Language of document : ECLI:EU:C:2023:544

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

6 de julho de 2023 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Artigo 27.o — Procedimentos penais por uma infração praticada antes da entrega diferente daquela por que foi entregue — Pedido de consentimento dirigido à autoridade judiciária de execução — Mandado de detenção europeu emitido pelo procurador de um Estado‑Membro que não tem a qualidade de autoridade judiciária de emissão — Consequências para o pedido de consentimento»

No processo C‑142/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda), por Decisão de 25 de fevereiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de março de 2022, no processo

OE

contra

Minister for Justice and Equality,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, M. L. Arastey Sahún, F. Biltgen, N. Wahl e J. Passer (relator), juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretária: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 14 de dezembro de 2022,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação de OE, por J. Byrne, R. Farrell, SC, e B. O’Donoghue, solicitor,

—        em representação do Minister for Justice and Equality e da Irlanda, por M. Browne, C. Hanselmann, A. Joyce e M. Lane, na qualidade de agentes, assistidos por R. Kennedy, SC, e de D. Breen, BL,

—        em representação do Governo húngaro, por Zs. Biró‑Tóth e M. Z. Fehér, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo neerlandês, por K. Bulterman, A. Hanje e P. Huurnink, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

—        em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe OE ao Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda) relativamente a um processo de pedido de consentimento dirigido às autoridades judiciárias irlandesas pelas autoridades judiciárias neerlandesas para efeitos de procedimento penal nos Países Baixos contra OE por infrações cometidas antes da sua entrega a estas últimas autoridades, diferentes daquelas pelas quais foi entregue.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar», prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.»

4        O artigo 3.o desta Decisão‑Quadro, sob a epígrafe «Motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu», enuncia:

«A autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução (a seguir designada “autoridade judiciária de execução” recusa a execução de um mandado de detenção europeu nos seguintes casos:

1.      Se a infração na origem do mandado de detenção estiver abrangida por amnistia no Estado‑Membro de execução, quando este for competente para o respetivo procedimento penal nos termos da sua legislação penal;

2.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado‑Membro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja atualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do Estado‑Membro de condenação;

3.      Se, nos termos do direito do Estado‑Membro de execução, a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu não puder, devido à sua idade, ser responsabilizada pelos factos que fundamentam o mandado de detenção europeu.»

5        O artigo 4.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu», dispõe:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

1.      Se, num dos casos referidos no n.o 4 do artigo 2.o, o facto que determina o mandado de detenção europeu não constituir uma infração nos termos do direito do Estado‑Membro de execução; todavia, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução do mandado de detenção europeu não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado‑Membro de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado‑Membro de emissão;

2.      Quando contra a pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu for movido procedimento penal no Estado‑Membro de execução pelo mesmo facto que determina o mandado de detenção europeu;

3.      Quando as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de execução tiverem decidido não instaurar procedimento criminal, ou pôr termo ao procedimento instaurado, pela infração que determina o mandado de detenção europeu ou quando a pessoa procurada foi definitivamente julgada num Estado‑Membro pelos mesmos factos, o que obsta ao ulterior exercício da ação penal;

4.      Quando houver prescrição da ação penal ou da pena nos termos da legislação do Estado‑Membro de execução e os factos forem da competência desse Estado‑Membro nos termos da sua legislação penal;

5.      Se das informações de que dispõe a autoridade judiciária de execução resultar que a pessoa procurada foi definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro, na condição de que, em caso de condenação, a pena tenha sido cumprida ou esteja atualmente em cumprimento ou não possa já ser cumprida segundo as leis do país de condenação;

6.      Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional;

7.      Sempre que o mandado de detenção europeu disser respeito a infração que:

a)      Segundo o direito do Estado‑Membro de execução, tenha sido cometida, no todo ou em parte, no seu território ou em local considerado como tal; ou

b)      Tenha sido praticada fora do território do Estado‑Membro de emissão e o direito do Estado‑Membro de execução não autorize o procedimento penal por uma infração idêntica praticada fora do seu território.»

