Language of document : ECLI:EU:C:2018:492

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

26 de junho de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Diretiva 79/7/CEE — Igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social — Regime nacional de pensões do Estado — Requisitos do reconhecimento da mudança de identidade sexual — Legislação nacional que subordina esse reconhecimento à anulação de um casamento anterior a essa mudança de identidade sexual — Recusa de atribuição de uma pensão de reforma do Estado a uma pessoa que mudou de identidade sexual, a partir da idade de aposentação das pessoas com a identidade sexual adquirida — Discriminação direta em razão do sexo»

No processo C‑451/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), por decisão de 10 de agosto de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de agosto de 2016, no processo

MB

contra

Secretary of State for Work and Pensions,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, M. Ilešič, T. von Danwitz (relator), A. Rosas e J. Malenovský, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, M. Berger, C. Lycourgos e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 26 de setembro de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de MB, por C. Stothers e J. Mulryne, solicitors, e por K. Bretherton e D. Pannick, QC,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por C. Crane e S. Brandon, na qualidade de agentes, assistidos por B. Lask, barrister, e J. Coppel, QC,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Valero e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 5 de dezembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social (JO 1979, L 6, p. 24; EE 05 F2 p. 174).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe MB ao Secretary of State for Work and Pensions (Secretário de Estado do Trabalho e da Reforma, Reino Unido) a respeito da recusa em conceder‑lhe uma pensão de reforma do Estado a partir da idade legal de aposentação das pessoas com identidade sexual igual à adquirida após uma mudança de identidade sexual.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Em conformidade com o seu artigo 3.o, n.o 1, alínea a), terceiro travessão, a Diretiva 79/7 aplica‑se aos regimes legais que asseguram uma proteção contra os riscos de velhice.

4        Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva:

«O princípio da igualdade de tratamento implica a ausência de qualquer discriminação em razão do sexo, quer direta, quer indiretamente por referência, nomeadamente, ao estado civil ou familiar especialmente no que respeita:

–        ao âmbito dos regimes e às condições de acesso aos regimes,

[…]»

5        O artigo 7.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva dispõe:

«A presente diretiva não prejudica a possibilidade que os Estados‑Membros têm de excluir do seu âmbito de aplicação:

a)      A fixação da idade de reforma para a concessão das pensões de velhice e de reforma e as consequências que daí podem decorrer para as outras prestações».

6        O artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/54/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2006, relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional (JO 2006, L 204, p. 23), dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

a)      “Discriminação direta”: sempre que, em razão do sexo, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável».

 Direito do Reino Unido

7        Em conformidade com a section 44 da Social Security Contributions and Benefits Act 1992 (Lei das Contribuições e Prestações de Segurança Social, de 1992), em conjugação com a section 122 da mesma lei e com o anexo 4, n.o 1, da Pensions Act 1995 (Lei das Pensões, de 1995), uma mulher nascida antes de 6 de abril de 1950 tem direito a receber a pensão de reforma do Estado da «categoria A» a partir dos 60 anos, ao passo que um homem nascido antes de 6 de dezembro de 1953 só tem direito a receber essa pensão a partir dos 65 anos.

8        A section 1 do Gender Recognition Act 2004 (Lei do reconhecimento da identidade sexual, de 2004, a seguir «GRA») dispunha, na versão aplicável ao litígio no processo principal, que qualquer pessoa podia requerer ao Gender Recognition Panel (Painel de reconhecimento da identidade sexual, a seguir «GRP») a emissão de uma certidão definitiva de reconhecimento da identidade sexual, com averbamento da mudança de identidade sexual, com base no facto de viver segundo as características do sexo oposto. O sexo do requerente objeto dessa certidão de reconhecimento constituía, segundo os termos desta disposição, a identidade sexual adquirida.

