Language of document : ECLI:EU:C:2024:152

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

22 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Artigo 63.o TFUE — Livre circulação de capitais — Diretiva 2008/7/CE — Bancos de crédito cooperativo cujo património líquido é superior a um determinado limiar — Legislação nacional que obriga estes bancos a pagar um montante correspondente a 20 % do referido património líquido para transferirem a instituição bancária para uma sociedade anónima em troca de ações desta última — Artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Dever de indicar as razões que justificam a necessidade de uma resposta do Tribunal de Justiça — Situação puramente interna — Inadmissibilidade»

No processo C‑660/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), por Decisão de 11 de outubro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de outubro de 2022, no processo

Ente Cambiano Società cooperativa per azioni

contra

Agenzia delle Entrate,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: T. von Danwitz (relator), presidente de secção, P. G. Xuereb e I. Ziemele, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Ente Cambiano società cooperativa per azioni, por A. Cevese, A. Dal Ferro, M. Miccinesi e F. Pistolesi, avvocati,

–        em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Cherubini e por G. M. De Socio, avvocati dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Armenia, M. Mataija e P. Messina, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 63.o TFUE, bem como dos artigos 101.o, 102.o, 120.o e 173.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ente Cambiano società cooperativa per azioni à Agenzia delle Entrate (Administração Fiscal, Itália), a respeito da devolução de uma quantia correspondente a 20 % do seu património líquido em 31 de dezembro de 2015, paga àquela Administração para conservar a forma jurídica de sociedade cooperativa aquando da transferência da sua atividade bancária para uma sociedade anónima em troca de ações desta última.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        A Diretiva 2008/7/CE do Conselho, de 12 de fevereiro de 2008, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (JO 2008, L 46, p. 11), em conformidade com o seu artigo 16.o, revogou e substituiu, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2009, a Diretiva 69/335/CEE do Conselho, de 17 de julho de 1969, relativa aos impostos indiretos que incidem sobre as reuniões de capitais (JO 1969, L 249, p. 25).

4        O artigo 1.o da Diretiva 2008/7, com a epígrafe «Objeto», prevê:

«A presente diretiva regula a aplicação de impostos indiretos sobre:

a)      Entradas de capital em sociedades de capitais;

b)      Operações de reestruturação que envolvam sociedades de capitais;

c)      Emissão de determinados títulos e obrigações.»

5        Nos termos do artigo 2.o desta diretiva, sob a epígrafe «Sociedade de capitais»:

«1.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por sociedade de capitais:

a)      Qualquer sociedade que assuma uma das formas enunciadas no anexo I;

b)      Qualquer sociedade, associação ou pessoa coletiva cujas partes representativas do capital social ou do ativo sejam suscetíveis de ser negociadas em bolsa;

c)      Qualquer sociedade, associação ou pessoa coletiva com fins lucrativos, cujos membros tenham o direito de ceder sem autorização prévia as respetivas partes sociais a terceiros, só sendo responsáveis pelas dívidas da sociedade, associação ou pessoa coletiva até ao limite da respetiva participação.

2.      Para efeitos da presente diretiva, é equiparada às sociedades de capitais qualquer outra sociedade, associação ou pessoa coletiva com fins lucrativos.»

6        O artigo 3.o da referida diretiva, sob a epígrafe «Entradas de capital», dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, e sem prejuízo do disposto no artigo 4.o, são consideradas “entradas de capital” as seguintes operações:

a)      A constituição de uma sociedade de capitais;

b)      A transformação em sociedade de capitais de uma sociedade, associação ou pessoa coletiva que não seja sociedade de capitais;

c)      O aumento do capital social de uma sociedade de capitais mediante a entrada de ativos de qualquer espécie;

[…]»

7        O artigo 4.o da mesma diretiva, intitulado «Operações de reestruturação», prevê, no seu n.o 1:

«Para efeitos da presente diretiva, não são consideradas entradas de capital as seguintes “operações de reestruturação”:

a)      A transmissão por uma ou mais sociedades de capitais da totalidade do respetivo património, ou de um ou vários ramos da sua atividade, a uma ou mais sociedades de capitais em vias de constituição ou já constituídas, desde que a remuneração da transmissão consista, pelo menos em parte, em títulos representativos do capital da sociedade adquirente;

