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CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 14 de janeiro de 2021 (1)

Processo C64/20

UH

contra

An tAire Talmhaíochta Bia agus Mara, Éire agus an tArdAighne

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Ard‑Chúirt (Tribunal Superior, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2001/82/CE — Exigências linguísticas em matéria de embalagem e rotulagem de produtos veterinários — Poder de apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais para recusar deferir pretensões — Efeito direto — Primado — Autonomia processual — Proteção jurisdicional efetiva»






I.      Introdução

1.        Não são poucas as questões abordadas no presente processo. Se colocadas em conjunto e tocadas simultaneamente, geram uma verdadeira polifonia constitucional do direito da União: efeito direto, primado, autonomia processual, proteção jurisdicional efetiva, efetividade global da aplicação nacional do direito da União, todas acompanhadas por um pretenso direito de receber informações na própria língua e pelo multilinguismo da União.

2.        Ouvindo atentamente, há, contudo, uma melodia dominante que emerge: proíbem estes princípios, em particular a efetividade da aplicação nacional do direito da União, regras nacionais que concedem a um órgão jurisdicional um poder discricionário para determinar se deve deferir as pretensões de reparação, e na afirmativa, que tipo de medidas de reparação devem decretar, de um demandante que alega que as autoridades não transpuseram corretamente uma diretiva, no caso de a ação que intentou ser (aparentemente) procedente? Nessa melodia reverbera um tema bem conhecido: quais são os limites razoáveis para a exigência de uma aplicação efetiva do direito da União a nível nacional?

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

3.        O título V da Diretiva 2001/82/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos veterinários, (2) intitulado «Rotulagem e literatura», inclui os artigos 58.o a 64.o

4.        O artigo 58.o, n.o 1, da Diretiva 2001/82 elenca as informações que, salvo exceções, devem estar indicadas «em carateres legíveis» nos acondicionamentos dos medicamentos. Nos termos do artigo 58.o, n.o 4, desta diretiva, as informações previstas nas alíneas f) a l) desse artigo «devem ser redigidas, na embalagem externa e no recipiente dos medicamentos, na ou nas línguas do país de introdução no mercado».

5.        O artigo 59.o, n.o 1, da Diretiva 2001/82 precisa que, quando se tratar de ampolas, «as informações referidas no n.o 1 do artigo 58.o devem constar das embalagens exteriores». Em seguida, enumera as informações necessárias nos recipientes. O artigo 59.o, n.o 3, da Diretiva 2001/82 prevê que «[a]s informações previstas nos terceiro e sexto travessões do n.o 1 devem constar, na embalagem exterior e no acondicionamento primário dos medicamentos, na ou nas línguas do país de introdução no mercado».

6.        O artigo 61.o, n.o 1, da Diretiva 2001/82 estabelece que «[é] obrigatória a inclusão de folheto informativo na embalagem dos medicamentos veterinários, a menos que toda a informação requerida pelo presente artigo conste do acondicionamento primário e da embalagem exterior. […] O folheto informativo deve ser redigido por forma a ser compreendido pelo grande público e na língua ou línguas oficiais do Estado‑Membro onde o medicamento é comercializado». O artigo 61.o, n.o 2, da Diretiva 2001/82 enumera as informações que o folheto informativo deve, pelo menos, incluir.

7.        Os considerandos 52 e 53 do Regulamento (UE) 2019/6 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, relativo aos medicamentos veterinários e que revoga a Diretiva 2001/82/CE (3) enunciam:

«(52) A fim de reduzir os encargos administrativos e maximizar a disponibilidade de medicamentos veterinários nos Estados‑Membros, deverão ser estabelecidas regras simplificadas quanto à forma como o seu acondicionamento e rotulagem devem ser apresentadas. […]

(53) Além disso, os Estados‑Membros deverão poder escolher a língua do texto utilizada no resumo das características do medicamento, na rotulagem e no folheto informativo dos medicamentos veterinários autorizados no seu território.»

8.        O artigo 7.o do Regulamento 2019/6, sob a epígrafe «Línguas», estabelece:

«1. O resumo das características do medicamento veterinário e as informações constantes do rótulo e do folheto informativo devem ser redigidos numa língua ou nas línguas oficiais do Estado‑Membro em que o medicamento veterinário é disponibilizado no mercado, salvo decisão em contrário do Estado‑Membro.

2. Os medicamentos veterinários podem ser rotulados em vários idiomas.»

9.        Em conformidade com o seu artigo 160.o, o Regulamento n.o 2019/6 é aplicável a partir de 28 de janeiro de 2022.

B.      Direito irlandês

10.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, foram adotados vários atos legislativos para transpor a Diretiva 2001/82. Contudo, no que se refere à língua do acondicionamento, que esteve na origem do processo principal, as disposições pertinentes figuram no Statutory Instrument 144/2007 (Ato legislativo 144/2007) e no Statutory Instrument 786/2007 (Ato legislativo 786/2007). Por força destes instrumentos, as informações exigidas pelas disposições da Diretiva 2001/82 podem ser redigidas em irlandês ou em inglês.

III. Matéria de facto, tramitação do processo nos órgãos jurisdicionais nacionais e questões prejudiciais

11.      O demandante no processo principal tem como língua materna o irlandês. Tem um cão de companhia, para o qual compra medicamentos veterinários. O demandante queixou‑se ao Aire Talmhaíochta, Bia agus Mara, Éire (Ministro da Agricultura, da Alimentação e do Mar, Irlanda), de que as informações que acompanham os produtos veterinários estavam redigidas unicamente em inglês e não em ambas as línguas oficiais do Estado: irlandês e inglês. Em seu entender, isso constituía uma infração à Diretiva 2001/82.

12.      Em 14 de novembro de 2016, o demandante apresentou à Ard‑Chúirt (Tribunal Superior, Irlanda) um pedido de autorização para instaurar um processo de fiscalização jurisdicional relativo à não transposição correta, pelo Ministro, da Diretiva 2001/82 no que respeita às exigências linguísticas que esta contém. Esta autorização foi concedida e, como tal, foi intentada uma ação contra o Aire Talmhaíochta, Bia agus Mara, Éire (Ministro da Agricultura, da Alimentação e do Mar, Irlanda), o Ard Aighne (Procurador‑Geral), e a República da Irlanda. A audiência do processo decorreu em 24 e 25 de julho de 2018.

13.      O demandante apresentou os seguintes pedidos relativos à pretensa transposição incorreta da diretiva pela República da Irlanda: (i) que fosse declarado que a legislação nacional aplicável não transpõe, ou transpõe incorretamente, o título V (artigos 58.o a 61.o) da Diretiva 2001/82; (ii) que fosse declarado que o direito irlandês deve assegurar, no caso dos medicamentos veterinários introduzidos no mercado desse Estado, que as informações adequadas que figuram nas embalagens e nos folhetos informativos referidos no título V da Diretiva 2001/82 são redigidas nas línguas oficiais do Estado, isto é, em irlandês e inglês; e (iii) que fosse declarado que as autoridades irlandesas são obrigadas a alterar a legislação nacional para assegurar a transposição correta do título V da Diretiva 2001/82.

14.      Na Ard‑Chúirt (Tribunal Superior), o demandante invocou principalmente (i) o efeito direto das disposições da Diretiva 2001/82 relativas às exigências linguísticas (que essas disposições são claras, precisas e incondicionais) (ii) o primado do direito da União sobre o direito nacional (o órgão jurisdicional nacional poderia, como tal, aplicar as disposições do direito da União, afastando as disposições irlandesas contrárias), e (iii) o direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva (o demandante devia dispor de uma via de recurso efetiva e o órgão jurisdicional nacional devia deferir as suas pretensões).

15.      Por seu turno, os demandados reconheceram que, nos termos do direito irlandês, quando um demandante impugna com sucesso a decisão de uma autoridade pública por via da fiscalização jurisdicional tem normalmente direito a obter uma reparação. Todavia, alegaram que não se trata de um direito absoluto e, que no processo principal, é justificável não deferir os pedidos de reparação. Sustentam que, no presente processo, embora o deferimento da pretensão do demandante pudesse trazer alguns benefícios, eles seriam muito limitados em termos de valor, devido à iminente entrada em vigor do Regulamento 2019/6. Além disso, os demandados sustentam que é muito provável que no presente processo o deferimento das pretensões do demandante tivesse um forte impacto negativo sobre terceiros. Se os fornecedores e os distribuidores de medicamentos veterinários decidissem retirar‑se do mercado irlandês devido à exigência de imprimir o texto dos folhetos informativos e das embalagens nas duas línguas oficiais, é evidente que isso teria consequências graves para a saúde animal assim como consequências económicas, o que prejudicaria um grande número de indivíduos.

