Language of document : ECLI:EU:T:2024:34

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada)

24 de janeiro de 2024 (*)

«Auxílios de Estado — Auxílios concedidos por certas disposições da lei alemã alterada relativa à produção combinada de calor e eletricidade — Reforma do regime de apoio à produção combinada — Decisão que declara os auxílios compatíveis com o mercado interno — Conceito de “auxílio de Estado” — Recursos estatais»

No processo T‑409/21,

República Federal da Alemanha, representada por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por A. Bouchagiar, C. Kovács e C.‑M. Carrega, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada),

composto por: A. Kornezov, presidente, G. De Baere (relator), D. Petrlík, K. Kecsmár e S. Kingston, juízes,

secretário: S. Jund, administradora,

vistos os autos,

após a audiência de 4 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com o presente recurso interposto nos termos do artigo 263.o TFUE, a República Federal da Alemanha pede a anulação da Decisão C(2021) 3918 final da Comissão, de 3 de junho de 2021, relativa ao auxílio de Estado SA.56826 (2020/N) — Alemanha — Reforma 2020 do regime de apoio à produção combinada e ao auxílio de Estado SA.53308 (2019/N) — Alemanha — Alteração do regime de apoio às centrais de produção combinada de calor e eletricidade existentes [§ 13.o da Gesetz zur Neuregelung des Kraft‑Wärme‑Kopplungsgesetzes (Lei relativa à Nova Regulamentação da Lei sobre a Produção Combinada de Calor e Eletricidade), de 21 de dezembro de 2015 (BGBl. 2015 I, p. 2498; a seguir «KWKG de 2016»)] (a seguir «decisão impugnada»), que declara que diversas medidas (a seguir «medidas em causa») destinadas ao apoio à produção de eletricidade pelas centrais de produção combinada de calor e eletricidade (combined heat and power; a seguir «CHP») constituem auxílios de Estado.

 Antecedentes do litígio

 Procedimento administrativo

2        Em 28 de janeiro de 2019, as autoridades alemãs notificaram à Comissão Europeia a alteração introduzida no § 13.o da KWKG de 2016 pela Gesetz zur Änderung des Erneuerbare‑Energien‑Gesetzes, des Kraft‑Wärme‑Kopplungsgesetzes, des Energiewirtschaftgesetzes und weiterer energierechtlicher Vorschriften (Lei que Altera a Lei sobre as Energias Renováveis, a Lei sobre a Produção Combinada de Calor e Eletricidade e a Lei relativa à Energia e outras Disposições em matéria de Energia), de 17 de dezembro de 2018 (BGBl. 2018 I, p. 2549).

3        Em 23 de setembro de 2020, as autoridades alemãs notificaram à Comissão outras alterações introduzidas na KWKG de 2016. Estas alterações foram introduzidas nos § § 7 e 8 da Gesetz zur Reduzierung und zur Beendigung der Kohlerverstromung und zur Änderung weiterer Gesetze (Kohleausstiegsgesetz) [Lei destinada a Reduzir e a Cessar a Produção de Eletricidade a partir do Carvão e a Alterar outras Leis (Lei relativa à Eliminação do Carvão)], de 8 de agosto de 2020 (BGBl. 2020 I, p. 1818), e foram novamente alteradas pelos § § 17 e 18 da Gesetz zur Änderung des Erneuerbare‑Energien‑Gesetzes und weiterer energierechtlicher Vorschriften (Lei que Altera a Lei sobre as Energias Renováveis e outras Disposições em matéria de Energia), de 21 de dezembro de 2020 (BGBl. 2020 I, p. 3138).

4        Estas alterações à KWKG de 2016 correspondem à legislação relativa ao apoio à CHP em vigor desde 1 de janeiro de 2021 (a seguir «KWKG de 2020»).

5        Em 8 de abril de 2021, a República Federal da Alemanha também notificou à Comissão a alteração relativa à limitação da sobretaxa a favor dos produtores de hidrogénio, como previsto no § 27.o da KWKG de 2020.

 Medidas em causa

 Objetivo e descrição das medidas em causa

6        O objetivo da KWKG de 2020 é melhorar a eficiência energética e a proteção do clima e do ambiente, aumentando a produção líquida de eletricidade CHP até 2025. Visa, nomeadamente, incentivar a transição para novas centrais de produção combinada de energia ou para centrais a gás modernizadas e promover a eletricidade produzida por estas centrais de produção combinada de elevada eficiência. Visa também assegurar a coerência entre o apoio à CHP e os objetivos da transição energética. Para o efeito, a KWKG de 2020 prevê várias medidas.

–       Medida de apoio geral à produção de eletricidade pelas centrais CHP de elevada eficiência recentemente construídas, modernizadas e reconvertidas

7        A KWKG de 2020 prevê uma medida de apoio geral à produção de eletricidade por centrais CHP de elevada eficiência recentemente construídas, modernizadas e reconvertidas, que possam utilizar diversas tecnologias de produção combinada e ser alimentadas por diferentes tipos de combustível.

8        O apoio geral assume a forma de um prémio que acresce às receitas geradas pela venda da eletricidade produzida ao preço de mercado (§ § 5 e seguintes da KWKG de 2020).

9        Os operadores das centrais CHP com capacidade superior a 100 quilowatts (kW) devem vender a eletricidade no mercado a terceiros ou consumi‑la. Os operadores de centrais CHP com menor capacidade podem optar por vender a eletricidade no mercado, consumi‑la ou pedir ao operador da rede que a compre a um preço acordado (§ 4.o da KWKG de 2020).

10      O apoio é concedido quer através da realização de concursos organizados pela autoridade reguladora nacional, a saber, a Bundesnetzagentur (Agência Federal de Redes, Alemanha) (§ 8.o‑A da KWKG de 2020), quer diretamente nos termos da KWKG de 2020. Neste último caso, os beneficiários têm automaticamente o direito de receber o referido apoio quando preencham os critérios de elegibilidade. A elegibilidade dos beneficiários é verificada pela Bundesamt für Wirtschaft und Ausfuhrkontrolle (Agência Federal de Economia e Controlo das Exportações, Alemanha; a seguir «BAFA»), a pedido destes últimos. Se preencherem todos os critérios, a BAFA deve conceder uma autorização que confirme a referida elegibilidade (§ 10.o da KWKG de 2020).

11      A KWKG de 2020 também prevê o apoio à produção de eletricidade proveniente de sistemas CHP inovadores, quer através de concursos organizados pela Agência Federal de Redes, quer através da concessão de uma bonificação, e altera o regime de bonificação ligado ao abandono do carvão, instituído pela KWKG de 2016. Estas bonificações só são concedidas se os operadores de centrais CHP beneficiarem da medida de apoio geral.

–       Medida de apoio à produção de eletricidade pelas centrais CHP existentes, de elevada eficiência e alimentadas a gás, no setor do aquecimento urbano

12      A KWKG de 2016 previa uma medida de apoio à produção de eletricidade pelas centrais CHP existentes, de elevada eficiência e alimentadas a gás, no setor do aquecimento urbano até 31 de dezembro de 2019. Dado que este apoio pode ter conduzido a uma sobrecompensação nos anos de 2018 e 2019, o § 13.o da KWKG de 2016 foi alterado de modo a ajustar os prémios concedidos a essas centrais para o ano de 2019 e, assim, eliminar a referida sobrecompensação. As modalidades de concessão dos prémios resultantes da KWKG de 2020, descritas nos n.os 8 e 9, supra, aplicam‑se mutatis mutandis.

