escassez dos recursos naturais ou das capacidades técnicas.

71.      Observo que resulta das decisões de reenvio que as autorizações em questão nos casos em apreço foram concedidas a nível municipal e que o seu número é limitado.

72.      As zonas do domínio público situadas nas margens dos lagos ou nas costas marítimas e que podem ser objeto de exploração económica dentro de um determinado município são, evidentemente, limitadas e, como tal, são suscetíveis de ser qualificadas como «recursos naturais escassos» na aceção do artigo 12.° da Diretiva 2006/123.

73.      As partes não avançam, de resto, além da escassez desses recursos naturais, nenhuma outra razão imperiosa de interesse geral que possa justificar a limitação do número de autorizações disponíveis nos casos em apreço.

74.      A este respeito, parece‑me que o argumento avançado pelas recorrentes nos processos principais bem como pelo Governo italiano, segundo o qual as costas marítimas italianas, no seu conjunto, não podem ser consideradas «recursos escassos», desvia o debate de modo impróprio.

75.      No que respeita a autorizações concedidas a nível municipal, há que tomar em conta as zonas do domínio público em causa. Ora, é evidente nos casos em apreço que se trata de um número limitado de autorizações que coloca em situação de concorrência os candidatos potenciais ao procedimento de seleção previsto no artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2006/123.

76.      Atendendo ao que precede, considero que o artigo 12.° da Diretiva 2006/123 é aplicável aos casos em apreço.

 Interpretação do artigo 12.° da Diretiva 2006/123

77.      Recordo que, por força do artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2006/123, quando o número de autorizações disponíveis para uma determinada atividade for limitado devido à escassez dos recursos naturais ou das capacidades técnicas, a sua concessão deve ser submetida a um procedimento de seleção que respeite as garantias de transparência e de imparcialidade.

78.      Nos termos do artigo 12.°, n.° 2, desta diretiva, a autorização assim concedida deve ter um período limitado adequado, não pode ser objeto de renovação automática, e não deve prever qualquer vantagem em benefício do prestador cessante.

79.      Ao exigirem a concessão de autorizações por períodos limitados, mediante um procedimento transparente e imparcial, as disposições em questão asseguram que uma atividade que implica um número limitado de operadores, devido à escassez dos recursos, se mantém aberta à concorrência e, assim, potencialmente acessível aos novos prestadores de serviços.

80.      Aliás, estas disposições baseiam‑se numa jurisprudência assente segundo a qual a inexistência de um procedimento de seleção transparente em tais condições constitui uma discriminação indireta dos operadores económicos estabelecidos nos outros Estados‑Membros que é, em princípio, contrária ao princípio da liberdade de estabelecimento (16).

81.      Observo que a prorrogação ex lege das autorizações concedidas antes da transposição da Diretiva 2006/123 ofende, desde logo, as disposições do artigo 12.° desta diretiva.

82.      A prorrogação do prazo de caducidade das autorizações existentes viola a obrigação, que resulta do artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2006/123, de prever um procedimento transparente e imparcial para a seleção dos candidatos.

83.      Além disso, uma prorrogação ex lege do prazo de caducidade das autorizações equivale a uma renovação automática, que é proibido pelos termos explícitos do artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2006/123.

84.      Os recorrentes nos processos principais e o governo italiano sustentam, todavia, que a prorrogação das concessões em questão podia ser justificada como medida transitória por razões de segurança jurídica.

85.      Os recorrentes nos processos principais alegam que a prorrogação das concessões do domínio marítimo e lacustre é necessária para permitir aos interessados amortizar os investimentos feitos, na medida em que podiam legitimamente esperar uma renovação automática das autorizações ao abrigo da legislação aplicável à data da sua atribuição e até à adoção do Decreto‑lei n.° 194/2009.