9        A section 2(1) desta lei previa que o GRP estava obrigado a emitir uma certidão de reconhecimento quando o requerente:

«a)      sofra ou tenha sofrido de transtorno da identidade de género;

b)      tenha vivido [com a identidade sexual adquirida] durante pelo menos dois anos antes da data da apresentação do requerimento;

c)      tinha a intenção de manter [a identidade sexual adquirida] até ao fim da vida; e

d)      preencha os requisitos de prova previstos na section 3 [do GRA].»

10      Para obter essa certidão, o requerente devia apresentar, segundo a section 3 da referida lei, com a epígrafe «Provas», um relatório médico elaborado por dois médicos ou por um médico e um psicólogo.

11      A section 4 do GRA, com a epígrafe «Pedidos aceites», previa, na subsection (2), que um requerente não casado podia obter uma certidão definitiva de reconhecimento, ao passo que, nos termos da subsection (3) dessa section, um requerente casado só podia obter uma certidão provisória de reconhecimento.

12      A section 9(1) dessa lei dispunha que a emissão de uma certidão definitiva de reconhecimento implicava, para todos os efeitos, o pleno reconhecimento da identidade sexual adquirida pelo requerente. Segundo o anexo 5, n.o 7, da referida lei, que tratava especificamente dos efeitos da certidão definitiva de reconhecimento em termos de elegibilidade para uma pensão de reforma do Estado, a emissão dessa certidão tinha por consequência que qualquer questão relacionada com o direito do interessado a uma pensão de reforma do Estado devia ser analisada como se o mesmo tivesse tido sempre a identidade sexual adquirida.

13      A certidão provisória de reconhecimento permitia ao requerente casado obter a anulação do casamento por um tribunal. Segundo a section 5(1) da GRA, o tribunal que proferia a anulação do casamento ficava obrigado a emitir uma certidão definitiva de reconhecimento.

14      A section 11(c) do Matrimonial Causes Act 1973 (Lei relativa ao matrimónio, de 1973) dispunha, na versão aplicável ao período em causa no processo principal, que só podia legalmente existir uma união matrimonial válida entre um homem e uma mulher.

15      O Marriage (Same Sex Couples) Act 2013 (Lei relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, de 2013), que entrou em vigor em 10 de dezembro de 2014, permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. As disposições do seu anexo 5 alteraram as da section 4 da GRA no sentido de que o GRP está obrigado a emitir uma certidão definitiva de reconhecimento a um requerente casado, se o seu cônjuge o consentir expressamente. Contudo, a Lei relativa ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, de 2013, não é aplicável ao litígio no processo principal.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

16      MB é uma pessoa nascida em 1948 e registada com o sexo masculino, que casou em 1974. Começou a viver como mulher em 1991 e, em 1995, recorreu a uma operação cirúrgica para mudança de sexo.

17      Todavia, MB não dispõe de uma certidão definitiva de reconhecimento da sua mudança de identidade sexual, cuja emissão pressupunha, nos termos da legislação nacional em causa no processo principal, a anulação do seu casamento. Com efeito, a própria MB e a esposa pretendem manter o vínculo do matrimónio por motivos religiosos.

18      Em 2008, MB, que completou 60 anos de idade, ou seja, a idade em que as mulheres nascidas antes de 6 de abril de 1950 podem, segundo o direito nacional, obter uma pensão de reforma do Estado da «categoria A», apresentou um pedido para beneficiar desta pensão a partir dessa idade, tendo em conta as quotizações pagas durante a sua vida profissional para o regime de pensões do Estado.

19      Esse pedido foi indeferido por decisão de 2 de setembro de 2008, uma vez que, na falta de uma certidão definitiva de reconhecimento da sua mudança de identidade sexual, MB não podia ser tratada como mulher para efeitos da determinação da idade legal da sua aposentação.

20      Foi negado provimento ao recurso interposto por MB dessa decisão tanto pelo First‑tier Tribunal (Tribunal de Primeira Instância, Reino Unido) como pelo Upper Tribunal (Tribunal Superior) e pela Court of Appeal (Tribunal de Recurso).

