Language of document : ECLI:EU:T:2023:669

Processo T136/19

(publicação por excertos)

Bulgarian Energy Holding EAD e o.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Quarta Secção Alargada) de 25 de outubro de 2023

«Concorrência — Abuso de posição dominante — Mercado interno do gás natural — Decisão que declara uma infração ao artigo 102.° TFUE — Mercado regulamentado — Definição do mercado relevante — Gasoduto de trânsito romeno 1 — Titular de um direito de uso exclusivo do gasoduto romeno 1 — Recusa de acesso — Obrigação de fornecimento público — Exceção da ação estatal — Operador da rede de transporte — Operador da instalação de armazenamento — Estratégia anticoncorrencial — Efeitos de exclusão — Infração única e continuada — Direitos de defesa»

1.      Posição dominante — Mercado em questão — Delimitação — Critérios — Mercado interno do gás natural — Mercado dos serviços de capacidade de gás — Obrigação da Comissão de consultar previamente os participantes no mercado — Inexistência

(Artigo 102.° TFUE; Comunicação da Comissão 97/C 372/03 da Comissão, ponto 33)

(cf. n.os 75‑77)

2.      Posição dominante — Mercado em questão — Delimitação — Critérios — Permutabilidade — Identificação das condições de concorrência pertinentes — Mercado interno do gás natural — Mercados dos serviços de capacidade de gás — Distinção entre os mercados primário e secundário — Falta de pertinência

[Artigo 102.° TFUE; Regulamento n.° 715/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 34 e artigos 2.°, n.° 1, pontos 4, 6, 13, 16, 18, 21 e 22, e 16.°, n.° 3, alínea a), e anexo I, ponto 2.2, n.os 1 e 4; Decisão 2012/490 da Comissão, considerando 2 e pontos 2.2.2, n.os 1 e 6, e 2.2.5, n.os 1 e 4; Comunicação 97/C 372/03 da Comissão, pontos 2 e 3]

(cf. n.os 82‑112)

3.      Posição dominante — Mercado em questão — Delimitação — Relevância da prática decisória anterior da Comissão — Inexistência

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 115, 116, 181, 253)

4.      Posição dominante — Existência — Indícios — Mercado interno do gás natural — Mercados dos serviços de capacidade de gás — Empresa que controla o acesso de terceiros ao gasoduto de trânsito — Inclusão

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 137, 138, 143‑150, 159‑161, 173‑175)

5.      Concorrência — Regras da União — Infrações — Imputação — Sociedademãe e filiais — Unidade económica — Critérios de apreciação — Presunção de uma influência determinante exercida pela sociedademãe sobre as suas filiais detidas na totalidade ou na quase totalidade por esta — Caráter ilidível — Conjugação da presunção do exercício de uma influência determinante pela sociedademãe sobre as filiais detidas na totalidade ou na quase totalidade com outros elementos de prova — Sociedademãe que não se comporta como um simples investidor financeiro

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 187, 196‑208, 212, 217‑219)

6.      Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Prova da infração e da respetiva duração a cargo da Comissão — Alcance do ónus probatório — Recurso a um conjunto de indícios — Necessidade de apresentar provas sérias, precisas e concordantes — Fiscalização jurisdicional — Alcance — Decisão que deixa subsistir dúvidas no espírito do juiz — Respeito pelo princípio da presunção de inocência

(Artigo 101.° TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 48.°, n.° 1; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 2.°)

(cf. n.os 226‑228, 231, 686, 689)

7.      Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Modo de prova — Provas documentais — Apreciação do valor probatório de um documento — Critérios — Documento elaborado em relação imediata com os factos ou por uma testemunha direta desses factos — Valor probatório elevado — Valor probatório de elementos de prova que não datam do período da infração

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 229, 391‑396, 433, 1004, 1005)

8.      Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Decisão baseada em elementos de prova suficientes para demonstrar a existência da infração contestada — Ónus probatório das empresas que contestam a realidade da infração — Apresentação de outra explicação plausível dos factos diferente da adotada pela Comissão

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 230, 381‑390)

9.      Posição dominante — Abuso — Conceito — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Critérios de apreciação — Fiscalização jurisdicional — Controlo de legalidade — Alcance — Substituição dos fundamentos do ato impugnado