[…]»

8        O artigo 5.o da Diretiva 2008/7, sob a epígrafe «Operações não sujeitas a impostos indiretos», prevê, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros não devem sujeitar as sociedades de capitais a qualquer forma de imposto indireto sobre:

[…]

d)      Alterações do ato constitutivo ou dos estatutos de uma sociedade de capitais, designadamente as seguintes:

[…]

iii) a alteração do objeto social de uma sociedade de capitais,

[…]

e)      As operações de reestruturação referidas no artigo 4.o»

9        O artigo 6.o desta diretiva, sob a epígrafe «Impostos e direitos», prevê, no seu n.o 1:

«Em derrogação ao disposto no artigo 5.o, os Estados‑Membros podem cobrar os seguintes impostos e direitos:

a)      Impostos sobre a transmissão de valores mobiliários, cobrados forfetariamente ou não;

b)      Direitos de transmissão, incluindo os encargos de registo de propriedade que incidem sobre a entrada, numa sociedade de capitais, de bens imóveis ou de estabelecimentos comerciais sitos no respetivo território;

c)      Direitos de transmissão sobre ativos de qualquer natureza que constituam entradas de capital numa sociedade de capitais, na medida em que a transmissão dos referidos ativos não seja remunerada através de partes sociais;

d)      Direitos que onerem a constituição, inscrição ou extinção de privilégios e hipotecas;

e)      Direitos com caráter remuneratório;

f)      Imposto sobre o valor acrescentado.»

 Direito italiano

10      O artigo 2.o, n.os 3‑bis a 3-quater do decreto‑legge n.o 18 — Misure urgenti concernenti la riforma delle banche di credito cooperativo, la garanzia sulla cartolarizzazione delle sofferenze, il regime fiscale relativo alle procedure di crisi e la gestione collettiva del risparmio (Decreto‑Lei n.o 18 relativo a Medidas urgentes relativas à reforma dos bancos de crédito cooperativo, à garantia sobre a titularização dos créditos mal parados, ao regime fiscal relativo aos procedimentos de crise e à gestão coletiva de poupanças), de 14 de fevereiro de 2016 (GURI n.o 37, de 15 de fevereiro de 2016), convertido, com alterações, pela legge n.o 49 (Lei n.o 49), de 8 de abril de 2016 (GURI n.o 87, de 14 de abril de 2016), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto‑Lei n.o 18/2016») dispõe:

«3‑bis.      Em derrogação do disposto no artigo 150.o bis, n.o 5, do [Decreto Legislativo n.o 385 — Testo unico delle leggi in materia bancaria e creditizia (Decreto Legislativo n.o 385, Texto Consolidado das Leis em matéria bancária e creditícia), de 1 de setembro de 1993 (GURI n.o 230, de 30 de setembro de 1993, suplemento ordinário n.o 92)], a transferência não produz efeitos relativamente aos bancos de crédito cooperativo que, no prazo de sessenta dias a partir da data de entrada em vigor da lei que converte o presente decreto, apresentem ao [Banca d’Italia (Banco de Itália)], nos termos do artigo 58.o [do presente Decreto Legislativo n.o 385, de 1 de setembro de 1993], um requerimento, mesmo que conjunto, de transferência das respetivas instituições bancárias para uma mesma sociedade anónima, existente ou recentemente constituída, autorizada a exercer a atividade bancária, desde que o banco requerente ou, em caso de requerimento conjunto, pelo menos um dos bancos requerentes tenha, em 31 de dezembro de 2015, um património líquido superior a duzentos milhões de euros, tal como conste do balanço relativo a essa data, a respeito do qual o auditor não tenha emitido reservas.