6        O artigo 6.o da mesma decisão‑quadro, sob a epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes», enuncia, nos seus n.os 1 e 2:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o mandato de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.»

7        O artigo 8.o da Decisão‑Quadro 2002/584, sob a epígrafe «Conteúdo e formas do mandado de detenção europeu», menciona as informações que o mandado de detenção europeu deve conter e a língua em que este deve ser traduzido.

8        O capítulo 3 desta decisão‑quadro, relativo aos «[e]feitos da entrega», contém, nomeadamente, o seu artigo 27.o, sob a epígrafe «Eventuais procedimentos penais por outras infrações» e tem a seguinte redação:

«1.      Cada Estado‑Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado‑Geral do Conselho [da União Europeia] que, nas suas relações com os outros Estados‑Membros que tenham apresentado a mesma notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.

2.      Exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

3.      O n.o 2 não se aplica nos seguintes casos:

[…]

g)      Quando a autoridade judiciária de execução que entregou a pessoa tenha dado o seu consentimento nos termos do n.o 4.

4.      O pedido de consentimento é apresentado à autoridade judiciária de execução, acompanhado das informações referidas no n.o 1 do artigo 8.o e de uma tradução conforme indicado no n.o 2 do artigo 8.o O consentimento deve ser dado sempre que a infração para a qual é solicitado dê ela própria lugar a entrega em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro. O consentimento deve ser recusado pelos motivos referidos no artigo 3.o, podendo ainda, a não ser assim, ser recusado apenas pelos motivos referidos no artigo 4.o A decisão deve ser tomada no prazo máximo de 30 dias a contar da data de receção do pedido.

Em relação às situações referidas no artigo 5.o, o Estado‑Membro de emissão deve dar as garantias aí previstas.»

 Direito irlandês

9        O European Arrest Warrant Act 2003 (Lei de 2003 relativa ao Mandado de Detenção Europeu) transpôs a Decisão‑Quadro 2002/584 para a ordem jurídica irlandesa.

10      O artigo 2.o, n.o 1, desta lei, na sua redação aplicável aos factos no processo principal (a seguir «Lei de 2003»), prevê:

«Para efeitos da presente lei […],

[…]

“autoridade judiciária de emissão” significa, no que respeita a um mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária do Estado de emissão que emitiu o mandado em questão e

“Estado‑Membro de emissão” significa um Estado‑Membro […] do qual uma autoridade judiciária emitiu esse mandado de detenção europeu;

“autoridade judiciária” significa o juiz, magistrado ou outra pessoa autorizada ao abrigo do direito do Estado‑Membro em causa a desempenhar funções idênticas ou semelhantes às desempenhadas por um órgão jurisdicional [da Irlanda] ao abrigo do artigo 33.o;

[…]»

11      O artigo 22.o, n.o 7, da Lei de 2003 tem a seguinte redação:

«A High Court [(Tribunal Superior, Irlanda)] pode, em relação a uma pessoa que tenha sido entregue a um Estado‑Membro de emissão ao abrigo desta lei, consentir

(a)      na instauração de procedimento penal contra essa pessoa, no Estado‑Membro de emissão, por uma infração,

(b)      na aplicação de uma pena no Estado‑Membro de emissão, incluindo uma pena que consista numa medida restritiva da liberdade dessa pessoa, devido a uma infração, ou

(c)      na instauração de procedimento penal contra ou na detenção dessa pessoa no Estado‑Membro de emissão, para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança devido a uma infração,

quando receba um pedido por escrito do Estado‑Membro de emissão nesse sentido.»