–       Medida de apoio às instalações de armazenamento de calor e de frio

13      A KWKG de 2020 prevê que seja concedido um apoio financeiro às instalações de armazenamento desde que estas recolham principalmente o calor produzido por uma central CHP ligada à rede elétrica pública. Os beneficiários têm automaticamente o direito de receber o referido apoio quando preencham os critérios de elegibilidade. A elegibilidade dos beneficiários é verificada pela BAFA, a pedido destes. Se preencherem todos os critérios, a BAFA deve conceder uma autorização que confirme a referida elegibilidade (§ § 22.o a 25.o da KWKG de 2020).

–       Medida de apoio às redes de aquecimento e arrefecimento urbanos energeticamente eficientes

14      A KWKG de 2020 altera as condições de promoção das redes de aquecimento concedendo um apoio financeiro às referidas redes que contenham pelo menos 75 % da CHP ou pelo menos 75 % de fontes combinadas de calor. Os beneficiários têm automaticamente o direito de receber o referido apoio quando preencham os critérios de elegibilidade. A elegibilidade dos beneficiários é verificada pela BAFA, a pedido destes. Se preencherem todos os critérios, a BAFA deve conceder uma autorização que confirme a referida elegibilidade (§ § 18.o a 21.o da KWKG de 2020).

–       Medida de limitação da sobretaxa a favor dos produtores de hidrogénio

15      A KWKG de 2020 prevê regras específicas para as empresas pertencentes ao setor do fabrico de gases industriais, no qual a produção de hidrogénio constitui a maior parte do valor acrescentado total. Limita o montante da sobretaxa que operadores de rede podem recuperar dos produtores de hidrogénio (v. n.o 18, infra) se os referidos produtores beneficiarem da sobretaxa reduzida ao abrigo da Lei que Altera a Lei das Energias Renováveis e outras Disposições em matéria de Energia (§ 27.o da KWKG de 2020).

 Mecanismo de financiamento das medidas em causa

16      O operador da rede em causa é legalmente obrigado a pagar aos beneficiários os montantes previstos pela KWKG de 2020. O operador de uma central CHP tem direito a receber o prémio mencionado no n.o 8, supra, eventualmente acompanhado das bonificações mencionadas no n.o 11, supra, do operador de rede ao qual esta central está direta ou indiretamente ligada (§ 6.o, n.o 1, § 7.o‑A, n.os 1 e 3, e § 7.o‑C, n.o 1, da KWKG de 2020).

17      O operador de uma rede de aquecimento e de arrefecimento tem direito a receber o apoio financeiro referido no n.o 14, supra, do operador da rede de transporte cuja zona de controlo inclui a rede à qual está direta ou indiretamente ligada a principal central CHP que alimenta a rede de aquecimento e de arrefecimento (§ 18.o, n.os 1 e 3, e § 21.o da KWKG de 2020). Do mesmo modo, o operador de uma instalação de armazenamento de calor e de frio tem direito a receber o apoio financeiro referido no n.o 13, supra, do operador da rede de transporte cuja zona de controlo inclui a rede à qual está direta ou indiretamente ligada a central CHP que alimenta a nova instalação de armazenamento de calor e de frio (§ 22.o, n.os 1 e 3, e § 25.o da KWKG de 2020).

18      Os operadores de rede têm o direito, sem a tal serem legalmente obrigados, a repercutir os custos associados às medidas em causa como sobretaxa (a seguir «sobretaxa KWKG») no cálculo dos encargos com a rede que cobram aos seus clientes por cada quilowatt‑hora (KWh) de eletricidade fornecida na Alemanha pela rede elétrica (§ 26.o, n.o 1, da KWKG de 2020). A título de derrogação, os operadores das redes de transporte têm o direito de cobrar uma sobretaxa KWKG reduzida aos grandes consumidores de energia, como os produtores de hidrogénio (§ 27.o da KWKG de 2020).

19      O montante da sobretaxa KWKG é calculado anualmente pelos operadores da rede de transporte, segundo a metodologia prevista pela KWKG de 2020. É expressa num preço uniforme por KWh de eletricidade consumido, sem prejuízo da taxa reduzida de que beneficiam certas categorias de utilizadores.

20      Para que cada operador de rede seja compensado pelo encargo financeiro adicional resultante das suas obrigações ao abrigo da KWKG de 2020, esta lei instituiu um mecanismo através do qual esse encargo é repartido equitativamente entre os operadores de rede (distribuição ou transporte) proporcionalmente ao consumo dos consumidores ligados à sua rede e, em seguida, compensado com a sobretaxa KWKG (§ 28.o da KWKG de 2020).

21      A KWKG de 2020 prevê um limite orçamental anual de 1,8 mil milhões de euros para as medidas em causa e, por conseguinte, para a totalidade da sobretaxa KWKG (§ 29.o da KWKG de 2020).

 Decisão impugnada

22      Em 3 de junho de 2021, a Comissão adotou a decisão impugnada.

23      A Comissão qualificou as medidas em causa de auxílios de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, declarando que eram financiadas através de recursos estatais.

24      Em especial, nos n.os 220 e 221 da decisão impugnada, por um lado, a Comissão concluiu que as medidas de apoio, primeiro, à produção de eletricidade por centrais CHP de elevada eficiência recentemente construídas, modernizadas e reconvertidas, segundo, às redes de aquecimento e arrefecimento urbanos eficientes em termos energéticos, terceiro, às instalações de armazenamento de calor e de frio e, quarto, à produção de eletricidade por produção combinada em centrais de produção combinada existentes, de elevada eficiência e alimentadas a gás, no setor do aquecimento urbano (a seguir, conjuntamente, «medidas de apoio à CHP») eram financiadas pelas receitas de uma contribuição obrigatória de jure imposta pelo Estado, geridas e afetadas em conformidade com as disposições da legislação.

25      Por outro lado, a Comissão considerou que a medida relativa à limitação da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio constituía uma renúncia a recursos estatais.

26      No entanto, a Comissão concluiu que as medidas em causa eram compatíveis com o mercado interno nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea c), TFUE, pelo que decidiu não formular objeções.

 Pedidos das partes

27      A República Federal da Alemanha conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada na parte em que declara que as medidas em causa constituem auxílios de Estado;

–        condenar a Comissão nas despesas.

28      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a República Federal da Alemanha nas despesas.

 Questão de direito

29      Em apoio do seu recurso, a República Federal da Alemanha invoca um fundamento único, relativo à interpretação e à aplicação erradas do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, dado que a Comissão declarou que as empresas abrangidas pelas medidas em causa beneficiavam de auxílios concedidos provenientes de recursos estatais.

30      A título preliminar, há que recordar que a qualificação de «auxílio de Estado», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, pressupõe o preenchimento de quatro requisitos, a saber, que exista uma intervenção do Estado ou ser proveniente de recursos estatais, que essa intervenção seja suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros, que a mesma confira uma vantagem seletiva ao seu beneficiário e que falseie ou ameace falsear a concorrência (Acórdãos de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 46, e de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 31).

31      Quanto à existência de uma intervenção do Estado ou através de recursos estatais, que é o único requisito em causa no presente processo, importa recordar que, para uma vantagem poder ser qualificada de «auxílio», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, deve, por um lado, ser concedida direta ou indiretamente através de recursos estatais e, por outro, ser imputável ao Estado (Acórdãos de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 47, e de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 32).

32      A República Federal da Alemanha não contesta que as medidas em causa lhe são imputáveis. Aliás, não se pode deixar de observar que estas medidas foram instituídas por via legislativa e que, por conseguinte, são imputáveis ao Estado‑Membro em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de dezembro de 2013, Association Vent De Colère! e o., C‑262/12, EU:C:2013:851, n.os 17 e 18, e de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 33).