3‑ter      No ato da transferência, o banco de crédito cooperativo contribuinte está obrigado a pagar aos cofres do Estado um montante de 20 % do património líquido em 31 de dezembro de 2015, como conste do balanço relativo a essa data, a respeito do qual o auditor não tenha emitido reservas.

3‑quater      Na sequência da transferência, o banco de crédito cooperativo contribuinte, que mantém as reservas indivisíveis após dedução do pagamento referido no n.o 3 ter, modifica o seu objeto social para excluir o exercício da atividade bancária e obriga‑se a manter as cláusulas mutualistas previstas no artigo 2514.o do codice civile (Código Civil), bem como a assegurar aos sócios serviços destinados a manter a relação com a sociedade anónima destinatária da transferência, incluindo serviços de formação e informação sobre temas de poupança e de promoção de programas de assistência. […] Em caso de incumprimento das obrigações previstas no presente número e nos n.os 3 bis e 3 ter, o património da sociedade contribuinte ou, consoante o caso, do banco de crédito cooperativo, é devolvido nos termos do artigo 17.o da Lei n.o 388, de 23 de dezembro de 2000. […]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

11      A Ente Cambiano, anteriormente Banca di Credito Cooperativo di Cambiano società cooperativa per azioni, banco de crédito cooperativo cujo património líquido era superior a 200 milhões de euros em 31 de dezembro de 2015, pagou aos cofres do Estado italiano o montante de 54 208 740 euros, que à data representava 20 % do seu património líquido, exercendo a opção dita «de saída» prevista no artigo 2.o, n.o 3‑bis, do Decreto‑Lei n.o 18/2016.

12      Em seguida, a Ente Cambiano apresentou um pedido de devolução deste montante, por considerar que a obrigação de proceder ao respetivo pagamento era contrária à Constituição italiana e ao direito da União. Tendo o pedido de devolução desta quantia, apresentado pela Ente Cambiano, sido objeto de uma decisão implícita de indeferimento, esta última interpôs recurso dessa decisão para a Commissione tributaria provinciale di Firenze (Comissão Tributária Provincial de Florença, Itália). Uma vez que este órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, a Ente Cambiano recorreu para a Commissione tributaria regionale della Toscana (Comissão Tributária Regional da Toscana, Itália), que negou provimento ao recurso por Acórdão de 15 de novembro de 2018.

13      A Ente Cambiano recorreu desse acórdão no órgão jurisdicional de reenvio, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), invocando a inconstitucionalidade da legislação nacional em causa no processo principal e a sua incompatibilidade com o direito da União.

14      Este órgão jurisdicional indica, em primeiro lugar, que submeteu à Corte Costituzionale (Tribunal Constitucional, Itália) questões de constitucionalidade relativas ao artigo 2.o, n.os 3‑ter e 3‑quater, do Decreto‑Lei n.o 18/2016, tendo este último declarado, no Acórdão n.o 149/2021 de 9 de julho de 2021, que essas questões eram infundadas.

15      O órgão jurisdicional de reenvio afirma, em seguida, que as disposições em causa se inscrevem no âmbito de uma reforma dos bancos de crédito cooperativo destinada a resolver as fragilidades estruturais decorrentes do modelo económico e de governação desses bancos, bem como da pequena dimensão da maior parte deles, reforçando o seu património para resistir a eventuais crises. Para este efeito, o modelo principal previsto pelo legislador italiano é a adesão desses bancos a um grupo bancário cooperativo liderado por uma sociedade holding, chefe de grupo, constituída sob a forma de uma sociedade anónima de, pelo menos, mil milhões de euros, detida maioritariamente pelos bancos em causa, e que exerce poderes de direção e de coordenação dos mesmos. Esta adesão não tem consequências no respetivo património. Só os bancos de crédito cooperativo de património líquido superior ao limiar fixado podem evitar aderir a esse grupo, sujeitando‑se às obrigações do artigo 2.o, n.os 3‑bis a 3‑quater, do Decreto‑Lei n.o 18/2016, sob pena de verem o seu património ser transferido para fundos mutualistas de promoção e de desenvolvimento da cooperação.