16.      Em 26 de julho de 2019, a Ard‑Chúirt (Tribunal Superior) declarou que o demandante tinha legitimidade ativa, uma vez que o artigo 58.o, n.o 4, o artigo 59.o, n.o 3, e o artigo 61.o, n.o 1, da Diretiva 2001/82 (a seguir «disposições da União em causa») eram claros, precisos e incondicionais. O demandante podia, por conseguinte, invocá‑las contra os demandados. Esse órgão jurisdicional declarou igualmente que a República da Irlanda não tinha transposto corretamente a diretiva no que respeita às exigências linguísticas, na medida em que o direito nacional em causa, a saber, o Statutory Instrument 144/2007 (Ato legislativo 144/2007) e o Statutory Instrument 786/2007 (Ato legislativo 786/2007), permitia que as informações apenas fossem fornecidas em inglês, em vez de exigir tanto o irlandês como o inglês.

17.      Todavia, a Ard‑Chúirt (Tribunal Superior) também observou que, no decurso da instância, foi adotado o Regulamento 2019/6, que contém novas disposições relativas à utilização das línguas nos medicamentos veterinários. Segundo este regulamento, quando se tornar aplicável (em 28 de janeiro de 2022), será autorizado que as informações do acondicionamento sejam fornecidas apenas em inglês. Neste contexto, o referido órgão jurisdicional interrogou‑se sobre se, tendo em conta esta alteração futura, seria útil deferir os pedidos do demandante, apesar de a República da Irlanda estar em violação do direito da União.

18.      Esse órgão jurisdicional salienta que existem no direito irlandês fundamentos bem assentes com base nos quais os órgãos jurisdicionais podem exercer um poder discricionário ao optarem por deferir as pretensões de reparação de um demandante cuja ação foi julgada procedente e, na afirmativa, que tipo de reparação. Esses fundamentos incluem diferentes fatores, tais como: 1) um atraso excessivo na propositura da ação; ou 2) o facto de não terem sido utilizadas outras vias mais adequadas, como a interposição de um recurso; ou 3) a falta de franqueza por parte do demandante; ou 4) o facto de o demandante agir de má‑fé; ou 5) um prejuízo para terceiros, ou 6) quando o deferimento das pretensões não sirva nenhuma finalidade útil.

19.      Consequentemente, tendo dúvidas quanto à questão de saber se o direito da União se opõe a normas processuais nacionais como as que estão em causa no processo principal, a Ard‑Chúirt (Tribunal Superior, Irlanda) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«(1)      Um órgão jurisdicional nacional dispõe de poder discricionário para [indeferir] um pedido apesar de ter declarado que o direito nacional não transpôs um aspeto específico de uma diretiva da União Europeia, e, em caso afirmativo, quais os elementos pertinentes a considerar no âmbito desse poder discricionário, e/ou pode o órgão jurisdicional nacional ter em conta os mesmos fatores que […] se estivesse em causa uma violação do direito nacional?

(2)      O princípio do efeito direto do direito da União Europeia seria posto em causa se, no presente processo, o órgão jurisdicional nacional [indeferisse] o pedido devido à entrada em vigor do artigo 7.o do [Regulamento 2019/6] (cuja aplicação é diferida até 28 de janeiro de 2022), apesar de ter declarado que o direito nacional não respeitou a obrigação imposta pelos artigos 61.o, n.o 1, 58.o, n.o 4 e 59.o, n.o 3 da [Diretiva 2001/82], segundo a qual a embalagem e a rotulagem dos produtos veterinários devem ser redigidas nas línguas oficiais do Estado‑Membro, ou seja, no caso da Irlanda, em irlandês e inglês?»

20.      O demandante, a República da Irlanda, o Governo polaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV.    Análise

A.      Admissibilidade

21.      A República da Irlanda e o Governo polaco sustentam que o pedido de decisão prejudicial é inadmissível.

22.      Em primeiro lugar, a República da Irlanda alega que transpôs devidamente as disposições de direito da União em causa. O texto da Diretiva 2001/82 é ambíguo quanto à questão de saber se se exige ou não que todas as línguas oficiais sejam utilizadas nas informações que figuram na embalagem e na rotulagem dos medicamentos veterinários no caso de haver várias línguas oficiais num Estado‑Membro. Por conseguinte, a decisão da República da Irlanda de implementar a referida diretiva no sentido de permitir a utilização de apenas uma das suas línguas oficiais insere‑se na sua margem de apreciação na transposição da diretiva.

23.      Em segundo lugar, a República da Irlanda sustenta que é claro, com base no objetivo expresso da Diretiva 2001/82, que os direitos que dela decorrem não são direitos linguísticos ou culturais, mas direitos relativos ao acesso à informação sobre os medicamentos veterinários. Esses direitos só seriam violados se um demandante estivesse na posse de embalagens ou rótulos que não conseguisse compreender plenamente. Contudo, o demandante no processo principal não alegou ter sido confrontado com uma embalagem ou com um rótulo que não conseguia compreender plenamente.

24.      Por seu turno, o Governo polaco alega que o direito da União não obriga os órgãos jurisdicionais nacionais a deferirem um pedido que consiste em ordenar às autoridades nacionais competentes que alterem o direito nacional de modo a torná‑lo conforme com o direito da União. Em todo o caso, este Governo sustenta que a ação do demandante está destinada ao insucesso. Mesmo admitindo que o direito de dispor das informações que acompanham os medicamentos veterinários em língua irlandesa resulta de disposições incondicionais e suficientemente precisas da Diretiva 2001/82, não se trata, atendendo à sua natureza, de um direito oponível às autoridades irlandesas. A obrigação de rotular estes produtos em língua irlandesa incumbe a entidades privadas, nomeadamente os produtores e os distribuidores desses produtos. Contudo, o demandante não pode invocar o seu direito à informação em irlandês no que respeita a medicamentos veterinários contra os produtores e os distribuidores desses medicamentos, uma vez que uma diretiva não pode, por si só, criar obrigações para um particular e não lhe pode, portanto, ser oposta enquanto tal.

25.      No que respeita à admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial, estes argumentos não convencem.

26.      Na minha opinião, os argumentos invocados tanto pela República da Irlanda como pelo Governo polaco dizem respeito ao mérito da ação do demandante no processo principal a nível nacional. As objeções suscitadas pela República da Irlanda têm por objeto uma questão de mérito prévia, que, todavia, não foi suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio. O mesmo se aplica às objeções suscitadas pelo Governo polaco. A questão de saber se o direito da União obriga o órgão jurisdicional nacional a prever uma via de recurso específica é também, no presente processo, uma questão de mérito e não uma questão de admissibilidade. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, os argumentos relativos a questões de mérito não podem afetar a admissibilidade das questões submetidas (4).

27.      Além disso, segundo jurisprudência assente, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. Esta presunção não pode ser elidida pela possibilidade de o demandante poder ser vencido no processo principal no órgão jurisdicional nacional, em especial se o Tribunal de Justiça adotar uma determinada interpretação do direito da União (5).

28.      Por estas razões, debruçar‑me‑ei agora sobre o mérito das duas questões prejudiciais.

B.      Quanto ao mérito

1.      Observações preliminares

29.      No presente processo o demandante baseia‑se em — e o órgão jurisdicional de reenvio invoca — alguns dos mais importantes princípios estruturais do direito da União: efeito direto, primado, fiscalização jurisdicional efetiva e autonomia processual. À primeira vista, os problemas suscitados pelo presente processo podem, portanto, parecer bastante complicados. Todavia, após uma análise mais aprofundada, a questão‑chave revela‑se com muita clareza.

30.      No meu entender, no processo principal o demandante apresentou, no essencial, três pedidos: (i) que fosse declarado que o direito nacional é incompatível com o direito da União (ii) que fosse declarado que o direito nacional deve dar cumprimento ao direito da União e, por último (iii) que fosse declarado que as autoridades nacionais devem alterar a legislação nacional nesse sentido.

31.      Não é inteiramente evidente para mim se estes três pedidos devem ser deferidos simultaneamente ou se o órgão jurisdicional de reenvio pode escolher livremente entre elas. Para efeitos das presentes conclusões, parto do princípio de que o órgão jurisdicional de reenvio dispõe de uma margem de apreciação significativa a este respeito. Com efeito, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, ao abrigo do direito nacional, dispõe de um poder discricionário para optar pela reparação que considera mais apropriada à luz das circunstâncias e, se for caso disso, até mesmo indeferir todas as pretensões (6). Assim, esse órgão jurisdicional questiona‑se se isso também será aplicável no caso de os direitos do demandante se basearem no direito da União.

