Language of document : ECLI:EU:C:2024:163

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

22 de fevereiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Proteção dos trabalhadores em caso de insolvência do empregador — Diretiva 2008/94/CE — Tomada a cargo pelas instituições de garantia dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho — Exclusão em caso de resolução do contrato de trabalho por justa causa pelo trabalhador assalariado»

No processo C‑125/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence, França), por Decisão de 24 de fevereiro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 1 de março de 2023, no processo

Association Unedic délégation AGS de Marseille

contra

V,

W,

X,

Y,

Z,

Administrador da insolvência da sociedade K,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: F. Biltgen, presidente de secção, N. Wahl e M. L. Arastey Sahún (relatora), juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da association Unedic délégation AGS de Marseille, por I. Piquet‑Maurin, avocate,

–        em representação do Governo Francês, por R. Bénard e T. Lechevallier, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Clotuche‑Duvieusart e F. van Schaik, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador (JO 2008, L 283, p. 36).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a associação Unedic délégation AGS de Marseille (a seguir «AGS de Marselha») a V, W, X, Y e Z (a seguir «trabalhadores em causa»), bem como ao administrador da insolvência da sociedade K, a respeito do pagamento dos créditos em dívida desses trabalhadores após a entrada em liquidação judicial desta sociedade.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 3 e 7 da Diretiva 2008/94 enunciam:

«(3)      São necessárias disposições para proteger os trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador e para lhes assegurar um mínimo de proteção, em particular para garantir o pagamento dos seus créditos em dívida, tendo em conta a necessidade e um desenvolvimento económico e social equilibrado na Comunidade. Para esse efeito, os Estados‑Membros deverão criar uma instituição que garanta aos trabalhadores assalariados em causa o pagamento dos seus créditos em dívida.

[…]

(7)      Os Estados‑Membros podem estabelecer limites à responsabilidade das instituições de garantia, que devem ser compatíveis com o objetivo social da diretiva e podem tomar em consideração os diferentes valores dos créditos.»

4        O artigo 1.o desta diretiva prevê:

«1.      A presente diretiva aplica‑se aos créditos dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho existentes em relação a empregadores que se encontrem em estado de insolvência, na aceção do n.o 1 do artigo 2.o

2.      Os Estados‑Membros podem, a título excecional, excluir do âmbito de aplicação da presente diretiva os créditos de certas categorias de trabalhadores assalariados devido à existência de outras formas de garantia, se for determinado que estas asseguram aos interessados uma proteção equivalente à que resulta da presente diretiva.

[…]»

5        O artigo 2.o da referida diretiva dispõe:

«1.      Para efeitos do disposto na presente diretiva, considera‑se que um empregador se encontra em estado de insolvência quando tenha sido requerida a abertura de um processo coletivo, com base na insolvência do empregador, previsto pelas disposições legislativas, regulamentares e administrativas de um Estado‑Membro, que determine a inibição total ou parcial desse empregador da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico, ou de uma pessoa que exerça uma função análoga, e quando a autoridade competente por força das referidas disposições tenha:

a)      Decidido a abertura do processo; ou

b)      Declarado o encerramento definitivo da empresa ou do estabelecimento do empregador, bem como a insuficiência do ativo disponível para justificar a abertura do processo.

2.      A presente diretiva não prejudica o direito nacional no que se refere à definição dos termos “trabalhador assalariado”, “empregador”, “remuneração”, “direito adquirido” e “direito em vias de aquisição”.

[…]»

6        Nos termos do artigo 3.o da mesma diretiva:

«Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para que as instituições de garantia assegurem, sob reserva do artigo 4.o, o pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho, incluindo, sempre que o direito nacional o estabeleça, as indemnizações pela cessação da relação de trabalho.

Os créditos a cargo da instituição de garantia consistem em remunerações em dívida correspondentes a um período anterior e/ou, conforme os casos, posterior a uma data fixada pelos Estados‑Membros.»