16      O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que os fundamentos de recurso relativos à violação do direito da União visam, nomeadamente, os princípios da livre concorrência e da preservação do mercado, consagrados nos artigos 101.o, 102.o, 120.o e 173.o TFUE, bem como o princípio da livre circulação de capitais, conforme enunciado no artigo 63.o TFUE e especificado pela Diretiva 2008/7.

17      Salienta que a Ente Cambiano defende que a obrigação de pagamento em causa viola esta diretiva na medida em que esta última consagra a neutralidade fiscal das entradas de capital, salvo nos casos previstos no artigo 6.o da referida diretiva, que não se aplicam ao caso em apreço.

18      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se a respeito da conformidade do artigo 2.o, n.os 3‑bis a 3‑quater, do Decreto‑Lei n.o 18/2016, com o direito da União, indicando, por um lado, que partilha as dúvidas da Ente Cambiano quanto à compatibilidade desta disposição com os princípios da livre circulação de capitais, da livre concorrência e da preservação do mercado reconhecidos por esse direito e, por outro, que não lhe parece possível uma interpretação conforme da referida disposição com o direito da União.

19      Nestas circunstâncias, a Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os artigos 63.o e seguintes, 101.o, 102.o, 120.o e 173.o TFUE opõem‑se a uma regulamentação nacional que, como o artigo 2.o, n.os 3‑ter e 3‑quater do [Decreto‑Lei n.o 18/2016], subordine ao pagamento de um montante correspondente a 20 % do património líquido em 31 de dezembro de 2015, a possibilidade de os bancos de crédito cooperativo com um património líquido, em 31 de dezembro de 2015, superior a duzentos milhões de euros, em vez de aderirem a um grupo, transferirem a instituição bancária para uma sociedade anónima, ainda que de constituição recente, autorizada a exercer a atividade bancária, modificando os seus estatutos de modo a excluir o exercício da atividade bancária e mantendo simultaneamente as cláusulas mutualistas referidas no artigo 2514.o do codice civile (Código Civil italiano), assegurando aos sócios serviços necessários à manutenção da relação com a sociedade anónima beneficiária da transferência, incluindo serviços de formação e informação sobre temas de poupança e de promoção dos programas de assistência?»

 Quanto à questão prejudicial

20      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o processo instituído pelo artigo 267.o TFUE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, graças ao qual o primeiro fornece aos segundos os elementos de interpretação do direito da União que lhes são necessários para a resolução do litígio que lhes cabe decidir (Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 44 e jurisprudência referida).

21      Uma vez que a decisão de reenvio serve de fundamento a este processo, o órgão jurisdicional nacional tem de explicar, no próprio pedido de decisão prejudicial, o quadro factual e regulamentar do litígio no processo principal e fornecer as explicações necessárias sobre as razões da escolha das disposições do direito da União cuja interpretação solicita e sobre o nexo que estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio que lhe foi submetido [v., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 4 de junho de 2020, C. F. (Fiscalização tributária), C‑430/19, EU:C:2020:429, n.o 23 e jurisprudência referida].

22      A este respeito, importa igualmente sublinhar que as informações que figuram nas decisões de reenvio devem permitir, por um lado, ao Tribunal de Justiça dar respostas úteis às questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional e, por outro, aos Governos dos Estados‑Membros, bem como aos demais interessados, exercer o direito que lhes é conferido pelo artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia de apresentarem observações. Incumbe ao Tribunal de Justiça garantir que essa possibilidade seja salvaguardada, tendo em conta que, ao abrigo desta disposição, só as decisões de reenvio são notificadas aos interessados (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, Irish Ferries, C‑570/19, EU:C:2021:664, n.o 134 e jurisprudência referida).

