Language of document : ECLI:EU:T:2023:253

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção alargada)

17 de maio de 2023 (*)

«Concorrência — Concentrações — Mercado da eletricidade alemão — Decisão que declara a concentração compatível com o mercado interno — Recurso de anulação — Ilegitimidade — Inexistência de participação ativa — Inadmissibilidade»

No processo T‑321/20,

Enercity AG, com sede em Hanôver (Alemanha), representada por C. Schalast e H. Löschan, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por G. Meessen e I. Zaloguin, na qualidade de agentes, assistidos por F. Haus e F. Schmidt, advogados,

recorrida,

apoiada por:

República Federal da Alemanha, representada por J. Möller e S. Costanzo, na qualidade de agentes,

por

E.ON SE, com sede em Essen (Alemanha), representada por C. Grave, C. Barth e D.‑J. dos Santos Goncalves, advogados,

e por

RWE AG, com sede em Essen, representada por U. Scholz, J. Siegmund e J. Ziebarth, advogados,

intervenientes,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção alargada),

composto, nas deliberações, por: S. Gervasoni, presidente, L. Madise, P. Nihoul, R. Frendo e J. Martín y Pérez de Nanclares (relator), juízes,

secretário: S. Jund, administradora,

vista a fase escrita do processo,

após a audiência de 17 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso baseado no artigo 263.o TFUE, a recorrente, enercity AG, pede a anulação da Decisão C(2019) 1711 final da Comissão, de 26 de fevereiro de 2019, que declara uma concentração compatível com o mercado interno e com o Acordo EEE (processo M.8871 — RWE/E.ON Assets) (JO 2020, C 111, p. 1, a seguir «decisão recorrida»).

 Antecedentes do litígio

 Empresas em causa

2        A RWE AG é uma sociedade de direito alemão que intervinha, no momento da notificação da operação de concentração prevista, em toda a cadeia de fornecimento de energia, incluindo nos domínios da produção, fornecimento grossista, transporte, distribuição, comércio a retalho de energia, bem como serviços energéticos aos consumidores (como a leitura de contadores, a mobilidade elétrica, etc.). A RWE e as suas filiais, incluindo a innogy SE, operam em vários Estados europeus, a saber, na Bélgica, na República Checa, na Alemanha, em França, em Itália, no Luxemburgo, na Hungria, nos Países Baixos, na Polónia, na Roménia, na Eslováquia e no Reino Unido.

3        A E.ON SE é uma sociedade de direito alemão que operava, à data da notificação da operação de concentração prevista, em toda a cadeia de fornecimento de eletricidade, tanto na produção como na venda por grosso, na distribuição ou no comércio a retalho de eletricidade. A E.ON detém e explora ativos de produção de eletricidade em vários Estados europeus, incluindo a Alemanha, França, Itália, Polónia e Reino Unido.

4        A recorrente é uma empresa municipal alemã que produz e fornece energia na Alemanha.

 Contexto da concentração

5        A concentração em causa no caso presente inscreve‑se no âmbito de uma troca complexa de elementos de ativos entre a RWE e a E.ON, anunciada em 11 e 12 de março de 2018 pelas duas empresas em causa. Assim, através da primeira operação, a saber, a concentração aqui em causa, a RWE pretende adquirir o controlo exclusivo ou o controlo conjunto de certos ativos de produção da E.ON. A segunda operação consiste na aquisição pela E.ON do controlo exclusivo das atividades de distribuição e de comércio a retalho, bem como de certos ativos de produção da innogy, controlada pela RWE. Quanto à terceira operação, prevê que a RWE adquira 16,67 % das participações da E.ON.

6        Em 24 de julho de 2018, a recorrente enviou uma carta à Comissão Europeia, na qual lhe indicou que pretendia participar no procedimento relativo às primeira e segunda operações de concentração e, por conseguinte, receber os documentos a ela relativos.

7        Em 3 de outubro de 2018, realizou‑se uma reunião entre a recorrente e a Comissão.

8        A segunda operação de concentração foi notificada à Comissão em 31 de janeiro de 2019. A Comissão, quanto a essa segunda operação, adotou a Decisão C(2019) 6530 final, de 17 de setembro de 2019, que declara uma concentração compatível com o mercado interno e com o funcionamento do Acordo EEE (Processo M.8870 — E.ON/Innogy) (JO 2020, C 379, p. 16; a seguir «concentração M.8870»).