7        O artigo 4.o da Diretiva 2008/94 tem a seguinte redação:

«1.      Os Estados‑Membros têm a faculdade de limitar a obrigação de pagamento das instituições de garantia a que se refere o artigo 3.o

2.      Quando os Estados‑Membros fizerem uso da faculdade a que se refere o n.o 1, devem determinar a duração do período que dá lugar ao pagamento dos créditos em dívida pela instituição de garantia. Contudo, esta duração não pode ser inferior ao período relativo à remuneração dos três últimos meses da relação de trabalho anterior e/ou posterior à data a que se refere o segundo parágrafo do artigo 3.o

Os Estados‑Membros podem calcular este período mínimo de três meses com base num período de referência cuja duração não pode ser inferior a seis meses.

Os Estados‑Membros que fixarem um período de referência não inferior a 18 meses têm a possibilidade de reduzir a oito semanas o período que dá lugar ao pagamento dos créditos em dívida pela instituição de garantia. Neste caso, para o cálculo do período mínimo, são considerados os períodos mais favoráveis aos trabalhadores assalariados.

3.      Os Estados‑Membros podem estabelecer limites máximos em relação aos pagamentos efetuados pela instituição de garantia. Estes limites não devem ser inferiores a um limiar socialmente compatível com o objetivo social da presente diretiva.

Quando os Estados‑Membros fizerem uso desta faculdade, devem comunicar à Comissão [Europeia] os métodos através dos quais estabeleceram o referido limite máximo.»

8        O artigo 11.o desta diretiva prevê:

«A presente diretiva não prejudicará a faculdade de os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições legislativas, regulamentares ou administrativas mais favoráveis aos trabalhadores assalariados.

A aplicação da presente diretiva não pode, de modo algum, constituir motivo para justificar um retrocesso em relação à situação existente nos Estados‑Membros no que se refere ao nível geral da proteção dos trabalhadores assalariados no domínio por ela abrangido.»

9        O artigo 12.o da referida diretiva dispõe:

«A presente diretiva não prejudicará a faculdade de os Estados‑Membros:

a)      Tomarem as medidas necessárias para evitar abusos;

[…]»

 Direito francês

10      O artigo L. 3253‑6 do Código do Trabalho, na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código do Trabalho»), dispõe:

«Todos os empregadores de direito privado devem subscrever um seguro a favor dos seus trabalhadores, incluindo aqueles que se encontrem destacados no estrangeiro ou expatriados, referidos no artigo L. 5422‑13, contra o risco de não pagamento dos créditos em dívida pela execução do contrato de trabalho, em caso de “procédure de sauvegarde” (processo de manutenção dos postos de trabalho e da empresa), de “redressement” (processo de recuperação da empresa) ou de “liquidation judiciaire” (processo de liquidação judicial).»

11      O artigo L. 3253‑8 deste código prevê:

«O seguro referido no artigo L. 3253‑6 cobre:

1.o      Os montantes devidos aos trabalhadores na data da decisão de abertura de qualquer processo de recuperação ou de liquidação judicial, bem como as contribuições devidas pelo empregador no âmbito do contrato de segurança do emprego;

2.o      Os créditos emergentes da rescisão dos contratos de trabalho ocorrida:

a)      durante o período experimental;

b)      no prazo de um mês após a sentença que aprova o plano de manutenção dos postos de trabalho e da empresa, recuperação ou transferência;

c)      no prazo de quinze dias, ou de vinte e um dias quando seja elaborado um plano de manutenção dos postos de trabalho e da empresa, a contar da data da sentença de liquidação;

d)      durante a manutenção provisória da atividade autorizada pela sentença judicial de liquidação e no prazo de quinze dias, ou de vinte e um dias quando seja elaborado um plano de manutenção dos postos de trabalho e da empresa, a contar do termo do período de manutenção da atividade.

[…]»

12      Nos termos do artigo L. 3253‑14 do referido código:

«A garantia prevista no artigo L. 3253‑6 é posta em prática por uma associação criada pelas organizações nacionais profissionais de empregadores representativas e aprovada pela autoridade administrativa.

Esta associação celebra uma convenção de gestão com o organismo gestor do regime de seguro de desemprego e com a Agência Central dos Organismos de Segurança Social para a cobrança das quotizações referidas no artigo L. 3253‑18.