32.      Neste contexto, parece‑me que, do ponto de vista do direito da União, as questões que estão no cerne deste litígio são relativas à autonomia processual e à proteção jurisdicional efetiva. As duas questões prejudiciais submetidas podem, assim, ser analisadas conjuntamente e reformuladas da seguinte maneira: o direito da União, em especial os princípios da autonomia processual e da proteção jurisdicional efetiva, opõe‑se a uma legislação ou prática nacional segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem de um poder discricionário para determinar se devem deferir as pretensões de reparação e, na afirmativa, que tipo de medidas de reparação devem decretar, de um demandante que alega que as autoridades não transpuseram corretamente uma diretiva, no caso de a sua ação ser julgada procedente?

33.      Para responder a esta questão, as presentes conclusões estão estruturadas da seguinte forma: começarei por definir o quadro jurídico pertinente para a análise, a fim de explicar como será analisado o presente processo (2). Em seguida, ilustrarei brevemente como, em processos anteriores, o Tribunal de Justiça aplicou este quadro a casos específicos (3). Nessa base, exporei certos temas e orientações transversais que podem ser úteis ao órgão jurisdicional de reenvio (4). Na medida em que, em última análise, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio retirar as consequências para o processo principal, concluirei com algumas considerações específicas relativas ao caso concreto (5).

2.      Quadro jurídico pertinente: quanto à efetividade «Rewe» e à proteção jurisdicional efetiva nos termos do artigo 47.o da Carta

34.      Segundo jurisprudência constante, as disposições do direito da União diretamente aplicáveis que sejam uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, Estados‑Membros ou particulares, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados‑Membros a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (7).

35.      Resulta igualmente de jurisprudência constante que qualquer órgão jurisdicional nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado‑Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação leal consagrado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, de aplicar integralmente o direito da União diretamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional (8).

36.      Resulta do exposto que é incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de um ordenamento jurídico nacional ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por efeito diminuir a eficácia do direito da União pelo facto de negar ao juiz competente para a aplicação desse direito o poder de, no momento dessa aplicação, fazer tudo o que for necessário para não aplicar as disposições legislativas nacionais que eventualmente obstem à plena eficácia das disposições diretamente aplicáveis do direito da União (9).

37.      Contudo, qual deve ser o pleno efeito de disposições da União diretamente aplicáveis para que sejam plenamente eficazes? Salvo se, por defeito, «pleno» dever ser entendido como tudo, qualquer coisa e ainda mais do que isso, de facto não existe um critério de plena eficácia próprio do direito da União. Pelo contrário, é normalmente efetuada uma apreciação casuística por referência ao quadro legislativo nacional em causa num processo em concreto.

38.      Isso é inevitável se o princípio geral da aplicação nacional das disposições do direito da União for a autonomia processual nacional. O critério de referência inicial continua a ser o critério existente em direito nacional. Segundo jurisprudência constante, na falta de legislação da União, cabe a cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais nacionais competentes e estabelecer as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União. Contudo, essas regras não devem ser menos favoráveis do que as que regulam ações semelhantes de natureza interna (exigência de equivalência) e não devem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (exigência de efetividade) (10).

39.      No presente processo, a questão da equivalência manifestamente não se coloca. As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio decorrem precisamente do facto de as regras processuais nacionais em causa se aplicarem não só a situações reguladas pelo direito nacional, mas também a situações reguladas pelo direito da União.

40.      A verdadeira questão é, por conseguinte, a da efetividade.

41.      Todavia, num caso como o presente, a exigência de efetividade, entendida como uma condição de aplicação do princípio da autonomia processual, e por vezes referida como «efetividade‑Rewe» (11), coincide na prática com o direito fundamental a uma proteção jurisdicional efetiva na aceção do artigo 47.o da Carta. Com efeito, o demandante alega que a aplicação das regras processuais nacionais em causa o priva de um meio processual adequado para assegurar a proteção do direito (substantivo) que lhe é conferido pelas disposições da União em causa: dispor das informações que acompanham os medicamentos veterinários em ambas as línguas oficiais (irlandês e inglês) do Estado.

42.      Como assinalei nas minhas conclusões no processo Banger, a relação entre o princípio da efetividade, enquanto uma das duas exigências em matéria de autonomia processual dos Estados‑Membros, e o princípio da proteção jurisdicional efetiva, enquanto direito fundamental posteriormente consagrado no artigo 47.o da Carta, talvez (ainda) não seja inteiramente clara (12). Dificilmente se pode pôr em causa que, no mínimo, os dois princípios coincidem em grande medida no que respeita ao respetivo conteúdo.

43.      Além disso, no que respeita ao tipo de análise a fazer, pode considerar‑se que estes dois princípios exigem um exame de uma determinada situação sobre dois pontos de vista complementares: a efetividade‑Rewe centra‑se no nível estrutural (a existência, em geral, de meios de ação adequados ao tipo de situação em causa), ao passo que a proteção jurisdicional efetiva do artigo 47.o da Carta presta mais atenção ao nível individual (a existência, in concreto, de meios de ação adequados para a pessoa em causa).

44.      O princípio da proteção jurisdicional efetiva é um princípio geral do direito da União, atualmente consagrado no artigo 47.o da Carta. Exige, em particular, a existência de meios de ação adequados de natureza judicial contra quaisquer decisões de autoridades nacionais que possam violar os direitos e as liberdades que são reconhecidos aos indivíduos pelo direito da União (13). Neste contexto, o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido o litígio deve, designadamente, ter o poder de analisar todas as questões de facto e de direito relevantes para o processo submetido à sua apreciação. (14)

45.      Contudo, o âmbito e a intensidade da análise que um órgão jurisdicional nacional deve fazer para dar cumprimento ao artigo 47.o da Carta varia consoante o contexto específico e as circunstâncias relevantes do processo (15). Como o Tribunal já declarou em várias ocasiões, os elementos que devem ser tidos em conta incluem, nomeadamente, «a natureza do ato em causa, o contexto em que foi adotado e […]as normas jurídicas que regem a matéria em causa» (16).

46.      Existe, naturalmente, muita jurisprudência relativa à efetividade («Rewe»), que na última década tem, essencialmente, sido substituída pela proteção jurisdicional efetiva ao abrigo do artigo 47.o da Carta. Contudo, dificilmente se pode considerar que esta jurisprudência extremamente casuística seja coerente.

3.      Jurisprudência anterior: rigor, flexibilidade e meio termo

47.      A jurisprudência elaborada ao longo dos anos varia (17). Sendo tão casuística, essa jurisprudência resiste à generalização. Encontram‑se exemplos para diferentes abordagens. Variam de uma posição bastante favorável aos Estados‑Membros, em que geralmente a equivalência é suficiente, a afirmações de efetividade inflexíveis, nas quais um Estado‑Membro deve ir (muito) além do que é normalmente possível ao abrigo do seu direito nacional.

48.      Num lado do espetro, encontramos os processos em que o Tribunal de Justiça aceitou as regras processuais nacionais em causa após ter feito do requisito de equivalência o ponto central da sua análise. Nesses casos, a apreciação do requisito da efetividade foi abordada de forma notoriamente leve (18). A este respeito, o Tribunal de Justiça deixou claro que o princípio da equivalência não pode ser interpretado como uma obrigação do Estado‑Membro de alargar o seu regime processual nacional mais favorável a todas as ações que tenham por fundamento o direito da União (19). Este nível de fiscalização mais «brando» parece ter sido utilizado sobretudo relativamente a conceitos e mecanismos de direito processual comuns às ordens jurídicas de todos os Estados‑Membros, sendo intrínsecos a qualquer sistema judicial (como a res judicata, os prazos de prescrição e de caducidade, etc.).

49.      No lado oposto do espetro encontram‑se, por exemplo, os processos Simmenthal, San Giorgio, Factortame, Cartesio, Elchinov, ou Klausner (20), nos quais o Tribunal de Justiça insistiu de modo categórico numa visão robusta da efetividade. Estes processos diziam respeito, em geral, a situações em que um tipo de via de recurso não existia numa ordem jurídica nacional, e se entendia que a prática nacional em causa resultava em obstáculos sistémicos à plena efetividade do direito da União ou a uma proteção rápida e completa das pessoas cujos direitos tinham sido afetados.

