Language of document : ECLI:EU:C:2023:191

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 9 de março de 2023 (1)

Processo C142/22

OE

contra

The Minister for Justice and Equality

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 27.o — Regra da especialidade — Procedimentos penais por uma infração cometida antes da entrega, diferente daquela por que a pessoa foi entregue — Consentimento da autoridade judiciária de execução — Mandado de detenção europeu inválido — Consequências para o pedido de consentimento — Questão definitivamente resolvida na decisão de entrega»






I.      Introdução

1.        O artigo 27.o, n.o 2, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (2), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (3), enuncia a regra da especialidade segundo a qual uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

2.        Resulta do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), da Decisão‑Quadro 2002/584 que a regra da especialidade prevista no n.o 2 deste artigo não se aplica quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa em causa tenha dado o seu consentimento, nos termos do n.o 4 do referido artigo, para que esta seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

3.        O presente pedido de decisão prejudicial convida, em substância, o Tribunal de Justiça a decidir se a declaração de que um mandado de detenção europeu, com base no qual uma pessoa foi entregue, foi emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, e deveria, portanto, ter sido considerado inválido com esse fundamento, é suscetível de obstar a que a autoridade judiciária de execução, quando lhe é submetido um pedido de consentimento destinado a autorizar as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão a instaurar um procedimento penal contra essa pessoa ou a condená‑la por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, dê esse consentimento.

4.        Nas presentes conclusões, proporei ao Tribunal de Justiça que responda no sentido de que esse fundamento de invalidade de um mandado de detenção europeu não é suscetível de obstar a que a autoridade judiciária de execução dê o consentimento pedido.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

5.        No âmbito do presente processo, o artigo 1.o, n.o 1, o artigo 6.o, n.os 1 e 2, o artigo 8.o, n.o 1, e o artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584 são pertinentes.

B.      Direito irlandês

6.        A Decisão‑Quadro 2002/584 foi transposta para o direito irlandês pelo European Arrest Warrant Act 2003 (Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu), conforme alterado.

7.        A section 2(1) desta lei enuncia, nomeadamente, as seguintes definições:

—        «autoridade judiciária» significa «o juiz, magistrado ou outra pessoa autorizada ao abrigo do direito do Estado‑Membro em causa a desempenhar funções idênticas ou semelhantes às desempenhadas ao abrigo da section 33 por um órgão jurisdicional no Estado». A Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) precisa que se trata da função de emissão de mandados de detenção europeus;

—        «autoridade judiciária de emissão» significa «a autoridade judiciária do Estado de emissão que emitiu o mandado pertinente em questão» e

—        «Estado‑Membro de emissão» significa «um Estado‑Membro […] do qual uma autoridade judiciária emitiu esse mandado de detenção europeu».

8.        A section 22 da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu, conforme substituída pela section 80 do Criminal Justice (Terrorist Offences) Act 2005 [Lei de 2005 sobre a Justiça Penal (infrações terroristas)] prevê, na sua subsection 7:

«A High Court [(Tribunal Superior, Irlanda)] pode, em relação a uma pessoa que tenha sido entregue a um Estado‑Membro de emissão ao abrigo desta lei, consentir

(a)      na instauração de procedimento penal contra essa pessoa, no Estado‑Membro de emissão, por uma infração,

(b)      na aplicação de uma pena no Estado‑Membro de emissão, incluindo uma pena que consista numa medida restritiva da liberdade dessa pessoa, devido a uma infração, ou

(c)      na instauração de procedimento penal ou na detenção dessa pessoa no Estado‑Membro de emissão, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança devido a uma infração,

quando receba um pedido por escrito do Estado‑Membro de emissão nesse sentido.»

9.        A section 22(8) da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu, conforme substituída pela section 15 do European Arrest Warrant (Application to Third Countries and Amendment) and Extradition (Amendment) Act 2012) [Lei de 2012 relativa ao Mandado de Detenção Europeu (Aplicação a países terceiros e alteração) e à Extradição (alteração)] dispõe que o consentimento previsto na section 22(7) da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu deve ser recusado se a infração em causa for uma infração pela qual, nos termos da parte 3 dessa lei, uma pessoa não possa ser entregue. Esta parte 3 contém as disposições relativas aos direitos fundamentais, à correspondência, ao princípio ne bis in idem, aos procedimentos penais contra a pessoa procurada no território do Estado com base nos mesmos factos alegados, à idade da responsabilidade penal, à extraterritorialidade e aos processos à revelia.

III. Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

10.      Em 2016, OE foi objeto de três mandados de detenção europeus, tendo dois desses mandados sido emitidos pela procuradoria de Amesterdão (Países Baixos) e o terceiro por um serviço da procuradoria nacional neerlandesa. Os referidos mandados visavam a entrega de OE para efeitos de procedimento penal por uma série de infrações relativas, nomeadamente, a branqueamento de capitais, a agressão e uma tentativa de homicídio.

11.      Tendo as objeções suscitadas por OE sido rejeitadas pela High Court (Tribunal Superior) e não tendo este interposto recurso da sentença proferida por esse tribunal, foi entregue às autoridades neerlandesas em 2017. É pacífico que nenhuma destas objeções dizia respeito ao facto de os mandados de detenção europeus terem sido emitidos por procuradores. OE foi seguidamente condenado numa pena de 18 anos de prisão que cumpre atualmente nos Países Baixos.

12.      Em 1 de maio de 2019, o procurador nacional neerlandês enviou à High Court (Tribunal Superior), na sua qualidade de autoridade judiciária de execução, um pedido de consentimento, em conformidade com o previsto no artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a fim de permitir a instauração de procedimento penal contra OE por infrações cometidas antes da sua entrega diferentes daquelas por que foi entregue. Este pedido foi apresentado à High Court (Tribunal Superior) em 23 de julho de 2019. OE foi julgado, declarado culpado e condenado em prisão perpétua pelas novas acusações, mas é necessário o consentimento da autoridade judiciária de execução para que esta nova pena privativa da liberdade possa ser executada.

13.      O referido pedido de consentimento foi, no entanto, retirado na sequência da prolação do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (4), do qual resulta que as procuradorias de um Estado‑Membro que correm o risco de estar sujeitas, direta ou indiretamente, às ordens ou instruções individuais da parte do poder executivo no âmbito da adoção de uma decisão relativa à emissão de um mandado de detenção europeu não podem estar abrangidas pelo conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584.

14.      Foi seguidamente apresentado à High Court (Tribunal Superior) um novo pedido de consentimento, mas desta vez provinha de um juiz de instrução de Amesterdão.

15.      OE opôs‑se a este pedido de consentimento na High Court (Tribunal Superior), alegando que as autoridades que emitiram os mandados de detenção europeus não constituíam «autoridades judiciárias de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. A este respeito, importa precisar que OE não contesta a sua entrega às autoridades neerlandesas por força desses mandados de detenção europeus, mas considera que o consentimento para o procedimento penal por infrações diferentes daquelas por que foi entregue não pode ser dado quando os mandados de detenção europeus iniciais não tenham sido validamente emitidos por uma autoridade judiciária de emissão.

16.      Ora, considerando que a decisão relativa à sua entrega tem autoridade de caso julgado, a High Court (Tribunal Superior) negou provimento ao recurso de OE. Este interpôs recurso para a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda).

17.      Entretanto, em 24 de novembro de 2020, o Tribunal de Justiça proferiu, a propósito do procurador neerlandês, o Acórdão Openbaar Ministerie (Falsificação de documento) (5), segundo o qual o artigo 6.o, n.o 2, e o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 devem ser interpretados no sentido de que o procurador de um Estado‑Membro que, embora participando na administração da justiça, possa receber, no âmbito do exercício do seu poder decisório, uma instrução individual por parte do poder executivo não constitui uma «autoridade judiciária de execução», na aceção destas disposições (6).

18.      A Court of Appeal (Tribunal de Recurso) negou provimento ao recurso de OE, considerando, em conformidade com a argumentação desenvolvida pelo Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda, a seguir «Ministro»), que havia que aplicar a regra processual nacional relativa ao princípio do estoppel, que obstava tanto à impugnação direta da ordem de entrega da High Court (Tribunal Superior) como a uma impugnação incidental da mesma (7). A este respeito, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) baseou‑se na jurisprudência do Tribunal de Justiça que sublinhou, sob reserva do respeito dos princípios da equivalência e da efetividade cuja violação não era alegada no âmbito do processo principal, a importância do princípio segundo o qual as decisões judiciais que se tenham tornado definitivas após o esgotamento das vias de recurso ou depois de decorridos os prazos de recurso já não possam ser postas em causa (8).