[…]

Esta associação e o referido organismo constituem as instituições de garantia contra o risco de não pagamento.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      Durante os meses de setembro e outubro de 2017, os trabalhadores em causa foram recrutados pela sociedade K mediante contratos a termo certo e a tempo parcial.

14      Em 26 de junho de 2018, esta sociedade foi objeto de uma recuperação judicial.

15      Em 9 de julho de 2018, os trabalhadores procederam à resolução dos seus contratos de trabalho por justa causa.

16      Por Acórdão de 24 de julho de 2018, o tribunal de commerce (Tribunal de Comércio, França) decretou a liquidação judicial da sociedade K.

17      Em 31 de julho de 2018, os trabalhadores em causa apresentaram ao conseil de prud’hommes de Draguignan (Tribunal do Trabalho de Draguignan, França) pedidos de inscrição dos seus créditos no passivo da liquidação judicial da sociedade K, com fundamento em incumprimentos desta sociedade que os referidos trabalhadores consideram suficientemente graves.

18      Por Sentenças de 2 de julho de 2020, esse órgão jurisdicional declarou, primeiro, que a rescisão, pelos trabalhadores em causa, do seu contrato de trabalho por justa causa produzia os efeitos de um despedimento sem justa causa, segundo, inscreveu os seus créditos no passivo da liquidação judicial da sociedade K a título de retroativos, nomeadamente, dos salários, das férias pagas, da indemnização compensatória por falta de aviso prévio, da indemnização por despedimento sem justa causa e, terceiro, declarou que a sentença comum era oponível à AGS de Marselha, sujeita a garantia pelos montantes objeto dos referidos créditos.

19      Em 28 de julho de 2020, a AGS de Marselha apresentou ao conseil de prud’hommes de Draguignan (Tribunal do Trabalho de Draguignan) uma petição por omissão de pronúncia.

20      Por Sentenças de 23 de setembro de 2021, esse órgão jurisdicional declarou que não havia que retificar as Sentenças de 2 de julho de 2020.

21      Nestas condições, a AGS de Marselha interpôs recurso das referidas Sentenças de 23 de setembro de 2021 na cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence, França), o órgão jurisdicional de reenvio.

22      Como resulta da decisão de reenvio, a resolução do contrato de trabalho por justa causa constitui, no direito francês, um modo de rescisão unilateral desse contrato, reservado ao trabalhador, pelo qual este último decide rescindir o referido contrato devido ao facto de o empregador ter cometido incumprimentos suficientemente graves que impedem a continuação do contrato de trabalho. No próprio momento em que o trabalhador rescinde o contrato de trabalho por justa causa, este último deixa imediatamente de produzir efeitos.

23      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio especifica que, no caso de um órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se por uma das partes no contrato de trabalho considerar que os factos invocados pelo trabalhador justificam essa rescisão do contrato de trabalho, esta produz os efeitos de um despedimento sem justa causa. Por conseguinte, o empregador está obrigado ao pagamento das indemnizações associadas a tal despedimento, a saber, o pagamento de uma indemnização compensatória da falta de pré‑aviso e das férias pagas, de uma indemnização legal ou convencional por despedimento, bem como de uma indemnização por despedimento sem justa causa.

24      Em França, qualquer empregador de direito privado é obrigado a assegurar os seus trabalhadores junto da associação para a gestão do regime de garantia dos créditos dos assalariados (a seguir «AGS») contra o risco de não pagamento das quantias que lhes são devidas em execução do contrato de trabalho, em caso de processo de manutenção dos postos de trabalho e da empresa, de recuperação ou de liquidação judicial.

25      Todavia, em conformidade com jurisprudência constante da Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), tratando‑se de uma rescisão do contrato de trabalho ocorrida durante os períodos referidos no artigo L. 3253‑8, 2.o, do Código do Trabalho, a garantia da AGS cobriria apenas os créditos decorrentes dessa rescisão ocorrida por iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa. Deste modo, a referida garantia está excluída em caso de resolução do contrato de trabalho por um trabalhador, da sua passagem à reforma ou de rescisão judicial do contrato de trabalho.