9        A terceira operação de concentração foi notificada ao Bundeskartellamt (Instituto Federal dos Acordos, Decisões e Práticas Concertadas, Alemanha), que a autorizou por Decisão de 26 de fevereiro de 2019 (processo B8‑28/19).

 Procedimento administrativo

10      Em 22 de janeiro de 2019, a Comissão foi notificada de uma proposta de concentração nos termos do artigo 4.o do Regulamento (CE) n.o 139/2004 do Conselho, de 20 de janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas (JO 2004, L 24, p. 1), através da qual a RWE pretendia adquirir, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento, o controlo exclusivo ou o controlo conjunto de determinados ativos de produção da E.ON.

11      Em 31 de janeiro de 2019, a Comissão publicou a notificação prévia dessa concentração no Jornal Oficial da União Europeia (processo M.8871 — RWE/E.ON Assets) (JO 2019, C 38, p. 22, a seguir «concentração M.8871»), de acordo com o artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 139/2004.

12      No âmbito do seu exame da concentração M.8871, a Comissão realizou um estudo de mercado, tendo, assim enviado um questionário a certas empresas.

13      Por carta de 28 de janeiro de 2019, a recorrente pediu ao auditor que lhe reconhecesse o estatuto de terceiro interessado para ser ouvida no âmbito do processo relativo à concentração M.8871. Este deferiu esse pedido por carta de 7 de fevereiro de 2019.

 Decisão recorrida

14      Em 26 de fevereiro de 2019, a Comissão adotou a decisão recorrida. A concentração M.8871 foi declarada compatível com o mercado interno na fase de exame prevista no artigo 6.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 139/2004, e no artigo 57.o do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (EEE).

 Pedidos das partes

15      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

—        anular a decisão recorrida;

—        condenar a Comissão nas despesas.

16      A Comissão, apoiada pela República Federal da Alemanha, pela E.ON e pela RWE, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

—        negar provimento ao recurso;

—        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

17      A recorrente invoca, em substância, seis fundamentos de recurso, relativos, o primeiro, à violação do seu direito a uma proteção jurisdicional efetiva, o segundo, à violação do seu direito de audiência, o terceiro, a uma cisão errada da análise da operação global, o quarto, a erros manifestos de apreciação, o quinto, à violação do dever de diligência, e, o sexto, a um desvio de poder.

18      Sem arguir formalmente uma exceção de inadmissibilidade nos termos do artigo 130.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a Comissão, apoiada pela RWE, alega a inadmissibilidade do recurso por ilegitimidade da recorrente.

19      Em primeiro lugar, a Comissão sustenta que a participação da recorrente no procedimento relativo à concentração M.8871 foi simples. A este respeito, alega que as preocupações que a recorrente expressou se referiam quase unicamente à concentração M.8870.

20      Além disso, a recorrente não pode deduzir do facto de a Comissão a ter encontrado na reunião de 3 de outubro de 2018 que a sua participação era suficiente, uma vez que a Comissão se encontrou com outros concorrentes, num quadro semelhante. De qualquer forma, a recorrente apenas formulou raras reservas que não foram reiteradas posteriormente e não respondeu ao estudo de mercado da Comissão.

21      Em segundo lugar, no que respeita à falta de afetação individual da recorrente resultante da sua posição concorrencial, a Comissão considera que a recorrente é uma concorrente da RWE e da E.ON, mas que se trata de uma simples qualidade objetiva, que não caracteriza a recorrente em relação a qualquer outro concorrente que se encontre, atual ou potencialmente, numa situação idêntica e que, por esse facto, não pode fundamentar a sua afetação individual. A Comissão sublinha igualmente a inexistência de circunstâncias suscetíveis de a individualizar na sua qualidade de cliente da RWE face aos outros clientes da RWE.

22      A recorrente sustenta que a decisão recorrida lhe diz direta e individualmente respeito.

23      Em primeiro lugar, a recorrente alega que participou ativamente no procedimento relativo à concentração M.8871 e que influenciou o desenrolar do processo bem como a decisão da Comissão. Quanto ao estudo de mercado realizado pela Comissão, sustenta não o ter recebido.

