Processo T‑99/04
AC‑Treuhand AG
contra
Comissão das Comunidades Europeias
«Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Peróxidos orgânicos – Coimas – Artigo 81.° CE – Direitos de defesa – Direito a um processo equitativo – Conceito de autor de uma infracção – Princípio da legalidade dos crimes e das penas (nullum crimen, nulla poena sine lege) – Princípio da segurança jurídica – Confiança legítima»
Sumário do acórdão
1. Concorrência – Procedimento administrativo – Respeito dos direitos de defesa – Possibilidade de a empresa em causa invocar plenamente esses direitos apenas depois do envio da comunicação de acusações – Obrigação de a Comissão informar a empresa do objecto e da finalidade da instrução na fase da primeira medida tomada a seu respeito
(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigos 11.° e 14.°)
2. Concorrência – Acordos, decisões e práticas concertadas – Imputação a uma empresa – Declaração da Comissão que declara a corresponsabilidade de uma empresa de consultadoria não activa no mercado em causa mas que contribuiu activa e deliberadamente para o cartel
[Artigo. 3, n.° 1, alínea g), CE e 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2]
1. No quadro do procedimento administrativo nos termos do Regulamento n.° 17, só após a comunicação de acusações é que a empresa em causa pode plenamente invocar os seus direitos de defesa, porquanto só depois deste envio é que a referida empresa é informada de todos os elementos essenciais em que a Comissão se baseia nessa fase do procedimento e dispõe de um direito de acesso ao dossier para garantir o exercício dos seus direitos de defesa. Com efeito, se esses direitos fossem estendidos à fase que antecede o envio da comunicação de acusações, a eficácia do inquérito da Comissão seria comprometida, uma vez que a empresa teria, logo na fase de instrução preliminar, a possibilidade de identificar as informações conhecidas pela Comissão e, por conseguinte, aquelas que ainda lhe poderiam ser sonegadas.
Não deixa de ser verdade que, as diligências de instrução realizadas pela Comissão na fase de instrução preliminar, nomeadamente as averiguações e os pedidos de informações ao abrigo dos artigos 11.° e 14.° do Regulamento n.° 17, implicam por natureza a imputação de uma infracção e podem ter repercussões significativas sobre a situação das empresas suspeitas. Por conseguinte, há que evitar que os direitos de defesa possam ser irremediavelmente comprometidos nessa fase do procedimento administrativo quando as diligências de instrução realizadas possam ser determinantes para a produção de provas da natureza ilegal de comportamentos de empresas susceptíveis de desencadear a sua responsabilidade.
Daqui se conclui que a Comissão está obrigada a informar a empresa em causa, na fase em que adopta a primeira medida a seu respeito, incluindo os pedidos de informações que lhe dirige nos termos do artigo 11.° do Regulamento n.° 17, nomeadamente, do objecto e da finalidade da instrução em curso. A este respeito, a fundamentação não tem de ter o mesmo alcance que a exigida para as decisões que ordenam a realização de diligência de instrução, exigência esta que decorre do seu carácter mais coactivo e da particular intensidade do seu impacto sobre a situação jurídica da empresa em causa. Essa fundamentação deve permitir a essa empresa compreender a finalidade e o objecto da instrução, o que implica que sejam especificados as presunções de infracção e, nesse contexto, o facto de ser possível expor‑se a acusações relacionadas com essa eventual infracção, para que possa tomar as medidas que considere úteis para se opor a essas acusações e preparar, assim, a sua defesa na fase contraditória do procedimento administrativo.
(cf. n.os 48, 50, 51, 56)
2. Uma decisão da Comissão que estabelece a responsabilidade de uma empresa de consultoria por uma infracção no artigo 81.°, n.° 1, CE, quando esta colabora activa e deliberadamente com um cartel entre produtores que exercem a sua actividade num mercado distinto daquele em que ela opera, não excede os limites da proibição enunciada por esta disposição e, portanto, a Comissão não ultrapassa os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 ao aplicar uma coima à referida empresa.
