Language of document : ECLI:EU:C:2012:397

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

28 de junho de 2012 (*)

«Diretivas 2003/6/CE e 2003/124/CE — Informação privilegiada — Conceito de ‘informação com caráter preciso’ — Fases intermédias de um processo diferido no tempo — Referência a um conjunto de circunstâncias ou a um acontecimento razoavelmente previsível — Interpretação dos termos ‘razoavelmente previsível’ — Divulgação de informações relativas à substituição de um dirigente de uma sociedade»

No processo C‑19/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), por decisão de 22 de novembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 14 de janeiro de 2011, no processo

Markus Geltl

contra

Daimler AG,

sendo intervenientes:

Lothar Meier e o.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: J. N. Cunha Rodrigues, presidente de secção, U. Lõhmus (relator), A. Rosas, A. Ó Caoimh e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 2 de fevereiro de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de M. Geltl, por R. Lindner, Rechtsanwalt,

¾        em representação da Daimler AG, por M. Sustmann e R. Schmidt‑Bendum, Rechtsanwälte,

¾        em representação de L. Meier, por H. Schmidt, Rechtsanwalt,

¾        em representação de E. Endruweit e o., por R. Lindner,

¾        em representação do Governo belga, por M. Jacobs e J.‑C. Halleux, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo checo, por M. Smolek e D. Hadroušek, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo estónio, por M. Linntam, na qualidade de agente,

¾        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Russo, avvocato dello Stato,

¾        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e F. Matias Santos, na qualidade de agentes,

¾        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Hathaway, na qualidade de agente, assistido por A. Henshaw, barrister,

¾        em representação da Comissão Europeia, por G. Braun e R. Vasileva, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 21 de março de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado) (JO L 96, p. 16), bem como do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003, que estabelece as modalidades de aplicação da Diretiva 2003/6 no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada e à definição de manipulação de mercado (JO L 339, p. 70).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. Geltl à Daimler AG (a seguir «Daimler»), a propósito do prejuízo que aquele alega ter sofrido em virtude da publicação pretensamente tardia, por parte dessa sociedade, de informações relativas à saída antecipada do presidente do seu conselho de administração.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 2003/6

3        Os considerandos 2, 12, 16 e 24 da Diretiva 2003/6 enunciam:

«(2) A criação de um mercado financeiro integrado e eficiente pressupõe que seja garantida a integridade do mercado. O bom funcionamento dos mercados dos valores mobiliários e a confiança do público nos mesmos mercados são uma condição essencial do crescimento económico e da prosperidade. As situações de abuso de mercado prejudicam a integridade dos mercados financeiros e a confiança do público nos valores mobiliários e instrumentos derivados.

[...]

(12)      O abuso de mercado abrange o abuso de informação privilegiada e a manipulação de mercado. O objetivo da legislação contra o abuso de informação privilegiada é o mesmo da legislação contra a manipulação de mercado: garantir a integridade dos mercados financeiros comunitários e promover a confiança dos investidores nos mesmos. [...]

[...]

(16)      Informação privilegiada é toda a informação com caráter preciso, que não tenha sido tornada pública e diga respeito, direta ou indiretamente, a um ou mais emitentes de instrumentos financeiros ou a um ou mais instrumentos financeiros. Uma informação, que possa ter um efeito significativo sobre a formação e evolução dos preços de um mercado regulamentado enquanto tal, poderá ser considerada como uma informação indiretamente relacionada com um ou mais emitentes de instrumentos financeiros ou com um ou mais instrumentos financeiros derivados com eles relacionados.

[...]

(24)      Uma divulgação rápida e leal da informação ao público reforça a integridade do mercado, enquanto uma divulgação seletiva pelos emitentes pode conduzir a uma perda de confiança do investidor na integridade dos mercados financeiros. [...]»