24      Em segundo lugar, a recorrente considera que a decisão recorrida lhe diz direta e individualmente respeito, na medida em que as suas filiais e ela própria fazem parte das mais importantes empresas regionais de fornecimento e de serviço energético da Alemanha, as partes na concentração são as suas concorrentes diretas e a concentração M.8871 pode reduzir consideravelmente as oportunidades de concorrência da recorrente.

25      De acordo com o artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, uma pessoa singular ou coletiva só pode interpor recurso de uma decisão dirigida a outra pessoa se a referida decisão lhe disser direta e individualmente respeito.

26      Assim, para demonstrar a legitimidade da recorrente, há que examinar se a decisão recorrida lhe diz direta e individualmente respeito.

27      Em primeiro lugar, no que respeita à afetação direta da recorrente, refira‑se que, uma vez que permitia a realização imediata da concentração M.8871, a decisão recorrida era suscetível de induzir uma alteração imediata da situação dos mercados em causa. Na medida em que a vontade de as partes na concentração M.8871 a realizarem não estava sujeita a dúvidas, os operadores económicos que intervêm no mercado ou nos mercados em causa podiam, à data da decisão recorrida, ter por adquirida uma alteração imediata ou rápida do estado do mercado (v., neste sentido, Acórdão do Tribunal Geral de 4 de julho de 2006, easyJet/Comissão, T‑177/04, EU:T:2006:187, n.o 32 e jurisprudência referida). Daí resulta que a decisão recorrida diz diretamente respeito à recorrente.

28      Em segundo lugar, quanto à afetação individual da recorrente, há que lembrar que, segundo jurisprudência constante, os sujeitos que não sejam destinatários de uma decisão só podem alegar que esta lhes diz individualmente respeito se essa decisão os afetar devido a certas qualidades específicas suas ou a uma situação de facto que os caracterize em relação a qualquer outra pessoa e, por isso, os individualize de forma análoga à do destinatário dessa decisão (v. Acórdão do Tribunal Geral de 4 de julho de 2006, easyJet/Comissão, T‑177/04, EU:T:2006:187, n.o 34 e jurisprudência referida).

29      Perante uma decisão que declara a compatibilidade de uma operação de concentração com o mercado comum e relativamente a uma empresa terceira, é em função, por um lado, da sua participação no procedimento administrativo e, por outro, da afetação da sua posição no mercado que há que determinar se a decisão lhe diz individualmente respeito. Embora seja certo que uma simples participação no processo não basta, por si só, para demonstrar que a decisão diz individualmente respeito à recorrente, em especial no domínio das concentrações cujo exame minucioso exige um contacto regular com numerosas empresas, não é menos verdade que a participação ativa no procedimento administrativo constitui um elemento regularmente tomado em consideração pela jurisprudência em matéria de concorrência, incluindo no domínio mais específico do controlo das concentrações, para demonstrar, em conjugação com outras circunstâncias específicas, a admissibilidade do seu recurso (v. Acórdão do Tribunal Geral de 4 de julho de 2006, easyJet/Comissão, T‑177/04, EU:T:2006:187, n.o 35 e jurisprudência referida).

30      No caso, há que notar que as partes não contestam que a recorrente participou no procedimento administrativo. Em contrapartida, é sobre o caráter «ativo» dessa participação que se opõem. Por conseguinte, há que analisar a qualidade da participação da recorrente no processo relativo à concentração M.8871.

31      A esse respeito, refira‑se, antes de mais, que, em 24 de julho de 2018, a recorrente dirigiu um pedido à Comissão para ser ouvida tanto no âmbito do processo relativo à concentração M.8871 como no relativo à concentração M.8870, como resulta da rubrica intitulada, em língua alemã, «Aktenzeichen» (número de processo) da sua carta na qual estão inscritas as referências «M8870 & M8871». Nessa carta, a recorrente explicava, de forma geral, a fim de justificar o seu pedido, a natureza dos seus interesses e o prejuízo que poderia sofrer devido à autorização dessas duas operações de concentração.