21      MB interpôs recurso na Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), com o fundamento de que a legislação nacional em causa no processo principal constitui uma discriminação em razão do sexo, proibida pelo artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 79/7.

22      Segundo as indicações que constam da decisão de reenvio, MB preenche os requisitos de ordem física, social e psicológica previstos pela legislação nacional em matéria de estado civil, que está em causa no processo principal, para efeitos do reconhecimento jurídico da sua mudança de identidade sexual. O órgão jurisdicional de reenvio expõe que, no entanto, à data dos factos que estão na origem do litígio no processo principal, a legislação nacional subordinava esse reconhecimento, bem como a emissão da certidão mencionada no n.o 17 do presente acórdão, à anulação do casamento celebrado antes dessa mudança de identidade sexual. Sempre segundo o referido órgão jurisdicional, também era exigida essa anulação para que uma pessoa que tivesse mudado de identidade sexual, como MB, tivesse acesso à referida pensão de reforma a partir da idade legal de aposentação das pessoas com identidade sexual igual à adquirida por essa pessoa.

23      No órgão jurisdicional de reenvio, o Secretário de Estado do Trabalho e da Reforma alegou que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 7 de janeiro de 2004, K. B. (C‑117/01, EU:C:2004:7, n.o 35), e de 27 de abril de 2006, Richards (C‑423/04, EU:C:2006:256, n.o 21), que incumbe aos Estados‑Membros determinar os requisitos do reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual de uma pessoa. Sustentou que esses requisitos não podem limitar‑se a critérios sociais, físicos e psicológicos, mas podem igualmente incluir requisitos relativos ao estado civil.

24      Neste contexto, o Secretário de Estado do Trabalho e da Reforma salientou que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconheceu que os Estados‑Membros podem subordinar o reconhecimento da mudança de identidade sexual de uma pessoa ao requisito da anulação do seu casamento (TEDH, 16 de julho de 2014, Hämäläinen c. Finlândia, CE:ECHR:2014:0716JUD003735909). Alegou que, embora a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, imponha aos Estados Contratantes o reconhecimento da identidade sexual de uma pessoa que mudou de sexo, essa convenção não lhes exige, todavia, que autorizem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com efeito, o objetivo de preservar a conceção tradicional do casamento como uma união entre um homem e uma mulher poderia justificar a subordinação do reconhecimento da mudança de identidade sexual a esse requisito.

25      Nestas circunstâncias, a Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A Diretiva [79/7] opõe‑se a que a legislação nacional, além da exigência de cumprimento de critérios físicos, sociais e psicológicos para o reconhecimento de uma mudança de identidade sexual, imponha a uma pessoa que tenha mudado de identidade sexual que [não seja casada] para ter o direito de beneficiar de uma pensão de reforma do Estado?»

 Quanto à questão prejudicial

26      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 79/7, em especial o seu artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, conjugado com os artigos 3.o, n.o 1, alínea a), terceiro travessão, e 7.o, n.o 1, alínea a), deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impõe a uma pessoa que mudou de identidade sexual o cumprimento não apenas de critérios de ordem física, social e psicológica, mas também do requisito de não ser casada com uma pessoa com identidade sexual igual à que ela adquiriu na sequência dessa mudança, para poder beneficiar de uma pensão de reforma do Estado a partir da idade legal de aposentação das pessoas com a identidade sexual adquirida.

27      A título preliminar, importa observar que o processo principal e a questão submetida ao Tribunal de Justiça têm apenas por objeto as condições de atribuição da pensão de reforma do Estado em causa no processo principal. Deste modo, não foi submetida ao Tribunal de Justiça a questão de saber se, de um modo geral, o reconhecimento jurídico de uma mudança de identidade sexual pode ser subordinado à anulação de um casamento celebrado em momento anterior à referida mudança.