12      Segundo o artigo 22.o, n.o 8, da referida lei, o consentimento previsto no seu artigo 22.o, n.o 7, deve ser recusado se a infração em causa for uma infração pela qual, nos termos da parte 3 dessa lei, uma pessoa não possa ser entregue. Esta parte 3 contém as disposições relativas aos direitos fundamentais, à correspondência, ao princípio ne bis in idem, aos procedimentos penais contra a pessoa procurada no território do Estado com base nos mesmos factos alegados, à idade da responsabilidade penal, à extraterritorialidade e aos processos à revelia.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      Foi submetido à High Court (Tribunal Superior), na sua qualidade de autoridade judiciária de execução, um pedido de execução de três mandados de detenção europeus emitidos contra OE durante o ano de 2016 nos Países Baixos, dois dos quais tinham sido emitidos pela procuradoria de Amesterdão e o terceiro pela procuradoria nacional neerlandesa (a seguir «mandados de detenção europeus iniciais»).

14      Por despacho que não foi objeto de recurso, a High Court (Tribunal Superior) ordenou a entrega de OE após ter rejeitado as objeções por ele levantadas (a seguir «Despacho de entrega de 2017»). É facto assente que nenhuma dessas objeções dizia respeito ao facto de os mandados de detenção europeus iniciais terem sido emitidos por procuradores. Uma vez efetuada a entrega, OE foi condenado a uma pena de 18 anos de prisão que cumpre atualmente nos Países Baixos.

15      Ao longo de 2019, um juiz de instrução de Amesterdão apresentou à High Court (Tribunal Superior) um pedido de consentimento ao abrigo do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 e do artigo 22.o, n.o 7, da Lei de 2003, destinado a permitir a instauração de processo penal contra OE por infrações cometidas antes da sua entrega diferentes daquelas que tinham fundamentado os mandados de detenção europeus iniciais.

16      OE opôs‑se a esse pedido, alegando que os mandados de detenção europeus iniciais não tinham sido validamente emitidos, uma vez que tinham sido emitidos por procuradores, a saber, por autoridades que não podiam ser consideradas «autoridades judiciárias» na aceção da Decisão‑Quadro 2002/584. Segundo OE, esta circunstância obstava a que o pedido de consentimento fosse deferido.

17      Por Despacho de 27 de julho de 2020, a High Court (Tribunal Superior) deu o consentimento solicitado. Em especial, no que respeita ao argumento de que os mandados de detenção europeus iniciais não tinham sido validamente emitidos, sublinhou que o Despacho de entrega de 2017 tinha adquirido autoridade de caso julgado. OE recorreu desse despacho para a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda).

18      Em 27 de maio de 2021, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) negou provimento a esse recurso, considerando que havia que aplicar a regra processual nacional do estoppel, que obstava à impugnação do Despacho de entrega de 2017. A este respeito, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) referiu‑se, nomeadamente, à jurisprudência do Tribunal de Justiça da qual decorre que as decisões judiciais que se tornaram definitivas após o esgotamento das vias de recurso ou o termo dos prazos de recurso não podem, em princípio, ser postas em causa.

19      O pedido apresentado por OE, em 6 de julho de 2021, destinado a obter autorização para recorrer dessa decisão da Court of Appeal (Tribunal de Recurso) foi admitido por decisão do órgão jurisdicional de reenvio de 22 de setembro de 2021, tendo em conta que o processo principal suscitava questões de interesse geral.

20      Nesse órgão jurisdicional, OE admite que o Despacho de entrega de 2017 tem autoridade de caso julgado no direito irlandês e que o direito da União não exige que esse despacho possa ser posto em causa. Todavia, no que respeita às condições legais que regulam o procedimento de consentimento, que reveste caráter autónomo, OE observa que, nos termos do artigo 22.o, n.o 7, da Lei de 2003, o pedido de consentimento deve emanar do «Estado de emissão», sendo este definido como o Estado cuja «autoridade judiciária» emitiu o mandado de detenção europeu inicial. Ora, uma vez que decorre dos Acórdãos de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), e de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento) (C‑510/19, EU:C:2020:953), que os procuradores que emitiram os mandados de detenção europeus iniciais não constituíam «autoridades judiciárias», na aceção da Decisão‑Quadro 2002/584, o Reino dos Países Baixos não pode ser considerado um «Estado de emissão» para efeitos do procedimento de consentimento.