86.      Esta posição é também defendida pelo Governo italiano, o qual indica que a prorrogação destas concessões constitui uma medida transitória no âmbito da passagem de um regime de renovação automática a um regime de adjudicação que implica um procedimento de concurso. Segundo este governo, essa medida seria justificada pela necessidade de permitir aos interessados rentabilizar os investimentos efetuados, em conformidade com o princípio da proteção da confiança legítima.

87.      A este respeito, observo que os interesses legítimos dos titulares das autorizações foram já tomados em conta pelo legislador da União, na medida em previu, no artigo 12.°, n.° 2, da Diretiva 2006/123, que as autorizações devem ter uma duração adequada, quando o seu número seja limitado devido à escassez dos recursos.

88.      À luz do considerando 62 desta mesma diretiva, essa duração deverá ser fixada de maneira a não restringir ou limitar a livre concorrência para além do necessário para assegurar a amortização dos investimentos e uma remuneração equitativa dos capitais investidos (17).

89.      Estas considerações aplicam‑se, em princípio, às autorizações concedidas em conformidade com a Diretiva 2006/123.

90.      Ora, na minha opinião, quando se trate de autorizações que não tenham sido objeto de um procedimento conforme ao artigo 12.°, n.° 1, da Diretiva 2006/123, este artigo opõe‑se a que um Estado‑Membro as renove no momento em que caducam e protele, assim, o procedimento de seleção invocando uma razão imperiosa de interesse geral.

91.      Embora o artigo 12.°, n.° 3, da Diretiva 2006/123 preveja que os Estados‑Membros podem ter em conta, na definição das regras dos procedimentos de seleção, considerações associadas a razões imperiosas de interesse geral, esta disposição não permite aos Estados‑Membros invocar tais considerações para se escusarem a organizar tal procedimento.

92.      Em qualquer caso, considero que a justificação relativa ao princípio da proteção da confiança legítima invocada pelos recorrentes nos processos principais e pelo Governo italiano exige uma apreciação caso a caso, que permita demonstrar, através de elementos concretos, que o titular da autorização podia legitimamente esperar que a sua autorização fosse renovada e que efetuou os investimentos correspondentes.

93.      Esta justificação não pode, portanto, ser validamente invocada relativamente a uma prorrogação automática, como a instituída pelo legislador italiano, que é aplicada indiscriminadamente a todas as concessões do domínio público marítimo e lacustre.

94.      Esta conclusão não é de modo algum infirmada pelo acórdão ASM Brescia(18), que respeita a um caso particular de aplicação de uma razão imperiosa de interesse geral relativa ao princípio da segurança jurídica, no âmbito da apreciação de uma concessão de serviços à luz dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.

95.      Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça admitiu que o referido princípio pode impor que a rescisão de uma concessão de um serviço público relativo à distribuição de gás seja acompanhada de um período de transição que tenha em conta tanto exigências do serviço público como aspetos económicos.

96.      A este respeito, o Tribunal de Justiça tinha tomado em consideração uma série de elementos, a saber, em primeiro lugar, que as diretivas da União não previam que fossem postas em causa as concessões de distribuição de gás existentes, em segundo lugar, que a concessão tinha sido adjudicada em 1984 e devia produzir efeitos até 2029, sendo, portanto, antecipada a sua rescisão, e, por fim, em terceiro lugar, que o princípio da segurança jurídica exige que as regras de direito sejam claras, precisas e previsíveis quanto aos seus efeitos, ao passo que, à data da adjudicação da concessão no processo principal, o Tribunal de Justiça não tinha ainda declarado que certos contratos que apresentassem um interesse transfronteiriço podiam estar sujeitos a obrigações de transparência por força do direito primário (19).

97.      Ora, nenhuma destas considerações formuladas pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão no âmbito do princípio da segurança jurídica caracteriza os litígios nos processos principais.