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 232, 234, 1108‑1110, 1132)

10.    Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Ónus da prova — Fiscalização jurisdicional — Controlo de legalidade — Fiscalização aprofundada de todos os elementos pertinentes — Objeto e alcance

(Artigos 102.° e 263.° TFUE)

(cf. n.os 233, 291, 292, 329, 332, 364, 401, 419, 443, 478, 879‑881, 1015, 1089)

11.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Critérios de apreciação — Efeitos não puramente hipotéticos

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 235‑240)

12.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Prestação de serviços de capacidade num gasoduto que constitui uma infraestrutura essencial — Recusa de uma empresa em posição dominante de dar acesso a uma infraestrutura essencial — Obrigação de cooperar

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 254‑257, 260‑262)

13.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Infraestrutura essencial — Situação de controlo resultante da concessão de um direito de uso exclusivo — Falta de pertinência da natureza desse direito exclusivo

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 263‑265)

14.    Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Dever de fundamentação — Alcance — Exigências resultantes do princípio da proteção jurisdicional efetiva — Clareza e precisão do dispositivo da decisão

(Artigos 102.° e 296.° TFUE)

(cf. n.os 299‑317)

15.    Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Prova da infração e da respetiva duração a cargo da Comissão — Alcance do ónus probatório — Utilização de declarações efetuadas pelos autores da denúncia no contexto da aplicação do artigo 102.° TFUE — Admissibilidade — Força probatória das declarações prestadas por uma parte interessada em contratar com a empresa em posição dominante — Limites — Apreciação do valor probatório dessas declarações à luz de outros elementos de prova

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 370‑380, 441)

16.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Empresa em posição dominante titular de um direito de uso exclusivo da infraestrutura em causa — Insuficiência para sugerir a existência de uma prática de exclusão abusiva

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 473‑475)

17.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Empresa em posição dominante titular de um direito de uso exclusivo da infraestrutura em causa — Condições de renegociação do acordo de reserva de capacidade — Valor probatório — Elementos pertinentes

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 489‑492, 495‑511, 513‑528, 530‑541)

18.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Conceito objetivo que visa os comportamentos suscetíveis de influenciar a estrutura do mercado e que tem por efeito criar obstáculos à manutenção ou ao desenvolvimento da concorrência — Obrigações que incumbem à empresa dominante — Exercício da concorrência unicamente pelo mérito — Critérios de apreciação — Possibilidade de a empresa em posição dominante preservar e proteger os seus interesses comerciais

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 547, 595‑603, 625, 626, 644)

19.    Concorrência — Regras da União — Âmbito de aplicação material — Comportamento imposto por medidas estatais — Exclusão — Requisitos

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 548, 549, 569‑583, 616)

20.    Recurso de anulação — Competência do juiz da União — Interpretação do direito nacional de um EstadoMembro — Questão de facto — Inclusão

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.os 740, 741)

21.    Posição dominante — Abuso — Conceito — Capacidade para restringir a concorrência e efeito de exclusão — Critérios de apreciação — Tomada em conta do quadro regulamentar setorial aplicável ao setor do gás — Não conformidade das condições de acesso à rede com o referido quadro regulamentar — Necessidade de demonstrar a capacidade para produzir efeitos anticoncorrenciais

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 784, 873)

22.    Concorrência — Procedimento administrativo — Exame das denúncias — Obrigações da Comissão — Verificação da existência de um interesse legítimo do autor da denúncia — Alcance

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 848, 849)

23.    Posição dominante — Abuso — Recusa de uma empresa em posição dominante de permitir o acesso de outra empresa a um produto ou a um serviço necessário para a sua atividade — Apreciação do caráter abusivo — Obrigação regulamentar de conceder o acesso — Inexistência de obrigação de a Comissão demonstrar o caráter indispensável do acesso à infraestrutura em causa

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 961, 962, 968, 969, 971)

24.    Recurso de anulação — Acórdão de anulação — Alcance — Anulação integral de uma decisão da Comissão que declara uma infração única e continuada e aplica uma coima perante uma prova parcial — Requisitos — Substituição da fundamentação pelo juiz da União — Exclusão

(Artigo 102.° TFUE)