4        O artigo 1.°, ponto 1, primeiro parágrafo, desta diretiva define o conceito de «informação privilegiada» como sendo «toda a informação com caráter preciso, que não tenha sido tornada pública e diga respeito, direta ou indiretamente, a um ou mais emitentes de instrumentos financeiros ou a um ou mais instrumentos financeiros e que, caso fosse tornada pública, seria suscetível de influenciar de maneira sensível o preço desses instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados».

5        O artigo 2.° da referida diretiva prevê:

«1.      Os Estados‑Membros proíbem qualquer pessoa referida no segundo parágrafo que detenha informação privilegiada de utilizar essa informação ao adquirir ou alienar, tentar adquirir ou alienar, por sua conta ou por conta de terceiro, direta ou indiretamente, os instrumentos financeiros a que essa informação diga respeito.

O disposto no primeiro parágrafo aplica‑se a qualquer pessoa que detenha a informação em questão:

a)      Em virtude da sua qualidade de membro dos órgãos de administração, de gestão ou de fiscalização do emitente;

b)      Em virtude da sua participação no capital do emitente;

c)      Em virtude do acesso a essa informação privilegiada por força do exercício da sua atividade, da sua profissão ou das suas funções; ou

d)      Em virtude das suas atividades criminosas.

2.      Quando a pessoa referida no n.° 1 for uma pessoa coletiva, a proibição imposta nesse número aplica‑se igualmente às pessoas singulares que participem na decisão de efetuar a operação por conta da pessoa coletiva em causa.

3.      O presente artigo não é aplicável às transações efetuadas para efeitos de execução de uma obrigação de aquisição ou de alienação de instrumentos financeiros que se torne exigível, sempre que essa obrigação resulte de um contrato celebrado antes de a pessoa em causa deter a informação privilegiada.»

6        O artigo 6.°, n.os 1 e 2, da mesma diretiva dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que os emitentes de instrumentos financeiros tornem públicas o mais rapidamente possível as informações privilegiadas que digam diretamente respeito a esses emitentes.

[...]

2.      Um emitente pode assumir a responsabilidade de diferir a publicação de uma informação privilegiada, referida no n.° 1, de molde a não prejudicar os seus legítimos interesses, desde que tal omissão não seja suscetível de induzir o público em erro e que o emitente seja capaz de assegurar a confidencialidade dessa informação. Os Estados‑Membros podem exigir que um emitente informe sem demora a autoridade competente da decisão de diferir a publicação da informação privilegiada.»

 Diretiva 2003/124

7        Nos termos dos considerandos 1 e 3 da Diretiva 2003/124:

«(1)      Os investidores razoáveis baseiam as suas decisões de investimento nas informações postas à sua disposição, isto é, informações disponíveis ex ante. Por conseguinte, a questão de saber se um investidor razoável, ao tomar a sua decisão de investimento é suscetível de ter em conta uma dada informação, deve ser apreciada com base na informação disponível ex ante. Esta avaliação deve ter em conta o impacto previsível das informações, à luz do conjunto das atividades do emitente com elas relacionadas, a fiabilidade da fonte de informação e quaisquer outras variáveis do mercado que possam afetar o instrumento financeiro relevante ou o instrumento financeiro derivado com ele relacionado, nas circunstâncias em causa.

[...]

(3)      A segurança jurídica deve ser reforçada para os participantes do mercado, através de uma definição mais estreita de dois dos elementos essenciais para a definição da noção de informação privilegiada, isto é, o caráter preciso dessa informação e o alcance do seu impacto potencial na cotação dos instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados.»

8        O artigo 1.° da mesma diretiva, que tem por epígrafe «Informação privilegiada», prevê:

«1.      Para efeitos de aplicação [do] disposto no n.° 1 do artigo 1.° da Diretiva 2003/6/CE, considera‑se que uma informação possui um caráter preciso se fizer referência a um conjunto de circunstâncias existentes ou razoavelmente previsíveis ou a um acontecimento já ocorrido ou razoavelmente previsível e se essa informação for suficientemente precisa para permitir retirar uma conclusão quanto ao eventual efeito desse conjunto de circunstâncias ou acontecimentos a nível dos preços dos instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados.