98.      Com efeito, as autorizações em questão nos processos principais, que respeitam ao exercício de atividades turísticas e recreativas em zonas do domínio público marítimo ou lacustre, foram concedidas em 2004 e em 2006, numa altura em que a aplicação do princípio da transparência em matéria de concessões estava já bem assente (20). Os atos em questão nos processos principais fixam explicitamente a data de caducidade em 2010, permitindo, assim, aos titulares prever o montante dos seus investimentos em função de um prazo de amortização previamente conhecido.

99.      A solução adotada pelo Tribunal de Justiça no acórdão ASM Brescia (21), baseada no princípio da segurança jurídica, não é, portanto, transponível para os litígios nos processos principais.

100. Atendendo ao que precede, considero que o artigo 12.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2006/123 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prorroga automaticamente o prazo de caducidade das autorizações relativas à exploração do domínio público marítimo e lacustre.

 Efeito do artigo 12.° da Diretiva 2006/123 na ordem jurídica nacional

101. No que respeita ao efeito do artigo 12.° da Diretiva 2006/123 na ordem jurídica nacional, recordo que os órgãos jurisdicionais nacionais estão vinculados pela obrigação de interpretação conforme.

102. Esta obrigação não se limita à exegese das disposições internas introduzidas com vista à transposição da Diretiva 2006/123, mas exige a tomada em consideração do direito nacional, no seu conjunto, para apreciar em que medida este pode ser objeto de uma aplicação que não conduza a um resultado contrário ao visado pela referida diretiva (22).

103. Será tanto mais assim quando for submetido ao órgão jurisdicional nacional um litígio relativo à aplicação de disposições internas que foram especialmente introduzidas para transpor uma diretiva. Esse órgão jurisdicional deve presumir, a este respeito, que o Estado‑Membro teve a intenção de executar plenamente as obrigações que decorrem da diretiva em causa (23).

104. Na minha opinião, quando, no âmbito deste exercício de interpretação, um órgão jurisdicional nacional se deparar com um conflito entre as disposições do direito nacional de transposição da Diretiva 2006/123 e as disposições que regem um domínio específico, deve resolver esse conflito tomando em conta a natureza particular da Diretiva 2006/123.

105. É o que resulta, aliás, do n.° 1.2.1 do Manual de execução da Diretiva «Serviços» (24), que precisa que, se os Estados‑Membros optarem por transpor a Diretiva 2006/123 ou alguns dos seus artigos através de uma legislação de caráter horizontal — como é o caso da Itália — deverão assegurar que esta tem precedência sobre a legislação específica. Além disso, nos termos do n.° 6.1 deste manual, as disposições relativas aos regimes de autorização devem, atendendo ao seu caráter transversal, ser incorporadas na legislação horizontal.

106. Consequentemente, nos casos em apreço, os órgãos jurisdicionais italianos são obrigados a interpretar o direito interno, na maior medida possível, de uma maneira que assegure que o artigo 16.° do Decreto Legislativo n.° 59/2010, que transpõe o artigo 12.° da Diretiva 2006/123, prevaleça sobre a legislação específica relativa às concessões do domínio público marítimo e lacustre.

107. Esta consideração é tanto mais importante nos casos em apreço quanto, como o órgão jurisdicional de reenvio indica no processo C‑67/15, a prorrogação concedida pelo legislador italiano leva a que o artigo 12.° da Diretiva 2006/123, embora tenha sido formalmente transposto pelo legislador, possa não ser aplicado, na realidade, em matéria de concessões do domínio público, em consequência da intervenção de uma legislação especial.

108. Em qualquer caso, observo que as disposições do artigo 12.° da Diretiva 2006/123 concretizam as obrigações que já decorriam dos artigos 49.°TFUE e 56.° TFUE, em matéria de atribuição de concessões e de autorizações relativas a atividades de serviços.

109. Ora, resulta da jurisprudência que as liberdades fundamentais consagradas pelos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE são dotadas de efeito direto, no sentido de que podem ser diretamente invocadas num litígio que implique relações contratuais, de modo a permitir uma abertura à concorrência do mercado dos serviços (25).