(cf. n.os 1119‑1131, 1134)

25.    Concorrência — Procedimento administrativo — Respeito dos direitos de defesa — Acesso ao processo — Alcance

(Artigo 102.° TFUE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 27.°, n.° 2; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigo 15.°, n.os 1 e 2)

(cf. n.os 1153‑1155)

26.    Concorrência — Procedimento administrativo — Poderes da Comissão — Poder de recolher declarações — Declarações relativas ao objeto de um inquérito — Obrigação que incumbe à Comissão de registar todas as audições por ela realizadas — Alcance — Determinação dos elementos úteis para a defesa da empresa em causa — Violação — Consequências

(Artigo 211.° TFUE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigo 19.°, n.° 1; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigo 3.°)

(cf. n.os 1156‑1160, 1170‑1176, 1182‑1186, 1191)

27.    Concorrência — Procedimento administrativo — Respeito dos direitos de defesa — Acesso ao processo — Violação devido a uma irregularidade cometida pela Comissão — Requisitos — Possibilidade de a empresa em causa assegurar melhor a sua defesa inexistindo essa irregularidade — Âmbito do ónus probatório que incumbe a essa empresa

[Artigo 102.° TFUE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigos 19.°, n.° 1, e 27.°; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigos 3.° e 15.°, n.os 1 e 2]

(cf. n.os 1177, 1192, 1201‑1206, 1208‑1214, 1216‑1221, 1223, 1226, 1238, 1244, 1245)

28.    Concorrência — Procedimento administrativo — Respeito dos direitos de defesa — Acesso ao processo — Violação devido a restrições excessivas no âmbito de um procedimento em sala de dados — Consequências

(Artigo 102.° TFUE; Regulamento n.° 1/2003 do Conselho, artigos 19.°, n.° 1, e 27.°; Regulamento n.° 773/2004 da Comissão, artigo 15.°, n.os 1 e 2)

(cf. n.os 1207, 1215)

29.    Concorrência — Procedimento administrativo — Respeito dos direitos de defesa — Acesso ao processo — Objeto — Acesso à comunicação de objeções dirigida a uma empresa terceira — Requisitos — Comunicação de objeções que pode ser utilizada para a defesa das partes — Ónus da prova — Obrigação da empresa em causa de fornecer um primeiro indício da utilidade do referido acesso para a sua defesa

(Artigo 101.° TFUE. Regulamento n.° 773/2004 do Conselho, artigo 15.°, n.° 1)

(cf. n.os 1249‑1252)

Resumo

À data dos factos, as recorrentes, a saber, a sociedade Bulgarian Energy Holding EAD, totalmente detida pelo Estado búlgaro, e as suas filiais Bulgargaz e Bulgartransgaz (a seguir, conjuntamente, «grupo BEH»), operavam no setor da energia na Bulgária. A Bulgargaz era o fornecedor público de gás na Bulgária, enquanto a Bulgartransgaz era o operador da rede de transporte de gás (a seguir «ORT») e da única instalação de armazenamento de gás natural na Bulgária (a seguir «estação de armazenamento de Chiren»).

No período da infração (a saber, entre 30 de julho de 2010 e 1 de janeiro de 2015), o aprovisionamento de gás na Bulgária dependia quase inteiramente das importações de gás russo, de que a Bulgargaz era o único ou o principal importador. Assim, a Bulgargaz era o principal fornecedor de gás dos clientes do mercado do comércio grossista a jusante, bem como dos clientes finais, a saber, as empresas diretamente ligadas à rede de transporte de gás.

O gás russo era encaminhado para a Bulgária até ao ponto de ligação à rede búlgara através da Ucrânia, e depois da Roménia, principalmente por um gasoduto de trânsito (a seguir «gasoduto romeno 1») cuja gestão incumbia à Transgaz, o ORT romeno. No período da infração, o referido gasoduto assegurava o aprovisionamento da maior parte do território búlgaro, através da rede nacional de transporte que, por sua vez, estava ligada à estação de armazenamento de Chiren (1). Ao abrigo de um acordo celebrado entre a Transgaz e a Bulgargaz em 2005 (a seguir «Acordo de 2005») e que permaneceu em vigor durante todo o período da infração, foi concedido a esta última o uso exclusivo do gasoduto romeno 1, em contrapartida de uma taxa anual fixa.

