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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

18 de dezembro de 2014 (*)

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Contratos que não atingem o limiar previsto na Diretiva 2004/18/CE — Artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE — Aplicabilidade — Interesse transfronteiriço certo — Motivos de exclusão de um procedimento de concurso público — Exclusão de um operador económico que tenha cometido uma infração às normas nacionais em matéria de concorrência, declarada por sentença há menos de cinco anos — Admissibilidade — Proporcionalidade»

No processo C‑470/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Hungria), por decisão de 23 de agosto de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de setembro de 2013, no processo

Generali‑Providencia Biztosító Zrt

contra

Közbeszerzési Hatóság Közbeszerzési Döntőbizottság,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

Composto por M. C. Vajda (relator), presidente de Secção, E. Juhász e D. Šváby, juízes,

Advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 25 de setembro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Generali‑Providencia Biztosító Zrt, por G. Fejes e P. Tasi, ügyvédek,

–        em representação da Közbeszerzési Hatóság Közbeszerzési Döntőbizottság, por P. Csanádi, ügyvéd,

–        em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por M. J. García‑Valdecasas Dorrego, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Tokár e A. Sipos, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 18.° TFUE, 34.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE, e do artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alíneas c) e d), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.° 1177/2009 da Comissão, de 30 de novembro de 2009 (JO L 314, p. 64, a seguir «Diretiva 2004/18»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Generali‑Providencia Biztosító Zrt (a seguir «Generali») à Közbeszerzési Hatóság Közbeszerzési Döntőbizottság (Comissão Arbitral em matéria de contratação pública do Gabinete de Contratos Públicos), relativamente ao recurso desta sociedade, interposto nesta comissão arbitral, da decisão da exclusão daquela sociedade de um procedimento de concurso público com o fundamento de ter cometido anteriormente uma infração às normas nacionais em matéria de concorrência.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O considerando 2 da Diretiva 2004/18 prevê:

«[…] A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não‑discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. [...]»

4        O artigo 7.°, alínea b), desta diretiva prevê, nomeadamente para os contratos públicos de fornecimento e de serviços celebrados por entidades adjudicantes não mencionadas no anexo IV, da referida diretiva, um limiar de aplicação desta última no montante de 193 000 euros.

5        O artigo 45.° da mesma diretiva, sob a epígrafe «Situação pessoal do candidato ou do proponente», dispõe no seu n.° 2:

«Pode ser excluído do procedimento de contratação [qualquer operador económico que]:

[…]

c)      Tenha sido condenado por sentença com força de caso julgado nos termos da lei do país, por delito que afete a sua honorabilidade profissional;

d)      Tenha cometido falta grave em matéria profissional, comprovada por qualquer meio que as entidades adjudicantes possam evocar;

[…]

Em conformidade com a sua legislação nacional e na observância do direito comunitário, os Estados‑Membros especificarão as condições de aplicação do presente número.»

6        O considerando 101, da Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18/CE (JO L 94, p. 65) tem a seguinte redação:

«As autoridades adjudicantes deverão, além disso, poder excluir os operadores económicos que se tenham revelado pouco fiáveis, por exemplo na sequência de infrações de obrigações ambientais ou sociais, incluindo as regras em matéria de acessibilidade de pessoas com deficiência ou outras formas de falta profissional grave, como a violação das regras da concorrência ou dos direitos de propriedade intelectual. Deverá ser especificado que uma falta profissional grave pode pôr em causa a idoneidade de um operador económico, desqualificando‑o para efeitos de adjudicação de um contrato público, mesmo que tenha a capacidade técnica e económica necessária para executar o contrato.

[...]»

7        Nos termos do artigo 57.°, n.° 4, da Diretiva 2014/24:

«As autoridades adjudicantes podem excluir ou podem ser solicitadas pelos Estados‑Membros a excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação, numa das seguintes situações:

[…]

d)      Se a autoridade adjudicante tiver indícios suficientemente plausíveis para concluir que o operador económico celebrou acordos com outros operadores económicos com o objetivo de distorcer a concorrência;

[…]»

 Direito húngaro

8        O artigo 61.°, n.° 1, da Lei CXXIX de 2003 que regula a adjudicação dos contratos públicos (közbeszerzésekről szóló 2003. évi CXXIX. törvény, Magyar Közlöny 2003/157, a seguir «Kbt») está redigida nos seguintes termos:

«A entidade adjudicante pode especificar no anúncio de concurso que não pode participar no procedimento como proponente, como subcontratante ou empresa auxiliar de meios que pretendam assumir mais de 10% do valor do contrato público, nem como subcontratante na aceção das alíneas d) e e) quem:

a)      tiver cometido uma infração relacionada com sua atividade económica ou profissional declarada por sentença judicial com força de caso julgado há menos de cinco anos.