50.      Além disso, no que respeita mais especificamente ao contexto do presente processo, o Tribunal de Justiça também adotou uma abordagem bastante estrita em vários processos em que a problemática suscitada pelos órgãos jurisdicionais de reenvio dizia respeito aos efeitos, ratione temporis, de acórdãos que declaravam a incompatibilidade do direito nacional com o direito da União. Nomeadamente nos processos Winner Wetten, Filipiak, Gutierrez Naranjo, ou Association France Nature Environment (21), o Tribunal de Justiça recusou, em substância, a possibilidade de órgãos jurisdicionais nacionais, incluindo supremos tribunais ou tribunais constitucionais nacionais, terem o poder de diferir a produção de efeitos de uma declaração de incompatibilidade de uma medida nacional com o direito da União ou de criarem um regime transitório a fim de preencher uma suposta lacuna jurídica. Segundo o Tribunal de Justiça, qualquer decisão dessa natureza corresponderia a uma limitação temporal dos efeitos da interpretação de uma regra de direito da União, algo que cabe exclusivamente ao Tribunal de Justiça decidir. Por outro lado, para contextualizar, há que reconhecer igualmente que um importante elemento comum a estes processos foi a observância, ou mesmo a execução, de acórdãos anteriores do Tribunal de Justiça que estavam em causa em tais processos.

51.      Por último, entre estes dois extremos, encontram‑se os processos em que o Tribunal de Justiça tomou uma posição intermédia. Frequentemente, o Tribunal tentou chegar a decisões «salomónicas» que avalizavam a regulamentação nacional dos Estados‑Membros, ao mesmo tempo que limitavam a sua autonomia quanto à forma como essas vias de recurso devem ser usadas. Processos como Fantask, Melki e Abdeli, DEB e Lesoochranárske zoskupenie VLK oferecem bons exemplos a este respeito (22).

52.      Algumas decisões recentes do Tribunal de Justiça parecem inspirar‑se nesta última corrente jurisprudencial. Nesses processos, o Tribunal de Justiça exigiu aos órgãos jurisdicionais nacionais que utilizassem o pleno potencial conferido pelas suas regras processuais nacionais para alcançar os objetivos prosseguidos pelas disposições pertinentes da União, mas apenas na medida em que esse exercício de interpretação fosse conforme com o princípio da legalidade e não implicasse uma violação dos direitos fundamentais (23).

53.      Tudo considerado, a «contradição Rewe/Simmenthal»(24), que puxa em diferentes direções no que respeita à exigência de equivalência (ou de proibição de discriminação), por um lado, e à exigência de efetividade, por outro, está ainda muito presente no critério de análise da autonomia processual nacional. Contudo, limites internos a uma afirmação absoluta da efetividade têm sido cada vez mais expressamente reconhecidos como resultado do princípio da legalidade e da proteção dos direitos fundamentais (e talvez também de um pouco de bom senso) (25).

4.      Quanto ao nível estrutural: apreciação casuística

54.      Em meu entender, os princípios do direito da União e a jurisprudência que acabam de ser ilustrados levam a concluir que não pode haver uma resposta direta e geral à questão de saber se o direito da União se opõe a uma legislação ou prática nacional segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem de um poder discricionário para determinar se devem deferir as pretensões de reparação, e na afirmativa, que tipo de medidas de reparação devem decretar, de um demandante que alega que as autoridades não transpuseram corretamente uma diretiva, no caso de a sua ação ser procedente.

55.      Isso depende simplesmente do caso concreto. Não vejo nenhuma razão pela qual o direito da União deva, por princípio, opor‑se a tal legislação ou prática. O Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União «deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, na tramitação deste e nas suas particularidade perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se necessário, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos da defesa, o princípio da segurança jurídica e a correta tramitação do processo» (26).

56.      Assim, o que é exigido, da perspetiva do direito da União, é uma correlação razoável entre os direitos, a violação e o tipo e o alcance dos meios de ação e da medida de reparação a conceder, à luz dos factos e das circunstâncias do processo. Cada processo deve ser apreciado no seu próprio contexto e na sua dimensão. Em meu entender, esta exigência não se limita apenas ao direito da União, sendo inerente a qualquer sistema jurídico europeu moderno. Não me parece que a muito reverenciada efetividade do direito da União deva ser invocada como um meio de, de facto, regressar, perante um órgão jurisdicional nacional em que esteja potencialmente em causa o direito da União, a uma forma de julgar rígida, inflexível e, por conseguinte, absolutamente desproporcionada, que faça lembrar as condenações penais na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII.

57.      Como tal, parece‑me que é a própria jurisprudência do Tribunal de Justiça que de facto exige que os órgãos jurisdicionais nacionais tenham em conta, no exercício do seu poder discricionário relativo aos meios de ação e às medidas de reparação pedidos, elementos como os indicados pelo órgão jurisdicional de reenvio: um atraso excessivo na propositura da ação, a não utilização de outros meios processuais mais adequados, a falta de franqueza do demandante, o facto de o demandante agir de má‑fé, prejuízo para terceiros e a questão de saber se o deferimento da pretensão não serve nenhuma finalidade útil. Tomar em consideração estes elementos não priva, por si só, um demandante de proteção jurisdicional, nem priva de efeito útil os direitos substantivos cuja proteção o demandante requer.

58.      Pelo contrário, ao tomar em consideração os elementos acima referidos, o órgão jurisdicional nacional mais não faz do que exercer a sua função jurisdicional, que é encontrar, para cada litígio, a solução mais adequada tendo em conta o contexto específico e todas as circunstâncias pertinentes. Também aqui os princípios da efetividade do direito da União e da proteção jurisdicional efetiva não podem ser interpretados no sentido de que impõem aos órgãos jurisdicionais nacionais qualquer automatismo (desprovido de sentido).

59.      É certo que o facto de a margem de apreciação dos órgãos jurisdicionais nacionais dizer respeito não só ao tipo de medida de reparação que devem decretar mas também à questão de saber se faz sentido decretar alguma medida pode sugerir que, pelo menos em certos casos, um particular está completamente privado de qualquer forma de proteção jurisdicional e que a efetividade das regras pertinentes da União não é assegurada.

60.      No entanto, em meu entender, tal conclusão não é razoável. Com efeito, tanto quanto é do meu conhecimento, existem em todas as ordens jurídicas princípios ou mecanismos processuais destinados a evitar situações em que uma aplicação cega e automática das regras produza um resultado injusto ou desproporcionado ou conduza a uma solução que não sirva nenhuma finalidade útil. A este respeito, recordo, por exemplo, as regras relativas à boa administração da justiça e à economia processual, ou as regras contra o abuso de direito ou do processo, e contra a litigância de má‑fé ou vexatória. Por conseguinte, não há nada de intrinsecamente ilegal no facto de, apesar de um demandante agir formalmente no exercício dos seus direitos e de as suas pretensões serem procedentes, em casos muito excecionais (e enfatizo casos muito excecionais) o demandante poder não ver decretadas as medidas que requereu. Mais uma vez, a questão de saber se esta solução pode ser justificada depende das circunstâncias e do contexto de cada caso concreto.

61.      Concluo, por conseguinte, que uma apreciação da compatibilidade com o direito da União de uma legislação ou prática nacional, como a que está em causa, seja do ponto de vista do requisito (mais baseado na estrutura) de efetividade, como parte do princípio da autonomia processual, seja do ponto de vista do princípio (mais baseado nos direitos individuais) da proteção jurisdicional efetiva, deve normalmente ser efetuada numa base casuística. O que, em meu entender, é crucial é que, em cada caso, o órgão jurisdicional nacional possa encontrar uma relação razoável (ou proporcionada) entre a natureza e a importância do direito invocado; a gravidade da violação ou a relevância do prejuízo sofrido; e o tipo de pretensão apresentada ou de reparação pedida. Tudo isto deveria ser medido e avaliado no âmbito da situação factual e jurídica em causa.

62.      À luz do que precede, considero que o Tribunal de Justiça deve responder ao órgão jurisdicional de reenvio que o direito da União, em especial os princípios da autonomia processual e da proteção jurisdicional efetiva, não se opõe, seguramente não em si mesmo, a uma legislação ou uma prática nacional segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem de um poder discricionário para determinar se devem deferir as pretensões de reparação e, na afirmativa, que tipo de medidas de reparação devem decretar, de um demandante que alega que as autoridades não transpuseram corretamente uma diretiva, no caso de a ação que intentou ser julgada procedente. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio garantir que existe, nos factos e no contexto de cada caso individual que lhe seja submetido, uma relação razoável entre a natureza dos direitos invocados, a gravidade da sua violação ou o prejuízo sofrido, e o tipo de reparação pedida e, consequentemente, que decide decretar (ou eventualmente não decretar) a favor do demandante.