26      Resulta da decisão de reenvio que, num Acórdão de 10 de julho de 2019, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu não remeter ao Conseil constitutionnel (Tribunal Constitucional, França) uma questão prioritária de constitucionalidade sobre o alcance efetivo da interpretação feita pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação) do artigo L. 3253‑8, 2.o, do Código do Trabalho, com o fundamento, por um lado, de que o objeto da garantia prevista nesta disposição é o adiantamento pela AGS dos créditos emergentes das rescisões dos contratos de trabalho que ocorrem por necessidade da continuação da atividade da empresa, da manutenção do emprego e o apuramento do passivo e, por outro, que a regulamentação nacional em causa, conforme interpretada de forma constante pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação), no sentido de excluir a garantia da AGS pelas rescisões de contrato que não decorrem da iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa, institui uma diferença de tratamento baseada numa diferença de situação diretamente relacionada com o objeto desta regulamentação.

27      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, em caso de resolução do contrato de trabalho quando o empregador se encontra em situação de insolvência, a Diretiva 2008/94 não parece fazer depender a intervenção da instituição de garantia, a título de indemnizações pela cessação da relação de trabalho, do autor dessa resolução.

28      Esta interpretação é corroborada pelo Acórdão de 17 de janeiro de 2008, Velasco Navarro (C‑246/06, EU:C:2008:19, n.os 35 e 36), segundo o qual a regulamentação nacional que aplica o direito da União deve ser interpretada no respeito do princípio da igualdade.

29      Nestas circunstâncias, a cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve a Diretiva [2008/94] ser interpretada no sentido de que permite excluir a responsabilidade da instituição de garantia pela indemnização resultante da cessação da relação de trabalho, quando um trabalhador comunique a resolução do seu contrato de trabalho por justa causa após a abertura de um processo de insolvência?

2)      Tal interpretação é conforme ao teor e às finalidades dessa diretiva e permite alcançar os resultados por ela pretendidos?

3)      Tal interpretação, que tem por base o autor da [resolução] do contrato de trabalho durante o período de insolvência, dá origem a uma diferença de tratamento entre os trabalhadores?

4)      Tal diferença de tratamento, no caso de existir, é objetivamente justificada?»

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

30      A AGS de Marselha sustenta, nas suas observações escritas, que, uma vez que o Tribunal de Justiça não é competente para interpretar o direito nacional e, no caso em apreço, o artigo L. 3253‑8 do Código do Trabalho, não pode ser competente para responder às questões submetidas.

31      A este respeito, há que recordar que, no âmbito do processo instituído pelo artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a interpretação de disposições legislativas ou regulamentares nacionais nem sobre a conformidade de tais disposições com o direito da União. Com efeito, resulta de jurisprudência constante que, no âmbito de um reenvio prejudicial ao abrigo do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça só pode interpretar o direito da União dentro dos limites das competências atribuídas à União [Acórdão de 14 de dezembro de 2023, Getin Noble Bank (Prazo de prescrição das ações de restituição), C‑28/22, EU:C:2023:992, n.o 53 e jurisprudência referida].

32      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que as questões submetidas têm expressamente por objeto a interpretação da Diretiva 2008/94.

33      Por conseguinte, não se pode considerar que as questões tenham por objeto a interpretação do direito francês e, por este motivo, o argumento da AGS de Marselha relativo à incompetência do Tribunal de Justiça deve ser rejeitado.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

34      Sem invocar formalmente uma exceção de inadmissibilidade das questões prejudiciais, o Governo Francês sustenta nas suas observações escritas que é certo que uma exclusão de garantia de créditos dos trabalhadores, visados pela primeira questão, está prevista, como resulta do pedido de decisão prejudicial, no artigo L. 3253‑8, 2.o, do Código do Trabalho, conforme interpretado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação). No entanto, segundo este Governo, em caso de resolução do seu contrato de trabalho por justa causa pelo trabalhador posteriormente à data de abertura do processo de recuperação judicial, a instituição de garantia é obrigada, em todo o caso, a garantir os créditos salariais que são devidos ao trabalhador em causa nessa data, em conformidade com o artigo L. 3253‑8, 1.o, do Código do Trabalho.