[…]»

 Processo principal e questões prejudiciais

9        Por decisão de 21 de dezembro de 2006, a Gazdasági Versenyhivatal (Instituto de defesa da concorrência) declarou que determinados acordos verticais celebrados entre a Generali e concessionários de veículos eram contrários às normas nacionais em matéria de concorrência e aplicou uma coima a esta sociedade. Decidindo em recurso, o Fővárosi ítelőtábla (Tribunal de Recurso de Budapeste) confirmou essa decisão por sentença qualificada de «jogerős» («com força de caso julgado»). Foi interposto recurso desta sentença para o Magyar Köztársaság Legfelsőbb Bírósága (Supremo Tribunal), que submeteu uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, dando origem ao processo Allianz Hungária Biztosító e o. (C‑32/11, EU:C:2013:160).

10      Em 5 de dezembro de 2011, a Nemzeti Adó‑ és Vámhivatal (Administração Nacional de Finanças e Alfândegas) publicou um anúncio de concurso relativo à prestação de serviços de seguros. Nesse anúncio, a entidade adjudicante mencionou, entre as causas de exclusão da participação no procedimento de concurso público relativas à situação pessoal do proponente, as causas previstas nos artigos 61.°, n.° 1, alíneas a) a c), e 62.°, n.° 1, da Kbt.

11      Em resposta ao referido anúncio, a Generali apresentou uma oferta no prazo fixado.

12      A entidade adjudicante comunicou à Generali a sua decisão de proceder à sua exclusão do procedimento de adjudicação do contrato em causa por integrar a causa de exclusão prevista no artigo 61.°, n.° 1, alínea a), da Kbt, devido à sua infração às normas nacionais em matéria de concorrência que foi confirmada por decisão judicial transitada em julgado.

13      Perante o insucesso do seu recurso administrativo, a Generali recorreu ao Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste), cujos processos de contencioso administrativo foram subsequentemente recebidos pelo Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e de Trabalho de Budapeste).

14      O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se quanto à compatibilidade com o direito da União da causa de exclusão da Generali do referido procedimento de adjudicação. Salienta que o artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alíneas c) e d), da Diretiva 2004/18 permite excluir um operador económico da participação num procedimento de contratação com fundamento em circunstâncias objetivas relacionadas com a atividade profissional desse operador. Considerando que o artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea c), desta diretiva não é aplicável às circunstâncias do litígio que lhe foi submetido, já que a infração que a Generali cometeu não é qualificada de «delito» pela legislação nacional, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se o artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alínea d), da referida diretiva se pode aplicar nessas mesmas circunstâncias.

15      O órgão jurisdicional de reenvio considera que, atendendo à interpretação que o Tribunal de Justiça deu ao conceito de «falta em matéria profissional» que consta daquela disposição no seu acórdão Forposta e ABC Direct Contact (C‑465/11, EU:C:2012:801), as práticas que o operador económico deve observar ou de que se deve abster para respeitar as exigências de lealdade nos negócios dizem respeito à sua honorabilidade profissional. Portanto, pode incluir‑se neste conceito uma prática do operador económico que não respeite a proibição de acordos restritivos da concorrência e que esteja devidamente declarada por sentença judicial transitada em julgado. A gravidade da falta deve ser apreciada em função do concreto comportamento do operador económico.

16      Se, pelo contrário, se considerar que essa violação não diz respeito à honorabilidade profissional do operador económico em causa nem implica uma violação das regras deontológicas da sua profissão, o órgão jurisdicional de reenvio considera que esse operador não pode ser excluído da participação no contrato público devido a uma infração às normas nacionais em matéria de concorrência, nos termos do artigo 45.°, n.° 2, da Diretiva n.° 2004/18 que elenca, de forma exaustiva, as causas que justificam a exclusão de tal operador por fundamentos relativos às suas qualidades profissionais.

17      O órgão jurisdicional de reenvio considera que tal interpretação o obrigaria a não aplicar o artigo 61.°, n.° 1, alínea a), do Kbt, atendendo também ao facto de que, tal como resulta do considerando 2 da Diretiva 2004/18, as normas nacionais em matéria de adjudicação dos contratos públicos devem respeitar as normas e os princípios gerais de direito da União. Nesta perspetiva, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a interpretação do artigo 61.°, n.° 1, alínea a), do Kbt feita pela Közbeszerzési Hatóság Közbeszerzési Döntőbizottság pode perturbar o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo direito da União, na medida em que essa disposição não esclarece as modalidades nem a gravidade da infração cometida pelo operador económico relativamente à sua atividade comercial ou profissional, apenas prevendo a sua exclusão da participação num contrato público como consequência do mero decurso de um processo judicial relativo a essa infração.