Em 18 de novembro de 2010, a Overgas Inc., ativa no mercado do fornecimento de gás na Bulgária, apresentou à Comissão uma denúncia informal contra o grupo BEH por violação do artigo 102.° TFUE.

Por Decisão de 17 de dezembro de 2018 (2), a Comissão Europeia concluiu que o grupo BEH tinha cometido uma infração única e continuada ao artigo 102.° TFUE entre 30 de julho de 2010 e 1 de janeiro de 2015. Mais especificamente, a Comissão considerou que o grupo BEH ocupava, nesse período, uma posição dominante em cinco mercados distintos, a saber, o mercado dos serviços relacionados com a capacidade na rede de transporte de gás, o mercado dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1, o mercado dos serviços relacionados com a capacidade de armazenamento da estação de Chiren, o mercado da venda de gás grossista a jusante e o mercado do fornecimento de gás a retalho aos grandes clientes finais ligados à rede búlgara de transporte de gás. A Comissão declarou que o grupo BEH tinha abusado da sua posição dominante ao impedir, restringir ou atrasar o acesso de terceiros à rede de transporte, à estação de armazenamento de Chiren e ao gasoduto romeno 1, bloqueando assim os mercados búlgaros de fornecimento de gás, de modo a proteger a posição dominante da Bulgargaz nestes últimos. Consequentemente, a Comissão aplicou ao grupo BEH uma coima que punia a infração assim declarada.

Ao decidir sobre o recurso de anulação interposto por este último destinado, a título principal, a obter a anulação da decisão impugnada na sua totalidade, o Tribunal Geral julga‑o procedente na medida em que a Comissão não fez prova bastante de uma recusa de acesso às três infraestruturas detidas pelo grupo BEH suscetível de ser abrangida pelo artigo 102.° TFUE. Ao fazê‑lo, presta esclarecimentos sobre a aplicação do artigo 102.° TFUE a uma empresa em posição dominante que recusa o acesso a uma «infraestrutura essencial», à luz da jurisprudência Bronner (3), no caso de essa empresa não ser proprietária da referida infraestrutura. Além disso, pronuncia‑se sobre o alcance da exigência de acesso ao processo inerente ao respeito dos direitos de defesa no âmbito do procedimento dito «em sala de dados», a saber, na hipótese de limitações introduzidas ao direito de acesso a determinados elementos do processo em razão da sua natureza confidencial.

Apreciação do Tribunal Geral

No âmbito da sua apreciação, o Tribunal Geral examina, num primeiro momento, o mérito do processo, a saber, as alegações relativas a erros de direito e de apreciação na definição de um dos cinco mercados em causa, nomeadamente o mercado dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1, à posição dominante da Bulgargaz neste último, à posição dominante da sociedade‑mãe BEH, enquanto holding financeira nos mercados relevantes, bem como ao comportamento abusivo deste grupo. Num segundo momento, analisa os vícios processuais relativos à violação dos direitos de defesa do grupo BEH em matéria de acesso ao processo.

Quanto ao mérito do processo, em primeiro lugar, o Tribunal Geral considera que, no âmbito da definição do mercado dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1, foi acertadamente que a Comissão não fez uma distinção entre os mercados primário (a saber, o mercado da capacidade diretamente transacionada pelo ORT) e secundário (a saber, o mercado da capacidade não transacionada no mercado primário), uma vez que esta distinção não é relevante para apreciar se as recorrentes gozavam de uma posição dominante no que respeita aos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1. Além disso, não cometeu erros de direito nem de apreciação ao considerar que a Bulgargaz ocupava uma posição dominante nesse mercado.