35      A este respeito, importa recordar que o juiz nacional a quem foi submetido o litígio no processo principal tem competência exclusiva para apreciar a necessidade de uma decisão prejudicial e a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça, as quais gozam de uma presunção de pertinência. Assim, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação ou à validade do direito da União, salvo se for manifesto que a interpretação solicitada não tem relação com a realidade ou com o objeto desse litígio, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto ou de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão 15 de junho de 2023, Getin Noble Bank (Suspensão da execução de um contrato de crédito), C‑287/22, EU:C:2023:491, n.o 26 e jurisprudência referida].

36      No caso em apreço, por um lado, o litígio no processo principal diz respeito às consequências associadas, em matéria de pagamento dos créditos dos trabalhadores assalariados por uma instituição de garantia, ao recurso a um modo de rescisão do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador assalariado, em circunstâncias em que o empregador se encontra numa situação de insolvência. Deste modo, é facto assente que tal situação é abrangida pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/94. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio indica enfrentar dificuldades na interpretação desta diretiva uma vez que esta última não parece fazer depender a intervenção da instituição de garantia, a título de indemnizações pela cessação da relação de trabalho, do autor dessa resolução.

37      Daqui resulta que as questões prejudiciais são admissíveis.

 Quanto ao mérito

38      Com as suas quatro questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a Diretiva 2008/94 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a cobertura dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho através do regime que assegura o pagamento dos créditos dos trabalhadores assalariados por uma instituição de garantia, estabelecido nos termos do artigo 3.o desta diretiva, quando a resolução do contrato de trabalho seja por iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa, mas exclui a cobertura dos referidos créditos por essa instituição de garantia quando o trabalhador em causa tenha comunicado a resolução do seu contrato de trabalho devido a incumprimentos suficientemente graves do seu empregador que impediam a continuação do referido contrato e um órgão jurisdicional nacional tenha considerado essa resolução do contrato justificada.

39      Para responder a estas questões, há que em primeiro lugar recordar que, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/94, esta se aplica aos créditos dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho existentes em relação aos empregadores que se encontrem numa situação de insolvência, na aceção do artigo 2.o, n.o 1, desta diretiva.

40      O artigo 3.o, primeiro parágrafo, da referida diretiva dispõe que os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para que as instituições de garantia assegurem, sob reserva do artigo 4.o desta diretiva, o pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho, incluindo, sempre que o direito nacional o estabeleça, as indemnizações pela cessação da relação de trabalho.

41      Nos termos do artigo 4.o da Diretiva 2008/94, quando os Estados‑Membros limitam a obrigação de pagamento das instituições de garantia, fixam a duração do período que dá lugar ao pagamento dos créditos em dívida por essas instituições. Podem igualmente fixar limites máximos para os pagamentos efetuados pelas referidas instituições.

42      Em segundo lugar, como resulta da decisão de reenvio, o artigo L. 3253‑6 do Código do Trabalho impõe aos empregadores de direito privado que assegurem os seus assalariados contra o risco de não pagamento das «quantias que lhes são devidas em execução do contrato de trabalho».

43      A este respeito, há que considerar, como salientou a Comissão nas suas observações escritas, que os créditos emergentes de uma resolução de um contrato de trabalho como a que está em causa no processo principal constituem créditos de indemnização pela cessação da relação de trabalho, na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2008/94.

44      Em terceiro lugar, há que observar que nada no texto desta diretiva permite concluir que a garantia dos créditos dos trabalhadores por uma instituição de garantia possa ser excluída, por um Estado‑Membro, no caso de a resolução do contrato de trabalho ser da iniciativa desse trabalhador por incumprimento do empregador. Com efeito, a Diretiva 2008/94 não estabelece uma distinção no que respeita à cobertura desses créditos pela referida instituição consoante o autor da resolução do contrato de trabalho seja ou não o trabalhador.

45      É certo que cabe a cada Estado‑Membro, no âmbito do direito nacional, determinar as indemnizações abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94 (Acórdão de 28 de junho de 2018, Checa Honrado, C‑57/17, EU:C:2018:512, n.o 30 e jurisprudência referida).