32      Em seguida, em 3 de outubro de 2018, a recorrente participou numa reunião individual com a Comissão relativa às concentrações M.8870 e M.8871. No entanto, não se pode deixar de observar que, nas 20 páginas da apresentação da recorrente, preparada para essa reunião, apenas uma incidia sobre a concentração M.8871 e que, além disso, essa página respeitava unicamente à vantagem concorrencial obtida pela RWE na atribuição das subvenções para o desenvolvimento e a construção de novos ativos de produção proveniente de energias renováveis. O resto dessa apresentação era dedicado à concentração M.8870. A ata da referida reunião demonstra igualmente que as discussões havidas na reunião incidiram essencialmente sobre a concentração M.8870, uma vez que, dos 42 pontos que conta, só três eram dedicados à RWE.

33      Além disso, na sequência dessa reunião e após um relançamento da Comissão em 4 de dezembro de 2018, a recorrente respondeu, por correio eletrónico de 14 de dezembro de 2018, às questões da Comissão colocadas por correio eletrónico de 31 de outubro de 2018. Essas questões destinavam‑se a dar precisões à Comissão sobre a observação formulada pela recorrente relativa à vantagem concorrencial da E.ON e da innogy no desenvolvimento de novos serviços, como as soluções de «smart home» (casa inteligente), em razão da sua ampla base de clientes, o que é uma problemática abrangida pela concentração M.8870.

34      Por último, por correio eletrónico de 28 de janeiro de 2019 dirigido ao auditor, a recorrente pediu para ser ouvida como terceiro interessado no processo relativo à concentração M.8871. Em 7 de fevereiro de 2019, o auditor respondeu à recorrente e indicou que considerava que ela tinha o estatuto de terceiro interessado no referido procedimento.

35      Daí resulta que, no que respeita à concentração M.8871 propriamente dita, as observações da recorrente se resumem numa página de apresentação cujo conteúdo foi reproduzido, de forma exaustiva, nos três pontos relativos à concentração M.8871 da ata da reunião de 3 de outubro de 2018. Quanto às observações formuladas pela recorrente na sua carta de 24 de julho de 2018, são de ordem geral e visam principalmente demonstrar o interesse da recorrente no processo a fim de poder, posteriormente, ser admitida a expor mais longamente e de forma mais precisa a sua opinião à Comissão, pelo que não são determinantes.

36      Ora, uma participação tão diminuta não pode ser considerada suficiente para poder ser qualificada de ativa. A este respeito, é verdade que as preocupações expressas pela recorrente no que respeita à vantagem concorrencial obtida pela RWE graças à concentração M.8871 para responder aos concursos no domínio das energias renováveis foram tidas em conta pela Comissão e analisadas por esta última, como resulta dos n.os 68 e 69 da decisão recorrida.

37      No entanto, há que observar que as preocupações expressas pela recorrente foram examinadas na secção 5.1.7 da decisão recorrida, intitulada «Preocupações adicionais suscitadas por terceiros», que segue a secção 5.1.6 da decisão recorrida, intitulada «Conclusões», no âmbito da qual a Comissão concluiu pela inexistência de dúvidas sérias quanto à compatibilidade da concentração M.8871 com o mercado interno. Assim, a análise feita pela Comissão na secção 5.1.7 é apresentada a título exaustivo. O caráter exaustivo desse exame é confirmado pela precisão feita pela Comissão no n.o 67 da decisão recorrida, no qual indicou que se tratava de responder às preocupações relativas aos efeitos potenciais da concentração M.8871 em mercados diferentes do mercado da produção e do fornecimento grossista de eletricidade na Alemanha, mercado esse que é considerado relevante para efeitos da análise dos efeitos da referida concentração no mercado interno, como resulta do n.o 13 da decisão recorrida.

38      Daí resulta que as observações formuladas pela recorrente a respeito da concentração M.8871, embora possuindo um certo interesse e tendo sido tratadas pela Comissão, não eram determinantes para apreciar os efeitos da referida concentração no mercado relevante.

39      Por conseguinte, não se pode considerar que a recorrente participou ativamente na fase administrativa relativa à concentração M.8871.