63.      No que toca ao litígio no processo principal, isso implica uma apreciação que o órgão jurisdicional de reenvio está manifestamente mais bem colocado para fazer. Contudo, a fim de dar algumas indicações úteis a esse órgão jurisdicional, farei agora algumas considerações adicionais, mantendo no espírito certas particularidades do caso vertente.

5.      Contexto do presente processo: direitos, violação, meios de reparação

64.      No processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio terá, em substância, de determinar se os três pedidos do demandante, ou algum ou alguns deles, são suscetíveis de conduzir a um resultado justo e proporcionado para a proteção dos direitos invocados pelo demandante.

65.      Como é evidente, será esse o caso se se partir da premissa de que as disposições da União em causa têm efeito direto. Quanto à estrutura da relação, é certo que os demandados são autoridades públicas e, segundo jurisprudência constante, as disposições de uma diretiva podem ser invocadas por particulares contra essas autoridades quando o Estado não as tenha transposto dentro do prazo (27).

66.      Todavia, saber se a disposição ou as disposições do direito da União em causa têm efeito direto, e qual é precisamente o conteúdo da regra que tem efeito direto, é uma questão diferente. Segundo jurisprudência constante, uma disposição do direito da União tem efeito direto sempre que, do ponto de vista do seu conteúdo, seja suficientemente clara, precisa e incondicional para ser invocada contra qualquer disposição nacional não conforme ou na medida em que defina direitos que os particulares podem invocar contra o Estado (28).

67.      No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio parece ter resolvido esta questão logo numa fase inicial ao concluir que, como sustentou o demandante, as disposições da União em causa são suficientemente claras, precisas e incondicionais para terem efeito direto. O órgão jurisdicional de reenvio não pediu ao Tribunal de Justiça que examinasse esta questão e respeitarei esta decisão, embora a República da Irlanda a tenha suscitado e invocado para efeitos da análise da admissibilidade (29). No entanto, destaco dois elementos.

68.      Em primeiro lugar, a precisão da regra, enquanto condição do efeito direto, significa que o conteúdo da obrigação que incumbe ao Estado‑Membro é efetivamente claro. O âmbito de uma regra com efeito direto não tem necessariamente de coincidir textualmente com a totalidade da disposição jurídica. Assim, é seguramente possível extrair de uma disposição mais ampla uma regra mais estrita e autónoma que reflita a obrigação mínima que incumbe a um Estado‑Membro. Esta regra deve, no entanto, ser clara e precisa quanto ao seu alcance e ao seu conteúdo (30).

69.      Em segundo lugar, no âmbito dessa análise à luz de uma regra constante de uma diretiva, importa ter presente que o princípio constitucional que regula a transposição de uma diretiva é a escolha e a autonomia do Estado‑Membro, na condição, naturalmente, de a própria diretiva não se opor a tal escolha. Em contrapartida, no caso de ser um regulamento a conferir essa escolha e essa margem de apreciação, o texto desse regulamento deve indicá‑lo expressamente. Este facto pode ser de particular importância no âmbito da apreciação do alcance de uma determinada obrigação na sequência de uma alteração do tipo de fonte legislativa da União que rege um domínio em particular, como ocorreu recentemente em vários domínios do direito da União (31), quando o instrumento legislativo num determinado domínio deixou de ser uma diretiva e passou a ser um regulamento.

70.      Seja como for, há outro aspeto que merece ser tomado em consideração. A natureza do direito em causa é um dos elementos que normalmente devem ser tidos em conta (32) para determinar a solução adequada que deve ser assegurada ao particular afetado. Com efeito, a natureza e a importância do direito em causa são uma variável básica da equação de avaliação global que o órgão jurisdicional deve ter em consideração (33). Creio que no presente processo este elemento merece alguma atenção, e é sobre ele que agora me debruço.

a)      Que direitos? Direitos linguísticos no direito da União

71.      Desde logo, não há dúvida de que a diversidade linguística é particularmente valorizada na União Europeia. Em conformidade com o artigo 3.o TUE, a União «respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística» e «vela pela salvaguarda e pelo desenvolvimento do património cultural europeu». Para este efeito, a União deve, por força do artigo 165.o, n.o 2, TFUE, promover a aprendizagem e divulgação das línguas dos Estados‑Membros.

72.      O respeito pela diversidade linguística está igualmente consagrado no artigo 22.o da Carta. Por outro lado, o artigo 21.o da Carta proíbe a discriminação em razão, designadamente, da língua.

73.      Além disso, o multilinguismo é um princípio central do funcionamento da União Europeia, o que foi desde muito cedo demonstrado pela adoção do Regulamento n.o 1 em 1958 (34).

74.      Todavia, embora estes princípios e seu valor sejam efetivamente da maior importância, foi igualmente reconhecido que a política linguística implica escolhas que, por vezes, também são política e socialmente delicadas. Perante isso, tanto o legislador da União como o juiz da União adotaram reiteradamente uma abordagem bastante cautelosa, diplomática e pragmática no que respeita às línguas, ao nível da União, mas também quando é provável que esse nível tenha repercussões ao nível dos Estados‑Membros.

75.      Ao nível do funcionamento interno da União, o sistema nunca foi demasiado rígido. Desde logo, mesmo no que respeita às línguas oficiais da União, foram recentemente introduzidas exceções, no que respeita, em particular, ao irlandês (35) e ao maltês (36). Com maior importância para efeitos do presente processo, o Tribunal de Justiça rejeitou reiteradamente a ideia de que, para efeitos do direito da União, tenha de haver uma igualdade absoluta entre todas as línguas oficiais(37). A máxima da igual autenticidade de todas as versões linguísticas ou o princípio da não discriminação entre as línguas oficiais da União não significa que «todas as línguas oficiais devam, em todas as circunstâncias, ter um tratamento igual para todos os efeitos» (38). Como tal, ao nível da União, são permitidos regimes diferenciados desde que haja uma justificação suficiente para a sua existência.

76.      Além disso, quando chamados a reconhecer e garantir direitos linguísticos decorrentes do direito da União, as jurisdições da União esforçaram‑se por assegurar a proteção dos indivíduos afetados(39), deixando simultaneamente alguma margem de manobra às autoridades competentes (da União ou nacionais).

77.      Por exemplo, no processo Skoma‑Lux, o Tribunal de Justiça declarou que um regulamento da (então) Comunidade não publicado na língua oficial de um Estado‑Membro não era oponível aos particulares que residiam nesse Estado(40). Contudo, o Tribunal absteve‑se de extrair uma consequência mais significativa, relativamente à validade ou à aplicabilidade do ato, da não publicação do ato. Assim, o direito da União não publicado na (única) língua de um Estado‑Membro continuava efetivamente a ser direito válido nesse Estado‑Membro. O que sucedia era apenas que nenhuma obrigação podia ser oposta a um particular com base nesse direito (41).

78.      Esta tendência é provavelmente ainda mais evidente quando o Tribunal de Justiça é confrontado com medidas nacionais que refletem opções de política nacionais. Não se deve negligenciar, a este respeito, que a política linguística ao nível nacional faz parte, em geral, das competências dos Estados‑Membros. Com efeito, por força do artigo 6.o TFUE, a União apenas tem competência para levar a cabo ações para apoiar, coordenar ou completar a ação dos Estados‑Membros nos domínios da cultura e da educação. Afinal, a política linguística reflete a história, a cultura, as tradições e a sociedade de cada país.

79.      Por conseguinte, as jurisdições da União têm‑se mostrado reticentes em interferir excessivamente nas opções nacionais ou em impor aos Estados‑Membros obrigações muito estritas. Por exemplo, no processo UTECA, o Tribunal de Justiça concluiu que uma legislação nacional que obrigava os operadores de televisão a destinar uma determinada percentagem das suas receitas ao financiamento antecipado de filmes para cinema e para televisão europeus cuja língua original fosse uma das línguas oficiais do Estado‑Membro em causa era compatível com o direito da União (42). No processo Runevič‑Vardyn, o Tribunal de Justiça declarou que o direito da União não obstava a que as autoridades nacionais recusassem alterar os nomes próprios e os apelidos dos interessados, conforme constam das suas certidões de nascimento e de casamento, com o fundamento de que a legislação nacional estabelecia que os nomes próprios e os apelidos de pessoas singulares tinham de ser transcritos nesses documentos de uma forma que respeitasse as regras ortográficas da língua oficial nacional (43). De forma mais geral, o Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado que a proteção e promoção de uma ou várias línguas oficiais de um Estado‑Membro podem justificar derrogações às regras em matéria de liberdade de circulação, e só declarou medidas nacionais adotadas com esse objetivo incompatíveis com o direito da União quando as considerou desproporcionadas relativamente a esse objetivo (44).