46      No entanto, a faculdade reconhecida aos Estados‑Membros, pela referida diretiva, de especificar as prestações a cargo da instituição de garantia está sujeita às exigências decorrentes do princípio geral da igualdade e da não discriminação. Este princípio exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente, a menos que uma diferenciação seja objetivamente justificada (Acórdão de 28 de junho de 2018, Checa Honrado, C‑57/17, EU:C:2018:512, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida).

47      A este respeito, importa salientar que a cessação do contrato de trabalho na sequência da comunicação da resolução desse contrato por justa causa pelo trabalhador, devido a incumprimentos suficientemente graves da parte do empregador que impedem a continuação do referido contrato, considerada justificada por um órgão jurisdicional nacional, não pode ser considerada resultante da vontade do trabalhador, uma vez que é, na realidade, consequência dos referidos incumprimentos do empregador.

48      Por conseguinte, numa situação como a que está em causa no processo principal, há que considerar que os trabalhadores que comunicam a resolução do seu contrato de trabalho se encontram numa situação comparável àquela em que se encontram os trabalhadores cujos contratos cessaram por iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa (v., por analogia, Acórdão de 28 de junho de 2018, Checa Honrado, C‑57/17, EU:C:2018:512, n.o 39).

49      O Governo Francês sustenta, nas suas observações escritas, que a diferença de tratamento resultante do artigo L. 3253‑8, 2.o, do Código do Trabalho, tal como interpretado pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação), consoante o autor da rescisão do contrato de trabalho seja ou não o trabalhador, se justifica para efeitos da continuação da atividade da empresa, da manutenção do emprego e do apuramento do passivo. Segundo esse Governo, as rescisões do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, como a comunicação da resolução desse contrato, que ocorrem posteriormente à data da abertura do processo de recuperação judicial, não respondem a essas necessidades.

50      A este respeito, importa referir, além do facto de a cessação do contrato de trabalho através da resolução desse contrato por justa causa por parte de um trabalhador não poder ser considerada resultante da vontade desse trabalhador no caso de ser, na realidade, consequência dos incumprimentos do empregador, como referido no n.o 47 do presente acórdão, que as referidas necessidades não podem ocultar a finalidade social da Diretiva 2008/94.

51      Ora, esta finalidade social consiste, como resulta do artigo 1.o, n.o 1, desta diretiva, lido em conjugação com o seu considerando 3, em garantir a todos os trabalhadores assalariados um mínimo de proteção a nível da União em caso de insolvência do empregador através do pagamento dos créditos em dívida emergentes de contratos ou de relações de trabalho (Acórdão de 28 de junho de 2018, Checa Honrado, C‑57/17, EU:C:2018:512, n.o 46).

52      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que a Diretiva 2008/94 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a cobertura dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho através do regime nacional que assegura o pagamento dos créditos dos trabalhadores assalariados por uma instituição de garantia, estabelecido nos termos do artigo 3.o desta diretiva, quando a resolução do contrato de trabalho seja por iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa, mas exclui a cobertura dos referidos créditos por essa instituição de garantia no caso de o trabalhador em causa ter comunicado a resolução do seu contrato de trabalho devido a incumprimentos suficientemente graves da parte do seu empregador que impediam a continuação do referido contrato e um órgão jurisdicional nacional ter considerado que essa resolução do contrato era justificada.

 Quanto às despesas

53      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

A Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador,

deve ser interpretada no sentido de que:

se opõe a uma legislação nacional que prevê a cobertura dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho através do regime nacional que assegura o pagamento dos créditos dos trabalhadores assalariados por uma instituição de garantia, estabelecido nos termos do artigo 3.o desta diretiva, quando a resolução do contrato de trabalho seja por iniciativa do administrador judicial, do administrador da insolvência ou do empregador em causa, mas exclui a cobertura dos referidos créditos por essa instituição de garantia no caso de o trabalhador em causa ter comunicado a resolução do seu contrato de trabalho devido a incumprimentos suficientemente graves da parte do seu empregador que impediam a continuação do referido contrato e um órgão jurisdicional nacional ter considerado que essa resolução do contrato era justificada.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.