19.      Em 22 de setembro de 2021, a Supreme Court (Supremo Tribunal) admitiu um pedido de recurso.

20.      Segundo esse órgão jurisdicional, OE admite que a decisão de ordenar a sua entrega em 2017 tem, nos termos do direito irlandês, autoridade de caso julgado e que o direito da União não exige que essa decisão seja posta em causa. A sua principal objeção a que o consentimento seja dado baseia‑se nas condições legais que regem o processo de consentimento. Com efeito, nos termos da section 22(7) da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu, o pedido de consentimento deve emanar do «Estado de emissão», sendo este definido como o Estado cuja «autoridade judiciária» emitiu o mandado de detenção europeu inicial. Ora, OE alega que, uma vez que os procuradores que emitiram os mandados de detenção europeus iniciais não eram, à luz do direito da União, «autoridades judiciárias», daí decorre que o Reino dos Países Baixos não pode ser considerado o «Estado de emissão».

21.      Em contrapartida, o Ministro continua a sustentar perante o órgão jurisdicional de reenvio que qualquer questão suscetível de se colocar quanto à possibilidade de os procuradores neerlandeses agirem na qualidade de autoridades judiciárias de emissão dos mandados de detenção europeus deve ser considerada definitivamente decidida pela High Court (Tribunal Superior) na sua ordem de entrega de 2017 e que o princípio do estoppel se aplica a esta decisão definitiva, pelo que esta já não pode ser posta em causa quanto a este aspeto.

22.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a resposta à questão de saber se OE deveria ser autorizado, no âmbito de um pedido de consentimento nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a invocar um argumento baseado no facto de os mandados de detenção europeus iniciais não terem sido emitidos por uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, depende da correta qualificação jurídica da relação entre o processo de entrega e o processo de consentimento.

23.      Com efeito, esse órgão jurisdicional considera que, caso esses processos devam ser considerados distintos e autónomos, de tal forma que qualquer objeção que pudesse ser suscitada pela pessoa em causa no âmbito do pedido de entrega possa ser invocada como novo argumento ou argumento suplementar no âmbito do pedido de consentimento, o princípio do estoppel não é suscetível de se aplicar.

24.      Pelo contrário, se estes processos devem ser considerados tão estreitamente ligados que uma questão que tenha sido necessariamente decidida na decisão de entrega deva ser considerada decidida para efeitos da decisão de consentimento, OE não poderá, nesta fase, basear‑se num argumento relativo ao estatuto da autoridade judiciária de emissão.

25.      Nestas circunstâncias, a Supreme Court (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 27.o da Decisão‑Quadro [2002/584] ser interpretado no sentido de que uma decisão de entrega de uma pessoa cria uma relação jurídica entre essa pessoa, o Estado de execução e o Estado requerente, de modo que qualquer questão considerada definitivamente resolvida nessa decisão deve também ser considerada resolvida para efeitos do processo de obtenção do consentimento para instauração de novo procedimento penal ou aplicação de penas por outras infrações?

2)      Se a resposta à primeira questão for que o artigo 27.o não impõe tal interpretação, uma norma processual nacional viola o princípio da efetividade se tiver por efeito impedir o interessado de invocar, no âmbito do pedido de consentimento, um acórdão pertinente do [Tribunal de Justiça] proferido posteriormente à ordem de entrega?»

26.      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente processo fosse submetido à tramitação prejudicial acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça ou à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o deste Regulamento de Processo.

27.      Por Decisão de 15 de março de 2022, a Segunda Secção decidiu não dar seguimento ao pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter este processo à tramitação prejudicial urgente. Por Decisão de 23 de março de 2022, o presidente do Tribunal de Justiça indeferiu o pedido do órgão jurisdicional de reenvio de submeter o referido processo à tramitação prejudicial acelerada.

28.      OE, o Ministro e o Governo irlandês, os Governos húngaro, neerlandês e polaco, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas.

29.      Na audiência realizada em 14 de dezembro de 2022, OE, o Ministro e o Governo irlandês, o Governo neerlandês bem como a Comissão apresentaram as suas observações orais e responderam às perguntas para resposta oral colocadas pelo Tribunal de Justiça.