A este respeito, resulta do direito exclusivo sobre o gasoduto romeno 1 concedido pelo Acordo de 2005 que a Bulgargaz era, em todo o período da infração, o único fornecedor possível de serviços de capacidade no referido gasoduto no mercado secundário. Acresce que, por um lado, por força do artigo 17.1 do Acordo de 2005, a Transgaz não podia oferecer a terceiros a capacidade não utilizada sem o consentimento prévio da Bulgargaz. Por outro lado, por força da regulamentação da União então aplicável, a Transgaz só podia oferecer essa capacidade não utilizada a terceiros como capacidade a curto prazo e interruptível. Consequentemente, a Bulgargaz controlava igualmente o acesso de terceiros ao mercado primário dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1. Daqui decorre que foi com razão que a Comissão identificou a Bulgargaz como fornecedor do gasoduto romeno 1, a única empresa a poder fornecer a terceiros acesso a esse gasoduto. O Tribunal Geral salientou igualmente que, embora a Transgaz ainda não tivesse cumprido as suas obrigações na aceção do direito da União, adotando as medidas necessárias para permitir e facilitar a transação de capacidade no mercado secundário, a Bulgargaz tinha, de facto, concedido à Overgas acesso ao gasoduto romeno 1 a partir de 1 de janeiro de 2013. Daqui se conclui que, efetivamente, o incumprimento da Transgaz não obstava que a Bulgargaz pudesse oferecer capacidade no referido mercado. Assim, tendo em conta que, no período da infração, a Bulgargaz controlava o acesso de terceiros ao gasoduto romeno 1 e que a Transgaz não podia ser identificada como uma verdadeira fonte de aprovisionamento alternativa para terceiros que pretendessem ter acesso ao referido gasoduto, a Bulgargaz ocupava uma posição dominante no mercado dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral salienta que a Comissão não conseguiu demonstrar um abuso de posição dominante do grupo BEH relativamente ao fornecimento de gás na Bulgária. A este respeito, conclui pela insuficiência dos elementos apresentados pela Comissão em relação ao acesso ao gasoduto romeno 1 para demonstrar a existência do conjunto das restrições de acesso alegadas nem, na medida em que estas tivessem sido demonstradas, o seu caráter abusivo.

Antes de mais, o Tribunal Geral observa que a Comissão apreciou acertadamente o comportamento da Bulgargaz no mercado dos serviços de capacidade no gasoduto romeno 1 à luz da jurisprudência Bronner. A este propósito, recorda que a recusa, por parte de uma empresa em posição dominante, de prestar um serviço ao qual terceiros têm de ter acesso para poderem exercer uma atividade num mercado vizinho, nomeadamente a jusante, constitui uma violação do artigo 102.° TFUE se estiverem preenchidos três requisitos cumulativos, a saber, se a recusa for suscetível de eliminar qualquer concorrência por parte do requerente do referido serviço nesse mercado, se não puder ser objetivamente justificada e se o serviço em causa for indispensável para o exercício da atividade do requerente, no sentido de não existir nenhum substituto real ou potencial desse serviço. Ora, no caso em apreço, o gasoduto romeno 1 constituía uma «infraestrutura essencial», dado que se tratava da única via viável para encaminhar o gás russo para a Bulgária no período da infração. A este respeito, a Comissão pôde validamente considerar que, para efeitos da aplicação dos referidos princípios jurisprudenciais, pouco importava que a Bulgargaz não fosse proprietária da infraestrutura, mas simples titular de um direito exclusivo de uso, uma vez que esse direito se concretizava numa situação de controlo sobre a referida infraestrutura, que lhe permitia sujeitar o acesso de terceiros ao gasoduto ao seu acordo.

Em seguida, o Tribunal Geral conclui pela falta de valor probatório atribuído pela Comissão à reserva da totalidade da capacidade do gasoduto romeno 1 ao abrigo do Acordo de 2005, uma vez que esta reserva não era um indício suficiente para demonstrar o pretenso abuso no mercado dos serviços de capacidade do referido gasoduto. Com efeito, a exclusividade contratual consentida à Bulgargaz pelo Acordo de 2005, mesmo que esta última tenha utilizado apenas uma parte da capacidade do gasoduto romeno 1, não pode constituir uma exploração abusiva da posição dominante da Bulgargaz, se a Comissão não provar que o comportamento da mesma lhe tinha, de facto, conferido a capacidade de excluir os concorrentes dos mercados búlgaros de fornecimento de gás, nomeadamente, na aceção do Acórdão Bronner e da jurisprudência posterior (4) relativa à recusa de acesso a uma «infraestrutura essencial».