2.      Para efeitos de aplicação do n.° 1 do artigo 1.° da Diretiva 2003/6/CE, entende‑se por ‘informação que, caso fosse tornada pública, seria suscetível de influenciar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados’, a informação que um investidor razoável utilizaria normalmente para basear em parte as suas decisões de investimento.»

9        O artigo 3.°, n.° 1, da referida diretiva contém uma lista não exaustiva de situações com as quais podem estar relacionados os interesses legítimos de um emitente, na aceção do artigo 6.°, n.° 2, da Diretiva 2003/6, a saber, negociações em curso ou elementos conexos, sempre que a divulgação pública possa afetar os resultados ou o curso normal dessas negociações, bem como decisões tomadas ou contratos celebrados pelo órgão de direção de um emitente, que necessitem da aprovação de outro órgão do emitente para se tornarem efetivas, sempre que a organização deste último exigir a separação entre esses órgãos.

 Direito alemão

10      O § 13, n.° 1, da Lei relativa ao mercado de valores mobiliários (Gesetz über den Wertpapierhandel), na versão de 9 de setembro de 1998 (BGBl. 1998 I, p. 2708), conforme alterada pela Lei sobre a melhoria da proteção dos investidores (Gesetz zur Verbesserung des Anlegerschutzes), de 28 de outubro de 2004 (BGBl. 2004 I, p. 2630, a seguir «WpHG»), dispõe:

«Uma informação privilegiada é qualquer informação precisa que diga respeito a circunstâncias não conhecidas do público, relativas a um ou mais emitentes de títulos mobiliários privilegiados ou diretamente a esses títulos mobiliários privilegiados, e que, se fossem conhecidas do público, seriam suscetíveis de influenciar sensivelmente a cotação em bolsa ou o preço de mercado desses títulos mobiliários privilegiados. Uma informação é suscetível de ter uma tal influência, se um investidor razoável a tomar em consideração no momento de decidir dos seus investimentos. São igualmente tidas como circunstâncias, na aceção da primeira frase, as que se podem considerar, com suficiente probabilidade, que se verificarão no futuro. […]».

11      O artigo 6.°, n.os 1 e 2, da Diretiva 2003/6 foi transposto para a ordem jurídica alemã pelo § 15, n.os 1 e 3, da WpHG. Por força do n.° 6 desta última disposição, um emitente que infrinja as suas obrigações decorrentes dos n.os 1 a 4 da mesma disposição é responsável pelos danos daí resultantes sofridos por terceiros, nas condições referidas, nomeadamente, no § 37b da WpHG.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12      Resulta da decisão de reenvio que, após a assembleia‑geral da Daimler, de 6 de abril de 2005, J. Schrempp, presidente do conselho de administração desta última, tencionava renunciar ao seu mandato, que cessava em 2008. Em 17 de maio de 2005, comentou a sua intenção com o presidente do conselho de supervisão dessa sociedade, H. Kopper. Entre 1 de junho e 27 de julho de 2005, outros membros do conselho de supervisão e do conselho de administração foram igualmente informados da intenção de renúncia de J. Schrempp.

13      A partir de 10 de julho de 2005, a Daimler preparou um comunicado de imprensa, uma declaração externa e uma carta dirigida aos seus colaboradores.

14      Em 13 de julho de 2005, o comité executivo do conselho de supervisão da Daimler (a seguir «comité executivo») e o conselho de supervisão foram convocados, respetivamente, para os dias 27 e 28 de julho de 2005, sem que das convocatórias constasse alguma indicação acerca de uma eventual substituição do presidente do conselho de administração.

15      Em 18 de julho de 2005, J. Schrempp e H. Kopper acordaram propor, na reunião do conselho de supervisão de 28 de julho de 2005, a saída antecipada de J. Schrempp e a nomeação do seu sucessor, D. Zetsche.