IV.    Análise

30.      Como resulta da decisão de reenvio, a interrogação subjacente às questões prejudiciais diz respeito à relação entre o processo de entrega e o pedido subsequente que visa, em conformidade com o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, obter o consentimento da autoridade judiciária de execução para que uma pessoa já entregue possa ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

31.      Mais precisamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a invalidade de um mandado de detenção europeu, pelo facto de não ter sido emitido por uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, é suscetível de obstar a que a autoridade judiciária de execução dê o consentimento que lhe é pedido.

32.      O exame deste problema fundamental no âmbito de um litígio relativo à resposta a dar a um pedido de consentimento parece, no entanto, condicionado no caso em apreço por uma questão de direito processual nacional, que consiste em determinar se o princípio do estoppel é aplicável no contexto do processo principal.

33.      Na minha opinião, a resolução do litígio no processo principal não exige que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a conformidade com o direito da União da aplicação desta regra processual nacional nas circunstâncias descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, esta questão deixa de ser pertinente a partir do momento em que se demonstre que, independentemente de a pessoa em causa poder ou não invocar, no âmbito de um pedido de consentimento, um fundamento relativo à invalidade de um mandado de detenção europeu que tenha sido objeto de uma sentença transitada em julgado com vista à sua execução, tal fundamento não é, em todo o caso, suscetível de justificar uma recusa da autoridade judiciária de execução de dar esse consentimento.

34.      Considero igualmente que o problema fundamental que diz respeito às eventuais consequências da invalidade de um mandado de detenção europeu para o exame de um pedido subsequente de consentimento, nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, deve ser tratado enquanto tal, sem que seja necessário pronunciarmo‑nos, contrariamente ao que sustenta a Comissão, sobre a procedência do argumento desenvolvido por OE destinado a demonstrar a inexistência de um «Estado de emissão», na aceção da section 22(7) da Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu. Com efeito, além de este argumento se centrar na interpretação de uma norma de direito nacional, considero que a interrogação principal do órgão jurisdicional de reenvio incide efetivamente sobre a relação que existe, por força do direito da União, entre uma entrega inicial e um pedido de consentimento. Esta relação está também subjacente à argumentação de OE no âmbito do litígio no processo principal.

35.      A este respeito, resulta da decisão de reenvio que OE se opõe a que seja dado o consentimento pedido com fundamento em que as autoridades neerlandesas que emitiram os mandados de detenção europeus iniciais não tinham a qualidade de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584. Sem pôr em causa a decisão de entrega e o estatuto da autoridade judiciária que formulou o pedido de consentimento, OE alega, porém, que o consentimento pedido em aplicação do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, desta decisão‑quadro não pode ser dado se os mandados de detenção europeus que deram origem à sua entrega não tiverem sido validamente emitidos. OE invoca, assim, a invalidade dos mandados de detenção europeus iniciais para se opor a que a autoridade judiciária de execução dê o consentimento pedido.

36.      Na minha opinião, esta argumentação é errada.

37.      Com efeito, mesmo que um pedido de consentimento esteja necessariamente ligado a um mandado de detenção europeu específico previamente executado, considero que este pedido deve ser objeto de uma análise separada e autónoma em função dos seus méritos próprios pela autoridade judiciária de execução. Assim, um vício que afete um mandado de detenção europeu que tenha sido executado não é suscetível de constituir um fundamento de recusa do consentimento pedido.

38.      A este respeito, importa salientar que o Tribunal de Justiça já declarou que, a partir do momento em que a pessoa procurada foi detida e depois entregue ao Estado‑Membro de emissão, o mandado de detenção europeu esgotou, em princípio, os seus efeitos jurídicos, salvo os efeitos da entrega expressamente previstos no capítulo 3 da Decisão‑Quadro 2002/584 (9).

39.      Entre os efeitos da entrega previstos neste capítulo, figura o eventual procedimento penal por outras infrações, cujas condições estão previstas no artigo 27.o desta decisão‑quadro.

40.      Por força da regra da especialidade enunciada no artigo 27.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro, que está ligada à soberania do Estado‑Membro de execução, uma pessoa que tenha sido entregue tem o direito de apenas ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade pela infração por que foi entregue (10).