23      Estas exigências cumulativas em matéria de conteúdo das decisões de reenvio estão expressamente previstas no artigo 94.o do Regulamento de Processo, que o órgão jurisdicional de reenvio deve conhecer e respeitar escrupulosamente, no quadro da cooperação instituída no artigo 267.o TFUE (Despacho de 3 de julho de 2014, Talasca, C‑19/14, EU:C:2014:2049, n.o 21, e Acórdão de 9 de setembro de 2021, Toplofikatsia Sofia e o., C‑208/20 e C‑256/20, EU:C:2021:719, n.o 20 e jurisprudência referida). Tais exigências são, além disso, recordadas nos n.os 13, 15 e 16 das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1).

24      No caso em apreço, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 63.o, 101.o, 102.o, 120.o e 173.o TFUE se opõem a uma legislação nacional que prevê que a faculdade de os bancos de crédito cooperativo cujo património líquido, numa determinada data, seja superior a duzentos milhões de euros, em vez de aderirem a um grupo bancário cooperativo, entregarem o seu ramo de atividade bancária a uma sociedade anónima em contrapartida de ações desta, está sujeita ao pagamento de um montante correspondente a 20 % do seu património líquido nessa data. Também resulta do pedido de decisão prejudicial que, no âmbito do litígio no processo principal, a Ente Cambiano invoca a Diretiva 2008/7, que revogou e substituiu a Diretiva 69/335, em conjugação com a livre circulação de capitais sobre a qual esse órgão jurisdicional se interroga.

25      No que respeita aos artigos 101.o, 102.o, 120.o e 173.o TFUE, o referido órgão jurisdicional não indica as razões pelas quais pede a interpretação dessas disposições, nem o nexo que estabelece entre as mesmas e a legislação nacional aplicável ao litígio que lhe é submetido, contrariamente às exigências do artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Por conseguinte, a questão prejudicial é inadmissível na parte em que tem por objeto estas disposições do Tratado FUE.

26      Quanto ao artigo 63.o TFUE, como salientou a Comissão Europeia nas suas observações escritas, as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial revelam que todos os elementos do litígio no processo principal, que opõe uma sociedade com sede em Itália à Administração Fiscal italiana, se circunscrevem a este Estado‑Membro.

27      Ora, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as disposições do TFUE em matéria de livre prestação de serviços não são aplicáveis a uma situação em que todos os elementos se circunscrevem a um único Estado‑Membro. Nesse caso, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio indicar ao Tribunal de Justiça, no despacho de reenvio, como exige o artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, em que medida, não obstante o seu caráter puramente interno, o litígio nele pendente revela um elemento de conexão com as disposições do direito da União em matéria de liberdades fundamentais que torna a interpretação prejudicial solicitada necessária para a solução desse litígio (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.os 47 e 55 e jurisprudência referida).

28      Mais especificamente, resulta destas exigências que, para que se possa considerar que tal elo de ligação existe, o pedido de decisão prejudicial deve indicar claramente elementos concretos, ou seja, indícios que não sejam hipotéticos, mas sim certos, que permitam demonstrar de forma positiva a existência deste elo de ligação, sendo que o órgão jurisdicional de reenvio não se pode limitar a submeter ao Tribunal de Justiça elementos que permitam não excluir a existência desse elo ou que, considerados em abstrato, podem constituir indícios nesse sentido, devendo, pelo contrário, apresentar elementos objetivos e concordantes que permitam ao Tribunal de Justiça verificar a existência do elo em questão (Acórdão de 2 de março de 2023, Bursa Română de Mărfuri, C‑394/21, EU:C:2023:146, n.os 51 e 52 e jurisprudência referida).

29      No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio limita‑se a referir a argumentação da Ente Cambiano segundo a qual o facto de os bancos de crédito cooperativo cujo património líquido em 31 de dezembro de 2015 fosse superior a um limiar de 200 milhões de euros terem de pagar um montante que, nessa data, representava 20 % do seu património líquido, penalizava os bancos de crédito cooperativo mais sólidos, que poderiam atrair os investidores de outros Estados‑Membros. Este órgão jurisdicional não fornece nenhum elemento concreto que, na situação que é objeto do processo principal, permita confirmar a existência de um interesse de nacionais de outros Estados‑Membros em fazer uso das liberdades fundamentais em causa (v., por analogia, Acórdão de 20 de setembro de 2018, Fremoluc, C‑343/17, EU:C:2018:754, n.o 30). Na medida em que este pedido não cumpre as exigências impostas pela jurisprudência referida nos n.os 27 e 28 do presente acórdão, a questão prejudicial também é inadmissível na parte em que visa o artigo 63.o TFUE.