Ora, no caso em apreço, resulta dos elementos apresentados pela Comissão que a exclusividade concedida à Bulgargaz não a impediu, a partir de 2013, de deferir um pedido da sociedade Overgas, concedendo‑lhe acesso à capacidade não utilizada do gasoduto romeno 1. O Tribunal Geral observa ainda que a Comissão também não fez prova bastante de que a Bulgargaz se opôs, de forma abusiva, a pedidos de acesso de outros terceiros.

Por último, o Tribunal Geral não valida o valor probatório atribuído pela Comissão ao comportamento da Bulgargaz no âmbito das conversações intergovernamentais entre a República da Bulgária e a Roménia relativas à renegociação do Acordo de 2005. Na sua opinião, essas conversações não podiam constituir um elemento de prova da recusa de acesso ao gasoduto romeno 1. Com efeito, o que estava em causa nessa renegociação, em particular, a necessidade de conceder à Bulgargaz uma capacidade mínima garantida, não se limitava apenas aos interesses da Bulgargaz, mas exigia o envolvimento das autoridades búlgaras, atendendo à dependência da Bulgária do gasoduto romeno 1 para a segurança do aprovisionamento de gás do mercado búlgaro. Além disso, a Roménia tinha um interesse claro na renegociação do Acordo de 2005 tendo em vista o processo por infração instaurado contra ela pela Comissão em 2009. Acresce que o Tribunal Geral concluiu que a Comissão não tinha feito prova bastante de que a duração das negociações era imputável às recorrentes.

Em terceiro lugar, o Tribunal Geral declara que a Comissão também não fez prova bastante de uma recusa de acesso por parte do grupo BEH à rede de transporte e à estação de armazenamento de Chiren antes de junho de 2012. Em contrapartida, em relação a este último acesso, o Tribunal Geral salienta que os elementos dos autos permitem demonstrar que o comportamento da Bulgartransgaz pode ter tido capacidade para restringir a concorrência nos mercados búlgaros de fornecimento de gás entre 5 de junho de 2012 e 19 de setembro de 2014. Todavia, na medida em que na decisão impugnada se conclui que as recorrentes tinham cometido uma infração única e continuada ao artigo 102.° TFUE ao recusar a terceiros o acesso às três infraestruturas e se colocou a tónica na interdependência, na complementaridade e no reforço mútuo do conjunto dos comportamentos imputados, o Tribunal Geral considerou que não se pode deduzir do dispositivo da decisão impugnada que este assenta em vários fundamentos relativos a comportamentos abusivos distintos, cada um dos quais seria suficiente para, por si só, o fundamentar.

Nestas condições, o único fundamento relativo ao comportamento da Bulgartransgaz em relação à estação de armazenamento de Chiren depois de junho de 2012 não pode, sob pena de se substituir a apreciação dos factos da Comissão pela do Tribunal Geral, constituir a fundamentação essencial, ou mesmo suficiente, suscetível de fundamentar, por si só, o dispositivo da referida decisão.

Em conclusão, a Comissão não fez prova bastante da infração constitutiva do abuso de posição dominante imputado às recorrentes pela decisão impugnada.

Quanto à tramitação do processo, o Tribunal Geral conclui que a Comissão cometeu irregularidades processuais suscetíveis de implicar uma violação dos direitos de defesa do grupo BEH, na medida em que, por um lado, não juntou ao processo, ou juntou intempestivamente, os documentos relativos a determinadas reuniões que teve com a Overgas e, por outro, deu às recorrentes um acesso insuficiente a esses documentos.

Em particular, quanto às reuniões que tiveram lugar após a adoção da comunicação de objeções, em 2015 e em 2016, o Tribunal Geral salienta que visavam recolher informações relativas ao objeto do inquérito que conduziu à adoção da decisão impugnada e que não cabe à Comissão afastar um elemento do processo fazendo uso do seu poder de apreciação quanto ao caráter potencialmente acusatório ou ilibatório desse documento. Por conseguinte, em conformidade com o artigo 19.° do Regulamento n.° 1/2003 (5), lido em conjugação com o artigo 3.° do Regulamento n.° 773/2004 (6), a Comissão estava obrigada a proceder ao registo adequado das declarações prestadas nessas reuniões e a juntar aos autos os documentos relativos às mesmas, bem como a informar as recorrentes desse facto, uma vez que a inexistência de qualquer registo escrito impede o Tribunal Geral de verificar se a Comissão se conformou com as disposições do Regulamento n.° 1/2003 e se os direitos das empresas e das pessoas singulares implicadas num inquérito foram plenamente respeitados.