16      Na reunião que começou em 27 de julho de 2005, às 17 horas, o comité executivo decidiu propor ao conselho de supervisão, que devia reunir‑se no dia seguinte, a aprovação desta saída e desta nomeação.

17      Em 28 de julho de 2005, pelas 9h50, o conselho de supervisão da Daimler decidiu que J. Schrempp renunciaria ao seu cargo no final do ano e que seria substituído por D. Zetsche.

18      Esta decisão foi comunicada às direções das bolsas e do Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (organismo federal de controlo dos serviços financeiros) e foi publicada na base de dados da Deutsche Gesellschaft für Ad‑hoc‑Publizität (sociedade alemã de publicações ad hoc).

19      Na sequência dessa publicação, o preço da ação da Daimler, que já se tinha valorizado após a publicação, nessa mesma manhã, dos resultados do segundo trimestre do ano de 2005, subiu fortemente.

20      M. Geltl e vários outros investidores tinham vendido ações da Daimler, antes da publicação da referida decisão. Apresentaram queixa contra essa sociedade, no Landgericht Stuttgart, e pediram uma indemnização, invocando o caráter tardio dessa publicação. Esse órgão jurisdicional pediu ao Oberlandesgericht Stuttgart que resolvesse várias questões relativas a esses litígios, no âmbito de um processo‑piloto («Musterverfahren»).

21      Na sua decisão‑piloto de 22 de abril de 2009, o Oberlandesgericht Stuttgart considerou que não era possível provar que, em 17 de maio de 2005 ou em data posterior, existisse a informação privilegiada de que J. Schrempp renunciaria ao seu cargo, independentemente da aprovação pelo conselho de supervisão da Daimler. Segundo esse órgão jurisdicional, o facto determinante que poderia ter tido incidência no preço da ação dessa sociedade foi a decisão do conselho de supervisão de 28 de julho de 2005. Essa decisão tinha‑se tornado suficientemente provável após o comité executivo ter decidido, em 27 de julho de 2005, depois das 17 horas, propor a sua adoção ao conselho de supervisão. Assim, só existia informação privilegiada desde esta última data. O Oberlandesgericht Stuttgart reconheceu que as condições de diferimento da publicação dessa informação, conforme previstas no § 15, n.° 3, da WpHG, não estavam totalmente reunidas, mas decidiu que o prejuízo invocado pelos queixosos teria ocorrido mesmo que tais condições tivessem sido preenchidas.

22      Chamado a conhecer do recurso, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o Oberlandesgericht Stuttgart não examinou se as fases individuais do processo que levou à decisão de 28 de julho de 2005 podiam ter influenciado o preço das ações da Daimler. Em contrapartida, no âmbito de um processo de contraordenação relativo a circunstâncias idênticas às do processo principal, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main considerou que a reunião de várias circunstâncias autónomas numa decisão global única é contrária à letra do § 13, n.° 1, da WpHG, bem como das Diretivas 2003/6 e 2003/124, e que, por conseguinte, a obrigação de publicação nasceu a partir do momento em que o processo interno resultou numa decisão e esta foi revelada a um responsável da empresa em causa.

23      Nestas condições, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Num procedimento continuado, no âmbito do qual se visa, através de vários passos intermédios, a concretização de certa circunstância ou a ocorrência de certo [acontecimento], releva apenas, para efeitos de aplicação do artigo 1.°, [ponto 1], da Diretiva 2003/6/CE e do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124/CE, que essa circunstância futura ou esse [acontecimento] futuro possa ser considerado uma informação precisa, na aceção das mencionadas disposições das diretivas, devendo‑se por conseguinte apreciar se é razoavelmente previsível que essa circunstância futura ou esse [acontecimento] futuro venha a ocorrer, ou no contexto do referido procedimento continuado também podem constituir informações precisas, na aceção das mencionadas disposições, os passos intermédios que se dão ou foram dados e que se relacionam com a concretização da circunstância ou do [acontecimento] futuro?