30      Quanto à Diretiva 2008/7, invocada no âmbito do litígio no processo principal pela Ente Cambiano, e segundo as indicações que figuram no pedido de decisão prejudicial, em conformidade com o artigo 2.o, n.os 3‑bis a 3‑quater, do Decreto‑Lei n.o 18/2016, afigura‑se que o pagamento aos cofres do Estado previsto no referido decreto‑lei e que é impugnado pela Ente Cambiano, bem como a taxa que lhe foi aplicada e a respetiva base tributável, que não corresponde a quaisquer lucros ou rendimentos da Ente Cambiano, mas ao seu património líquido como inscrito no seu balanço de 31 de dezembro de 2015, ocorre no momento em que se dá a transferência da instituição bancária para uma sociedade anónima em troca de ações desta última. O facto gerador deste pagamento é portanto a realização desta operação específica e não o exercício de uma atividade, ao passo que o seu caráter vinculativo resulta da sanção associada à não concretização do referido pagamento, também prevista nesta disposição.

31      Ora, embora estes elementos permitam determinar a aplicabilidade ratione materiae da Diretiva 2008/7 ao litígio no processo principal, havendo portanto que examinar se o referido pagamento deve ser qualificado de «imposto indireto», na aceção desta diretiva, que incide sobre uma operação de reestruturação referida no artigo 4.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva, para o qual remete o seu artigo 5.o, n.o 1, alínea e), na medida em que a transferência da instituição bancária em causa foi realizada por uma sociedade de capitais, as referidas indicações não permitem concluir pela aplicabilidade ratione personae desta mesma diretiva a este litígio. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio não abordou a questão de saber se os bancos de crédito cooperativo, como era o caso da recorrente no processo principal antes da sua reestruturação e da alteração dos seus estatutos depois de exercer a opção prevista no artigo 2.o, n.o 3‑bis, do Decreto‑Lei n.o 18/2016, são abrangidos pelo conceito de «sociedade de capitais», na aceção da Diretiva 2008/7, conforme definida no seu artigo 2.o

32      O órgão jurisdicional também não forneceu elementos no pedido prejudicial a respeito da questão de saber se, no caso em apreço, podem ser aplicadas as exceções ao artigo 5.o desta diretiva que resultam do seu artigo 6.o

33      Atendendo a estas incertezas no atinente à aplicabilidade da Diretiva 2008/7 ao litígio no processo principal, bem como à falta de qualquer tipo de indicações quanto à eventual qualificação de «imposto indireto», na aceção desta diretiva, cabe constatar que o pedido de decisão prejudicial não contém os elementos necessários para que se considere que esta diretiva é aplicável ao litígio, pelo que o Tribunal de Justiça não pode apreciar em que medida é necessária uma resposta à questão submetida para que o órgão jurisdicional de reenvio possa proferir a sua decisão.

34      Daqui resulta que o pedido de decisão prejudicial também é inadmissível na parte em que visa a referida diretiva.

35      No entanto, importa recordar que o órgão jurisdicional de reenvio conserva a possibilidade de submeter um novo pedido de decisão prejudicial no qual forneça ao Tribunal de Justiça todos os elementos que permitam a este último pronunciar‑se (v., neste sentido, Acórdão de 11 de setembro de 2019, Călin, C‑676/17, EU:C:2019:700, n.o 41 e jurisprudência referida).

36      Assim sendo, o pedido de decisão prejudicial deve ser declarado admissível.

 Quanto às despesas

37      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

O pedido de decisão prejudicial submetido pela Corte suprema di cassazione (Supremo Tribunal de Cassação, Itália), por Decisão de 11 de outubro de 2022, é inadmissível.

Assinaturas


*      Língua do processo: italiano.