18      Nestes termos, o Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Podem os Estados‑Membros determinar a exclusão de um operador económico da participação num processo de adjudicação de um contrato público por causas não enumeradas no artigo 45.° da Diretiva [2004/18], designadamente por causas que se consideram justificadas do ponto de vista da proteção do interesse público, dos interesses legítimos da entidade adjudicante ou da concorrência leal e da manutenção de uma concorrência honesta e, na afirmativa, é compatível com o considerando 2 da referida diretiva e com os artigos 18.° TFUE, 34.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE que se proceda a tal exclusão relativamente a um operador económico que tenha cometido uma infração relacionada com a sua atividade económica ou profissional e declarada por sentença judicial transitada em julgado há menos de cinco anos?

2)      No caso de o Tribunal de Justiça dar resposta negativa à primeira questão, deve o disposto no artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/18, designadamente nas alíneas c) e d) dessa disposição, ser interpretado no sentido de que deve ser excluído do processo de adjudicação de um contrato público qualquer operador económico que tenha cometido uma infração declarada por autoridade administrativa ou judicial num procedimento em matéria de concorrência relacionada com a sua atividade económica ou profissional, tendo‑lhe sido aplicadas, por essa infração, sanções legais em matéria de concorrência?»

 Quanto às questões prejudiciais

19      A título preliminar, há que constatar que, conforme salienta o órgão jurisdicional de reenvio, embora o artigo 61.°, n.° 1, alínea a), do Kbt permita excluir de um procedimento de concurso público um operador económico por qualquer infração cometida em relação à sua atividade comercial ou profissional, sem esclarecimento quanto às modalidades ou à gravidade dessa infração, a Generali foi excluída do procedimento de adjudicação do contrato em causa no processo principal, tendo por base esta disposição, devido à infração ao direito nacional em matéria de concorrência que tinha cometido, a qual foi confirmada por decisão judicial transitada em julgado e pela qual lhe foi aplicada uma coima.

20      Assim, há que considerar que, com as suas questões, que há que examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 18.° TFUE, 34.° TFUE, 49.° TFUE e 56.° TFUE, bem como o artigo 45.°, n.° 2, primeiro parágrafo, alíneas c) e d), da Diretiva 2004/18 se opõem à aplicação de normas nacionais que excluem da participação num procedimento de concurso público um operador económico que cometeu uma infração ao direito da concorrência, declarada por uma por decisão judicial transitada em julgado, pela qual lhe foi aplicada uma coima.

21      Em primeiro lugar, relativamente às disposições da Diretiva 2004/18 que estão em causa nas questões prejudiciais, tanto a Generali, em resposta a uma questão do Tribunal de Justiça na audiência, como o Governo húngaro, nas suas observações escritas, constataram que o contrato em causa no processo principal é de valor inferior ao limiar fixado no artigo 7.°, alínea b), primeiro travessão, desta diretiva, que, segundo este governo, é o limiar relevante, na medida em que a Administração Nacional Tributária e Alfandegária não é abrangida pelo anexo IV da referida diretiva. Consequentemente, sem prejuízo de verificação por parte do órgão jurisdicional de reenvio, a Diretiva 2004/18 não se aplica a este contrato público.

22      Na audiência, a Generali e a Comissão Europeia salientaram, todavia, que as normas húngaras que transpuseram a Diretiva 2004/18 se aplicam tanto aos contratos que atinjam os limiares fixados no artigo 7.° como aos que não os atinjam. Neste contexto, recordaram que o Tribunal de Justiça já se declarou competente para se pronunciar sobre pedidos de decisão prejudicial relativos a disposições de um ato de direito da União Europeia em situações nas quais os factos no processo principal saíam do âmbito de aplicação desse ato, mas nas quais as referidas disposições passaram a ser aplicáveis por força do direito nacional, em virtude de uma remissão feita por este último para o conteúdo dessas disposições (v., neste sentido, acórdãos Dzodzi, C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360, n.° 36, e Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.° 45).