40      Esta conclusão não é posta em causa pelos argumentos da recorrente.

41      Primeiro, a recorrente sustenta que não recebeu o estudo de mercado enviado pela Comissão.

42      A este respeito, no âmbito das medidas de organização do processo previstas no artigo 89.o, n.o 3, alínea d), do Regulamento de Processo, o Tribunal Geral pediu, em 29 de março de 2022, à Comissão que apresentasse a prova de que tinha efetivamente enviado o estudo de mercado à recorrente, como sustentava no artigo 10.o da tréplica. A Comissão respondeu a este pedido no prazo fixado. Por outro lado, de forma espontânea, a recorrente entregou, na Secretaria do Tribunal Geral, em 19 de abril de 2022, uma carta que continha observações relativas a esta questão. O Presidente da Quarta Secção alargada decidiu, em 3 de maio de 2022, juntar essa carta aos autos. Por último, as partes foram interrogadas a este respeito pelo Tribunal Geral na audiência.

43      A prova fornecida pela Comissão em resposta ao pedido do Tribunal é de três tipos. Primeiro, a Comissão invoca a lista das empresas às quais o inquérito foi enviado, da qual consta o nome da recorrente. Segundo, a Comissão apresenta um extrato da aplicação informática que utilizou para o envio do estudo do qual resulta que o estudo de mercado foi enviado à recorrente em 23 de janeiro de 2019 às 16h35 com a data‑limite de resposta de 30 de janeiro de 2019. Indica‑se igualmente que foi feito um relançamento em 27 de janeiro de 2019. Terceiro, a Comissão apresenta dois extratos das suas bases de dados relativas ao envio de mensagens de correio eletrónico e de telecópia que demonstram que foram enviados à recorrente um correio eletrónico e uma telecópia. As datas e as horas dessas remessas correspondem às indicadas no extrato da aplicação informática.

44      Daí resulta que a Comissão enviou efetivamente o estudo de mercado à recorrente.

45      A esse respeito, a recorrente alegou, em substância, tanto na sua carta de 19 de abril de 2022 como na audiência, que o estudo de mercado foi enviado ao seu assessor de imprensa. Ora, por um lado, este último assegura que não o recebeu e, por outro, a recorrente indica que não era a pessoa adequada a contactar. Quanto a este último ponto, a recorrente observa, na sua carta de 19 de abril de 2022, que o estudo de mercado relativo à concentração M.8870 não foi enviado ao assessor de imprensa, mas ao diretor comercial competente.

46      Refira‑se que, uma vez que não se pode exigir à recorrente que faça prova de um facto negativo, a saber, a não receção do estudo de mercado, o Tribunal Geral dirigiu‑se à Comissão para que apresentasse a prova de que tinha efetivamente enviado o referido inquérito. Como acima resulta do n.o 44, a Comissão fez essa prova. Nestas circunstâncias, cabia à recorrente apresentar ao Tribunal elementos que pusessem em causa a fiabilidade das provas fornecidas pela Comissão, o que não fez.

47      Quanto ao facto de o estudo de mercado ter sido enviado ao destinatário errado, mesmo admitindo‑o provado, não se pode deixar de observar que a recorrente não impugnou que a pessoa em causa estava efetivamente ligada à imprensa no momento em que esse estudo foi enviado.

48      Ora, pode razoavelmente esperar‑se dessa pessoa, que recebe não só um correio eletrónico, mas também uma telecópia proveniente de uma instituição da União, que informe rapidamente a referida instituição do erro de destinatário. Além disso, encontrando‑se na posse de tais documentos, também lhe era possível dirigir‑se do serviço jurídico ou comercial da sua empresa para a informar da receção desses documentos.

49      Em todo o caso, mesmo que a recorrente tivesse tido a oportunidade de preencher o estudo de mercado, isso não teria podido qualificar a sua participação como ativa.

50      Com efeito, o simples reenvio do questionário preenchido não pode ser considerado um elemento suficiente para individualizar o operador em causa na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE. (v., neste sentido, Despacho de 18 de setembro de 2006, Wirtschaftskammer Kärnten e best connect Ampere Strompool/Comissão, T‑350/03, não publicado, EU:T:2006:257, n.os 50 e 51).

51      Não pode ser de outro modo, uma vez que, como acertadamente alegou na audiência, a Comissão pode ser levada a questionar, para tomar uma decisão sobre uma concentração que lhe foi notificada, um grande número de agentes do mercado em causa. Isto resulta do poder de pedido de informações que lhe é conferido pelo artigo 11.o, n.o 7, do Regulamento n.o 139/2004, segundo o qual, para o cumprimento das funções que lhe são atribuídas pelo referido regulamento, a Comissão pode ouvir qualquer pessoa singular ou coletiva que aceite ser ouvida para efeitos da recolha de informações relativas ao objeto de um inquérito.