41.      Segundo o Tribunal de Justiça, esta regra obriga, com efeito, a que o Estado‑Membro de emissão que pretenda instaurar um procedimento penal contra uma pessoa, ou condená‑la, por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu diferente daquela que esteve na origem dessa entrega obtenha o consentimento do Estado‑Membro de execução a fim de evitar que o primeiro Estado‑Membro se imiscua nas competências que o Estado‑Membro de execução pode exercer e ultrapasse as suas prerrogativas relativamente à pessoa em causa (11).

42.      Só nos casos previstos no artigo 27.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, nomeadamente quando tenha sido dado consentimento nos termos da alínea g) desse número e do n.o 4 deste artigo, é que as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão podem sujeitar a processo penal ou condenar essa pessoa por uma infração diferente daquela por que foi entregue (12).

43.      O Tribunal de Justiça sublinhou que a regra da especialidade está estreitamente ligada à entrega resultante da execução de um mandado de detenção europeu específico (13). Isso implica que o respeito desta regra só pode ser apreciado à luz da entrega efetuada ao abrigo de um mandado de detenção europeu específico (14).

44.      Todavia, apesar do vínculo que une a execução do artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584 e a existência de um mandado de detenção europeu previamente executado, importa sublinhar que o Tribunal de Justiça já declarou que a decisão de conceder o consentimento previsto no artigo 27.o, n.o 4, desta decisão‑quadro é distinta da decisão relativa à execução de um mandado de detenção europeu e produz, para a pessoa em causa, efeitos distintos dos desta última decisão (15).

45.      A entrega de uma pessoa ao abrigo de um mandado de detenção europeu e o pedido de consentimento destinado a autorizar as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão a instaurar um procedimento penal contra essa pessoa ou a condená‑la por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, constituem, portanto, duas etapas distintas de um processo destinado a garantir que a prática de infrações não fique impune na União.

46.      Embora seja, à semelhança da decisão relativa à execução de um mandado de detenção europeu, suscetível de violar a liberdade da pessoa em causa (16), a decisão de consentimento tem, assim, um objeto que lhe é próprio e deve, por essa razão, ser tomada pela autoridade judiciária de execução após um exame separado e autónomo relativamente àquele a que o mandado de detenção europeu deu origem.

47.      Este exame deve ser efetuado em conformidade com o previsto no artigo 27.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a fim de avaliar o pedido de consentimento em função dos seus méritos próprios.

48.      Assim, a autoridade judiciária de execução deve verificar se o pedido de consentimento que lhe é apresentado é acompanhado das informações referidas no artigo 8.o, n.o 1, desta decisão‑quadro e de uma tradução, conforme indicado no artigo 8.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro. Essa autoridade deve igualmente verificar se a infração para a qual o consentimento é pedido implica, ela própria, a obrigação de entrega ao abrigo da mesma decisão‑quadro.

49.      Em conformidade com o previsto no artigo 27.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a autoridade judiciária de execução deve, além disso, apreciar, à luz dos motivos de não execução obrigatória ou facultativa referidos nos artigos 3.o e 4.o desta decisão‑quadro, se pode ser autorizada a extensão do procedimento a infrações diferentes daquelas pelas quais a pessoa em causa foi entregue.

50.      Ora, há que concluir que nenhuma destas disposições prevê que um vício que afete um mandado de detenção europeu inicial é suscetível de permitir à autoridade judiciária de execução recusar dar o consentimento pedido.

51.      Decidir de outro modo comprometeria, na minha opinião, os objetivos visados pela Decisão‑Quadro 2002/584.

52.      Saliento, a este respeito, que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584, visto que consagra regras derrogatórias em relação ao princípio do reconhecimento mútuo enunciado no artigo 1.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, não pode ser interpretado de forma tal que leve a neutralizar o objetivo prosseguido pela referida decisão‑quadro, que consiste em facilitar e acelerar as entregas entre as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros tendo em conta a confiança mútua que deve existir entre estes (17).