33      Em contrapartida, a República Federal da Alemanha contesta a conclusão da Comissão segundo a qual as medidas em causa eram provenientes de recursos estatais.

34      A este respeito, segundo jurisprudência constante, a proibição enunciada no artigo 107.o, n.o 1, TFUE abrange tanto os auxílios concedidos diretamente pelo Estado ou provenientes de recursos estatais como os concedidos por organismos públicos ou privados por ele instituídos ou designados para os gerir (Acórdãos de 22 de março de 1977, Steinike & Weinlig, 78/76, EU:C:1977:52, n.o 20, e de 21 de outubro de 2020, Eco TLC, C‑556/19, EU:C:2020:844, n.o 25).

35      Com efeito, o direito da União Europeia não pode permitir que se contornem as disposições em matéria de auxílios de Estado através da simples criação de instituições autónomas incumbidas de distribuir auxílios (Acórdãos de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 51, e de 21 de outubro de 2020, Eco TLC, C‑556/19, EU:C:2020:844, n.o 27).

36      O Tribunal de Justiça declarou recentemente, em substância, que podem ser qualificados de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, por um lado, os fundos alimentados por um imposto ou outras sobretaxas obrigatórias nos termos da legislação nacional, geridos e repartidos de acordo com essa legislação e, por outro, as quantias que permaneçam constantemente sob controlo público e, portanto, à disposição das autoridades nacionais competentes. Estes dois critérios constituem critérios alternativos do conceito de «recursos estatais» na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.os 38, 39 e 42).

37      O fundamento único da República Federal da Alemanha divide‑se em três partes. Com a primeira parte do fundamento único, a República Federal da Alemanha alega que a natureza fiscal de uma sobretaxa não confere, por si só, um caráter estatal aos recursos recebidos na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, uma vez que este último pressupõe sempre que os recursos estão constantemente sob controlo público e à disposição das autoridades nacionais competentes. No entanto, na audiência, a República Federal da Alemanha declarou renunciar aos argumentos formulados no âmbito desta parte, à luz do Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES (C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1), em especial, da afirmação do caráter alternativo dos dois critérios do conceito de «recursos estatais» (v. n.o 36, supra), o que ficou consignado na ata de audiência. Daqui resulta que não há que conhecer da primeira parte do fundamento único.

38      Com a segunda parte do fundamento único, a República Federal da Alemanha alega, em substância, que nem a sobretaxa KWKG nem os montantes pagos pelos operadores de rede aos operadores das centrais CHP, das instalações de armazenamento e das redes de aquecimento e arrefecimento urbanos (a seguir «operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP») constituem um imposto que implique a afetação de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Com a terceira parte do fundamento único, a República Federal da Alemanha alega que a Comissão considerou erradamente que os recursos recebidos pelos operadores de rede estão sob controlo público constante e à disposição do Estado.

39      Com a segunda e terceira partes do fundamento único, a República Federal da Alemanha alega, assim, em substância, que nenhum dos dois critérios alternativos do conceito de «recursos estatais», mencionados no n.o 36, supra, está preenchido no caso em apreço.

40      Dado que, no âmbito da sua análise do requisito relativo aos recursos estatais, a Comissão distinguiu, por um lado, as medidas de apoio à CHP e, por outro, a medida relativa à redução da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio (v. n.os 24 e 25, supra), o Tribunal Geral considera oportuno examinar conjuntamente a segunda e terceira partes do fundamento único, em primeiro lugar, no que respeita às medidas de apoio à CHP e, em seguida, no que respeita à medida relativa à limitação da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio.

 Quanto às medidas de apoio à CHP

41      Na decisão impugnada, para considerar que as medidas de apoio à CHP eram provenientes de recursos estatais, a Comissão constatou, antes de mais, que, na jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160), esclarecida pelo Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão (C‑405/16 P, EU:C:2019:268), tinha sido estabelecida uma distinção entre as medidas de auxílios de Estado e as medidas de simples regulamentação dos preços que não implicavam a intervenção de recursos estatais.

42      A Comissão salientou que, no caso em apreço, os operadores das centrais CHP tinham, por lei, de vender a sua eletricidade diretamente no mercado, pelo que o preço era fixado livremente pelas forças do mercado e não através de uma regulamentação dos preços. Quanto às instalações de armazenamento de calor e de frio e às redes de aquecimento e arrefecimento urbanos, não se realizava nenhuma transação a um preço determinado para produtos e serviços, pelo que também não se tratava de uma regulamentação dos preços.

43      O pagamento de receitas adicionais aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP, sem contrapartida, não correspondia à tarefa habitual de um operador de rede de eletricidade. Os critérios de elegibilidade estavam previstos na KWKG de 2020 e eram verificados pela BAFA. O montante do apoio financeiro pago aos beneficiários era fixado na íntegra pelo Estado e, se o orçamento total de 1,8 mil milhões de euros corresse o risco de ser ultrapassado, era a BAFA que determinava as taxas reduzidas do apoio.

44      A Comissão recordou que os operadores de rede eram obrigados a suportar os custos das medidas de apoio à CHP, pelo que o encargo financeiro imposto por lei sobre eles constituía uma contribuição obrigatória de jure imposta pelo Estado. O facto de os operadores de rede terem o direito de repercutir os custos nos seus próprios consumidores, mas não serem obrigados a fazê‑lo, significava apenas que esses consumidores não estavam sujeitos a uma contribuição legal obrigatória. Pela sua parte, os operadores de rede continuavam sujeitos a esta contribuição. O financiamento dos auxílios através desse imposto a um nível da cadeia de abastecimento é suficiente para demonstrar a existência de recursos estatais, sem que seja necessário identificar outra contribuição obrigatória a outro nível da cadeia.

45      Por conseguinte, a Comissão concluiu que as medidas de apoio à CHP eram financiadas pelas receitas de uma contribuição obrigatória de jure imposta pelo Estado, geridas e afetadas em conformidade com as disposições legislativas.

46      No âmbito da segunda e terceira partes do fundamento único, primeiro, a República Federal da Alemanha alega que a sobretaxa KWKG não constitui um imposto que implique a afetação de recursos estatais, uma vez que a KWKG de 2020 não obriga os operadores de rede a repercutir essa sobretaxa nos clientes da rede. Os operadores de redes financiam os pagamentos aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP através dos seus recursos financeiros próprios.

47      Estes últimos pagamentos também não constituem um imposto. A Comissão não tem em conta, a este respeito, a jurisprudência relativa aos impostos parafiscais, nomeadamente os Acórdãos de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord e o. (C‑206/06, EU:C:2008:413), de 15 de maio de 2019, Achema e o. (C‑706/17, EU:C:2019:407), e de 20 de setembro de 2019, FVE Holýšov I e o./Comissão (T‑217/17, não publicado, EU:T:2019:633). Esta jurisprudência inscreve‑se também, como no presente caso, num contexto que inclui dois níveis ou, por outras palavras, uma relação triangular entre o operador da central, o operador de rede e o cliente da rede. O juiz da União não qualificou de imposto o fluxo financeiro que liga os operadores de rede e os beneficiários.

48      Por outro lado, a Comissão baseou‑se incorretamente no facto de a KWKG de 2020 não constituir uma medida de regulamentação dos preços na aceção do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160). A questão de saber se o preço da eletricidade é regulamentado por lei pouco importa para efeitos da determinação da existência de um imposto.

49      Segundo, a República Federal da Alemanha alega que os recursos só podem ser considerados recursos estatais quando estão constantemente sob controlo público e, por conseguinte, à disposição das autoridades nacionais, o que a Comissão não examinou.