28      O Governo do Reino Unido defende que o reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual e o casamento são questões da competência dos Estados‑Membros em matéria de estado civil. No exercício dessa competência, os Estados‑Membros que não autorizam o casamento entre pessoas do mesmo sexo podem assim fazer depender a concessão de uma pensão de reforma do Estado da anulação de um casamento anterior entre essas pessoas.

29      A este respeito, importa recordar que, embora o direito da União não prejudique a competência dos Estados‑Membros no domínio do estado civil das pessoas e do reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual de uma pessoa, os Estados‑Membros devem, todavia, no exercício dessa competência, respeitar o direito da União, nomeadamente as disposições relativas ao princípio da não‑discriminação (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 27 de abril de 2006, Richards, C‑423/04, EU:C:2006:256, n.os 21 a 24; de 1 de abril de 2008, Maruko, C‑267/06, EU:C:2008:179, n.o 59; e de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.os 37 e 38 e jurisprudência referida).

30      Assim, resulta, nomeadamente, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que uma legislação nacional que subordina a atribuição de uma pensão a um requisito relativo ao estado civil não está subtraída ao respeito do princípio da não discriminação em razão do sexo, consagrado no artigo 157.o TFUE, no domínio da remuneração dos trabalhadores (v., neste sentido, no que respeita ao artigo 141.o CE, Acórdão de 7 de janeiro de 2004, K. B., C‑117/01, EU:C:2004:7, n.os 34 a 36).

31      Daqui resulta que o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 79/7, que concretiza o princípio da não discriminação em razão do sexo em matéria de segurança social, deve ser respeitado pelos Estados‑Membros quando exercem a sua competência no domínio do estado civil.

32      Em especial, este artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, conjugado com o artigo 3.o, n.o 1, alínea a), terceiro travessão, desta diretiva, proíbe qualquer discriminação em razão do sexo no que se refere, nomeadamente, às condições de acesso aos regimes legais que asseguram uma proteção contra os riscos da velhice.

33      É pacífico entre as partes no processo principal que o regime de pensões de reforma do Estado em causa faz parte desses regimes.

34      Como resulta do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/54, constitui uma discriminação direta em razão do sexo a situação em que uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável devido ao seu sexo que o tratamento que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável. Importa compreender este conceito da mesma forma no contexto da Diretiva 79/7.

35      Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, esta última diretiva, tendo em conta o seu objetivo e a natureza dos direitos que visa proteger, destina‑se igualmente a ser aplicada às discriminações que têm a sua origem na mudança de identidade sexual do interessado (v., neste sentido, Acórdão de 27 de abril de 2006, Richards, C‑423/04, EU:C:2006:256, n.os 23 e 24 e jurisprudência referida). A este respeito, como recordado no n.o 29 do presente acórdão, ainda que incumba aos Estados‑Membros determinar as condições do reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual de uma pessoa, impõe‑se constatar que, para efeitos da aplicação da Diretiva 79/7, deve considerar‑se que mudaram de identidade sexual as pessoas que tenham vivido durante um período significativo como pessoas de um sexo diferente do do seu nascimento e que tenham sido sujeitas a uma operação de mudança de sexo.

36      No caso em apreço, a legislação nacional em causa no processo principal subordina o acesso, por uma pessoa que mudou de identidade sexual, a uma pensão de reforma do Estado a partir da idade legal de aposentação das pessoas da identidade sexual por ela adquirida, nomeadamente, à anulação do casamento eventualmente celebrado em momento anterior a essa mudança. Em contrapartida, segundo as indicações que figuram nos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, esse requisito de anulação do casamento não é aplicável a uma pessoa que tenha conservado o seu sexo de nascimento e esteja casada, a qual pode assim beneficiar da referida pensão de reforma a partir da idade legal da aposentação das pessoas do mesmo sexo, independentemente do seu estado civil.

37      Afigura‑se, assim, que essa legislação nacional concede um tratamento menos favorável a uma pessoa que mudou de identidade sexual após o seu casamento do que a uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada.