No que se refere às reuniões que tiveram lugar antes da adoção da comunicação de objeções, entre 2010 e 2013, a Comissão apenas juntou ao processo notas sucintas dessas reuniões, enquanto as atas pormenorizadas permaneceram confidenciais. A este respeito, o Tribunal Geral salienta que essas notas sucintas são manifestamente insuficientes para dar conta do teor das conversações que tiveram efetivamente lugar entre a Comissão e a Overgas e, em particular, da natureza das informações prestadas por esta última sobre os assuntos abordados. Ora, nenhum elemento baseado na redação do artigo 19.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003, ou na finalidade que este prossegue, permite inferir que o legislador tenha pretendido introduzir uma distinção entre, por um lado, «notas sucintas», finalizadas para efeitos de acesso ao processo, e, por outro, «atas pormenorizadas», destinadas a permanecerem confidenciais. Tal interpretação equivaleria a privar de qualquer efeito útil o direito de acesso ao processo, bem como o princípio da igualdade de armas.

Quanto ao acesso aos documentos disponibilizados na sala de dados, o Tribunal Geral salientou que os representantes externos das recorrentes tinham sido autorizados pela Comissão a comunicar às suas clientes unicamente a versão não confidencial do seu relatório da sala de dados e que esta não continha nenhum elemento adicional face às notas sucintas às quais as recorrentes já tinham tido acesso durante o procedimento administrativo. Ora, expurgar o relatório da sala de dados ao ponto de o tornar praticamente equivalente às notas sucintas pode, segundo o Tribunal Geral, comprometer o próprio objetivo do procedimento em sala de dados, a saber, proteger as informações confidenciais dando simultaneamente acesso às provas de que uma parte necessita para apoiar a sua posição. Isto é tanto mais assim quanto o procedimento em sala de dados, tal como decorreu no caso em apreço, era suscetível de afetar os direitos de defesa das recorrentes, que só os puderam exercer indiretamente, por intermédio dos seus representantes externos.

Uma vez que as recorrentes demonstraram igualmente que, se não tivessem existido as irregularidades cometidas pela Comissão ao lhes recusar um acesso suficiente ao processo, teriam tido acesso a elementos suscetíveis de lhes permitir assegurar melhor a sua defesa durante o procedimento administrativo, o Tribunal Geral conclui pela violação dos direitos de defesa das recorrentes.

Tendo em conta todas as considerações precedentes, o Tribunal Geral anula integralmente a decisão impugnada.


1      Os gasodutos de trânsito romenos 2 e 3 transportavam o gás russo da fronteira ucraniano‑romena para a fronteira romeno‑búlgara, nos pontos de entrada Negru Vodă 2 e 3, e fundiam‑se no território búlgaro, formando o gasoduto de trânsito búlgaro. Este gasoduto era utilizado para um aprovisionamento limitado no sudoeste da Bulgária e transportava principalmente gás para a antiga República Jugoslava da Macedónia, a Grécia e a Turquia.


2      Decisão da Comissão de 17 de dezembro de 2018, relativa a um processo de aplicação do artigo 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (Processo AT.39849 ‑ BEH Gas) [notificada com o número C(2018) 8806 final].


3      Acórdão do Tribunal de Justiça de 26 de novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, EU:C:1998:569).


4      Acórdãos de 15 de setembro de 1998, European Night Services e o./Comissão (T‑374/94, T‑375/94, T‑384/94 e T‑388/94, EU:T:1998:198, n.os 208 e 212), e de 10 de novembro de 2021, Google e Alphabet/Comissão (Google Shopping) (T‑612/17, pendente de recurso, EU:T:2021:763, n.º 215).


5      Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.° e 102.° TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1).


6      Regulamento (CE) n.° 773/2004 da Comissão, de 7 de abril de 2004, relativo à instrução de processos pela Comissão para efeitos dos artigos [101.° e 102.° TFUE] (JO 2004, L 123, p. 18).