21      Na contestação, o Ministro da Justiça e da Igualdade continua a sustentar que qualquer questão suscetível de se colocar quanto à possibilidade de os procuradores neerlandeses atuarem na qualidade de autoridades judiciárias de emissão dos mandados de detenção europeus iniciais deve ser considerada definitivamente resolvida pela High Court (Tribunal Superior) no seu Despacho de entrega de 2017 e que o princípio do estoppel se aplica a esse despacho definitivo, pelo que este já não pode ser posto em causa quanto a este aspeto.

22      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a resposta à questão de saber se OE deveria ser autorizado, no âmbito de um pedido de consentimento ao abrigo do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a invocar um argumento baseado no facto de os mandados de detenção europeus iniciais não terem sido emitidos por uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, depende da qualificação jurídica da relação existente entre o processo de entrega e o procedimento de consentimento.

23      Com efeito, no caso de esses dois processos deverem ser considerados distintos e autónomos, o princípio do estoppel não pode ser aplicado, pelo que qualquer objeção levantada pelo interessado no âmbito do pedido de entrega poderia ser novamente invocada no âmbito do pedido de consentimento.

24      Em contrapartida, caso esses processos devam ser concebidos no sentido de estarem tão estreitamente ligados que uma questão resolvida na decisão de entrega já não poderia ser debatida para efeitos da decisão de consentimento, OE não estaria então autorizado a invocar, nessa última fase, um argumento relativo ao estatuto da autoridade judiciária de emissão.

25      Nestas circunstâncias, a Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 27.o da [Decisão‑Quadro 2002/584] ser interpretado no sentido de que uma decisão de entrega de uma pessoa cria uma relação jurídica entre essa pessoa, o Estado de execução e o Estado requerente, de modo que qualquer questão considerada definitivamente resolvida nessa decisão deve também ser considerada resolvida para efeitos do processo de obtenção do consentimento para instauração de novo procedimento penal ou aplicação de penas por outras infrações?

2.      [Em caso de resposta negativa à primeira questão], uma norma processual nacional viola o princípio da efetividade se tiver por efeito impedir o interessado de invocar, no âmbito do pedido de consentimento, um acórdão pertinente do [TJUE] proferido posteriormente à ordem de entrega?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

26      O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o processo fosse submetido à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça ou, a título subsidiário, à tramitação acelerada em aplicação do artigo 105.o, n.o 1, deste Regulamento de Processo. Em apoio desses pedidos, invocou, nomeadamente, o facto de OE estar privado de liberdade nos Países Baixos à data da apresentação do pedido de decisão prejudicial e de as autoridades neerlandesas procurarem clarificar, com urgência, o seu estatuto jurídico.

27      Em 15 de março de 2022, o Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, que não devia ser acolhido o pedido que visava submeter o presente processo a tramitação prejudicial urgente, uma vez que não estavam preenchidos os requisitos de urgência previstos no artigo 107.o do Regulamento de Processo.

28      Em 23 de março de 2022, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, indeferir o pedido de que o presente processo fosse submetido a tramitação acelerada.

29      Com efeito, por um lado, no caso em apreço, embora OE esteja atualmente privado de liberdade, a continuidade da sua detenção não depende da resposta do Tribunal de Justiça às questões prejudiciais, visto que executa uma pena pela qual foi condenado por sentença transitada em julgado.

30      Por outro lado, a circunstância de o órgão jurisdicional de reenvio ou as autoridades nacionais serem obrigados a envidar todos os esforços para assegurar uma resolução rápida do processo principal não basta, por si só, para justificar o recurso à tramitação acelerada (v., neste sentido, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 23 de dezembro de 2015, Vilkas, C‑640/15, EU:C:2015:862, n.o 8).