38      Esse tratamento menos favorável em razão do sexo é suscetível de constituir uma discriminação direta na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 79/7.

39      Falta ainda verificar se são comparáveis as situações de uma pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento e a de uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada.

40      O Governo do Reino Unido considera que estas situações não são comparáveis pelo facto de as pessoas em causa apresentarem uma diferença quanto ao seu estado civil. Com efeito, a pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento passa a estar casada com uma pessoa do sexo que ela adquiriu, o que, em contrapartida, não é o caso de uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento e que está casada com uma pessoa do sexo oposto. À luz da finalidade do requisito de anulação do casamento em causa no processo principal, que visa evitar a existência de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, essa diferença significa, segundo esse governo, que as situações dessas pessoas não são comparáveis.

41      A este respeito, importa recordar que o requisito relativo ao caráter comparável das situações não requer que as mesmas sejam idênticas, mas simplesmente semelhantes (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de maio de 2011, Römer, C‑147/08, EU:C:2011:286, n.o 42, e de 19 de julho de 2017, Abercrombie & Fitch Italia, C‑143/16, EU:C:2017:566, n.o 25 e jurisprudência referida).

42      O caráter comparável das situações não deve ser apreciado de modo global e abstrato, mas de modo específico e concreto em relação a todos os elementos que as caracterizam, na perspetiva, nomeadamente, do objeto e da finalidade da legislação nacional que institui a distinção em causa, bem como, sendo caso disso, dos princípios e objetivos do domínio a que pertence essa legislação nacional (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2008, Arcelor Atlantique e Lorraine e o., C‑127/07, EU:C:2008:728, n.os 25 e 26; de 16 de julho de 2015, CHEZ Razpredelenie Bulgaria, C‑83/14, EU:C:2015:480, n.os 89 e 90, e de 9 de março de 2017, Milkova, C‑406/15, EU:C:2017:198, n.os 56 e 57 e jurisprudência referida).

43      No caso em apreço, resulta das indicações que constam da decisão de reenvio que a legislação nacional em causa no processo principal tem por objeto a atribuição da pensão de reforma do Estado «da categoria A», a que têm direito as pessoas que atingiram a idade legal de aposentação. Na audiência perante o Tribunal de Justiça, as partes no processo principal precisaram que o direito nacional atribui tal pensão de reforma a qualquer pessoa que tenha atingido essa idade e tenha contribuído suficientemente para o regime público de pensões do Reino Unido. Afigura‑se, assim, que o regime legal das pensões do Estado em causa no processo principal protege contra o risco de velhice ao conferir à pessoa a que respeita um direito individual a uma pensão de reforma em função das contribuições pagas durante a sua carreira contributiva, independentemente do seu estado civil.

44      Tendo em conta o objetivo e as condições de atribuição desta pensão de reforma, conforme precisados no número precedente, a situação de uma pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento e a de uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada são, portanto, comparáveis.

45      Como observou o advogado‑geral no n.o 43 das conclusões, o argumento do Governo do Reino Unido, porque põe em evidência a diferença de estado civil destas pessoas, equivale a transformar este último no elemento decisivo da comparabilidade das situações em causa, ao passo que o estado civil é enquanto tal, como salientado no n.o 43 do presente acórdão, irrelevante para efeitos da atribuição da pensão de reforma do Estado em causa no processo principal.

46      Além disso, o objetivo do requisito de anulação do casamento invocado pelo referido governo, a saber, evitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, é externo ao regime desta pensão de reforma. Em consequência, não afeta o caráter comparável da situação de uma pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento e a de uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada, à luz do objetivo e das condições de atribuição da referida pensão de reforma, conforme precisadas no n.o 43 do presente acórdão.