110. Igual efeito direto deve, consequentemente, ser reconhecido ao artigo 12.° da Diretiva 2006/123, que concretiza estes princípios.

 Quanto à interpretação, a título subsidiário, do artigo 49.° TFUE

111. Atendendo à conclusão segundo a qual o artigo 12.° da Diretiva 2006/123 se opõe à prorrogação de autorizações como as que estão em causa nos processos principais, não há necessidade de interpretar as disposições do Tratado FUE visadas pelos pedidos de decisão prejudicial.

112. A título subsidiário, faço questão, todavia, de sublinhar que, na hipótese de a Diretiva 2006/123 não ser aplicável, com fundamento em que os atos em questão constituiriam concessões de serviços, a sua prorrogação violaria as exigências que decorrem do artigo 49.° TFUE.

113. Recordo que as autoridades públicas, ao atribuírem concessões de serviços suscetíveis de interessar operadores económicos estabelecidos noutros Estados‑Membros, o que parece, efetivamente, verificar‑se nos casos em apreço (26), são obrigadas a respeitar as regras fundamentais dos tratados, nomeadamente o artigo 49.° TFUE, incluindo a obrigação de transparência que dele decorre (27).

114. Essas autoridades não podem furtar‑se a tais exigências, decidindo prorrogar automaticamente o prazo das concessões que tinham sido atribuídas sem qualquer transparência. Uma medida nacional que conduza a um adiamento da atribuição de uma nova concessão através de um procedimento transparente constitui, com efeito, uma discriminação indireta proibida, em princípio, pelo artigo 49.° TFUE (28). Por outro lado, embora o Tribunal de Justiça tenha admitido que tal medida nacional pode ser justificada por uma razão imperiosa de interesse geral respeitante à segurança jurídica, as condições impostas por esta solução jurisprudencial não estão, manifestamente, reunidas nos casos em apreço (29).

 Conclusão

115. Atendendo às considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia (Tribunal Administrativo Regional da Lombardia) e pelo Tribunale amministrativo regionale per la Sardegna (Tribunal Administrativo Regional da Sardenha) do seguinte modo:

O artigo 12.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prorroga automaticamente o prazo de caducidade das autorizações relativas à exploração do domínio público marítimo e lacustre.


1 —      Língua original: francês.


2 —      A mesma problemática é suscitada no processo Regione autonoma della Sardegna (C‑449/15), pendente no Tribunal de Justiça.


3 —      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (JO L 376, p. 36).


4 —      V., nomeadamente, acórdãos Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.° 59) bem como Efir (C‑19/12, EU:C:2013:148, n.° 27).


5 —      Acórdão Târșia (C‑69/14, EU:C:2015:662, n.° 13, e jurisprudência referida).


6 —      Acórdão Târșia (C‑69/14, EU:C:2015:662, n.° 14, e jurisprudência referida).


7 —      V., nomeadamente, acórdãos Hedley Lomas (C‑5/94, EU:C:1996:205, n.° 18) e UPC DTH (C‑475/12, EU:C:2014:285, n.° 63). V., para uma análise desta jurisprudência, conclusões do advogado‑geral P. Cruz Villalón no processo Rina Services e o. (C‑593/13, EU:C:2015:159, n.° 12).


8 —      C‑593/13, EU:C:2015:399 (n.os 37 e 38). Igual solução, no que respeita aos artigos 15.° e 16.° da Diretiva 2006/123, é proposta pelo advogado‑geral Y. Bot nas suas conclusões no processo Comissão/Hungria (C‑179/14, EU:C:2015:619, n.° 73), pendente no Tribunal de Justiça.


9 —      Acórdãos Trijber e Harmsen (C‑340/14 e C‑341/14, EU:C:2015:641), e Hiebler (C‑293/14, EU:C:2015:843).


10 —      Permito‑me remeter para o n.° 24 das minhas conclusões no processo Hiebler (C‑293/14, EU:C:2015:472) bem como para os n.os 49 a 57 das minhas conclusões nos processos Trijber e Harmsen (C‑340/14 e C‑341/14, EU:C:2015:505).