50      Além disso, a influência do Estado sobre o quadro jurídico não é, por si só, suficiente para concluir que este detém um poder de disposição sobre os fundos. No que respeita à KWKG de 2020, nem o Estado nem as autoridades nacionais competentes exercem influência sobre a utilização dos recursos.

51      A Comissão admite que a sobretaxa KWKG, considerada isoladamente, não é um imposto uma vez que os operadores de rede não são obrigados a faturá‑la aos seus clientes. Em contrapartida, o prémio que os operadores de rede pagam aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP a título da KWKG de 2020 constitui um imposto que implica a afetação de recursos estatais.

52      De acordo com a Comissão, este prémio constitui um encargo unilateral obrigatório imposto pelo Estado a uma pessoa obrigada a pagá‑lo e, em consequência, um imposto que implica a afetação de recursos estatais. Não é necessário constatar uma repercussão do encargo financeiro no consumidor quando está demonstrada a existência de uma contribuição obrigatória a montante da cadeia de abastecimento. Assim, neste caso, o devedor final é o operador da rede, que se encontra na mesma situação jurídica que um consumidor final. De qualquer forma, o Estado apropriar‑se‑ia de um montante proveniente de uma fonte privada.

53      A derrogação à proibição prevista no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, como a que está em causa no Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160), só pode ser aplicada aos casos de regulamentação dos preços e não pode, por conseguinte, ser aplicada aos pagamentos dos suplementos de preço pelos operadores de rede. De acordo com a Comissão, o facto de equiparar uma obrigação legal de pagamento a uma simples regulamentação dos preços de mercado equivaleria a alargar indevidamente essa derrogação, o que tornaria sem efeito o artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

54      A Comissão alega ainda que, em conformidade com a jurisprudência, é suficiente que um imposto, como o do caso em apreço, seja cobrado para constatar a existência de recursos estatais e que não é necessário constatar um controlo estatal mais aprofundado. Sustenta, no entanto, ter examinado, na decisão impugnada, a questão de saber se os recursos que os operadores de rede recebiam através da sobretaxa KWKG estavam sujeitos ao controlo do Estado. A título exaustivo, a Comissão alega que o pagamento dos prémios obedece às disposições legais da KWKG de 2020 que os operadores de rede não podem derrogar, o que permite deduzir o seu caráter estatal.

55      Importa examinar, antes de mais, os argumentos da República Federal da Alemanha relativos ao facto de que nem a sobretaxa KWKG nem os montantes pagos aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP constituem um imposto ou outra sobretaxa obrigatória na aceção do primeiro critério referido no n.o 36, supra, em seguida, os argumentos relativos à inexistência de um controlo público constante dos recursos na aceção do segundo critério referido no n.o 36, supra, e, por último, os argumentos relativos à aplicação da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160).

 Quanto à existência de um imposto ou de outra sobretaxa obrigatória (primeiro critério referido no n.o 36, supra)

56      Conforme a jurisprudência, os montantes resultantes do suplemento de preço imposto pelo Estado aos compradores de eletricidade assemelham‑se a um imposto que incide sobre a eletricidade e têm origem em «recursos estatais», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (v. Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 34 e jurisprudência referida).

57      Assim, os fundos provenientes de contribuições obrigatórias impostas pela legislação do Estado‑Membro em causa, geridos e repartidos de acordo com essa legislação, devem considerar‑se «recursos estatais», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. A este respeito, é indiferente que o mecanismo de financiamento não se enquadre, em sentido estrito, na categoria das sobretaxas de natureza fiscal no direito nacional (v., neste sentido, Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 35 e jurisprudência referida).

58      Em contrapartida, a circunstância de o encargo financeiro da sobretaxa ser suportado de facto por uma categoria de pessoas definida não é suficiente para demonstrar que os fundos provenientes desta sobretaxa têm caráter de «recursos estatais», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. É ainda necessário que a referida sobretaxa seja obrigatória por força do direito nacional. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que não basta que os operadores de rede repercutam no preço de venda da eletricidade aos seus clientes finais os custos adicionais provocados pela obrigação que lhes incumbe de comprar a eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis às tarifas fixadas por lei, uma vez que essa compensação resulta apenas de uma prática e não de uma obrigação legal (v. Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida).

59      Antes de mais, há que observar que as partes estão de acordo quanto ao facto de o sistema instituído pela KWKG de 2020 se caracterizar pela existência de «dois níveis» na cadeia de abastecimento de eletricidade. Assim, o «primeiro nível» corresponde à relação entre, por um lado, os exploradores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP e, por outro, os operadores de rede. O «segundo nível» corresponde à relação entre os operadores de redes e os seus clientes. Como recordou a República Federal da Alemanha na audiência, os operadores de rede são entidades privadas.

60      No âmbito do «primeiro nível», o operador de rede em causa tem uma obrigação legal de pagar um apoio financeiro aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP elegíveis (v. n.os 16 e 17, supra). No âmbito do «segundo nível», os operadores de rede podem, sem a tal serem legalmente obrigados, repercutir o encargo financeiro resultante da sua obrigação de pagamento do apoio financeiro por força da KWKG de 2020 sobre os seus clientes através da sobretaxa KWK (v. n.os 18 a 20, supra).

61      Na decisão impugnada, a Comissão não considerou que a sobretaxa KWKG, no «segundo nível» da cadeia de abastecimento, constituía uma sobretaxa legal obrigatória suscetível de caracterizar recursos estatais. Aliás, há que observar que os operadores de rede não são obrigados por lei a cobrar a sobretaxa KWKG aos seus clientes, pelo que esta sobretaxa não pode ser qualificada de sobretaxa obrigatória na aceção da jurisprudência referida, supra, nos n.os 57 e 58.

62      Em contrapartida, a Comissão considerou que as contribuições impostas por lei aos operadores de rede e pagas obrigatoriamente aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP, no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento, implicavam a afetação de recursos estatais sem que fosse necessário identificar outra contribuição obrigatória noutro «nível» da cadeia de abastecimento.

63      Ora, há que observar, à semelhança da República Federal da Alemanha, que a Comissão não teve em conta, a este respeito, a jurisprudência relativa ao critério da existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias.

64      Com efeito, como resulta da jurisprudência referida no n.o 57, supra, para que os fundos sejam considerados «recursos estatais», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, devem ser «provenientes» de impostos ou de outras sobretaxas obrigatórias fixadas pela legislação do Estado e devem ser «geridos e repartidos de acordo com a legislação».

65      A existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias por força da lei diz, por conseguinte, respeito à proveniência dos fundos utilizados para conceder uma vantagem, no sentido de que permite concluir que foram utilizados fundos estatais para financiar essa vantagem. Esse imposto ou essas outras sobretaxas obrigatórias constituem o modo de financiamento das medidas.

66      Os fundos são em seguida geridos e repartidos, ou seja, afetados, em conformidade com a lei, o que permite constatar que os montantes arrecadados através de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias são utilizados exclusivamente para efeitos da concessão de uma vantagem aos beneficiários em conformidade com a legislação.

67      Por conseguinte, a Comissão não podia validamente considerar que os pagamentos obrigatórios pelos operadores de rede aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP, que tinham lugar no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento, constituíam um imposto ou outra sobretaxa obrigatória suscetível de caracterizar recursos estatais. Com efeito, estes pagamentos dizem unicamente respeito à afetação dos fundos em conformidade com a lei, uma vez que os operadores de rede estão legalmente obrigados a conceder um apoio financeiro aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP. No entanto, não fornecem nenhuma indicação sobre a origem dos fundos utilizados pelos operadores de rede para efeitos da concessão do apoio financeiro aos beneficiários. Como salienta, com razão, a República Federal da Alemanha, considerar que os pagamentos acima referidos constituem um imposto ou outra sobretaxa obrigatória na aceção da jurisprudência pertinente equivale a considerar que o financiamento das medidas de apoio à CHP se confunde com a concessão dos fundos aos beneficiários.