47      Esta interpretação não é infirmada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, à qual também se refere o Governo do Reino Unido para contestar o caráter comparável da situação dessas pessoas. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 44 das conclusões, no Acórdão de 16 de julho de 2014, Hämäläinen c. Finlândia (CE:ECHR:2014:0716JUD003735909, §§ 111 e 112), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem apreciou o caráter comparável ou não da situação de uma pessoa que sofreu uma operação de mudança de sexo após o casamento e a situação de uma pessoa casada que não mudou de sexo, à luz da finalidade da legislação nacional em causa, que versava sobre o reconhecimento jurídico da mudança de identidade sexual em matéria de estado civil. Em contrapartida, conforme salientado no n.o 27 do presente acórdão, está em causa, no âmbito deste processo, o caráter comparável da situação das pessoas envolvidas à luz de uma legislação cujo objeto respeita especificamente ao acesso a uma pensão de reforma do Estado.

48      Importa pois declarar que a legislação nacional em causa no processo principal reserva um tratamento menos favorável, diretamente em razão do sexo, a uma pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento do que a uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada, ainda que essas pessoas estejam em situação comparável.

49      No entanto, o Governo do Reino Unido defende que o objetivo de evitar a existência de um casamento entre pessoas do mesmo sexo podia justificar a aplicação, apenas às pessoas que mudaram de identidade sexual, de um requisito de anulação do casamento anteriormente celebrado por essa pessoa, quando o direito nacional não autorizava, à data dos factos na origem do litígio no processo principal, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

50      Todavia, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma derrogação à proibição, estabelecida no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 79/7, de toda e qualquer discriminação direta em razão do sexo só é possível nos casos enumerados de forma exaustiva pelas disposições desta diretiva (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de julho de 2005, Vergani, C‑207/04, EU:C:2005:495, n.os 34 e 35, e de 3 de setembro de 2014, X, C‑318/13, EU:C:2014:2133, n.os 34 e 35). Ora, o objetivo invocado pelo Governo do Reino Unido não corresponde a nenhuma das derrogações admitidas por esta diretiva.

51      No que se refere, mais especificamente, à derrogação prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva, o Tribunal de Justiça já declarou que a mesma não permite aos Estados‑Membros tratar de forma diferente uma pessoa que mudou de identidade sexual após o casamento e uma pessoa que conservou o seu sexo de nascimento estando casada, no que se refere à idade que condiciona o acesso a uma pensão de reforma do Estado (v., neste sentido, Acórdão de 27 de abril de 2006, Richards, C‑423/04, EU:C:2006:256, n.os 37 e 38).

52      Por conseguinte, a legislação nacional em causa no processo principal constitui uma discriminação direta em razão do sexo e é, consequentemente, proibida pela Diretiva 79/7.

53      Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que a Diretiva 79/7, em especial o seu artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, conjugado com os artigos 3.o, n.o 1, alínea a), terceiro travessão, e 7.o, n.o 1, alínea a), deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impõe a uma pessoa que mudou de identidade sexual o cumprimento não apenas de critérios de ordem física, social e psicológica, mas também do requisito de não ser casada com uma pessoa com identidade sexual igual à que ela adquiriu na sequência dessa mudança, para poder beneficiar de uma pensão de reforma do Estado a partir da idade legal de aposentação das pessoas com a identidade sexual adquirida.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

A Diretiva 79/7/CEE do Conselho, de 19 de dezembro de 1978, relativa à realização progressiva do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres em matéria de segurança social, em especial o seu artigo 4.o, n.o 1, primeiro travessão, conjugado com os artigos 3.o, n.o 1, alínea a), terceiro travessão, e 7.o, n.o 1, alínea a), deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que impõe a uma pessoa que mudou de identidade sexual o cumprimento não apenas de critérios de ordem física, social e psicológica, mas também do requisito de não ser casada com uma pessoa com identidade sexual igual à que ela adquiriu na sequência dessa mudança, para poder beneficiar de uma pensão de reforma do Estado a partir da idade legal de aposentação das pessoas com a identidade sexual adquirida.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.