2)      Para que exista previsibilidade razoável, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124/CE, é necessário que essa previsibilidade seja classificada como preponderante ou elevada, ou, diferentemente, deve‑se entender, quanto às circunstâncias cuja existência futura ou quanto aos [acontecimentos] cuja ocorrência futura seja razoavelmente previsível, que o grau da previsibilidade depende da amplitude dos efeitos sobre o emitente, bastando assim, quando exista uma elevada suscetibilidade de influência dos preços dos instrumentos financeiros, que a ocorrência da circunstância ou do [acontecimento] futuro constitua uma hipótese em aberto, desde que não seja improvável?»

 Quanto às questões prejudiciais

24      A título preliminar, há que recordar que, a fim de garantir a integridade dos mercados financeiros da União Europeia e de reforçar a confiança dos investidores nesses mercados, a Diretiva 2003/6 proíbe o abuso de informação privilegiada, nas condições fixadas no seu artigo 2.°, e, em conformidade com o seu artigo 6.°, n.° 1, impõe que os emitentes de instrumentos financeiros tornem públicas, o mais rapidamente possível, as informações privilegiadas que lhes digam diretamente respeito. Em virtude do n.° 2 deste último artigo, a publicação dessa informação pode ser diferida, em determinadas condições, a fim de não prejudicar os interesses legítimos do emitente.

25      A definição do conceito de «informação privilegiada» resultante do artigo 1.°, ponto 1, primeiro parágrafo, da referida diretiva compreende quatro elementos essenciais. Em primeiro lugar, trata‑se de uma informação com caráter preciso. Em segundo lugar, essa informação não foi tornada pública. Em terceiro lugar, diz respeito, direta ou indiretamente, a um ou mais instrumentos financeiros ou aos respetivos emitentes. Em quarto lugar, caso fosse tornada pública, seria suscetível de influenciar de maneira sensível o preço desses instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados. O primeiro e quarto elementos são definidos de forma mais precisa, respetivamente, nos n.os 1 e 2 do artigo 1.° da Diretiva 2003/124.

26      As questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio têm em vista obter esclarecimentos sobre o primeiro dos elementos referidos, a saber, o caráter preciso de uma informação.

 Quanto à primeira questão

27      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6 e 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 devem ser interpretados no sentido de que, estando em causa um processo diferido no tempo, que visa concretizar uma certa circunstância ou provocar um certo acontecimento, podem constituir informações com caráter preciso, na aceção dessas disposições, não só essa circunstância ou esse acontecimento mas também as fases intermédias desse processo que já existem ou já decorreram e que estão relacionadas com a ocorrência dessa circunstância ou desse acontecimento.

28      Resulta do considerando 3 da Diretiva 2003/124 que esta tem por finalidade dar uma definição mais afinada ao conceito de «informação com caráter preciso» utilizado na Diretiva 2003/6, a fim de reforçar a segurança jurídica dos participantes no mercado em causa.

29      Nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124, considera‑se que uma informação possui caráter preciso se estiverem preenchidos dois requisitos cumulativos. Por um lado, a informação deve fazer referência a um conjunto de circunstâncias existentes ou razoavelmente previsíveis ou a um acontecimento já ocorrido ou razoavelmente previsível. Por outro lado, a informação deve ser suficientemente precisa para permitir retirar uma conclusão quanto ao eventual efeito desse conjunto de circunstâncias ou acontecimentos no nível dos preços dos instrumentos financeiros ou dos instrumentos financeiros derivados com eles relacionados.

30      Uma vez que os conceitos de «conjunto de circunstâncias» e de «acontecimento» não se encontram definidos na referida diretiva, importa recorrer ao respetivo sentido comum.

31      Há que concluir que uma fase intermédia de um processo diferido no tempo pode constituir, em si mesma, um conjunto de circunstâncias ou um acontecimento, de acordo com o significado comummente atribuído a esses termos.