Com efeito, uma interpretação literal, contextual e teleológica dos termos «acordos entre empresas» do artigo 81.°, n.° 1, CE, não impõe uma interpretação estrita do conceito de autor da infracção, segundo a qual essa empresa é apenas cúmplice não punível do cartel. Pelo contrário, uma empresa pode violar a proibição prevista no referido artigo quando o seu comportamento, coordenado com o de outras empresas, tenha por finalidade restringir a concorrência num específico mercado pertinente no âmbito do mercado comum, sem que isso pressuponha necessariamente que ela própria exerça a sua actividade no referido mercado pertinente. Qualquer outra interpretação seria susceptível de reduzir o alcance da proibição enunciada no artigo 81.°, n.° 1, CE numa medida contrária ao seu efeito útil e ao seu objectivo principal, interpretado à luz do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE, de garantir a manutenção de uma concorrência não falseada no mercado comum, uma vez que não permitiria reagir contra a contribuição activa de uma empresa para uma restrição da concorrência pelo simples facto de essa contribuição não emanar de uma actividade económica que fizesse parte do mercado pertinente em que essa restrição se materializa ou tem por objecto materializar‑se.
A imputação a essa empresa da infracção no seu todo está em conformidade com as exigências do princípio da responsabilidade pessoal quando satisfaz duas condições, subjectiva e objectiva. No que respeita à primeira condição, a empresa em causa deve ter contribuído para a execução do cartel, mesmo que de modo subordinado, acessório ou passivo, a importância eventualmente limitada dessa contribuição ser levada em conta no âmbito da determinação da sanção. No que respeita à segunda condição, a referida empresa deve ter manifestado a sua vontade própria, que demonstre que subscreve, ainda que apenas tacitamente, os objectivos do cartel, que constitui a justificação que permite co‑responsabilizá‑la, uma vez que pretende contribuir, pelo seu próprio comportamento, para os objectivos comuns prosseguidos por todos os participantes e tinha conhecimento dos comportamentos ilegais dos outros participantes ou podia razoavelmente prevê‑los e estava disposta a assumir esse risco.
Mesmo que, à época da perpetração dos factos objecto da acusação, o juiz comunitário não se tenha pronunciado de forma explicita sobre esta questão, essa interpretação do artigo 81.°, n.° 1, CE também não é contrária ao princípio da legalidade dos crimes e das penas (nullum crimen, nulla poena sine lege), que não deve necessariamente ter o alcance que tem quando aplicado a uma situação abrangida pelo direito penal em sentido estrito, pois o procedimento perante a Comissão, nos termos do Regulamento n.° 17, é tão‑só de natureza administrativa. Assim, qualquer empresa que tenha adoptado um comportamento colusório, incluindo as empresas de consultoria que não exerçam a sua actividade no mercado afectado pela restrição da concorrência, podia razoavelmente prever que a proibição enunciada no artigo 81.°, n.° 1, CE lhe era, em princípio, aplicável. Com efeito, essas empresas não podiam ignorar, ou então estavam em condições de compreender, que, na prática decisória da Comissão e na jurisprudência comunitária anteriores, já estava incluído, de modo suficientemente claro e preciso, o fundamento do reconhecimento expresso da responsabilidade de uma empresa de consultoria por uma infracção no artigo 81.°, n.° 1, CE, quando esta colabora activa e deliberadamente com um cartel entre produtores que exercem a sua actividade num mercado distinto daquele em que ela opera
Por último, apesar de a prática decisória da Comissão anterior à decisão impugnada poder parecer contraditória em relação a esta interpretação do artigo 81.°, n.° 1, CE, o princípio da protecção da confiança legítima não pode impedir a reorientação da referida prática decisória baseada numa interpretação correcta do alcance da proibição prevista nesta disposição e ainda mais previsível devido à existência de um precedente.
(cf. n.os 112, 113, 117, 122‑123, 127, 133‑135, 149, 150, 157, 163, 164)