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Processo C774/22

JX

contra

FTI Touristik GmbH

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgericht Nürnberg)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 29 de julho de 2024

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Artigo 18.° — Competência judiciária em matéria de contratos celebrados por consumidores — Determinação da competência internacional e territorial dos tribunais de um Estado‑Membro — Elemento de estraneidade — Viagem a um Estado terceiro»

Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento n.° 1215/2012 — Competência em matéria de contratos celebrados por consumidores — Âmbito de aplicação — Litígio entre um consumidor e um operador turístico na sequência da celebração de um contrato de viagem organizada — Cocontratantes domiciliados no mesmo EstadoMembro — Destino da viagem situado no estrangeiro — Competência internacional e territorial do tribunal do foro do domicílio do consumidor — Inclusão

(Regulamentos do Parlamento Europeu e do Conselho n.° 1896/2006, artigo 3.°, n.° 1, e n.° 1215/2012, considerandos 3 e 26 e artigos 18.° e 19.°, n.° 3)

(cf. n.os 25-37, 4045, 47 e disp.)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial no âmbito de um litígio que opõe um consumidor domiciliado num Estado‑Membro a uma operadora turística estabelecida no mesmo Estado‑Membro, a respeito de uma viagem ao estrangeiro, reservada pelo primeiro, o Tribunal de Justiça esclarece o âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A (1), examinando mais especificamente a existência de um elemento de estraneidade nesta situação.

Em dezembro de 2021, JX, um particular com domicílio em Nuremberga (Alemanha), celebrou um contrato de viagem organizada com a FTI Touristik, uma operadora turística com sede em Munique (Alemanha), para uma viagem a um Estado terceiro.

No Amtsgericht Nürnberg (Tribunal de Primeira Instância de Nuremberga, Alemanha), tribunal do lugar do seu domicílio, JX pede o pagamento de uma indemnização no montante de 1 500 euros, considerando que não foi suficientemente informado sobre as condições de entrada e sobre os vistos no país em causa. Segundo JX, a competência territorial deste órgão jurisdicional decorre das normas de competência previstas no Regulamento Bruxelas I‑A protetoras dos consumidores (2). A FTI Touristik invoca, por sua vez, a incompetência territorial desse órgão jurisdicional, alegando que este regulamento não se aplica a situações puramente internas como a que está em causa no caso em apreço. Num tal caso, não existiria o elemento de estraneidade exigido para a aplicação desse regulamento.

Com o seu reenvio prejudicial, este órgão jurisdicional pede ao Tribunal de Justiça que esclareça se o Regulamento Bruxelas I‑A determina a competência tanto internacional como territorial do órgão jurisdicional do Estado‑Membro no qual o consumidor está domiciliado, numa situação como a que está em causa no processo principal, em que o elemento de estraneidade se limita ao destino da viagem, situado no estrangeiro.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Em primeiro lugar, para examinar se o Regulamento Bruxelas I‑A se aplica a um litígio como o que está em causa no processo principal, no qual o demandante e o demandado têm o seu domicílio no mesmo Estado‑Membro, o Tribunal de Justiça recorda que a aplicação das regras de competência deste regulamento exige a existência de um elemento de estraneidade. Este elemento existe, nomeadamente, quando a situação do litígio em causa possa suscitar questões relativas à determinação da competência dos tribunais na ordem internacional. Embora o elemento de estraneidade esteja manifestamente presente quando pelo menos uma das partes tem o seu domicílio habitual num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a decidir, o caráter internacional pode resultar também de outros fatores relacionados, nomeadamente, com o objeto do litígio. Assim, a implicação de um Estado‑Membro e de um Estado terceiro, em virtude, por exemplo, do domicílio do demandante e de um demandado no primeiro Estado, e da localização dos factos controvertidos no segundo, é igualmente suscetível de conferir caráter internacional à relação jurídica em causa, uma vez que esta situação pode suscitar, no Estado‑Membro, questões relativas à determinação da competência dos órgãos jurisdicionais na ordem jurídica internacional. Decorre daí que um litígio que tem por objeto obrigações contratuais supostamente executadas num Estado terceiro ou num Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro no qual as duas partes estão domiciliadas é suscetível de suscitar questões relativas à determinação da competência dos órgãos jurisdicionais na ordem internacional e preenche, assim, a condição do elemento de estraneidade exigida para que o litígio seja abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A.