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

31      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um mandado de detenção europeu com base no qual uma pessoa foi objeto de uma decisão de entrega ter sido emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, obsta a que, posteriormente, a autoridade judiciária de execução, à qual uma autoridade judiciária de emissão apresentou nesse sentido um pedido na aceção do referido artigo 6.o, n.o 1, dê o seu consentimento para que essa pessoa seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

32      Em primeiro lugar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a interpretação que o Tribunal de Justiça dá a uma norma do direito da União, no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 267.o TFUE, clarifica e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Daqui decorre que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz a relações jurídicas nascidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que se pronuncia sobre o pedido de interpretação, se também estiverem preenchidos os requisitos que permitem submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (Acórdão de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas, C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 51 e jurisprudência referida).

33      Ora, no n.o 70 do seu Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento) (C‑510/19, EU:C:2020:953), o Tribunal de Justiça declarou, referindo‑se, a este respeito, aos ensinamentos decorrentes do Acórdão de 27 de maio de 2019, OG e PI (Procuradorias de Lübeck e de Zwickau) (C‑508/18 e C‑82/19 PPU, EU:C:2019:456), que o procurador de um Estado‑Membro que, embora participando na administração da justiça, possa receber, no âmbito do exercício do seu poder decisório, uma instrução individual por parte do poder executivo não constitui uma «autoridade judiciária de execução», na aceção do artigo 6.o, n.o 2, e do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584. Além disso, no n.o 47 desse acórdão, o Tribunal de Justiça sublinhou que estatuto e a natureza das autoridades judiciárias referidas, respetivamente, no n.o 1 e no n.o 2 do artigo 6.o da Decisão‑Quadro 2002/584 são os mesmos, apesar de essas autoridades judiciárias exercerem funções distintas ligadas, por um lado, à emissão de um mandado de detenção europeu e, por outro, à execução desse mandado.

34      Decorre desta jurisprudência que mandados de detenção europeus que, como os que estão em causa no processo principal, tenham sido emitidos pelo procurador de um Estado‑Membro que, no âmbito do exercício do seu poder decisório, possa receber uma instrução individual por parte do poder executivo, não são emitidos em conformidade com os requisitos decorrentes da Decisão‑Quadro 2002/584.

35      No entanto, há que recordar, em segundo lugar, a importância que reveste, tanto na ordem jurídica da União como nas ordens jurídicas nacionais, o princípio da autoridade do caso julgado. Com efeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de precisar que, para garantir a estabilidade do direito e das relações jurídicas, bem como uma boa administração da justiça, é necessário que as decisões judiciais que se tornaram definitivas após o esgotamento das vias de recurso disponíveis ou depois de decorridos os prazos previstos para tais recursos já não possam ser postas em causa (Acórdão de 26 de janeiro de 2017, Banco Primus, C‑421/14, EU:C:2017:60, n.o 46 e jurisprudência referida).

36      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que OE não interpôs recurso do Despacho de entrega de 2017 e que, uma vez efetuada a entrega, foi condenado a uma pena de prisão nos Países Baixos por força de uma sentença transitada em julgado. Todavia, sem pôr em causa a autoridade de caso julgado do Despacho de entrega de 2017 nem da decisão de condenação proferida na sequência dessa entrega referida no n.o 14 do presente acórdão, OE alega que o consentimento pedido em aplicação do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 não pode ser dado no caso de, como no processo principal, os mandados de detenção europeus que deram lugar à entrega não terem sido emitidos em conformidade com a referida decisão‑quadro. Neste contexto, OE também não põe em causa o estatuto da autoridade judiciária que formulou esse pedido de consentimento.