80.      Extraio duas conclusões dos exemplos jurisprudenciais expostos acima. Em primeiro lugar, embora não haja dúvida de que os direitos linguísticos são da maior importância na União e que os particulares têm seguramente o direito de obter uma proteção contra qualquer violação destes direitos, não há consequências automáticas a retirar da sua eventual violação. A este respeito, as jurisdições da União têm geralmente preferido uma abordagem equilibrada e matizada, na qual as circunstâncias específicas de cada processo têm sido devidamente consideradas e ponderadas entre si, a fim de alcançar um resultado justo (e não disruptivo).

81.      Em segundo lugar, esta abordagem foi seguida não apenas no que respeita à utilização das línguas em relação a regras específicas de certos setores ou áreas (como os exemplos acima referidos da jurisprudência em matéria de liberdade de circulação), mas também no que respeita a opções constitucionais. Como tal, por outras palavras, se mesmo os casos estruturais ou constitucionais demonstram um elevado grau de flexibilidade e a inexistência de automatismo em termos de resultados, seria muito surpreendente sustentar que um simples regime de direito derivado num domínio regulamentar específico pudesse dar subitamente origem a um direito linguístico absoluto.

82.      Neste contexto, debruçar‑me‑ei agora sobre outras variáveis da equação perante o órgão jurisdicional de reenvio. Metaforicamente: se de um lado da balança está uma potencial violação de um direito linguístico como o que decorre das disposições da União em causa, que tipo de soluções deveria o órgão jurisdicional nacional colocar do outro lado da balança para alcançar um desfecho equilibrado do processo principal?

b)      Tipo de reparação

83.      Antes de mais, devo salientar que o presente processo não diz respeito às condições em que o direito da União exige que o direito nacional crie novas vias de recurso para preencher uma lacuna na proteção jurídica (45), contrariamente ao que sustentou o Governo polaco (46). Este processo diz unicamente respeito à forma como as vias de recurso já existentes no sistema jurídico de um Estado‑Membro devem ser utilizadas quando o processo submetido ao órgão jurisdicional nacional tem por objeto direitos baseados no direito da União. Como tal, não é necessário discutir a questão de saber se e, sendo caso disso, quando pode um Estado‑Membro ser obrigado, à luz do direito da União, a instituir uma via de recurso jurisdicional que permita aos órgãos jurisdicionais nacionais adotar decisões que, como uma injunção ou uma ordem executiva imediata, obrigam as autoridades (legislativas ou administrativas) competentes a alterar imediatamente o direito nacional.

84.      A natureza da questão suscitada pelo órgão jurisdicional de reenvio é diferente. Este órgão jurisdicional indicou que, no direito nacional, existe um conjunto de regras que providenciam uma via de recurso no caso concreto. Todavia, interroga‑se sobre se este conjunto de regras poderia ser utilizado e aplicado exatamente da mesma maneira se as alegações do demandante não fossem baseadas no direito nacional, mas sim no direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre se este conjunto de regras deve ser afastado «em nome» da aplicação efetiva do direito da União ou da proteção jurisdicional efetiva dos particulares.

85.      Posto isto, escusado será assinalar que o órgão jurisdicional de reenvio não pode, no processo principal, assegurar uma satisfação plena e imediata dos direitos substantivos do demandante através do processo conjugado de afastar a aplicação do direito nacional e aplicar diretamente o direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio não pode ordenar às empresas farmacêuticas que cumpram a obrigação decorrente do artigo 58.o, n.o 4, do artigo 59.o, n.o 3, e do artigo 61.o, n.o 1, da Diretiva 2001/82. Estas sociedades não são demandadas nesse processo.

86.      Além disso, qualquer ação dessa natureza contra essas sociedades teria muito poucas probabilidades de ser bem sucedida, uma vez que o Tribunal de Justiça tem reiteradamente excluído a possibilidade de as diretivas não transpostas poderem ter efeito direto horizontal e, como tal, ser invocadas contra particulares (47). Além disso, mais recentemente, no processo Popławski, o Tribunal de Justiça reiterou que «mesmo clara, precisa e incondicional, uma disposição de uma diretiva não permite ao juiz nacional afastar uma disposição do seu direito interno que lhe seja contrária, se, ao fazê‑lo, for imposta a um particular uma obrigação adicional» (48).

87.      Por conseguinte, qualquer forma de proteção do direito do demandante no processo principal tem, necessariamente, de ser indireta e diferida no tempo. O demandante pretende obter a declaração de que a legislação nacional em causa é incompatível com as disposições da Diretiva 2001/82, devendo por isso ser alterada pelas autoridades nacionais competentes. Compreendo que só nesse momento, e como consequência da alteração das regras nacionais daí resultante, é que as empresas farmacêuticas poderiam ser obrigadas a dar cumprimento às novas regras para o futuro.

88.      À luz do que precede, que solução, e mais precisamente, que tipo de medida de reparação deve o órgão jurisdicional nacional decretar?

89.      Por um lado, pelas razões expostas nos n.os 71 a 82 das presentes conclusões, o tipo e a gravidade da suposta violação e as consequências dessa violação não são provavelmente suscetíveis de exigir uma forma de reparação draconiana. Como tal, o órgão jurisdicional de reenvio pode muito bem chegar à conclusão de que seria desproporcionado decretar as três medidas requeridas pelo demandante. Em particular, o pedido do demandante no sentido de o órgão jurisdicional de reenvio declarar que as autoridades irlandesas são obrigadas a alterar a legislação nacional para assegurar a transposição correta do título V da Diretiva 2001/82 pode, eventualmente também à luz do princípio da separação de poderes (49), ir além do necessário para assegurar a proteção do direito do demandante.

90.      Por outro lado, contudo, se se vier a concluir que os pedidos do demandante são fundados, o que cabe, no entanto, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, não vejo como se poderá considerar o desfecho desse processo justo e proporcionado se o demandante sair do tribunal de mãos vazias.

91.      O direito à ação deve necessariamente implicar que o órgão jurisdicional competente, em princípio, analise o mérito da pretensão em causa e decrete medidas de reparação adequadas (50), e que essas medidas sejam devidamente executadas (51). O direito a um juiz deixaria de ter sentido se fosse negado a uma parte vencedora qualquer forma de satisfação em resposta a uma violação dos seus direitos, evidentemente no caso de não existir uma circunstância excecional que o justifique.

92.      Tais circunstâncias excecionais verificam‑se no presente processo?

93.      No caso vertente, as autoridades irlandesas invocam duas razões principais para se oporem a que seja dada satisfação a qualquer das pretensões do demandante. A primeira é relativa à boa administração da justiça e à economia processual: o deferimento das referidas pretensões não serviria nenhuma finalidade útil, uma vez que o demandante compreende as informações em inglês. Além disso, uma nova regra da União compatível com as atuais disposições do direito nacional entrará em vigor em breve. A segunda diz respeito a um possível prejuízo para terceiros: o risco de os produtores e os distribuidores de medicamentos veterinários abandonarem temporariamente o mercado irlandês para evitar custos suplementares, afetando assim a saúde animal.

94.      Em princípio, concordo com a República da Irlanda que a boa administração da justiça e a economia processual (52) e/ou a necessidade de evitar um risco de escassez de medicamentos veterinários (53) são, em si mesmas e em geral, interesses merecedores de tutela. Como tal, o órgão jurisdicional nacional pode tê‑los em consideração no exercício da sua margem de apreciação. Todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, nas presentes circunstâncias, a utilização efetiva da margem de apreciação do órgão jurisdicional de reenvio para recusar qualquer das pretensões seria uma contribuição significativa para a proteção desses interesses e, em todo o caso, não ultrapassaria o que é necessário para esse efeito.

95.      Uma vez que, à data, falta mais de um ano para a entrada em vigor do novo regulamento da União, é difícil considerar que este período de tempo é absolutamente negligenciável. Pode‑se recordar novamente que as disposições da União devem produzir a plenitude dos seus efeitos «a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade» (54). Pode ser verdade que o demandante compreende as informações em inglês. Esse facto pode provavelmente ser considerado apenas um elemento que sugere uma menor gravidade da infração e que há uma menor urgência em encontrar alguma forma de reparação. Em contrapartida, tenho mais dúvidas de que se possa considerar este elemento o (único) fundamento para justificar a recusa de conceder ao demandante qualquer forma de proteção dos seus direitos, uma vez que este elemento não obstou a que se considerasse que o demandante tinha legitimidade e o processo está agora a ser apreciado quanto ao mérito.