68      Estas constatações são confirmadas pela jurisprudência relativa às medidas de auxílios de Estado destinadas a apoiar a produção de eletricidade, nomeadamente a proveniente de fontes de energia renováveis, financiadas através de suplementos de preço impostos pelo Estado aos compradores de eletricidade. Em especial, os acórdãos referidos pelas partes nos seus articulados e citados nas notas de rodapé n.os 65 e 72 da decisão impugnada, a saber, os Acórdãos de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord e o. (C‑206/06, EU:C:2008:413), de 15 de maio de 2019, Achema e o. (C‑706/17, EU:C:2019:407), e de 20 de setembro de 2019, FVE Holýšov I e o./Comissão (T‑217/17, não publicado, EU:T:2019:633), tendo este último sido confirmado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 16 de setembro de 2021, FVE Holýšov I e o./Comissão (C‑850/19 P, não publicado, EU:C:2021:740), incidiam sobre obrigações, previstas na lei, que incumbiam aos operadores de redes de distribuição e de transporte de eletricidade, de ceder um suplemento de preço a uma sociedade filial das empresas produtoras de eletricidade ou de comprar eletricidade a um determinado preço a estas empresas, com vista a apoiar a produção dessa eletricidade. Para compensar os custos adicionais resultantes dessas obrigações, suportados pelos operadores de redes de distribuição e de transporte de eletricidade, a lei previa que estes operadores impusessem uma sobretaxa obrigatória sobre a eletricidade aos consumidores de eletricidade.

69      Nos acórdãos mencionados no n.o 68, supra, as sobretaxas obrigatórias arrecadadas e geridas pelos operadores de redes de distribuição e de transporte de eletricidade no «segundo nível» da cadeia de abastecimento serviam para compensar os custos adicionais resultantes das suas obrigações legais no «primeiro nível» da referida cadeia. A repercussão dos custos adicionais através de uma sobretaxa obrigatória equivalente a um imposto sobre a eletricidade era distinta das obrigações legais que incumbiam aos operadores de redes de distribuição e de transporte de eletricidade destinadas a apoiar as empresas produtoras de eletricidade. Os fundos destinados a executar estas obrigações tinham origem nas sobretaxas obrigatórias sobre a eletricidade impostas aos consumidores de eletricidade, o que demonstrava o financiamento estatal das medidas.

70      Por conseguinte, foi sem razão que a Comissão, referindo‑se à jurisprudência mencionada no n.o 68, supra, considerou que a obrigação que incumbia aos operadores de rede de pagar as quantias aos beneficiários, no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento, era suficiente para declarar a existência de um imposto ou de outra sobretaxa obrigatória suscetível de caracterizar a afetação de recursos estatais, uma vez que esta circunstância apenas permite constatar a afetação dos fundos em conformidade com a lei, mas não fornece nenhuma indicação quanto à proveniência dos fundos utilizados pelos operadores de rede para cumprirem as suas obrigações. Contrariamente às situações em causa na jurisprudência referida no n.o 68, supra, neste caso, a Comissão não identificou uma sobretaxa obrigatória no «segundo nível» da cadeia de abastecimento.

71      Além disso, a Comissão não explicou, de modo nenhum, na decisão impugnada, em que momento e por quem era efetuada a gestão dos fundos. Resulta da decisão impugnada que as receitas provenientes das contribuições obrigatórias chegam diretamente aos beneficiários, sem que os operadores da rede procedam a qualquer cobrança ou gestão de fundos.

72      A este respeito, por um lado, dado que apenas prevê uma compensação dos encargos entre operadores de rede, o mecanismo de repartição equitativa do encargo financeiro entre esses operadores de rede, descrito no n.o 20, supra, não pode ser considerado uma gestão dos fundos utilizados para financiar as medidas de apoio à CHP. Por outro lado, no n.o 218 da decisão impugnada, a Comissão declarou que os critérios de elegibilidade para o apoio financeiro estavam previstos na KWKG de 2020 e eram verificados pela BAFA, que o montante desse apoio era inteiramente fixado pelo Estado e que, se o orçamento total de 1,8 mil milhões de euros corresse o risco de ser ultrapassado, era a BAFA que determinava as taxas reduzidas do apoio (v. n.o 43, supra). No entanto, estas circunstâncias apenas permitem demonstrar que os operadores de rede não podem derrogar as regras estabelecidas por lei, cuja aplicação é verificada pela BAFA, pelo que devem afetar os fundos em conformidade com esta. Contudo, não permitem demonstrar que os fundos utilizados pelos operadores de rede para pagar aos beneficiários provinham de um imposto, ou de outra sobretaxa obrigatória, por eles cobrado e gerido.

73      Por outro lado, foi também erradamente que a Comissão afirmou, na decisão impugnada, que os operadores de rede estavam sujeitos a uma contribuição legal obrigatória, uma vez que a lei os obrigava a suportar o encargo financeiro das medidas de apoio à CHP.

74      A este respeito, é certo que resulta da jurisprudência que o encargo financeiro de uma sobretaxa obrigatória pode ser suportado por uma «categoria de pessoas definida» (Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 36), pelo que não se exige que os consumidores finais sejam os devedores desta sobretaxa, como salientou acertadamente a Comissão nos seus articulados.

75      Contudo, na decisão impugnada, a Comissão limitou‑se a constatar que os operadores de rede suportavam os custos das medidas de apoio à CHP. Ora, como a Comissão indicou, os referidos operadores podem repercutir esses custos nos seus clientes através da sobretaxa KWKG. Quando esta repercussão é aplicada, deve considerar‑se que são os clientes dos operadores de rede que suportam o encargo financeiro das medidas de apoio à CHP.

76      Por conseguinte, a Comissão não pode alegar que o Estado se apropriou dos recursos dos operadores de rede, uma vez que, contrariamente ao que afirma, estes operadores não são necessariamente os devedores finais do encargo financeiro induzido pelas medidas de apoio à CHP.

77      Assim, como alega a República Federal da Alemanha, o facto de ter identificado uma obrigação de pagamento unilateral que incumbe aos operadores de rede no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento não é suficiente para declarar que as medidas de apoio à CHP são financiadas por um imposto ou por outras sobretaxas obrigatórias na aceção da jurisprudência referida nos n.os 57 e 68, supra.

78      Dado que a sobretaxa KWKG também não pode ser qualificada de imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias na aceção dessa jurisprudência (v. n.o 61, supra), é necessário observar que a Comissão não demonstrou que estava preenchido o primeiro critério referido no n.o 36, supra, que permite verificar uma transferência de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

79      Os outros argumentos da Comissão não podem infirmar estas conclusões.

80      Primeiro, a Comissão alega que resulta do n.o 218 da decisão impugnada que o pagamento do apoio financeiro pelos operadores de rede aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP, conforme previsto na lei, não faz parte das missões habituais dos referidos operadores. Estes não dispõem de nenhum poder contratual quanto ao tipo de beneficiários, ao montante e à duração dos pagamentos. Estes elementos demonstram que a KWKG de 2020 não se baseia numa iniciativa económica privada, mas numa iniciativa estatal.