52      Segundo, a recorrente alega que pediu ao auditor que lhe fosse reconhecida a qualidade de terceiro interessado. Embora a diligência de fazer tal pedido possa constituir um indício da vontade expressa pela recorrente de participar no processo relativo à concentração M.8871, não pode definir o caráter «ativo» da sua participação, que deve refletir‑se apenas nas ações da recorrente que tenham sido suscetíveis de influenciar o resultado do processo em causa.

53      Por outro lado, na audiência, a recorrente indicou que, contrariamente ao que tinha sido anunciado na decisão do auditor de 7 de fevereiro de 2019, a Comissão não lhe fixou prazo para poder apresentar as suas observações escritas sobre a concentração M.8871.

54      Não se pode deixar de observar que este argumento está em contradição com o que a recorrente sustentou por outro lado, no âmbito dos seus diferentes articulados, a saber, que participou ativamente no procedimento administrativo relativo à concentração M.8871. Ora, a recorrente não pode manter a sua argumentação de que participou ativamente no procedimento e, ao mesmo tempo, censurar, pela primeira vez na audiência, a Comissão por não lhe ter fixado um prazo para apresentar as suas observações, para demonstrar a sua legitimidade. Com efeito, por força do princípio pretoriano «nemo potest venire contra factum proprium», também denominado «venire contra factum proprium non valet», ninguém pode contestar o que anteriormente reconheceu (Acórdãos de 22 de abril de 2016, Irlanda e Aughinish Alumina/Comissão, T‑50/06 RENV II e T‑69/06 RENV II, EU:T:2016:227, n.o 192, e de 6 de abril de 2017, Regione autonoma della Sardegna/Comissão, T‑219/14, EU:T:2017:266, n.o 63; v., igualmente, neste sentido, Despacho de 13 de fevereiro de 2014, Marszałkowski/IHMI, C‑177/13 P, não publicado, EU:C:2014:183, n.o 73). Por conseguinte, há que julgar este argumento manifestamente inadmissível.

55      Em terceiro lugar, a recorrente sustenta, no essencial, que a concentração M.8871 e a concentração M.8870 constituem uma concentração única e que a Comissão tratou conjuntamente estas duas operações de concentração. Na audiência, precisou que só ao receber o estudo de mercado relativo à concentração M.8871 é que tinha apresentado o seu pedido de audição ao consultor‑auditor no âmbito do procedimento administrativo relativo a essa operação de concentração.

56      Estes argumentos devem ser julgados inoperantes. Com efeito, é indiferente, na fase do exame da admissibilidade, determinar se as concentrações M.8870 e M.8871 constituem ou não uma concentração única ou saber de que modo a recorrente tinha compreendido o modo como a Comissão pretendia tratar estas duas operações de concentração, uma vez que, em todo o caso, a recorrente não apresentou observações sobre a concentração M.8871, exceto numa página da sua apresentação de 3 de outubro de 2018.

57      Não tendo a recorrente participado ativamente no procedimento relativo à concentração M.8871, há que considerar, tendo em conta, além disso, a inexistência de circunstâncias específicas relativas à afetação da sua posição no mercado, que não é individualmente afetada pela decisão recorrida, na aceção da jurisprudência acima recordada no n.o 29.

58      Não sendo a recorrente individualmente afetada pela decisão recorrida, não demonstrou a sua legitimidade, pelo que há que julgar inadmissível o seu recurso.

 Quanto às despesas

59      Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la a suportar as suas próprias despesas, bem como as efetuadas pela Comissão, pela E.ON e pela RWE, em conformidade com os pedidos destas últimas.

60      Por força do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no processo devem suportar as respetivas despesas. A República Federal da Alemanha suportará por isso as suas despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção alargada)

decide:

1)      O recurso é julgado inadmissível.

2)      A Enercity AG suportará as suas próprias despesas e as despesas da Comissão Europeia, da E.ON SE e da RWE AG.

3)      A República Federal da Alemanha suportará as suas próprias despesas.

Gervasoni

Madise

Nihoul

Frendo

 

Martín y Pérez de Nanclares

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 17 de maio de 2023.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.