32      Esta constatação é corroborada pelo artigo 3.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124, que enuncia, como exemplos de informações privilegiadas cuja publicação pode ser diferida em conformidade com o artigo 6.°, n.° 2, da Diretiva 2003/6, situações que constituem casos típicos de fases intermédias de processos graduais, a saber, as negociações em curso e as decisões tomadas ou os contratos celebrados pelo órgão de direção de um emitente, que necessitem da aprovação de outro órgão desse emitente para se tornarem efetivos.

33      Por outro lado, a Diretiva 2003/6 tem por finalidade, como resulta, designadamente, dos seus considerandos 2 e 12, garantir a integridade dos mercados financeiros da União e promover a confiança dos investidores nos mesmos. Esta confiança assenta, nomeadamente, no facto de estes últimos serem postos em situação de igualdade e serem protegidos contra, nomeadamente, a utilização ilícita de informações privilegiadas (v., neste sentido, acórdãos de 23 de dezembro de 2009, Spector Photo Group e Van Raemdonck, C‑45/08, Colet., p. I‑12073, n.° 47, e de 7 de julho de 2011, IMC Securities, C‑445/09, Colet., p. I‑5917, n.° 27).

34      A este respeito, a primeira frase do considerando 24 da referida diretiva dispõe que uma divulgação rápida e leal da informação ao público reforça a integridade do mercado, enquanto uma divulgação seletiva pelos emitentes pode conduzir a uma perda de confiança do investidor na integridade dos mercados financeiros.

35      Uma interpretação dos termos «conjunto de circunstâncias» e «acontecimento» que se abstraísse das fases intermédias de um processo diferido no tempo correria o risco de prejudicar os objetivos recordados nos dois números anteriores do presente acórdão. Com efeito, excluir a possibilidade de que uma informação relativa a uma fase de um processo diferido no tempo possa ser considerada como tendo caráter preciso, na aceção do artigo 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6, extinguiria a obrigação, prevista no artigo 6.°, n.° 1, primeiro parágrafo, desta, de tornar pública essa informação, ainda que tivesse um caráter claramente específico e que também estivessem presentes os restantes elementos constitutivos de uma informação privilegiada, conforme enumerados no n.° 25 do presente acórdão.

36      Numa situação desta natureza, certos detentores dessa informação poderiam vir a encontrar‑se numa posição de vantagem em relação aos outros investidores e ficariam em condições de tirar proveito dessa informação, em detrimento dos que a ignorassem (v., neste sentido, acórdão Spector Photo Group e Van Raemdonck, já referido, n.° 48).

37      O risco de essa situação se verificar seria tanto maior, em certas circunstâncias, quanto fosse possível qualificar o resultado de um processo particular como fase intermédia noutro processo, o qual, por sua vez, seria mais amplo.

38      Por conseguinte, uma informação relativa a uma fase intermédia que se inscreve num processo diferido no tempo pode constituir uma informação com caráter preciso. Importa realçar que esta interpretação não é válida unicamente para as fases que já existem ou já decorreram, dizendo igualmente respeito, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124, às fases razoavelmente previsíveis.

39      Conforme resulta do n.° 29 do presente acórdão, a qualificação de uma informação como informação com caráter preciso está subordinada ao preenchimento do segundo requisito mencionado na referida disposição, a saber, que a informação deve ser suficientemente precisa para permitir retirar uma conclusão quanto ao eventual efeito do conjunto de circunstâncias ou acontecimentos em questão no nível dos preços dos instrumentos financeiros em causa.

40      Por conseguinte, há que responder à primeira questão que os artigos 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6 e 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 devem ser interpretados no sentido de que, estando em causa um processo diferido no tempo, que visa concretizar uma certa circunstância ou provocar um certo acontecimento, podem constituir informações com caráter preciso, na aceção dessas disposições, não só essa circunstância ou esse acontecimento mas também as fases intermédias desse processo que estão relacionadas com a ocorrência dessa circunstância ou desse acontecimento.