81      É certo que a KWKG de 2020 se baseia numa iniciativa do Estado e prossegue uma política pública de apoio à produção de eletricidade CHP. É também certo que os operadores de rede são obrigados a pagar as quantias previstas na lei aos operadores das centrais, segundo as modalidades nela previstas.

82      No entanto, estas considerações confundem‑se com a análise exposta no n.o 32, supra, segundo a qual as medidas de apoio à CHP foram instituídas por via legislativa, pelo que devem ser consideradas imputáveis ao Estado.

83      Ora, como resulta da jurisprudência referida no n.o 31, supra, a imputabilidade das medidas ao Estado, embora necessária para efeitos da qualificação dessas medidas de «auxílios», na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, não é, por si só, suficiente para se poder atribuir essa qualificação. Com efeito, há que demonstrar que as vantagens em causa são concedidas direta ou indiretamente através de recursos estatais (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão, C‑405/16 P, EU:C:2019:268, n.o 63).

84      Por conseguinte, o facto de a lei prever detalhadamente as modalidades de afetação do apoio financeiro não é suscetível de caracterizar uma transferência de recursos estatais, mas unicamente uma responsabilidade do Estado na implementação do mecanismo de apoio à eletricidade CHP e, consequentemente, a imputabilidade ao Estado das medidas de apoio à CHP.

85      O mesmo se diga do argumento apresentado pela Comissão na audiência, segundo o qual é o legislador alemão que gere e reparte as receitas das contribuições obrigatórias dos operadores de rede. Tal consideração equivale a constatar que a legislação prevê, a montante, as modalidades de afetação do apoio financeiro e, consequentemente, a demonstrar unicamente a imputabilidade das medidas ao Estado e não o financiamento dessas medidas através de recursos estatais.

86      Segundo, a Comissão alega, em resposta à medida de organização do processo de 30 de março de 2023, que o Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES (C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1), esclareceu a jurisprudência anterior no que respeita ao conceito de «imposto» à luz do direito em matéria de auxílios de Estado. A mera natureza fiscal de uma contribuição é suficiente para considerar que constitui um recurso estatal.

87      É certo que, no Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES (C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1), o Tribunal de Justiça especificou que o critério relativo à existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias podia permitir apurar a afetação de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, sem que fosse necessário demonstrar, além disso, que o critério relativo ao controlo público constante dos fundos também estava preenchido (v. n.o 36, supra).

88      A constatação do caráter alternativo dos critérios referidos no n.o 36, supra, não tem, no entanto, incidência na sua definição respetiva, tal como resulta da jurisprudência. Assim, para que se considere preenchido o critério relativo à existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias, continua a ser necessário demonstrar que os fundos provêm de contribuições legais obrigatórias, impostas pela legislação do Estado a uma categoria definida de pessoas, e que estes fundos são geridos e repartidos em conformidade com esta legislação (v. n.o 64, supra).

89      A este respeito, há que observar que, no n.o 43 do Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES (C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1), o Tribunal de Justiça declarou que a legislação nacional que obrigava uma empresa de distribuição de eletricidade autorizada a comprar a eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis a um preço superior ao do mercado e que previa que os custos adicionais daí resultantes eram financiados por uma sobretaxa obrigatória suportada pelos consumidores finais constituía uma intervenção proveniente de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE. Assim, à semelhança dos acórdãos mencionados no n.o 68, supra, há que salientar que a vantagem obrigatoriamente concedida aos beneficiários no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento era financiada por uma sobretaxa também obrigatória no «segundo nível» da cadeia de abastecimento. Ora, a Comissão não demonstrou que era esse o caso no presente processo.

90      Resulta de tudo o que precede que foi erradamente que a Comissão se baseou no primeiro critério exposto no n.o 36, supra, para considerar que, no caso em apreço, as medidas de apoio à CHP eram provenientes de recursos estatais.

 Quanto ao controlo público constante dos recursos (segundo critério referido no n.o 36, supra)

91      Antes de mais, como resulta dos n.os 41 a 45, supra, não se pode deixar de observar que, na decisão impugnada, a Comissão se baseou no primeiro critério identificado no n.o 36, supra, relativo à existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias, para concluir que as medidas de apoio à CHP eram financiadas através de recursos estatais.

92      Em especial, a Comissão concluiu expressamente, no n.o 220 da decisão impugnada, que as medidas de apoio à CHP eram financiadas através de uma contribuição obrigatória, fazendo referência, a este respeito, na nota de rodapé n.o 65, à jurisprudência segundo a qual os fundos alimentados por contribuições obrigatórias impostas pela legislação do Estado, geridos e repartidos de acordo com esta legislação, podem ser considerados recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (Acórdãos de 2 de julho de 1974, Itália/Comissão, 173/73, EU:C:1974:71, n.o 35; de 19 de dezembro de 2013, Association Vent De Colère! e o., C‑262/12, EU:C:2013:851, n.o 25; e de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 54). Contrariamente ao que sugere a Comissão, não resulta desse número que esta tenha examinado a questão de saber se os recursos que os operadores de rede recebiam através da sobretaxa KWKG estavam sujeitos ao controlo do Estado.

93      Por conseguinte, há que observar que a Comissão não examinou clara e expressamente o segundo critério identificado no n.o 36, supra, relativo ao controlo público constante dos recursos.

94      Embora a falta de um exame claro e expresso deste segundo critério não seja, em si mesma, constitutiva de um erro de direito, contrariamente ao que alega a República Federal da Alemanha, dado que os dois critérios identificados no n.o 36, supra, são alternativos, não se pode deixar de observar que, devido a esta falta, a Comissão também não demonstrou que as medidas de apoio à CHP eram financiadas através de recursos estatais com base no segundo critério exposto no n.o 36, supra.

95      De qualquer forma, se o argumento da Comissão, de que o caráter estatal dos fundos resulta da inexistência de discricionariedade dos operadores de rede no âmbito do pagamento do apoio financeiro previsto pela KWKG de 2020, devesse ser entendido no sentido de que a Comissão demonstrou que o segundo critério está preenchido, o mesmo não poderia ser acolhido.

96      A este respeito, há que recordar que o artigo 107.o, n.o 1, TFUE abrange todos os meios pecuniários que as autoridades públicas podem efetivamente utilizar para apoiar empresas, sem que seja pertinente que esses meios pertençam ou não de modo permanente ao património do Estado. Mesmo que os montantes correspondentes à medida de auxílio em causa não se encontrem de modo permanente na posse do Tesouro Público, o facto de estarem constantemente sob controlo público e, portanto, à disposição das autoridades nacionais competentes, é suficiente para serem qualificados de «recursos estatais» (Acórdãos de 16 de maio de 2002, França/Comissão, C‑482/99, EU:C:2002:294, n.o 37, e de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 53).

97      No caso dos autos, é certo, como resulta do n.o 218 da decisão impugnada, que os operadores de rede têm obrigatoriamente de pagar os fundos aos beneficiários sem poderem derrogar os critérios de elegibilidade destes nem os montantes do apoio financeiro previsto por lei (v. n.o 43, supra).

98      Contudo, basta salientar que o facto de os fundos utilizados serem exclusivamente afetados ao cumprimento das funções que a lei lhes atribui (princípio legal da afetação exclusiva dos fundos) tende antes a demonstrar, na falta de qualquer outro elemento em sentido contrário, precisamente que o Estado não pode dispor dos referidos fundos, ou seja, que o Estado não pode decidir uma afetação diferente da prevista por lei (v., neste sentido, Acórdãos de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão, C‑405/16 P, EU:C:2019:268, n.o 76, e de 21 de outubro de 2020, Eco TLC, C‑556/19, EU:C:2020:844, n.o 41).