37      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça já declarou que, na medida em que a pessoa procurada foi detida e depois entregue ao Estado‑Membro de emissão, o mandado de detenção europeu esgotou, em princípio, os seus efeitos jurídicos, sem prejuízo dos efeitos da entrega expressamente previstos no capítulo 3 da Decisão‑Quadro 2002/584 (Acórdão de 13 de janeiro de 2021, MM, C‑414/20 PPU, EU:C:2021:4, n.o 77).

38      Ora, entre os efeitos da entrega previstos nesse capítulo 3, figura o eventual procedimento penal por outras infrações, cujas condições e modalidades estão previstas no artigo 27.o desta decisão‑quadro.

39      Este artigo 27.o enuncia, no seu n.o 2, a regra da especialidade segundo a qual, exceto nos casos previstos nos n.os 1 e 3, uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue [v., neste sentido, Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade), C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 36].

40      Esta regra obriga a que o Estado‑Membro de emissão, que pretenda instaurar um procedimento penal contra uma pessoa ou condená‑la por uma infração cometida antes da sua entrega em execução de um mandado de detenção europeu diferente daquela que esteve na origem dessa entrega, obtenha o consentimento do Estado‑Membro de execução a fim de evitar que o primeiro Estado‑Membro se imiscua nas competências que o Estado‑Membro de execução pode exercer e ultrapasse as suas prerrogativas em relação à pessoa em causa [v., neste sentido, Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade), C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 40].

41      Só nos casos previstos no artigo 27.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2002/584, nomeadamente quando tenha sido dado consentimento nos termos da alínea g) deste número e do n.o 4 deste artigo, é que as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão podem sujeitar a procedimento penal ou condenar essa pessoa por uma infração diferente daquela por que foi entregue [v., neste sentido, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 63].

42      Todavia, apesar da ligação que une assim a aplicação do artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584 e a existência de um mandado de detenção europeu previamente executado, o Tribunal de Justiça especificou que a decisão de dar o consentimento previsto no artigo 27.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 é distinta da decisão relativa à execução de um mandado de detenção europeu e produz, para o interessado, efeitos distintos dos desta última decisão [Acórdãos de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documento), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 60, e de 26 de outubro de 2021, Openbaar Ministerie (Direito de ser ouvido pela autoridade judiciária de execução), C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU, EU:C:2021:876, n.o 49].

43      Como salientado pelo advogado‑geral no n.o 46 das suas conclusões, a decisão de dar o consentimento tem um objeto que lhe é próprio e deve, por essa razão, ser tomada pela autoridade judiciária de execução no final de um exame separado e autónomo relativamente àquele que deu origem ao mandado de detenção europeu.

44      Com efeito, em conformidade com o previsto no artigo 27.o, n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584, a autoridade judiciária de execução deve verificar se o pedido de consentimento que lhe é apresentado foi acompanhado das informações referidas no artigo 8.o, n.o 1, desta decisão‑quadro e de uma tradução, como indicado no artigo 8.o, n.o 2, da referida decisão‑quadro. Essa autoridade também deve verificar se da infração para a qual o consentimento é pedido resulta, ela própria, a obrigação de entrega ao abrigo da Decisão‑Quadro 2002/584. Por último, a autoridade judiciária de execução deve apreciar, tendo em conta os motivos de não execução obrigatória ou facultativa mencionados nos artigos 3.o e 4.o desta decisão‑quadro, se o alargamento do procedimento penal a infrações diferentes daquelas que motivaram a entrega da pessoa em causa pode ser autorizado.

45      Ora, não resulta da redação destas disposições que um vício que afete um mandado de detenção europeu inicial seja suscetível de impedir a autoridade judiciária de execução de dar o consentimento solicitado.

46      Por outro lado, como salientou o advogado‑geral no n.o 51 das suas conclusões, qualquer outra interpretação das referidas disposições comprometeria os objetivos visados pela Decisão‑Quadro 2002/584.