53.      Este imperativo de celeridade subjacente à Decisão‑Quadro 2002/584 reflete‑se no artigo 27.o, n.o 4, desta decisão‑quadro, que dispõe que a decisão de consentimento para a extensão do procedimento penal deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

54.      Ora, admitir que um vício que afeta um mandado de detenção europeu inicial possa obstar a que a autoridade judiciária de execução dê o consentimento exigido levaria a aceitar que as condições em que a entrega foi efetuada fossem objeto de um reexame no âmbito de um pedido de consentimento formulado nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584. Tal reexame levaria a atrasar a decisão de consentimento, o que seria contrário ao imperativo de celeridade subjacente a esta decisão‑quadro. Este reexame parece‑me também incompatível com a segurança jurídica na medida em que poderia pôr em causa o caráter definitivo da decisão judicial que ordenou a execução de um mandado de detenção europeu.

55.      Por outro lado, importa adotar uma interpretação que contribua para um outro objetivo prosseguido pela Decisão‑Quadro 2002/584, a saber, a luta contra a impunidade (18). Ora, admitir que uma autoridade judiciária de execução possa recusar dar o consentimento que lhe é pedido nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, desta decisão‑quadro violaria este objetivo, ao impedir as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão de instaurarem um procedimento penal contra uma pessoa, de a condenarem ou de a privarem de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

56.      Por todas estas razões, considero que o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que a declaração de que um mandado de detenção europeu, com base no qual uma pessoa foi entregue, foi emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, e deveria, portanto, ter sido considerado inválido com esse fundamento, não é suscetível de obstar a que a autoridade judiciária de execução, quando lhe é submetido um pedido de consentimento destinado a autorizar as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão a instaurar um procedimento penal contra essa pessoa ou a condená‑la por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, dê esse consentimento.

V.      Conclusão

57.      Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) do seguinte modo:

O artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009,

deve ser interpretado no sentido de que:

a declaração de que um mandado de detenção europeu, com base no qual uma pessoa foi entregue, foi emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299, e deveria, portanto, ter sido considerado inválido com esse fundamento, não é suscetível de obstar a que a autoridade judiciária de execução, quando lhe é submetido um pedido de consentimento destinado a autorizar as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão a instaurar um procedimento penal contra essa pessoa ou a condená‑la por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, dê esse consentimento.


1      Língua original: francês.


2      JO 2002, L 190, p. 1.


3      JO 2009, L 81, p. 24; a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584».


4      C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456.


5      C‑510/19, EU:C:2020:953.


6      N.o 70 deste acórdão. V., igualmente, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, CJ (Decisão de entrega diferida devido a procedimento penal) (C‑492/22 PPU, EU:C:2022:964, n.o 55).


7      O órgão jurisdicional de reenvio indica que, em princípio, há que aplicar o princípio do estoppel num processo quando: i) tenha sido proferida uma sentença por um tribunal competente; ii) a decisão seja uma decisão definitiva quanto ao mérito; iii) a sentença tenha decidido de uma questão que uma parte procura suscitar no processo posterior; e iv) as partes sejam as mesmas pessoas (ou pessoas por elas representadas) que as partes no processo em que é invocada a questão suscetível de estar sujeita ao princípio do estoppel.


8      O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se ao Acórdão de 6 de outubro de 2009, Asturcom Telecomunicaciones (C‑40/08, EU:C:2009:615).


9      V. Acórdão de 13 de janeiro de 2021, MM (C‑414/20 PPU, EU:C:2021:4, n.o 77).


10      V., nomeadamente, Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade) (C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 39 e jurisprudência aí referida).


11      V. Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade) (C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 40).


12      V. Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento) (C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 63).


13      V. Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade) (C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.os 37, 38 e 40).


14      V., neste sentido, Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade) (C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 45).


15      V., nomeadamente, Acórdão de 26 de outubro de 2021, Openbaar Ministerie (Direito de ser ouvido pela autoridade judiciária de execução) (C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU, EU:C:2021:876, n.o 49 e jurisprudência aí referida).


16      V., nomeadamente, Acórdão de 26 de outubro de 2021, Openbaar Ministerie (Direito de ser ouvido pela autoridade judiciária de execução) (C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU, EU:C:2021:876, n.o 51 e jurisprudência aí referida).


17      V., nomeadamente, Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade) (C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 35 e jurisprudência aí referida).


18      V., nomeadamente, Acórdãos de 8 de dezembro de 2022, CJ (Decisão de entrega diferida devido a procedimento penal) (C‑492/22 PPU, EU:C:2022:964, n.o 74 e jurisprudência aí referida), bem como de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o. (C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 141).