99      Além disso, embora o facto de o pagamento do apoio financeiro ser regido pelas disposições legais da KWKG de 2020 ateste a origem legal das medidas de apoio à CHP e, portanto, uma influência certa do Estado sobre os mecanismos instituídos por esta legislação, estes elementos não são, todavia, suficientes para se concluir que o Estado tinha, no entanto, o poder de dispor dos fundos utilizados pelos operadores de rede (v., neste sentido, Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão, C‑405/16 P, EU:C:2019:268, n.o 75). Tal como acontece com o critério relativo à existência de um imposto ou de outras sobretaxas obrigatórias, o facto de a lei prever detalhadamente as modalidades de afetação do apoio financeiro não é suscetível de caracterizar uma transferência de recursos estatais, mas unicamente a imputabilidade ao Estado das medidas de apoio à CHP (v. n.o 84, supra).

100    Resulta do exposto que a Comissão não demonstrou que está preenchido o segundo critério referido no n.o 36, supra, que permite constatar uma transferência de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

 Quanto à aplicação da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C379/98)

101    Como resulta dos n.os 41 e 42, supra, a Comissão considerou, em substância, que as medidas de apoio à CHP não consistiam numa medida de «simples regulamentação dos preços» que não implicava uma transferência de recursos estatais na aceção da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160). A este respeito, também se referiu ao Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão (C‑405/16 P, EU:C:2019:268), bem como aos Acórdãos de 24 de janeiro de 1978, van Tiggele (82/77, EU:C:1978:10), de 13 de setembro de 2017, ENEA (C‑329/15, EU:C:2017:671), e de 14 de setembro de 2016, Trajektna luka Split/Comissão (T‑57/15, não publicado, EU:T:2016:470).

102    Ora, como salienta a República Federal da Alemanha, esta apreciação não está correta.

103    A este respeito, importa salientar que os acórdãos mencionados no n.o 101, supra, têm por objeto medidas, previstas por lei, que fixam os preços de produtos ou de serviços (Acórdãos de 24 de janeiro de 1978, van Tiggele, 82/77, EU:C:1978:10, e de 14 de setembro de 2016, Trajektna luka Split/Comissão, T‑57/15, não publicado, EU:T:2016:470) ou que impõem, nomeadamente, obrigações de compra de eletricidade a um determinado preço ou em determinada quantidade (Acórdãos de 13 de março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, EU:C:2001:160; de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão, C‑405/16 P, EU:C:2019:268; e de 13 de setembro de 2017, ENEA, C‑329/15, EU:C:2017:671). Segundo o juiz da União, estas medidas não implicam uma transferência de recursos estatais.

104    Ora, além de, nos acórdãos mencionados no n.o 103, supra, o juiz da União não ter de modo nenhum qualificado essas medidas de «simples regulamentação dos preços», importa salientar que não excluiu a afetação de recursos estatais devido à maneira como a vantagem era concedida aos beneficiários, a saber, através da fixação do preço de produtos ou da imposição de uma obrigação de compra de produtos a um determinado preço ou numa certa quantidade, contrariamente ao que sugere a Comissão.

105    Com efeito, no n.o 59 do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160), foi declarado que a obrigação, imposta a empresas privadas de fornecimento de eletricidade, de comprar a preços mínimos fixados a eletricidade produzida a partir de fontes de energia renováveis não podia ser considerada uma intervenção através de recursos estatais, uma vez que não comportava nenhuma transferência, direta ou indireta, de recursos estatais para as empresas produtoras deste tipo de eletricidade (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord e o., C‑206/06, EU:C:2008:413, n.o 74; de 19 de dezembro de 2013, Association Vent De Colère! e o., C‑262/12, EU:C:2013:851, n.o 34; e de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 69).

106    O Tribunal de Justiça especificou que, nestas situações, as empresas privadas não estavam mandatadas pelo Estado‑Membro em causa para gerir um recurso estatal, mas estavam vinculadas por uma obrigação de compra através dos seus recursos financeiros próprios (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord e o., C‑206/06, EU:C:2008:413, n.o 74; de 19 de dezembro de 2013, Association Vent De Colère! e o., C‑262/12, EU:C:2013:851, n.o 35; e de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.o 70).

107    De acordo com a jurisprudência, o facto de essas entidades estarem mandatadas pelo Estado para gerir recursos estatais e não simplesmente vinculadas por uma obrigação de compra através dos seus recursos financeiros próprios constitui o elemento «decisivo» para considerar que os fundos alimentados por contribuições obrigatórias impostas pela legislação de um Estado, geridos e repartidos de acordo com esta legislação, podem ser considerados recursos estatais, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, ainda que sejam geridos por entidades distintas da autoridade pública (v., neste sentido, Acórdãos de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão, C‑405/16 P, EU:C:2019:268, n.os 58 e 59; de 15 de maio de 2019, Achema e o., C‑706/17, EU:C:2019:407, n.os 54 e 55; e de 27 de janeiro de 2022, Fondul Proprietatea, C‑179/20, EU:C:2022:58, n.o 94).

108    Assim, o elemento decisivo não é o facto de as empresas privadas estarem vinculadas por uma simples obrigação de compra de eletricidade, mas o facto de utilizarem os seus recursos próprios para executar essa obrigação e não estarem mandatadas pelo Estado para gerir um recurso estatal.

109    Esta constatação é confirmada pelos outros acórdãos a que a Comissão fez referência na decisão impugnada, mencionados no n.o 101, supra. Com efeito, resulta desses acórdãos que, para considerar que o requisito de recursos estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE não estava preenchido, o juiz da União se baseou na inexistência de transferência direta ou indireta de recursos estatais, tendo em conta que a vantagem era concedida por uma entidade privada a outra sem intervenção do Estado ou de uma entidade mandatada pelo Estado para gerir um recurso estatal. A maneira como a vantagem era concedida aos beneficiários não foi considerada decisiva para a análise do requisito de financiamento das medidas através de recursos estatais.

110    Em especial, contrariamente ao que alega a Comissão, no n.o 90 do Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão (C‑405/16 P, EU:C:2019:268), o Tribunal de Justiça salientou que a Comissão não tinha demonstrado que as medidas eram financiadas por uma sobretaxa obrigatória nem que existia um controlo público constante dos fundos, de modo que não tinha demonstrado que estas medidas implicavam recursos estatais. No entanto, o Tribunal de Justiça não declarou que o «primeiro nível» da cadeia de abastecimento se caracterizava por uma «regulamentação de preços».

111    Além disso, contrariamente ao que a Comissão sugere, nomeadamente em resposta à medida de organização do processo, a obrigação legal dos operadores de rede no «primeiro nível» da cadeia de abastecimento no processo que deu origem ao Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão (C‑405/16 P, EU:C:2019:268), não é totalmente diferente da que incumbe aos operadores de rede no presente caso. A este respeito, resulta, em substância, do n.o 3 desse acórdão que a vantagem concedida aos produtores de eletricidade proveniente de fontes de energia renováveis não era concedida unicamente através de uma obrigação legal de compra de eletricidade, mas também através do pagamento de uma remuneração às tarifas fixadas por lei ou de um prémio de mercado independentemente da ligação da instalação produtora e de uma comercialização direta da eletricidade. Este último pagamento apresenta uma semelhança com o pagamento do apoio financeiro aos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP. Com efeito, em ambos os casos, os operadores de rede estavam legalmente obrigados a pagar o apoio financeiro aos beneficiários independentemente do preço de mercado. Ora, há que salientar que, no n.o 90 do Acórdão de 28 de março de 2019, Alemanha/Comissão (C‑405/16 P, EU:C:2019:268), o Tribunal de Justiça concluiu que a Comissão não tinha demonstrado que as vantagens tinham sido concedidas aos beneficiários através de recursos estatais.