 Quanto à segunda questão

41      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «conjunto de circunstâncias [...] razoavelmente previsíveis ou [de] acontecimento [...] razoavelmente previsível» tem unicamente em vista as circunstâncias ou os acontecimentos cuja probabilidade de ocorrer pode ser considerada preponderante ou elevada, ou se esse conceito implica que seja tomado em consideração o alcance do efeito desse conjunto de circunstâncias ou desse acontecimento no preço dos instrumentos financeiros em causa.

42      As diversas versões linguísticas da referida disposição apresentam ligeiras diferenças. Assim, algumas dessas versões, nomeadamente, as francesa, italiana e neerlandesa, utilizam os termos «pode razoavelmente pensar‑se», enquanto outras versões, nomeadamente, as dinamarquesa, grega, inglesa e sueca, empregam os termos «pode razoavelmente esperar‑se». As versões espanhola e portuguesa referem‑se, respetivamente, a «um conjunto de circunstâncias que podem razoavelmente existir» e a «um conjunto de circunstâncias ou um acontecimento razoavelmente previsível». Por fim, os termos utilizados na versão alemã são «com uma probabilidade suficiente» («mit hinreichender Wahrscheinlichkeit»).

43      Segundo jurisprudência assente, por um lado, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de base única para a interpretação dessa disposição ou ter, a esse respeito, caráter prioritário face às outras versões linguísticas. Por outro lado, as diferentes versões linguísticas de um texto do direito da União devem ser interpretadas de modo uniforme e, por isso, em caso de divergência entre essas versões, a disposição em causa deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento (v. acórdão de 28 de julho de 2011, Pacific World e FDD International, C‑215/10, Colet., p. I‑7255, n.° 48 e jurisprudência referida).

44      Ora, com exceção da versão alemã, as restantes versões linguísticas do artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 existentes no momento da adoção da mesma recorrem ao advérbio «razoavelmente». Com a utilização deste termo, o legislador da União instituiu um critério fundado nas regras de experiência comum, para determinar se circunstâncias e acontecimentos futuros são ou não abrangidos pelo âmbito de aplicação dessa disposição.

45      Para determinar se é razoável pensar que um conjunto de circunstâncias virá a existir ou que um acontecimento virá a ocorrer, há que proceder a uma apreciação casuística e global dos elementos já disponíveis.

46      Por conseguinte, o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124, ao utilizar os termos «razoavelmente previsível», não pode ser interpretado no sentido de que exige a demonstração de uma maior probabilidade das circunstâncias ou dos acontecimentos a que se refere.

47      Restringir a tal grau de probabilidade o âmbito de aplicação dos artigos 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6 e 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124, quando estão em causa circunstâncias e acontecimentos futuros, prejudicaria os objetivos recordados no n.° 33 do presente acórdão, a saber, a garantia da integridade dos mercados financeiros da União e o reforço da confiança dos investidores nesses mercados. Com efeito, em tal caso, as pessoas detentoras de uma informação privilegiada poderiam tirar indevidamente proveito de certas informações que, em razão dessa interpretação restrita, se considera não terem caráter preciso, em detrimento dos terceiros que delas não têm conhecimento.

48      Todavia, a fim de garantir a segurança jurídica aos participantes no mercado, evocada no considerando 3 da Diretiva 2003/124, entre os quais figuram os emitentes, não se pode considerar que as informações relativas a circunstâncias e acontecimentos cuja ocorrência não seja verosímil têm caráter preciso. Com efeito, no caso contrário, os emitentes poderiam considerar que estão obrigados a tornar públicas informações desprovidas de caráter concreto ou insuscetíveis de influenciar o preço dos respetivos instrumentos financeiros.

49      Daí decorre que, ao utilizar os termos «razoavelmente previsíveis», o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 tem em vista as circunstâncias e os acontecimentos futuros em relação aos quais, com base numa apreciação global dos elementos já disponíveis, se afigura haver uma perspetiva real de virem a existir ou a ocorrer.

50      No que diz respeito à questão de saber se a probabilidade exigida de ocorrência de um conjunto de circunstâncias ou de um acontecimento pode variar consoante o alcance dos seus efeitos no preço dos instrumentos financeiros em causa, há que responder pela negativa.