23      É certo que o Tribunal de Justiça já julgou que a interpretação das disposições de um ato da União em situações que não são abrangidas pelo seu âmbito de aplicação se justifica com base no facto de o direito nacional ter tornado essas disposições aplicáveis às mesmas situações de forma direta e incondicional, para assegurar um tratamento idêntico a essas situações e às abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido ato (v., neste sentido, acórdão Nolan, EU:C:2012:638, n.° 47 e jurisprudência referida).

24      Esse não é, contudo, o caso no contexto do processo principal.

25      Com efeito, não decorre da decisão de reenvio nem do processo no Tribunal de Justiça a existência de uma disposição de direito húngaro que torne a Diretiva 2004/18 direta e incondicionalmente aplicável aos contratos públicos cujo valor não atinja o limiar relevante, fixado no artigo 7.° dessa diretiva.

26      Decorre do precedente que o Tribunal de Justiça não tem que dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação das disposições da Diretiva 2004/18, referidas nas questões prejudiciais, para que este solucione o litígio que tem de decidir no processo principal.

27      Em segundo lugar, relativamente às disposições do Tratado FUE que o órgão jurisdicional de reenvio invoca, há que recordar que, quando um contrato público não se integra no âmbito de aplicação da Diretiva 2004/18 por não atingir o limiar relevante fixado no artigo 7.°, esse contrato fica submetido às regras fundamentais e aos princípios gerais deste Tratado, na medida em que revista um interesse transfronteiriço certo, atendendo, nomeadamente, à sua importância e ao local da sua execução (v., neste sentido, acórdãos Ordine degli Ingegneri dela Provinzi di Lecce e o., C‑159/11, EU:C:2012:817, n.° 23, e Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici, C‑358/12, EU:C:2014:2063, n.° 24).

28      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não constatou os elementos necessários para permitir ao Tribunal de Justiça verificar se, no processo principal, existe um interesse transfronteiriço certo. Ora, conforme resulta do artigo 94.°, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, na sua versão que entrou em vigor em 1 de novembro de 2012, este deve poder encontrar num pedido de decisão prejudicial uma exposição dos dados factuais em que as questões assentam e o nexo existente, nomeadamente, entre esses dados e essas questões. Assim, a constatação dos elementos necessários que permitam a verificação da existência de um interesse transfronteiriço certo, da mesma forma que, de modo geral, todas as constatações que incumbem aos órgãos jurisdicionais nacionais, das quais depende a aplicabilidade de um ato de direito derivado ou de direito primário da União, deve ser efetuada antes de recorrer ao Tribunal de Justiça (v. acórdão Azienda sanitaria locale n° 5 «Spezzino» e o., C‑113/13, EU:C:2014:2440, n.° 47).

29      Em virtude do espírito de cooperação que preside às relações entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça no âmbito do procedimento prejudicial, a falta dessas constatações prévias pelo órgão jurisdicional de reenvio relativas à existência de um eventual interesse transfronteiriço certo não leva à inadmissibilidade do pedido se, apesar dessas deficiências, o Tribunal de Justiça, face aos elementos dos autos, considerar que está em condições de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio. É esse nomeadamente o caso quando a decisão do órgão jurisdicional de reenvio contém elementos pertinentes suficientes para apreciar a eventual existência desse interesse. Porém, a resposta dada pelo Tribunal de Justiça só tem lugar sob reserva de um interesse transfronteiriço certo no processo principal poder, com base numa apreciação circunstanciada de todos os elementos pertinentes relativos ao processo principal, ser provado pelo órgão jurisdicional de reenvio (v. acórdão Azienda sanitaria locale n° 5 «Spezzino» e o., EU:C:2014:2440, n.° 48 e jurisprudência referida). É com essa reserva que são feitas as considerações que se seguem.

30      Relativamente às disposições do Tratado FUE referidas nestas questões, decorre da decisão de reenvio que o referido contrato versa sobre a prestação de serviços de seguros. Assim, o artigo 34.° TFUE, que diz respeito à livre circulação de mercadorias, não é aplicável. Em contrapartida, os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, que se referem, respetivamente, à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, devem ser considerados relevantes no âmbito do processo principal.

31      Na medida em que estas últimas disposições constituem aplicações especiais da proibição geral de discriminação em razão da nacionalidade, consagrada no artigo 18.° TFUE, não é necessário invocar esta disposição para responder às questões prejudiciais (v., neste sentido, acórdão Wall, C‑91/08, EU:C:2010:182, n.° 32 e jurisprudência referida).

32      Sendo os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE aplicáveis a um contrato como o que está em causa no processo principal, na medida em que esse contrato tenha um interesse transfronteiriço certo, as entidades adjudicantes são obrigadas a respeitar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade e a obrigação de transparência que resulta desses artigos (v., nesse sentido, acórdão Wall, EU:C:2010:182, n.° 33 e jurisprudência referida).