11 —      V. considerando 57 da Diretiva 2006/123.


12 —      V., igualmente, nota 25 da Comunicação interpretativa da Comissão sobre as concessões em direito comunitário (JO 2000, C 121, p. 2).


13 —      V., neste sentido, acórdão Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 33). V., igualmente, conclusões do advogado‑geral A. La Pergola no processo BFI Holding (C‑360/96, EU:C:1998:71) bem como as do advogado‑geral S. Alber no processo RI.SAN. (C‑108/98, EU:C:1999:161, n.° 50).


14 —      A Diretiva 2014/23/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa à adjudicação de contratos de concessão (JO L 94, p. 1), embora não seja aplicável aos casos em apreço ratione temporis, pode servir de fonte de inspiração para definir o conceito de «concessão de serviços».


15 —      Acórdãos Sporting Exchange (C‑203/08, EU:C:2010:307, n.os 46 e 49); Engelmann (C‑64/08, EU:C:2010:506, n.os 52 a 54), e Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 33).


16 —      V., relativamente à concessão de serviços, acórdão Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 37, e jurisprudência referida) e, relativamente a um regime de autorização, acórdão Engelmann (C‑64/08, EU:C:2010:506, n.os 46 e 51, bem como jurisprudência referida).


17 —      Iguais considerações resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual a duração de uma autorização deve ser justificada por razões imperiosas de interesse geral tais como, nomeadamente, a necessidade do operador em questão de dispor de um prazo suficientemente longo para amortizar os investimentos. V., neste sentido, acórdão Engelmann (C‑64/08, EU:C:2010:506, n.os 46 a 48, e jurisprudência referida).


18 —      C‑347/06, EU:C:2008:416. Embora o Tribunal de Justiça se refira, no n.° 64 deste acórdão, a uma «circunstância objetiva», resulta do raciocínio que segue que se trata efetivamente de uma razão imperiosa de interesse geral. V., neste sentido, acórdão Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 38).


19 —      Acórdão ASM Brescia (C‑347/06, EU:C:2008:416, n.os 67 a 71). V. igualmente, neste sentido, acórdão Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 40).


20 —      V., nomeadamente, acórdão Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.os 60 a 62).


21 —      C‑347/06, EU:C:2008:416.


22 —      Acórdãos Marleasing (C‑106/89, EU:C:1990:395, n.° 8) e Association de médiation sociale (C‑176/12, EU:C:2014:2, n.° 38).


23 —      Acórdão Pfeiffer e o. (C‑397/01 a C‑403/01, EU:C:2004:584, n.° 112, bem como jurisprudência referida).


24 —      Embora não constitua um ato vinculativo, o Tribunal de Justiça já baseou o seu raciocínio neste manual, nomeadamente no acórdão Hiebler (C‑293/14, EU:C:2015:843, n.os 32, 57 e 73).


25 —      V., neste sentido, acórdãos Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.os 60 a 62); ASM Brescia (C‑347/06, EU:C:2008:416, n.os 69 a 70), bem como Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 40).


26 —      O órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑458/14 observa que a concessão em questão apresenta um interesse transfronteiriço certo, atendendo, nomeadamente, à situação geográfica do bem e ao valor económico da concessão.


27 —      Acórdãos Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, EU:C:2000:669, n.os 60 a 62); Coname (C‑231/03, EU:C:2005:487, n.os 16 a 19); Parking Brixen (C‑458/03, EU:C:2005:605, n.os 46 a 48); Wall (C‑91/08, EU:C:2010:182, n.° 33); Engelmann (C‑64/08, EU:C:2010:506, n.os 51 a 53), e Belgacom (C‑221/12, EU:C:2013:736, n.° 33).


28 —      Acórdão ASM Brescia (C‑347/06, EU:C:2008:416, n.° 63).


29 —      V. n.° 99 das presentes conclusões.