96.      Além disso, as supostas consequências negativas para terceiros e para o Estado não são imediatas nem decorrem automaticamente de qualquer decisão adotada pelo órgão jurisdicional de reenvio no âmbito do presente processo. Por força do princípio do primado do direito da União, um conflito entre uma disposição de direito nacional e uma disposição do direito da União diretamente aplicável é resolvido por um órgão jurisdicional nacional aplicando este último e não aplicando, se necessário, a disposição nacional contrária. Contudo, esta declaração do Tribunal de Justiça foi feita e reiterada (55) no âmbito de processos judiciais, que são processos inter partes, cujo resultado normalmente é vinculativo para as partes no litígio. No entanto, não foi afirmado que, por força do direito da União, um conflito jurídico deve ser resolvido através da declaração de que a disposição nacional é nula, inválida ou inexistente (56). Com efeito, os poderes dos órgãos jurisdicionais nacionais são uma questão que deve ser definida por cada Estado‑Membro. O efeito direto e o primado não exigem que as decisões judiciais em causa tenham alguma forma de efeito erga omnes (57).

97.      Em face do exposto, pergunto‑me se — partindo do princípio de que a apreciação feita pelo órgão jurisdicional de reenvio relativamente à interpretação das disposições da União em causa está correta — deferir as pretensões através de uma mera declaração de que as disposições nacionais em causa não transpõem corretamente a Diretiva 2001/82 não será o modo mais adequada de reparação. Por um lado, reconhece a possível infração invocada e concede ao demandante algum tipo de satisfação moral(58), podendo eventualmente dar‑lhe simultaneamente a possibilidade de exigir a reparação de qualquer prejuízo que tenha sofrido caso estejam preenchidos os requisitos de responsabilidade extracontratual do Estado (59). Por outro lado, esse tipo de reparação tem um alcance e efeitos muito limitados, especialmente relativamente a terceiros, e constitui uma ingerência menos marcada em relação às autoridades legislativas e administrativas irlandesas.

98.      Todavia, como foi repetidamente mencionado ao longo das presentes conclusões, é da responsabilidade do órgão jurisdicional de reenvio apreciar e ponderar todos estes elementos. Todos os pontos abordados na presente secção destinavam‑se simplesmente a confirmar que existe uma série de soluções possíveis. A conclusão geral destas conclusões é simplesmente que, em meu entender, o direito da União não suprime, mesmo que estejam em causa direitos baseados no direito da União, a margem de apreciação de que normalmente dispõe um órgão jurisdicional nacional para encontrar uma solução casuística adequada e proporcionada para o caso concreto, incluindo a escolha da medida a decretar a favor do demandante, evidentemente desde que a sua ação seja procedente.

V.      Conclusão

99.      Proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pela Ard‑Chúirt (Tribunal Superior, Irlanda) do seguinte modo:

–        O direito da União, em especial os princípios da autonomia processual e da proteção jurisdicional efetiva, não se opõe a uma legislação ou prática nacional segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem de um poder discricionário para determinar se devem deferir as pretensões de reparação e, na afirmativa, que tipo de medidas de reparação devem decretar, de um demandante que alega que as autoridades não transpuseram corretamente uma diretiva, no caso de a ação que intentou ser julgada procedente.

–        Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio garantir que existe, nos factos e no contexto de cada caso individual que lhe seja submetido, uma relação razoável entre a natureza dos direitos invocados, a gravidade da sua violação ou o prejuízo sofrido e o tipo de reparação pedida e, consequentemente, as medidas que decide decretar (ou eventualmente não decretar) a favor do demandante.


1      Língua original: inglês.


2      JO 2001, L 311, p. 1, conforme alterado.


3      JO 2019, L 4, p. 43.


4      V., por exemplo, Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 111).


5      Com maior profundidade e com mais referências, v., recentemente, por exemplo, as minhas Conclusões no processo C‑505/19, Bundesrepublik Deutschland (Alerta vermelho da Interpol) (EU:C:2020:939, n.o 34 e jurisprudência referida).


6      V. n.o 18, supra.


7      V., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.os 14 e 15); de 19 de junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 18); e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 54).


8      V., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.os 16 e 21); de 19 de junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 19); e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 55).


9      V., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.o 22); de 19 de junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 20); e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 56).


10      V., entre outros, o recente Acórdão de 24 de outubro de 2018, XC e o. (C‑234/17, EU:C:2018:853, n.os 21 a 22 e jurisprudência referida).


11      Por ter sido pela primeira vez articulada no Acórdão de 16 de dezembro de 1976, Rewe‑Zentralfinanz and Rewe‑Zentral (33/76, EU:C:1976:188).


12      C‑89/17, EU:C:2018:225, n.os 99 a 107.


13      V., entre todos, Acórdãos de 29 de novembro de 2018, Bank Tejarat/Conselho (C‑248/17 P, EU:C:2018:967, n.o 79), e de 31 de janeiro de 2019, Islamic Republic of Iran Shipping Lines e o./Conselho (C‑225/17 P, EU:C:2019:82, n.o 62).


14      V., neste sentido, Acórdãos de 6 de novembro de 2012, Otis e o. (C‑199/11, EU:C:2012:684, n.o 49), e de 17 de dezembro de 2015, Imtech Marine Belgium (C‑300/14, EU:C:2015:825, n.o 38).


15      V., com mais referências, as minhas Conclusões no processo Banger (C‑89/17, EU:C:2018:225, n.o 104).


16      V., a este respeito, Acórdãos de 18 de julho de 2013, Comissão e o./Kadi (C‑584/10 P, C‑593/10 P e C‑595/10 P, EU:C:2013:518, n.o 102), e de 26 de julho de 2017, Sacko (C‑348/16, EU:C:2017:591, n.o 41).


17      A doutrina deu a entender que haveria flutuações ou alterações em termos de abordagem, que oscilou entre uma maior ou uma menor intervenção por parte do Tribunal de Justiça ao longo do tempo. V., por exemplo, Dougan, M., National Remedies Before the Court of Justice: Issues of Harmonisation and Differentiation, Hart Publishing, Oxford, 2004, pp. 227 a 233 ou Tridimas, T., The General Principles of EC Law, 2.a edição, Oxford University Press, Oxford, 2006, pp. 420 a 422.


18      V., nomeadamente, Acórdãos de 1 de dezembro de 1995, Van Schijndel e Van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:441); de 24 de outubro de 1996, Kraaijeveld e o. (C‑72/95, EU:C:1996:404); e de 17 de março de 2016, Bensada Benallal (C‑161/15, EU:C:2016:175).


19      V., a este respeito, Acórdãos de 15 de setembro de 1998, Edis (C‑231/96, EU:C:1998:401, n.o 36), e de 1 de dezembro de 1998, Levez (C‑326/96, EU:C:1998:577, n.o 42).


20      Respetivamente, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.os 14 a 15); de 9 de novembro de 1983, San Giorgio (199/82, EU:C:1983:318); de 19 de junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 18); de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723); de 5 de outubro de 2010, Elchinov (C‑173/09, EU:C:2010:581); e de 11 de novembro de 2015, Klausner Holz Niedersachsen (C‑505/14, EU:C:2015:742).


21      V., respetivamente, Acórdãos de 19 de novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, EU:C:2009:719); de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503); de 21 de dezembro de 2016, Gutiérrez Naranjo e o. (C‑154/15, C‑307/15 e C‑308/15, EU:C:2016:980); e de 28 de julho de 2016, Association France Nature Environnement (C‑379/15, ECLI:EU:C:2016:603).


22      V., respetivamente, Acórdãos de 2 de dezembro de 1997, Fantask e o. (C‑188/95, EU:C:1997:580); de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli (C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363); de 22 de dezembro de 2010, DEB (C‑279/09, EU:C:2010:881); e de 8 de novembro de 2016, Lesoochranárske zoskupenie VLK (C‑243/15, EU:C:2016:838).


23      V., em particular, Acórdãos de 5 de dezembro de 2017, M.A.S. e M.B. (C‑42/17, EU:C:2017:936); de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o. (C‑310/16, EU:C:2019:30); e de 19 de dezembro de 2019, Deutsche Umwelthilfe (C‑752/18, EU:C:2019:1114).


24      V., nomeadamente, Prechal, S., «Community Law in National Court: The Lessons from Van Schijndel», Common Market Law Review vol. 35, 1998, p. 687.


25      Possivelmente também chamado de «regra de razão», «proporcionalidade», ou simplesmente de «equilíbrio razoável» dos interesses em jogo a alcançar — v. Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs nos processos apensos van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:185, n.o 31), e Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1994:184, n.o 40).