51      Em primeiro lugar, tal interpretação do significado dos termos «razoavelmente previsíveis» não decorre de nenhuma das versões linguísticas citadas no n.° 42 do presente acórdão.

52      Em segundo lugar, a interpretação de acordo com a qual quanto maior for o alcance do possível efeito de um acontecimento futuro no preço dos instrumentos financeiros em causa menor será o grau de probabilidade exigido para que se considere que a informação respeitante a esse acontecimento futuro tem caráter preciso subentenderia que cada um dos dois elementos constitutivos de uma informação privilegiada, enunciados, respetivamente, nos n.os 1 e 2 do artigo 1.° da Diretiva 2003/124, a saber, o caráter preciso de uma informação e a capacidade da mesma para influenciar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros em causa, depende do outro elemento.

53      Os critérios referidos nesses dois números constituem requisitos mínimos que devem ser verificados cumulativamente para que uma informação possa ser qualificada de «privilegiada» na aceção do artigo 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6.

54      Conforme assinalou o Governo do Reino Unido nas suas observações submetidas ao Tribunal de Justiça, não se pode excluir a possibilidade de uma informação relativa a um acontecimento pouco provável influenciar de maneira sensível o preço dos títulos do emitente em causa, visto que as consequências desse acontecimento para o referido emitente podem ter particular importância. Contudo, daí não se pode razoavelmente inferir que o referido acontecimento virá a ocorrer.

55      Como resulta do considerando 1 da Diretiva 2003/124, é certo que os investidores razoáveis baseiam as suas decisões de investimento em todas as informações disponíveis ex ante. Por conseguinte, devem ter em conta não só o «impacto previsível» de um acontecimento no emitente mas também o grau de probabilidade da ocorrência desse acontecimento. Porém, estas considerações tendem a determinar se uma informação é suscetível de influenciar de maneira sensível o preço dos instrumentos financeiros do emitente.

56      Atendendo às observações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «conjunto de circunstâncias [...] razoavelmente previsíveis ou [de] acontecimento [...] razoavelmente previsível» tem em vista as circunstâncias ou os acontecimentos futuros em relação aos quais, com base na apreciação global dos elementos já disponíveis, se afigura haver uma perspetiva real de virem a existir ou a ocorrer. Porém, não se pode interpretar este conceito no sentido de que deve ser tido em conta o alcance do efeito deste conjunto de circunstâncias ou deste acontecimento no preço dos instrumentos financeiros em causa.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      Os artigos 1.°, ponto 1, da Diretiva 2003/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2003, relativa ao abuso de informação privilegiada e à manipulação de mercado (abuso de mercado), e 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124/CE da Comissão, de 22 de dezembro de 2003, que estabelece as modalidades de aplicação da Diretiva 2003/6/CE no que diz respeito à definição e divulgação pública de informação privilegiada e à definição de manipulação de mercado, devem ser interpretados no sentido de que, estando em causa um processo diferido no tempo, que visa concretizar uma certa circunstância ou provocar um certo acontecimento, podem constituir informações com caráter preciso, na aceção dessas disposições, não só essa circunstância ou esse acontecimento mas também as fases intermédias desse processo que estão relacionadas com a ocorrência dessa circunstância ou desse acontecimento.

2)      O artigo 1.°, n.° 1, da Diretiva 2003/124 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «conjunto de circunstâncias [...] razoavelmente previsíveis ou [de] acontecimento [...] razoavelmente previsível» tem em vista as circunstâncias ou os acontecimentos futuros em relação aos quais, com base na apreciação global dos elementos já disponíveis, se afigura haver uma perspetiva real de virem a existir ou a ocorrer. Porém, não se pode interpretar este conceito no sentido de que deve ser tido em conta o alcance do efeito deste conjunto de circunstâncias ou deste acontecimento no preço dos instrumentos financeiros em causa.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.