33      Ora, nada no processo no Tribunal de Justiça ou nas observações apresentadas pelos interessados a que se refere o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia permite considerar que a aplicação da causa de exclusão do artigo 61.°, n.° 1, alínea a), do Kbt, numa situação como a que está em causa no processo principal, pode constituir uma discriminação, ainda que indireta, em razão da nacionalidade ou violar a obrigação de transparência. A este respeito, há que recordar que a entidade adjudicante mencionou expressamente, no anúncio de concurso, que a causa de exclusão da referida disposição do Kbt era aplicável ao contrato.

34      No que respeita a exclusão de operadores económicos de um contrato público no âmbito da liberdade de estabelecimento e da liberdade de prestação de serviços, previstas nos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, há que salientar que o artigo 45.°, n.° 2, alínea d), da Diretiva 2004/18 permite excluir qualquer operador que «[t]enha cometido falta grave em matéria profissional, comprovada por qualquer meio que as entidades adjudicantes possam evocar».

35      A este propósito, O Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de que o conceito de «falta em matéria profissional», na aceção daquela última disposição, abrange qualquer comportamento culposo que tenha incidência na honorabilidade profissional do operador em causa e não apenas as violações das regras deontológicas na estrita aceção da profissão à qual pertence esse operador (v., neste sentido, acórdão Forposta e ABC Direct Contact, EU:C:2012:801, n.° 27). Nestes termos, há que considerar que uma infração às regras da concorrência constitui uma causa de exclusão resultante do artigo 45.°, n.° 2, alínea d), da Diretiva 2004/18, nomeadamente quando essa infração foi sancionada por uma coima.

36      Ora, se tal causa de exclusão é possível, nos termos da Diretiva 2004/18, deve a fortiori ser considerada justificada no que respeita aos contratos públicos que não atinjam o limiar relevante fixado no artigo 7.° da referida diretiva e, consequentemente, não estejam sujeitos aos procedimentos especiais e rigorosos nela previstos (v., nesse sentido, acórdão Consorzio Stabile Libor Lavori Pubblici, EU:C:2014:2063, n.° 37).

37      Por outro lado, o considerando 101 da Diretiva 2014/24, aprovada já após a data dos factos no processo principal, que dispõe que as entidades adjudicantes devem ter a possibilidade de excluir operadores económicos, nomeadamente por faltas profissionais graves, tais como a infração a regras de concorrência, pois tais faltas podem pôr em causa a idoneidade de um operador económico, demonstra que a causa de exclusão referida no n.° 35 do presente acórdão se considera justificada à luz do direito da União. Acresce que o artigo 57.°, n.° 4, alínea d), desta diretiva prevê de forma clara e precisa esta causa de exclusão.

38      Importa acrescentar que, conforme esclareceu na audiência, a Generali não contesta a possibilidade de os Estados‑Membros preverem, na sua legislação nacional, uma causa de exclusão de um contrato público baseada na infração às regras da concorrência pelo operador económico em causa. O que a Generali contesta é o alcance do artigo 61.°, n.° 1, alínea a), do Kbt que, na sua opinião, constitui uma causa de exclusão de âmbito geral, que excede largamente o âmbito das causas de exclusão que constam no artigo 45.° da Diretiva 2004/18. Ora, tal como foi recordado no n.° 19 do presente acórdão, o processo principal diz respeito à exclusão da Generali da participação no contrato em causa por ter cometido uma infração às regras da concorrência, motivo pelo qual lhe foi aplicada uma coima. Assim, um exame da conformidade com o direito da União de outras causas de exclusão eventualmente abrangidas pela referida disposição da legislação húngara não é relevante para fins da solução a dar ao litígio no processo principal.

39      Atendendo ao que precede, há que responder às questões prejudiciais que os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE não se opõem à aplicação de normas nacionais que excluem da participação num procedimento de concurso público um operador económico que cometeu uma infração ao direito da concorrência, declarada por decisão judicial transitada em julgado, pela qual lhe foi aplicada uma coima.

 Quanto às despesas

40      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Por estes fundamentos o Tribunal de Justiça (Décima Secção) decide:

Os artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE não se opõem à aplicação de normas nacionais que excluem da participação num procedimento de concurso público um operador económico que cometeu uma infração ao direito da concorrência, declarada por decisão judicial transitada em julgado, pela qual lhe foi aplicada uma coima.

Assinaturas


* Língua do processo: húngaro.