26      V., em particular, Acórdãos de 14 de dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:441, n.o 19), e de 14 de dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1995:437, n.o 14). Mais recentemente, v. Acórdão de 2 de abril de 2020, CRPNPAC e Vueling Airlines (C‑370/17 e C‑37/18, EU:C:2020:260, n.o 93).


27      V., neste sentido, por exemplo, Acórdão de 24 de janeiro de 2012, Dominguez (C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 33 e jurisprudência referida).


28      V., entre todos, Acórdãos de 19 de janeiro de 1982, Becker (8/81, EU:C:1982:7, n.o 25), e de 15 de abril de 2008, Impact (C‑268/06, EU:C:2008:223, n.os 56 a 57).


29      V. n.os 22 e 23, supra.


30      Mais pormenorizadamente e com mais referências, v. também as minhas Conclusões no processo Klohn (C‑167/17, EU:C:2018:387, n.os 36 a 46).


31      V., como exemplo recente, as minhas Conclusões no processo Fashion ID (C‑40/17, EU:C:2018:1039, n.os 45 a 48).


32      V., por analogia, TEDH, 20 de março de 2008, Budayeva e o c. Rússia (CE:ECHR:2008:0320JUD001533902, § 191).


33      V. n.os 54 a 62, supra.


34      Conselho CEE: Regulamento n.o 1 que estabelece o regime linguístico da Comunidade Económica Europeia (JO 1958, 17, p. 385; EE 01 F1 p. 8), conforme alterado posteriormente.


35      V. artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 920/2005 do Conselho, de 13 de junho de 2005, que altera o Regulamento n.o 1, de 15 de abril de 1958, que estabelece o regime linguístico da Comunidade Económica Europeia, e o Regulamento n.o 1, de 15 de abril de 1958, que estabelece o regime linguístico da Comunidade Europeia da Energia Atómica, e que introduz medidas de derrogação temporária desses regulamentos (JO 2005, L 156, p. 3), posteriormente prorrogado pelo Regulamento (UE) n.o 1257/2010 do Conselho, de 20 de dezembro de 2010, que prorroga as medidas de derrogação temporária ao Regulamento n.o 1, de 15 de abril de 1958, que estabelece o regime linguístico da Comunidade Económica Europeia, e ao Regulamento n.o 1, de 15 de abril de 1958, que estabelece o regime linguístico da Comunidade Europeia da Energia Atómica, introduzidas pelo Regulamento (CE) n.o 920/2005 (JO 2010, L 343, p. 5). Em geral, v. Relatório da Comissão ao Conselho sobre os progressos alcançados pelas Instituições da União na execução da redução progressiva da derrogação respeitante ao irlandês, COM(2019) 318 final.


36      Regulamento (CE) n.o 930/2004 do Conselho, de 1 de maio de 2004, relativo às medidas temporárias de derrogação relacionadas com a redação dos atos das Instituições da União Europeia em maltês (JO 2004, L 169, p. 1).


37      V., a este respeito, Acórdãos de 9 de setembro de 2003, Kik/IHIM (C‑361/01 P, EU:C:2003:434), n.os 82 a 94); de 12 de maio de 2011, Polska Telefonia Cyfrowa (C‑410/09, EU:C:2011:294, n.o 38); e de 26 de março de 2019, Comissão/Itália (C‑621/16 P, EU:C:2019:251, n.os 89 a 97). V., igualmente, de forma mais geral, as minhas conclusões no processo Comissão/Itália (C‑621/16 P, EU:C:2018:611, n.os 153 a 179).


38      Tomo esta expressão das Conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs no processo Kik/IHMI (C‑361/01 P, EU:C:2003:175, n.o 50).


39      Bons exemplos disso são dados pelos Acórdãos de 28 de novembro de 1989, Groener (C‑379/87, EU:C:1989:599); de 24 de novembro de 1998, Bickel e Franz (C‑274/96, EU:C:1998:563); de 6 de junho de 2000, Angonese (C‑281/98, EU:C:2000:296); e de 27 de março de 2014, Ruffer (C‑322/13, EU:C:2014:189).


40      Acórdão de 11 de dezembro de 2007 (C‑161/06, EU:C:2007:773). Outro exemplo está disponível no Acórdão de 20 de maio de 2003, Consorzio del Prosciutto di Parma e Salumificio S. Rita (C‑108/01, EU:C:2003:296).


41      A este respeito, v. também o Acórdão de 10 de março de 2009, Heinrich (C‑345/06, EU:C:2009:140). Todavia, v. (não relativamente a um caso de uma falta temporária de tradução e publicação da legislação após um alargamento da União, mas numa situação em que uma legislação era mantida em segredo de maneira intencional e possivelmente indefinida, as muito mais convincentes) Conclusões da advogada‑geral E. Sharpston no processo Heinrich (C‑345/06, EU:C:2008:212).


42      Acórdão de 5 de março de 2009 (C‑222/07, EU:C:2009:124).


43      Acórdão de 12 de maio de 2011 (C‑391/09, EU:C:2011:291).


44      V., por exemplo, Acórdãos de 16 de abril de 2013, Las (C‑202/11, EU:C:2013:239), e de 21 de junho de 2016, New Valmar (C‑15/15, EU:C:2016:464).


45      A este respeito, v. Acórdãos de 19 de junho de 1990, Factortame e o. (C‑213/89, EU:C:1990:257); de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, EU:C:2007:163); e de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami (C‑583/11 P, n.os 103 a 104).


46      V., n.o 24, supra.


47      V., nomeadamente, Acórdãos de 2 de fevereiro de 1986, Marshall (152/84, EU:C:1986:84, n.o 48); de 14 de julho de 1994, Faccini Dori (C‑91/92, EU:C:1994:292); e de 22 de janeiro de 2019, Cresco Investigation (C‑193/17, EU:C:2019:43, n.o 72).


48      Acórdão de 24 de junho de 2019 (C‑573/17, EU:C:2019:530, n.o 67).


49      Um princípio que o Tribunal de Justiça considerou como decorrente do princípio do Estado de Direito: v., neste sentido, Acórdãos de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 35), e de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 124).


50      V., neste sentido, TEDH, 30 de outubro de 1991, Vilvarajah e o. c. Reino Unido, (CE:ECHR:1991:1030JUD001316387, § 122).


51      V., para uma análise da jurisprudência pertinente do TEDH, as minhas Conclusões no processo Torubarov (C‑556/17, EU:C:2019:339, n.os 60 a 62).


52      Neste sentido, v., nomeadamente, Acórdão de 12 de fevereiro de 2015, Baczó e Vizsnyiczai (C‑567/13, EU:C:2015:88, n.o 51).


53      Neste sentido, v., nomeadamente, Acórdão de 16 de setembro de 2008, Sot. Lélos kai Sia e o. (C‑468/06 a C‑478/06, EU:C:2008:504, n.o 75).


54      V. n.o 34, supra.


55      V. n.os 34 a 36, supra.


56      V. Acórdão de 19 de novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, EU:C:2009:719, n.os 82 a 83).


57      V., neste sentido, Acórdão de 4 de dezembro de 2018, The Minister for Justice and Equality and Commissioner of the Garda Síochána (C‑378/17, EU:C:2018:979, n.os 33 a 34).


58      A este respeito, saliento que, no contexto das ações de responsabilidade extracontratual da União Europeia, as formas simbólicas de reparação ou o mero reconhecimento no acórdão do evento ilegal podem constituir uma reparação satisfatória para efeitos do artigo 340.o TFUE: v., nomeadamente, Acórdãos de 14 de junho de 1979, V./Comissão (18/78, EU:C:1979:154, n.o 19); de 9 de julho de 1981, Krecké/Comissão (59/80 e 129/80, EU:C:1981:170, n.o 74); e de 9 de julho de 1987, Hochbaum e Rawes/Comissão (44/85, 77/85, 294/85 e 295/85, EU:C:1987:348, n.o 22). Esta prática afigura‑se consistente com a do TEDH: v., nomeadamente, TEDH, 23 de novembro de 1976, Engel e o. c. Países Baixos (CE:ECHR:1976:1123JUD000510071, §§ 10 a 11); 17 de outubro de 2002, Agga c. Grécia (CE:ECHR:2002:1017JUD005077699, §§ 65 a 66); e 30 de novembro de 2004, Vaney c. França (CE:ECHR:2004:1130JUD005394600, §§ 55 a 57).


59      V. Acórdãos de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428), e de 5 de março 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame (C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79).