No que respeita aos litígios entre consumidores e profissionais, esta interpretação é, antes de mais, corroborada pelo artigo 18.°, n.° 1, do Regulamento Bruxelas I‑A (3), em aplicação do qual os consumidores podem invocar a regra prevista a seu favor contra profissionais domiciliados não apenas noutros Estados‑Membros, incluindo Estados terceiros, mas também no Estado‑Membro no qual têm o seu domicílio. Esta interpretação é, além disso, conforme com a finalidade do Regulamento Bruxelas I‑A, uma vez que o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que este prossegue um objetivo de segurança jurídica que exige que o juiz nacional ao qual a questão foi submetida possa facilmente pronunciar‑se sobre a sua competência, sem ser obrigado a examinar o processo quanto ao mérito. Em conformidade com este objetivo, um processo que tem por objeto um pedido de um viajante relativo a problemas encontrados no âmbito de uma viagem ao estrangeiro, organizada e vendida por um operador turístico apresenta um caráter internacional para efeitos do Regulamento Bruxelas I‑A, sendo o destino da viagem um elemento fácil de verificar. Por último, esta interpretação não pode ser posta em causa pela referência feita pelo Tribunal de Justiça ao conceito de «caso transfronteiriço» definido no artigo 3.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1896/2006 (4), como um caso em que pelo menos uma das partes tem domicílio ou residência habitual num Estado‑Membro distinto do Estado‑Membro do tribunal demandado. Com efeito, uma vez que este regulamento e o Regulamento Bruxelas I‑A não têm o mesmo objeto nem o mesmo âmbito de aplicação, o segundo regulamento não deve ser interpretado à luz do primeiro.

Por conseguinte, um litígio relativo a um contrato de viagem está abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A, ainda que as partes contratantes, a saber, o consumidor e o seu cocontratante, estejam ambas domiciliadas no mesmo Estado‑Membro quando o destino da viagem se situe no estrangeiro.

Em segundo lugar, no que respeita à questão de saber se o artigo 18.° do Regulamento Bruxelas I‑A determina a competência tanto internacional como territorial do órgão jurisdicional em causa, o Tribunal de Justiça salienta que resulta da própria redação do n.° 1 deste artigo que regras de competência jurisdicional adotadas por esta disposição quando a ação é intentada por um consumidor visam, por um lado, «[os] tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa [outra] parte», e, por outro, «[o] tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio». Enquanto a primeira das duas regras assim enunciadas se limita a conferir competência internacional ao sistema jurisdicional do Estado designado, considerado no seu conjunto, a segunda regra confere diretamente uma competência territorial ao tribunal do lugar do domicílio do consumidor. Assim, esta segunda regra não só determina a competência judiciária internacional do tribunal em causa, como também designa diretamente um tribunal específico num Estado‑Membro, sem remeter para as regras de repartição da competência territorial em vigor nesse Estado‑Membro.

O Tribunal de Justiça concluiu que o artigo 18.° do Regulamento Bruxelas I‑A determina a competência tanto internacional como territorial do órgão jurisdicional do Estado‑Membro no qual o consumidor está domiciliado, quando esse consumidor submeta a esse órgão jurisdicional um litígio que o opõe a um operador turístico, na sequência da celebração de um contrato de viagem organizada, e as duas partes tenham domicílio nesse Estado‑Membro mas o destino da viagem se situe no estrangeiro.


1      Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I‑A»).


2      JX refere‑se, em especial, aos artigos 17.° e 18.° do Regulamento Bruxelas I‑A.


3      Nos termos desta disposição: «[o] consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no contrato, quer nos tribunais do Estado‑Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio da outra parte».


4      Regulamento (CE) n.° 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento (JO 2006, L 399, p. 1).