112    Por conseguinte, para excluir a aplicação da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160), a Comissão devia demonstrar, independentemente do facto de saber se as medidas de apoio à CHP constituíam ou não uma medida de «simples regulamentação dos preços», que a vantagem a favor dos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP não era concedida pelos operadores de rede, que são entidades privadas (v. n.o 59, supra), através dos seus recursos financeiros próprios, mas que estes estavam mandatados pelo Estado para gerir um recurso estatal.

113    Ora, como resulta nomeadamente dos n.os 90 e 100, supra, a Comissão não demonstrou que um dos critérios alternativos referidos no n.o 36, supra, estava preenchido no presente caso. Por conseguinte, há que observar que a Comissão não demonstrou que a vantagem prevista pela KWKG de 2020 a favor dos operadores das centrais CHP e das outras instalações ligadas à CHP era financiada pelos operadores de rede através de recursos estatais.

114    Daqui resulta, como sustenta a República Federal da Alemanha, que os operadores de rede utilizam os seus recursos próprios para pagar os montantes previstos na lei aos beneficiários, na aceção da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160). Por outras palavras, os fundos transitam de entidades privadas para entidades privadas e conservam um caráter privado durante todo o seu percurso (v., neste sentido, Acórdão 21 de outubro de 2020, Eco TLC, C‑556/19, EU:C:2020:844, n.os 32 e 33).

115    Por último, relativamente à alegação da Comissão de que a derrogação à proibição prevista no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, como a que está em causa no Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, EU:C:2001:160), deveria se restringir aos casos de «regulamentação dos preços», sob pena de o artigo 107.o, n.o 1, TFUE perder o seu efeito útil, há que recordar que é sem razão que a Comissão considera, em substância, que existe uma categoria de medidas de «simples regulamentação dos preços» que escapam à qualificação de auxílios de Estado (v. n.os 103 a 109, supra).

116    Além disso, embora seja certo que, segundo a jurisprudência referida no n.o 35, supra, o direito da União não pode admitir que o simples facto de criar instituições autónomas encarregadas da distribuição de auxílios permita contornar as regras relativas aos auxílios de Estado, privando assim o artigo 107.o, n.o 1, TFUE do seu efeito útil, não é menos certo que só as vantagens concedidas direta ou indiretamente através de recursos estatais são consideradas auxílios na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

117    Ora, o facto de a obrigação de pagamento de montantes pelos operadores de rede ser imposta por lei e conferir uma vantagem incontestável a certas empresas não é suscetível de lhe conferir o caráter de um auxílio de Estado (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, EU:C:2001:160, n.o 61). Com efeito, o artigo 107.o, n.o 1, TFUE não pode ser aplicado a comportamentos estatais que não estão abrangidos pelo seu âmbito, neste caso, a uma medida decidida pelo Estado, mas financiada por empresas privadas (v., neste sentido, Acórdão de 13 de março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, EU:C:2001:160, n.os 65 e 66).

118    O fundamento único deve, por conseguinte, ser acolhido no que respeita às medidas de apoio à CHP.

 Quanto à medida relativa à limitação da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio

119    No n.o 221 da decisão impugnada, a Comissão concluiu que a medida relativa à limitação da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio resultava numa renúncia a recursos estatais. O Tribunal de Justiça reconheceu que a renúncia a rendimentos que, em princípio, deveriam ter sido transferidos para o orçamento do Estado constituía uma transferência de recursos estatais.

120    A República Federal da Alemanha alega, no âmbito da segunda e terceira partes do fundamento único, que a sobretaxa KWKG não constitui uma contribuição obrigatória e que os recursos cobrados a título desta sobretaxa não estão constantemente sob controlo estatal e à disposição do Estado. Em suma, a sobretaxa KWKG não constitui um recurso estatal.

121    Importa recordar que a Comissão admitiu que a sobretaxa KWKG, considerada isoladamente, não pressupunha a afetação de recursos estatais, uma vez que os operadores de rede não eram obrigados a faturá‑la aos seus clientes.

122    Em resposta à medida de organização do processo do Tribunal Geral de 30 de março de 2023, a Comissão alega, contudo, que resulta do n.o 174 da decisão impugnada que se aplicam regras diferentes à sobretaxa reduzida a favor dos produtores de hidrogénio comparativamente com a sobretaxa KWKG. Alega que o § 27.o, n.o 1, da KWKG de 2020 prevê que os produtores de hidrogénio estão obrigados a pagar a sobretaxa KWKG aos operadores de rede.

123    Como já referido no n.o 61, supra, há que observar que a KWKG de 2020 não obriga os operadores de rede a repercutir a sobretaxa KWKG nos seus clientes, pelo que esta sobretaxa não é um encargo que estes tenham obrigatoriamente de pagar. Esta sobretaxa não pode, por isso, ser considerada um imposto ou uma sobretaxa legal obrigatória suscetível de caracterizar recursos estatais.

124    O argumento da Comissão segundo o qual o § 27.o, n.o 1, ponto 2, da KWKG de 2020 prevê uma regra derrogatória no que respeita aos produtores de hidrogénio não pode ser acolhido. Além de a Comissão não ter mencionado esta pretensa regra derrogatória na decisão impugnada, basta salientar que não resulta da redação da referida disposição que os produtores de hidrogénio estão obrigados a pagar a sobretaxa KWKG. Com efeito, esta disposição prevê nomeadamente que, para as empresas grandes consumidoras de eletricidade, como os produtores de hidrogénio, a limitação da sobretaxa KWKG só se aplica desde que a referida sobretaxa devida por estas empresas não seja inferior a um determinado montante por KWh. Todavia, não resulta desta disposição que a sobretaxa KWKG seja obrigatoriamente devida pelos produtores de hidrogénio.

125    Por conseguinte, uma vez que a sobretaxa KWKG não é um recurso estatal, a redução desta sobretaxa a favor dos produtores de hidrogénio não constitui uma renúncia a recursos estatais.

126    Foi, por isso, erradamente que a Comissão considerou que a medida relativa à limitação da sobretaxa KWKG a favor dos produtores de hidrogénio era financiada através de recursos estatais. Por conseguinte, o fundamento único também deve ser julgado procedente no que respeita a esta medida.

127    Resulta de tudo o que precede que há que dar provimento ao recurso da República Federal da Alemanha, dado que a Comissão concluiu erradamente que as medidas em causa constituíam auxílios de Estado financiados através de recursos estatais. A decisão impugnada deve, por conseguinte, ser anulada.

 Quanto às despesas

128    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com os pedidos da República Federal da Alemanha.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada)

decide:

1)      A Decisão C(2021) 3918 final da Comissão, de 3 de junho de 2021, relativa ao auxílio de Estado SA.56826 (2020/N) — Alemanha — Reforma 2020 do regime de apoio à produção combinada e ao auxílio de Estado SA.53308 (2019/N) — Alemanha — Alteração do regime de apoio às centrais de produção combinada de calor e eletricidade existentes [§ 13.o da Gesetz zur Neuregelung des KraftWärmeKopplungsgesetzes (Lei relativa à Nova Regulamentação da Lei sobre a Produção Combinada de Calor e Eletricidade), de 21 de dezembro de 2015 (BGBl. 2015 I, p. 2498)], é anulada.

2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

Kornezov

De Baere

Petrlík

Kecsmár

 

      Kingston

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 24 de janeiro de 2024.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.