47      Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, embora os artigos 27.o e 28.o desta decisão‑quadro confiram aos Estados‑Membros determinadas competências específicas na execução de um mandado de detenção europeu, estas disposições, uma vez que consagram regras derrogatórias em relação ao princípio do reconhecimento mútuo enunciado no artigo 1.o, n.o 2, desta decisão‑quadro, não podem ser interpretadas de forma que neutralizem o objetivo prosseguido pela referida decisão‑quadro, que consiste em facilitar e acelerar as entregas entre as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros tendo em conta a confiança mútua que deve existir entre estes [Acórdão de 24 de setembro de 2020, Generalbundesanwalt beim Bundesgerichtshof (Princípio da especialidade), C‑195/20 PPU, EU:C:2020:749, n.o 35 e jurisprudência referida].

48      Ora, admitir que as condições em que a entrega foi efetuada possam ser objeto de reapreciação no âmbito de um pedido de consentimento apresentado ao abrigo do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 conduziria a atrasar a decisão de consentimento, por motivos alheios aos previstos neste n.o 4, o que seria contrário ao imperativo de celeridade subjacente a esta decisão‑quadro.

49      Além disso, essa reapreciação seria incompatível com o princípio da segurança jurídica, uma vez que poderia pôr em causa o caráter definitivo da decisão judicial que ordenou a execução do mandado de detenção europeu em causa, em violação do princípio da autoridade de caso julgado recordado no n.o 35 do presente acórdão.

50      Por outro lado, uma vez que é facto assente, como resulta dos n.os 13, 14 e 32 a 34 do presente acórdão, que o Despacho de entrega de 2017 se tornou definitivo apesar de ter sido adotado na sequência dos mandados de detenção europeus, caracterizados pela circunstância de terem sido emitidos por autoridades que não podem ser qualificadas de «autoridades judiciárias competentes», na aceção do artigo 6.o da Decisão‑Quadro 2002/584, seria paradoxal pôr em causa, devido a esta circunstância, o consentimento que está na origem do processo principal, que, por sua vez, surge na sequência de um pedido emitido pela autoridade judiciária competente.

51      Por último, a interpretação do artigo 27.o da Decisão‑Quadro 2002/584, conforme acolhida no n.o 45 do presente acórdão, é suscetível de favorecer a realização do objetivo de luta contra a impunidade, igualmente prosseguido por esta decisão‑quadro (v., neste sentido, Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C‑158/21, EU:C:2023:57, n.o 141). Com efeito, admitir que uma autoridade judiciária de execução possa recusar dar o consentimento que lhe é pedido nos termos do artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da referida decisão‑quadro por motivos alheios aos previstos neste n.o 4 violaria tal objetivo, ao impedir as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de emissão de instaurarem um procedimento penal contra uma pessoa, de a condenarem ou de a privarem de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

52      Atendendo às considerações precedentes, há que responder à primeira questão, que o artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da Decisão‑Quadro 2002/584 deve ser interpretado no sentido de que a circunstância de um mandado de detenção europeu com base no qual uma pessoa foi objeto de uma decisão de entrega ter sido emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, não obsta a que, posteriormente, a autoridade judiciária de execução, à qual uma autoridade judiciária de emissão apresentou nesse sentido um pedido na aceção do referido artigo 6.o, n.o 1, dê o seu consentimento para que essa pessoa seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

 Quanto à segunda questão

53      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

O artigo 27.o, n.o 3, alínea g), e n.o 4, da DecisãoQuadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os EstadosMembros,

deve ser interpretado no sentido de que:

a circunstância de um mandado de detenção europeu com base no qual uma pessoa foi objeto de uma decisão de entrega ter sido emitido por uma autoridade que não constituía uma «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.o, n.o 1, desta decisãoquadro, não obsta a que, posteriormente, a autoridade judiciária de execução, à qual uma autoridade judiciária de emissão apresentou nesse sentido um pedido na aceção do referido artigo 6.o, n.o 1, dê o seu consentimento para que essa pessoa seja sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.